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“Da seringa ao chá”: Uma História de Mestres e Padrinhos na Amazônia brasileira

“From the rubber tree to the tea”: A History of Masters and Godparents in the Brazilian Amazon.

Resumo:

O artigo reflete sobre os contextos históricos e antropológicos envolvidos no surgimento das religiões brasileiras da ayahuasca, cuja biografia dos fundadores será descrita cronologicamente, tendo em vista se tratarem de agentes de cura e transformação social, que, por meio de doutrinas, acolheram sujeitos em vulnerabilidade na Floresta Amazônica - durante os ciclos do extrativismo gomífero nacional - desde os primórdios do século XX. Busca-se compreender os contextos que levaram à formação das Linhas do Santo Daime, da Barquinha e da União do Vegetal, acessando os fenômenos institucionais, místicos e metafísicos inerentes a tais sistemas simbólicos através da descrição e análise de seus mitos, cosmologias e rituais, assim como a proximidade e o afastamento das irmandades no tocante às matrizes indígenas, vegetalistas e africanas que, na contemporaneidade, são reinterpretadas em relação ao uso ritual da bebida no Brasil e no exterior.

Palavras-chave:
Amazônia; Ayahuasca; Espi­ritis­­mo popular

Abstract:

The article reflects on the historical and anthropological contexts about the emergence of Brazilian religions of ayahuasca, whose biography of the founders will be described in chronological order, considering that they are agents of healing and social transformation, who through doctrines healed people in vulnerability in the Amazon Rainforest - during the cycles of Brazilian gum extraction - in the early 20th Century. We seek to understand the contexts of formation of the Santo Daime, Barquinha and União do Vegetal Spiritualist Lines, by accessing the institutional, mystical and metaphysical phenomena of these symbolic systems through the description and analysis of their myths, cosmologies and rituals, as well the proximity and distance of the groups in relation to indigenous, vegetalists and african matrices that, in contemporary times, are reinterpreted before the ritual use of the drink in Brazil and abroad.

Keywords:
Amazon; Ayahuasca; Popular spiritism

Introdução: A ayahuasca num mundo de seringueiros, beatos e curandeiros

Ao analisarmos a história das religiões da ayahuasca na Amazônia brasileira deparamo-nos com o papel dos seringueiros nordestinos e seus descendentes na fundação de religiões inspiradas no uso ritualístico da bebida. Almeida (1992ALMEIDA, Mauro Willian Barbosa de. Rubber tappers of the Upper Juruá river, Brazil: the making of a forest peasant economy. Thesis (PHD in Anthropology) - Cambridge University, London. 1992.) nos revelou a importância dos sujeitos que atuaram nos seringais e nas periferias urbanas amazônicas no início do século XX como rezadores e curadores. Profetas, penitentes e soldados da borracha que deixaram suas terras no Nordeste brasileiro rumo à Floresta Amazônica.

Trabalhando num sistema de semiescravidão, alguns extraíram da floresta algo mais do que a seiva da seringueira, fundando sistemas religiosos e demonstrando como atores subalternizados foram e são capazes de contribuir para a cultura religiosa nacional e, até certo ponto, mundial pois algumas doutrinas expandiram-se, adquirindo outros contextos e reinterpretações. Franco e Conceição (2002FRANCO, Maria Ciavatta Pantoja; CONCEIÇÃO, Osmildo Silva. Breves revelações sobre a ayahuasca, antropomorfismo e mundo natural. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 201-227.) descreveram os significados do chá entre seringueiros, sobretudo aqueles situados na Reserva Extrativista do Alto Juruá, localizada no oeste do Acre. Uma área replena de rios e matas com incidência da Hevea brasiliensis.

Na Amazônia brasileira, até 1870, a historiografia nos mostra ocasionais investidas extrativistas para obtenção de baunilha, salsaparrilha, óleo de copaíba, látex e outros produtos vegetais, utilizando-se da exploração da mão de obra de indígenas de línguas Pano e Aruák; grupos étnicos perseguidos para escravização no trabalho na seringa, uma vez que, no final do século XIX, o Brasil passou a ser o principal exportador de borracha. Maior complicador era a mão de obra, dado que os indígenas não se deixaram escravizar sem resistência.

Nesses tempos acompanhamos violentas incursões (“correrias”), no intento de remover populações étnicas assentadas em terras extrativistas Os indígenas não exauridos pelas correrias debandaram para territórios onde não havia seringais. Outros foram “absorvidos” pelo mercado, conquanto a mão de obra essencial tenha vindo do Nordeste brasileiro.

Do final do século XIX para o início do XX, cerca de 50 mil nordestinos foram recrutados pelo exército da borracha, ocupando seringais nas margens do rio Tejo, que já em 1907 foram descritas como densamente povoadas. Isolados na floresta, os soldados da borracha ficaram reféns dos patrões, que exerciam domínio sob a extração do látex, afetando a vida dos atores imersos num ciclo de exploração e monopólio da seringa e de bens básicos (Almeida, 1992ALMEIDA, Mauro Willian Barbosa de. Rubber tappers of the Upper Juruá river, Brazil: the making of a forest peasant economy. Thesis (PHD in Anthropology) - Cambridge University, London. 1992.; Franco; Conceição, 2002FRANCO, Maria Ciavatta Pantoja; CONCEIÇÃO, Osmildo Silva. Breves revelações sobre a ayahuasca, antropomorfismo e mundo natural. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 201-227.).

Em 1912 a exportação da borracha sofreu impacto devido à concorrência dos seringais orientais. Nessa e noutras crises do ciclo da borracha, Almeida (1992ALMEIDA, Mauro Willian Barbosa de. Rubber tappers of the Upper Juruá river, Brazil: the making of a forest peasant economy. Thesis (PHD in Anthropology) - Cambridge University, London. 1992.), Franco e Conceição (2002FRANCO, Maria Ciavatta Pantoja; CONCEIÇÃO, Osmildo Silva. Breves revelações sobre a ayahuasca, antropomorfismo e mundo natural. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 201-227.) destacam a resistência dos seringueiros, que decidiram permanecer nos seringais, apesar da migração para as cidades. Os que ficaram estabeleceram estratégias de sobrevivência, por meio da agricultura e do extrativismo.

Durante o século XX, os seringais amazônicos continuaram ativos e ocupados pelos descendentes - os caboclos - dos soldados da borracha, que, naquelas terras, constituíram famílias. Em 1980 os seringais do Alto Juruá encontravam-se envoltos de territórios indígenas demarcados pelo Governo Federal, desde a década de 1970, fazendo com que índios e seringueiros convivessem na mesma Reserva Extrativista do Alto Juruá; uma Área de Proteção Ambiental estabelecida em 1990. Vizinhança marcada não apenas por conflitos históricos, políticos e econômicos, uma vez que as permutas culturais - inerentes aos territórios em fricção interétnica (Oliveira, 1978OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. A sociologia do Brasil indígena. Brasília: Editora da UnB, 1978.) - foram e são constantes, especialmente, no tocante ao uso da ayahuasca transmitido dos indígenas para os seringueiros.

Um hábito que fortaleceu alianças, apaziguando conflitos. Nos seringais, a bebida concedeu aos seringueiros o acesso às realidades alternativas, visto que representou elemento crucial na resolução de problemas cotidianos, onde os sujeitos viram-se na busca por aperfeiçoamento, encontrando sentidos para a vida e adaptando-se melhor à floresta, pois afirmam que o chá exigiu deles um convívio pacífico entre vivos e não vivos. Significado capaz de remeter os sujeitos às coisas divinas, sendo a ayahuasca - no contexto seringalista - eficaz condutor de comportamentos e visões de mundo.

As graças de São Irineu no poder do Santo Daime

O seringueiro, negro e maranhense Raimundo Irineu Serra1 1 Nascido em São Vicente Ferrer (MA), em 1890, alistou-se no exército da borracha em 1914, quando emigrou para o Acre. Conheceu a ayahuasca em seringais peruanos, onde conviveu com os primos Antônio e André Costa. Em 1930 passou a ser reconhecido como curador, permanecendo no Acre até 1971, quando faleceu. representa personagem imponente na constituição da primeira religião brasileira da ayahuasca - intitulada “Alto Santo”2 2 Irineu e seus primos participaram, antes da fundação do Alto Santo, do Círculo de Regeneração e Fé (CRF), um centro esotérico onde já se consumia ayahuasca. - ao longo da década de 1930.3 3 Em 1963, o Alto Santo foi renomeado por Irineu e passou a chamar-se “Centro de Iluminação Cristã Luz Universal - Alto Santo” (Ciclu-Alto Santo). Um culto popular, xamanístico e cristão constituído por pessoas humildes e estabelecido na periferia da cidade de Rio Branco.

Sob a orientação do Mestre Irineu - referente a uma instrução da Virgem da Conceição4 4 Santa católica que, de acordo com Labate e Pacheco (2002), assume relevância para a religiosidade popular maranhense, especificamente para a Linha da Pajelança. ou Rainha da Floresta - a bebida recebeu o nome de Santo Daime; expressão que invoca os espíritos presentes no chá (feito do cozimento das folhas da Rainha, Psychotria viridis, junto com o cipó Jagube, Banisteriopsis caapi) que, depois de consagrado, atua no inconsciente e organismo humanos, chegando à possibilidade de atendimento das súplicas feitas pelos fiéis, que imploram aos espíritos da bebida que lhes deem força, luz e amor.

Ao mudar o nome da bebida para Santo Daime e estabelecer uma releitura do cristianismo, Irineu rompeu com a matriz aborígene do consumo do chá, implantando nova modalidade religiosa, adaptando-a a condição de época (início do século XX), onde são marcantes os processos urbanos desordenados, assim como a repressão e a depreciação das religiões espíritas populares em todo território nacional (Goulart, 2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004).

Goulart (2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004GOULART, Sandra Lúcia. Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2004.) indicou os processos ocorridos nessa época, na Amazônia, que levaram aos formatos encontrados na práxis religiosa da Linha do Mestre. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que Irineu e seus companheiros viveram tempos difíceis para a adaptação à condição citadina em um estado desordenado de urbanização, composto por seringueiros que migraram para as cidades nas crises do ciclo da borracha, iniciadas em 1920, estendendo-se até 1940.

Nessas condições, saberes e práticas da cultura popular foram ressignificados pelos primeiros daimistas no estabelecimento do culto como forma de resistência. Assim, Goulart (2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004) sinalizou para a relevância de elementos comuns às populações rurais como o mutirão, o compadrio e as festas dos santos enquanto primordiais à fundação do Alto Santo.5 5 Labate e Pacheco (2002) atentam para a possibilidade de o culto daimista ter tido influências de elementos da cultura maranhense, dentre os quais a Pajelança, a Festa do Divino e o Baile de São Gonçalo. Elementos hábeis ao estabelecimento de princípios de pertencimento e reciprocidade.

Irineu ergueu a sede de sua Igreja na Colônia Custódio Freire,6 6 Localidade atualmente intitulada Bairro Irineu Serra. terreno adquirido pela irmandade na periferia de Rio Branco. São Irineu - outra denominação estipulada após sua morte em 1971 - trouxe conforto aos menos favorecidos por meio de procedimentos terapêuticos atrelados ao Santo Daime, acompanhados de cantos, danças e preces, cumprindo a função de médicos e padres inexistentes na localidade. Esta figura carismática - e também líder comunitário - dava conselhos e orientava seus adeptos na direção do respeito e da caridade.

Os Trabalhos7 7 A noção de Trabalho é destinada ao corpo e espírito dos adeptos, girando em torno das Mirações. são intitulados Trabalhos de Bailado ou Trabalhos de Hinário, momentos, nos quais os daimistas cantam e bailam Hinos8 8 Hinos trazem ensinos na forma de canto e música, permitindo que os mitos e os princípios daimistas sejam repetidos e reforçados. considerados manifestações divinas. Já o Hinário representa um conjunto de Hinos recebidos do Astral por daimistas. O Hinário primordial é o Cruzeiro, composto por 129 Hinos recebidos por Irineu da Rainha da Floresta. O Cruzeiro é o eixo basilar da doutrina sustentada pela oralidade. Outros Hinários surgiram dentre os companheiros do Mestre, hoje já falecidos, e que trazem especial relevância para a doutrina do Ciclu-Alto Santo (Goulart, 2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004GOULART, Sandra Lúcia. Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2004.).

O Bailado é o ponto forte nos ritos, dado que o fundador e os primeiros adeptos tinham por tradição à participação em festas e folguedos, onde o canto e a dança se fazem presentes (Labate; Pacheco 2002LABATE, Beatriz Caiuby; PACHECO, Gustavo. Matrizes maranhenses do Santo Daime. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO, Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras , 2002, p. 303-344.). O Baile e o canto daimistas representam “resquícios” dessas festividades, além de presumirem meios de homenagear entidades sobrenaturais.

Goulart (2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004GOULART, Sandra Lúcia. Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2004.) indicou que, na década de 1930, as práticas católicas envoltas em folias e festas passaram por modificações devido aos embates envolvendo dois tipos de catolicismo no Brasil: um ortodoxo (obediente à Igreja e conduzido por sacerdotes nomeados) e outro popular (festivo e liderado por beatos). Nesses termos, diante da transição da ruralidade para a urbanidade, observamos formas culturais intermediárias, quando em condição citadina, o catolicismo popular passou por radicais reinterpretações e adaptações.

Para Goulart (2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004GOULART, Sandra Lúcia. Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2004.), o surgimento do Alto Santo atesta uma entre inúmeras formas de cristianismo popular insurgente às regras e padrões ortodoxos, “preservando” a festa, a alegria e a dança. Os ritos daimistas retomam a lógica e o significado da relação entre a festa e o sagrado,9 9 Todos os ritos do Alto Santo são festivos, com exceção da Missa de Finados. pois a ausência do canto e do baile, após a consagração do Daime, é vista como obstrutiva ao contato com o Reino do Astral.

Para Goulart (2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004GOULART, Sandra Lúcia. Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2004.), foi na translocação da festa de dança para o Trabalho de Hinário que o Bailado adquiriu a configuração atual. Tomados pelo poder do Daime, os novos foliões se dividem em fileiras, que separam homens de mulheres, a cantar, bailar e tocar maracás; uns de frente para os outros, num movimento sincrônico realizado a passos curtos, seguindo os ritmos da valsa, da marcha e da mazurca. O Bailado é tido como a marcha de um batalhão militar, dado que cada adepto se considera um soldado do Império Juramidam que marcha de consciência ampliada durante as Mirações. O baile inspira-se na noção de disciplina, atingida pela retidão moral dos adeptos dessa religião de base espiritualista, que teve como suporte elementos kardecistas, mas também elementos do esoterismo europeu do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento e da Ordem Rosacruz.

Nesta cosmologia encontramos o dualismo entre corpo e alma, porém, sob nova interpretação, à luz do kardecismo; ideologia que propende à renúncia de ações e sensações definidas pelo prisma da involução espiritual. A bebida - que adquire status de sacramento - é possuidora de um poder terapêutico, porém o mesmo aparece atrelado à postura dos sujeitos. No Alto Santo, permanecem determinados símbolos e concepções dos saberes indígenas, vegetalistas e africanos, reconfigurados à luz da filosofia kardecista, quando o sistema deixa de lado, por exemplo, as incorporações espirituais, o experimentalismo dessas tradições, assim como suas relações e concepções sobre natureza e cultura (Lira, 2016LIRA, Wagner Lins. “Daqui nós tira um ouro de chá!” Umbanda, Santo Daime e xamanismo popular no tratamento religioso de patologias físicas, mentais e espirituais: o caso de um terreiro alagoano. Tese (Doutorado em Antropologia), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.)

Uma “alquimia simbólica” que reflete as condições socioculturais prementes no início do século XX e que afetaram o mundo rural e suas manifestações religiosas. Momento histórico em que o kardecismo emergiu como referencial balizador, agregando saberes e práticas das religiões populares. Ao aproximar-se da doutrina de Kardec, o Mestre buscou estar de acordo com os padrões vigentes numa época e numa sociedade que valorizava as religiões que produziam sujeitos enquanto ontologias morais.

O que fica dos saberes tradicionais é a democratização dos estados ampliados de consciência, ou melhor, das Mirações do Daime, assim como a ideia ameríndia de transubstanciação espiritual, primeiramente, dos espíritos de Juramidam (Mestre Irineu no Astral) e da Virgem da Conceição - ao presidirem a sabedoria do chá - e, secundariamente, quando o daimista sabe que ingere um chá hábil a conduzi-lo às realidades metafísicas.

A Barquinha de Frei Daniel a navegar no Mar Sagrado

Nascido em Vargem Grande (MA) em 1888, Daniel Pereira de Mattos - filho de negros escravizados - chegou nas terras acreanas em 1905 a serviço da Marinha do Brasil (Araújo, 1999ARAÚJO, Wladimyr Sena. Navegando nas ondas do Daime: história, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.; Oliveira, 2002OLIVEIRA, Rosana Martins. De folha e cipó é a capelinha de São Francisco: a religiosidade popular na cidade de Rio Branco - Acre (1945-1958). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002.; Frenopoulo, 2005FRENOPOULO, Christian. Charity and spirits in the Amazonian navy: the Barquinha mission of the Brazilian Amazon. Thesis (Master of Arts in Anthropology) - University of Regina, Regina. 2005.; Mercante, 2006MERCANTE, Marcelo Simão. Images of healing: spontaneous mental imagery and healing process of the Barquinha, a Brazilian Ayahuasca religious system. Thesis (PHD in Anthropology) - Faculty of Saybrook Graduate School and Research Center, San Francisco, 2006.; Paskoali, 2002PASKOALI, Vanessa Paula. A cura enquanto processo identitário na Barquinha: o sagrado no cotidiano. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002.). Em seguida, navegou rumo à Europa e Oriente Médio, regressando à Rio Branco em 1907, quando aposentou-se após alçar patente de sargento. Instruiu-se na Marinha, dominando vários ofícios.

Em Rio Branco montou uma barbearia no bairro do Papoco, situado às margens do rio Acre. O consumo abusivo do álcool comprometera seu fígado, trazendo-lhe problemas de saúde. O fundador do Alto Santo, o Mestre Irineu, era um dos clientes da barbearia e convidou Daniel a tratar-se com o Santo Daime; bebida por ele consagrada em 193710 10 Araújo (1999) afirmou que o primeiro contato de Daniel com o Daime deu-se em 1936. (Oliveira, 2002OLIVEIRA, Rosana Martins. De folha e cipó é a capelinha de São Francisco: a religiosidade popular na cidade de Rio Branco - Acre (1945-1958). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002.). Durante o tratamento, o ex-marujo foi tomado pela visão de dois anjos que lhe trouxeram um livro azul, contendo os Salmos de uma emergente doutrina. Assim foi interpretado, quando Daniel anunciou sua nova missão que fora entregue da esfera espiritual.

A revelação fez com que Daniel estipulasse uma nova linha espiritualista, quando fundou, em 1945, perante autorização do Mestre Irineu, o “Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz” - conhecido por Capelinha de São Francisco - no bairro de Vila Ivonete, situado na periferia de Rio Branco. Antes da fundação, Frei Daniel, como passou a ser conhecido, recebeu instruções de Irineu referentes à feitura do Daime. Inicialmente, a Capelinha foi erguida à base de madeira e palha de sapê, onde Daniel viveu como eremita a exercitar a caridade, cuidando e tratando das pessoas através de Trabalhos mediúnicos com o Daime, recebendo em troca alimentos e outros bens de consumo. Logo, uma comunidade de seguidores foi-se formando ao redor desse Centro de cura.

Nesses tempos, a Capelinha passou por conflitos frequentes, tanto com a polícia,11 11 Nos tempos de Daniel, a Capelinha sofreu quatro incursões policiais. quanto com membros da Igreja católica - além de parte da sociedade acreana - inclusive com a estigmatização dos seguidores. Entretanto, a irmandade permaneceu resistente na continuidade de seus ritos, elaborando estratégias contra a discriminação, não se desviando de sua missão referente ao exercício da caridade destinada aos desvalidos em peregrinação.

Na Capelinha Daniel permaneceu por 13 anos, cumprindo missão de curador, médium e líder, até seu falecimento em 8 de setembro de 1958 (Araújo, 1999ARAÚJO, Wladimyr Sena. Navegando nas ondas do Daime: história, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.; Oliveira, 2002OLIVEIRA, Rosana Martins. De folha e cipó é a capelinha de São Francisco: a religiosidade popular na cidade de Rio Branco - Acre (1945-1958). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002.; Paskoali, 2002PASKOALI, Vanessa Paula. A cura enquanto processo identitário na Barquinha: o sagrado no cotidiano. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002.; Mercante, 2006MERCANTE, Marcelo Simão. Images of healing: spontaneous mental imagery and healing process of the Barquinha, a Brazilian Ayahuasca religious system. Thesis (PHD in Anthropology) - Faculty of Saybrook Graduate School and Research Center, San Francisco, 2006.). Com a morte de Daniel, Antônio Geraldo foi escolhido como sucessor, incorporando novos elementos à doutrina, a exemplo dos fardamentos - remetendo-nos à estética das fardas da Marinha - e as danças do Bailado. Inclusive, foi Antônio Geraldo quem denominou a doutrina de Barquinha, quando fora acometido por uma Miração que o fez vislumbrar um barco iluminado a navegar no mar sagrado.

Para a doutrina, a luz acompanha a vida cotidiana dos adeptos, protegendo-os das sombras, pois revela novos significados para a vida, além do que, os adeptos têm a Miração como fonte de recobro da saúde. A cura é vista como sinal da transformação, além de ser indicativa de que o suplicante se aproxima de Deus. A luz também se refere às tonalidades de cores e brilhos experienciados na Força do Daime.

Ao investigarem a Barquinha, os pesquisadores vêm aludindo à influência de certos elementos simbólicos do catolicismo popular, das religiões de matrizes africanas, das pajelanças, do vegetalismo andino e do xamanismo indígena. O culto também teve influência - tal qual no Alto Santo - da filosofia do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento (Araújo, 1999ARAÚJO, Wladimyr Sena. Navegando nas ondas do Daime: história, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.; Mercante, 2006MERCANTE, Marcelo Simão. Images of healing: spontaneous mental imagery and healing process of the Barquinha, a Brazilian Ayahuasca religious system. Thesis (PHD in Anthropology) - Faculty of Saybrook Graduate School and Research Center, San Francisco, 2006.). Outros símbolos estão associados aos mares, rios e seres aquáticos (reais ou mitológicos), remetendo-nos à trajetória biográfica do Frei Daniel.

A existência mítica da Barquinha remete-nos a uma dupla significação. Preliminarmente, a nau encarna a missão contida no livro entregue a Daniel ao mesmo tempo em que representa a navegação astral de cada adepto imerso nos ritos, sobretudo após o consumo da Santa Luz.12 12 Os adeptos também denominam a bebida de Santa Luz. Por outro lado, no plano Astral, a Barca é conduzida por São Francisco, São Sebastião, São José e Frei Daniel, que levam a embarcação ao encontro de Jesus Cristo, considerado seu legítimo proprietário.

Os que se fardam consideram-se marinheiros do mar sagrado, pois estão aptos à execução de ações condizentes à vida espírita, no intento de atingirem elucidação e aperfeiçoamento. Caso o marinheiro siga os princípios deontológicos fomentados pela Casa, após o desencarne é chamado de oficial, assim como as entidades, a exemplo de Dom Semião, agente norteador dos Trabalhos das Obras de Caridade (Araújo, 1999ARAÚJO, Wladimyr Sena. Navegando nas ondas do Daime: história, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.; Mercante, 2006MERCANTE, Marcelo Simão. Images of healing: spontaneous mental imagery and healing process of the Barquinha, a Brazilian Ayahuasca religious system. Thesis (PHD in Anthropology) - Faculty of Saybrook Graduate School and Research Center, San Francisco, 2006.).

Os oficiais Trabalham com instrumentos míticos como espadas, lanças e flechas, cujos poderes são reforçados pelos Salmos de Daniel, assim como todo um sistema eclético a serviço das energias e entidades do bem, vistas como forças armadas compostas por humanos e espíritos de luz em constante peleja contra entidades trevosas. A barca celestial torna-se espaço para comutação de seres malignos em espíritos benéficos, por meio de batalhas no mar sagrado, quando a Santa Luz propicia a navegação segura dos marinheiros, que passam a olhar não apenas para si, mas para o mundo e os outros seres. A luz faz com que os marinheiros adquiram conhecimento, além do que a bebida fomenta renovação e cura.

Araújo (1999ARAÚJO, Wladimyr Sena. Navegando nas ondas do Daime: história, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.) enxerga o ecletismo da Barquinha como uma colcha de retalhos na qual partes isoladas se juntam para a formação do sistema simbólico. Para ele, a costura dessa colcha figura a experiência ritualística, que vai sendo delimitada no transcorrer dos trajetos imaginários da barca, dado que os ritos propiciam revelações contínuas do lógico e do sensível. Estamos falando de uma cosmologia em construção, por meio da junção de filosofias e saberes religiosos díspares e inerentes à formação da doutrina.

As Obras de Caridade são os Trabalhos mais importantes, representando momentos onde entidades são incorporadas pelos médiuns no Terreiro e as consultas feitas nos Congás. Três médiuns Trabalham no Terreiro e nos Congás a receber entidades13 13 Os médiuns recebem espíritos de Pretos Velhos, além de Caboclos e Encantados. Encontramos a presença de espíritos de bispos, padres e arcebispos, pois a Barquinha representa uma missão franciscana. para atender e aconselhar pacientes por meio de passes. A depender da situação, o paciente é aconselhado a retornar à Casa para desfeito dos feitiços de Quimbanda;14 14 Prática oposta à Umbanda, acredita-se que quimbandeiros usam de magia para atacar infortunados. práticas ritualísticas, cuja finalidade é a de expurgar do sujeito a malignidade exercida por Quiumbas considerados entidades sem luz, mas que podem ser doutrinados e transformados em entidades de luz.

Durante a desfeita dos Trabalhos de Quimbanda, persiste a concepção de guerra do bem contra o mal para o alcance da cura. Os Quiumbas são resistentes às ordens superiores. Desviantes e tentados às transgressões, eles podem interferir no bem-estar dos suplicantes, assediando-os e atrapalhando suas vidas. Contudo, existe a possibilidade desses obsessores serem apaziguados pelas forças da luz emanadas pela Barquinha, inclusive, muitas dessas entidades tendem a prestar serviços de caridade aos Centros, após sua conversão. Os médiuns, durante as consultas, podem ou não consagrar o Daime, visto que têm o hábito de realizar certos Trabalhos sem o auxílio do chá (Araújo, 1999ARAÚJO, Wladimyr Sena. Navegando nas ondas do Daime: história, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.).

Com o objetivo de proteger os pacientes, durante as Obras de Caridade, os médiuns queimam os materiais utilizados pelos Quiumbas para atingir os infortunados, ao mesmo tempo que aprisionam as entidades num tipo de campo de concentração, do qual retornam quando se transformam em entidades iluminadas.

O Bailado no Terreiro é a continuidade dos ritos iniciados na Igreja. As danças são livres e menos padronizadas do que as do Alto Santo, pois têm a finalidade de brincar com as entidades envolvidas nas Obras de Caridade, que ocorrem em dias de comemoração aos santos e Orixás. Os Encantados podem incorporar nos Aparelhos dos brincantes para dançar e bailar ao som dos Salmos (Araújo, 1999ARAÚJO, Wladimyr Sena. Navegando nas ondas do Daime: história, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.; Oliveira, 2002OLIVEIRA, Rosana Martins. De folha e cipó é a capelinha de São Francisco: a religiosidade popular na cidade de Rio Branco - Acre (1945-1958). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002.; Paskoali, 2002PASKOALI, Vanessa Paula. A cura enquanto processo identitário na Barquinha: o sagrado no cotidiano. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002.; Mercante, 2006MERCANTE, Marcelo Simão. Images of healing: spontaneous mental imagery and healing process of the Barquinha, a Brazilian Ayahuasca religious system. Thesis (PHD in Anthropology) - Faculty of Saybrook Graduate School and Research Center, San Francisco, 2006.).

Uma brincadeira que serve para curar, expurgar entidades malignas e estabelecer trocas entre mortais e seres divinos. Uma brincadeira que dinamiza a cosmologia da Barquinha. As performances propiciam o fundamento de valores e sentimentos, dado que os sujeitos retornam à ordem mundana inebriados pelas dádivas do plano sagrado. Os Salmos - que foram recebidos por Daniel - trazem mensagens de como o Mestre via o mundo, procurando envolver conteúdos morais, políticos e sociais.

Variegados Salmos da Barquinha trazem tônicas condizentes às calamidades humanas, quando expõem o chamado de Daniel aos seus seguidores. Frei Daniel orientou seus adeptos na aquiescência de valores capazes de fortalecer vínculos na convivência social por meio do entrelaçamento entre religião e comunidade. Assim, ele elaborou um sistema hábil à transformação dos sujeitos e da coletividade pela emoção, inspirando-se na caridade, ao ampliar seu significado às esferas ordinárias no intento de erradicar e apaziguar conflitos.

O povo do Padrinho Sebastião

Sebastião Mota de Melo nasceu em 3 de fevereiro de 1920 no Seringal Adélia, situado em Euripené na região do Juruá (AM). Desde criança entrou em contato com as coisas do outro mundo, quando experienciava eventos incomuns. Sendo assim, não demorou a se tornar médium espírita. Ao mudar-se para Rio Branco - com a esposa Rita Gregório e os filhos Alfredo e Valdete - instalou-se na Colônia Cinco Mil em 1959 e por ali ficou, trabalhando em mesas brancas incorporado dos espíritos Bezerra de Menezes e Antônio Jorge.

Em 1965 chegou ao Alto Santo para tratar-se de uma patologia no esôfago, que o fizera transitar por várias agências de cura. Como nada sanou o infortúnio, foi ao encontro de Irineu. Ao consagrar o Daime, Padrinho Sebastião - como passou a ser conhecido - descreveu uma Miração na qual foi agraciado por uma cirurgia espiritual (Alves Júnior, 2007ALVES J. JÚNIOR, Antônio Marques. Tambores para a rainha da floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.).

No Alto Santo, Irineu e Sebastião construíram laços de confiança, de modo que o Mestre nutriu simpatia pelo povo do Padrinho, que já naqueles tempos era numeroso. Em vida, Irineu fez um acordo com Sebastião, autorizando-o a produzir o Daime em sua propriedade, desde que metade da produção fosse destinada à Casa do Mestre. O pacto foi rompido por Sebastião, anos após o falecimento de Irineu, em 1974, devido às discordâncias entre o Padrinho e Leôncio Gomes, que, na época, liderava os Trabalhos na Casa do Mestre.

As suposições indicam que Leôncio questionou a legitimidade de Sebastião em produzir e servir o Daime na Cinco Mil, além do suposto erro do Padrinho em introduzir novos elementos na doutrina do Mestre. Descontente, Sebastião rompeu com o Ciclu-Alto Santo, levando seu povo - cerca de cem pessoas - de volta à Cinco Mil, instituindo uma das mais relevantes dissidências daimistas; o “Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra” (Cefluris), atualmente intitulado “Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal - Patrono Sebastião Mota de Melo” (Iceflu).15 15 Decidimos manter a sigla atual da instituição, mesmo detectando que, no campo ayahuasqueiro, as igrejas deste Centro ainda são reconhecidas pela antiga sigla Cefluris.

Logo, a Igreja de Sebastião atraiu não apenas moradores locais, mas pessoas de outras regiões do país e do mundo16 16 No final de 1970, a Cinco Mil possuía cerca de quatrocentos habitantes organizados em torno da agricultura coletiva. (Goulart, 2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004). Do final da década de 1970 para o início da de 1980, a Cinco Mil abrigou jovens do Sudeste e do Sul, brasileiros pertencentes à contracultura hippie. Antes da chegada dos cabeludos, o Padrinho anunciara ao seu povo uma profecia acerca da vinda de pessoas de fora que iriam ajudá-lo na missão de divulgar a bebida para o mundo. Ao recepcionar os mochileiros na Colônia - pois outras irmandades não os aceitaram - Sebastião, ao mesmo tempo que os influenciou, teve sua visão de mundo e seu culto influenciados pelo povo de fora.17 17 Parte dos mochileiros retornou aos estados do Sul e do Sudeste, fundando as igrejas do Iceflu. A primeira foi inaugurada em 1982, no Rio de Janeiro, batizada de Céu do Mar. Na sequência, outras surgiram em Minas Gerais, Santa Catarina, São Paulo, Distrito Federal e regiões Norte e Nordeste. Atualmente, o Iceflu conta com filiais estrangeiras nos Estados Unidos, na Europa e no Japão.

A Cinco Mil não deu conta da demanda, cabendo ao Padrinho escolher outra localidade como sede, que foi realocada no Seringal Rio do Ouro em 1980. As precárias condições locais fizeram com que a sede fosse transferida, em 1983, para uma área mais no interior da floresta, no igarapé Mapiá, às margens do rio Purus, dando início à construção da Vila Céu do Mapiá, onde até hoje funciona a matriz do Iceflu.

Goulart (2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004GOULART, Sandra Lúcia. Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2004.) e Alves Júnior (2007ALVES J. JÚNIOR, Antônio Marques. Tambores para a rainha da floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.) estudaram a doutrina do Iceflu como produto desse movimento messiânico, pois contou com um líder carismático e profeta (o Padrinho Sebastião) capaz de reunir uma comunidade crescente de adeptos - transferida para o interior da floresta - no intento de estabelecer um novo modelo de sociedade, ou melhor, uma Nova Jerusalém. Sebastião, enquanto líder carismático, conseguiu não apenas translocar agrupamentos no tempo e no espaço, mas, principalmente, manter a coesão grupal, apesar dos conflitos inerentes à vida isolada na Floresta Amazônica.

O Padrinho trouxe para o Iceflu uma nova leitura do espiritismo kardecista, enfatizando tal filosofia no estabelecimento da doutrina. Para os seguidores, essa releitura do espiritismo inaugura a segunda fase de acoplamento dos elementos kardecistas ao universo daimista, sendo a primeira fase identificada pelas reinterpretações do Mestre Irineu18 18 Para os adeptos, Mestre Irineu é considerado a última encarnação de Cristo, enquanto o Padrinho Sebastião seria a reencarnação de João Batista, invertendo a ordem do Novo Testamento, pois, desta vez, o Profeta Sebastião veio dar continuidade aos desígnios deixados por Irineu. ao fundar o Alto Santo. Nesta dissidência daimista, as tônicas da caridade e da mediunidade foram incorporadas à doutrina do Padrinho, que Trabalhava atuado por entidades.

A aceitação da incorporação permitiu ao Iceflu dialogar com a Umbanda, embora outras tradições tenham tido influência para a cosmologia. Conforme Goulart (2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004GOULART, Sandra Lúcia. Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2004.) e Alves Júnior (2007ALVES J. JÚNIOR, Antônio Marques. Tambores para a rainha da floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.), a mediunidade serviu como elo de ligação desse universo cristão e xamânico com a Umbanda, tendo em vista a propagação do Iceflu Brasil e mundo afora.

Contudo, o Padrinho, antes da chegada dos cabeludos, já havia entrado em contato com matrizes africanas desde 1977, quando apareceu na Colônia um feiticeiro intitulado José Lito, o Ceará (Alves Júnior, 2007ALVES J. JÚNIOR, Antônio Marques. Tambores para a rainha da floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.). Figura municiada de saberes da feitiçaria, Ceará foi aceito pelo Padrinho, pois seus dotes poderiam auxiliar as pessoas da Cinco Mil. Os Trabalhos de Ceará enlevaram Sebastião ao ponto de ser autorizado a continuar com as atividades na Colônia por seis meses. Alves Júnior (2007) aludiu ao fato de que a permanência de Ceará na Colônia foi importante no prosseguimento dos Trabalhos, pois ele ensinou o lado oculto da feitiçaria, aliás, um saber desconhecido pelo próprio líder do Iceflu.

Ceará empenhou-se em revelar as forças ocultas, buscando meios de lidar com elas. Do panteão umbandista, à sua Direita atuavam Caboclos, Pretos Velhos e Orixás, entre eles Ogum, enquanto à Esquerda operavam os Exus Tranca-Rua, Zé Pelintra e Exu Caveira. Foi Ceará quem estipulou a Tronqueira para firmar o Ponto do Tranca-Rua. Firmado esse assentamento, os Trabalhos podiam ser abertos e erguidos outros Pontos em homenagem aos Orixás. Ele aconselhou erguer o Ponto de São Miguel - que protege o interior dos Centros - na medida em que a Tronqueira fica na porteira para a proteção contra os ataques externos. Nos Centros, o Ponto das Almas, ou Santo Cruzeiro,19 19 Desde a época de Irineu, o Santo Cruzeiro - representado pela Cruz de Caravaca - ganhou destaque na doutrina. Para os daimistas, o segundo braço da cruz simboliza a vinda de Mestre Irineu, ou melhor, a segunda volta de Cristo à Terra. também precisava ser erguido.

Ceará aconselhou a abertura de uma clareira na floresta destinada aos Trabalhos de doutrinação de entidades rebeldes, permitindo ao Iceflu iniciar rituais desenvolvidos paralelamente aos ritos oficiais, envolvendo a Linha da Esquerda. Nas imediações da Igreja, surgiu a iniciativa de erguer a Casa de Estrela, na qual vigora o poder do Exu Tranca-Rua disposto a Trabalhar pela doutrinação das almas, assim como pelo recobro da saúde através da desobsessão dos Aparelhos. O Trabalho de Estrela passou a ser visto como obra de caridade, permitindo o exercício da mediunidade através da incorporação (Alves Júnior, 2007ALVES J. JÚNIOR, Antônio Marques. Tambores para a rainha da floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.).

Para Alves Júnior (2007ALVES J. JÚNIOR, Antônio Marques. Tambores para a rainha da floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.), no momento em que o Iceflu reconheceu no Santo Daime a possibilidade de doutrinar Exus pagãos - tidos como pertencentes ao lado negativo da hierarquia espiritual - a instituição impôs sua superioridade no tocante ao panteão umbandista. Porém, a rendição dos Exus e sua imposição a serviço da doutrina não ocorreram sem resistência, sendo o Padrinho reconhecido como “aquele que doutrinou Seu Tranca”.

Assim, o sistema religioso foi fundado através de eventos mitológicos absortos em batalhas entre duas figuras centrais: Ceará - tendo a Falange de Exus liderada por Seu Tranca - e o Padrinho, conduzido por Falanges de Orixás, Caboclos e Pretos Velhos. Durante a convivência de Ceará na Cinco Mil, a Falange de Exus, após muita resistência, consagrou o Daime, utilizando-se do Aparelho de Ceará, que, ao incorporar os Exus, fazia com que fossem doutrinados. Quando Seu Tranca baixou em Ceará, solicitando a consagração do chá, a demanda na Cinco Mil foi apaziguada, já que foi Ceará - e não mais os Exus - que solicitou o Daime, entregando seus Guias à Luz do Padrinho (Alves Júnior, 2007ALVES J. JÚNIOR, Antônio Marques. Tambores para a rainha da floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.).

A derrocada do feiticeiro chegou às vias de fato quando suas artimanhas vieram à tona, pois teria seduzido e assediado mulheres na Colônia. Foi morto em 2 de agosto de 1977, após crime passional no qual os envolvidos foram apresentados à polícia por Sebastião. A peleja contra Seu Tranca ainda não havia sido consumada, mesmo com o falecimento de Ceará, pois outras batalhas foram travadas nos tempos de consolidação do Iceflu.

Mas voltemos aos cabeludos que na Cinco Mil chegaram no final da década de 1970, atuando como personagens principais na doutrina do Padrinho, na medida em que a Umbanda sulista foi apresentado às lideranças, assim como outros hábitos comuns ao povo de fora (Goulart, 2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004GOULART, Sandra Lúcia. Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2004.). O ato de consumir psicoativos, entre eles a Cannabis sativa, era uma das excentricidades desses jovens inseridos na cultura underground tardiamente fomentada pelas classes médias brasileiras nos tempos da ditadura militar.

Na Cinco Mil, eles fumavam e cultivavam a erva proibida às escondidas do Padrinho, que não tardou em tomar conhecimento do hábito. Sebastião - quando soube da planta - anunciou o cumprimento de outra profecia, na qual lhe havia sido apresentado em sonho uma erva que viria a auxiliar o Daime nos Trabalhos da Casa, sendo a mesma batizada de Santa Maria, estabelecendo com ela um vínculo ritualístico e curativo.20 20 Na perspectiva do Padrinho, a Santa Maria representava a energia feminina, enquanto o Santo Daime a força masculina do Pai Celestial. O uso recreativo da planta era visto como desrespeitoso por afrontar suas propriedades divinas. Apesar da precaução em manter o uso da Cannabis restrito a cerimoniais, a Cinco Mil sofreu incursão policial em 1981, na qual os Jardins de Santa Maria foram incinerados. Na época, o episódio desencadeou uma perseguição contra todos os Centros ayahuasqueiros, mesmo aqueles que não aprovavam o uso do cânhamo. Após o ocorrido, os líderes do Iceflu decidiram interromper os rituais com Santa Maria.

Além dos laços mantidos com a Umbanda e a mediunidade, o Iceflu destacou-se de outros grupos ayahuasqueiros por agregar elementos de uma cultura alternativa nacional fomentada na segunda metade do século XX. A mudança da sede da Cinco Mil para Rio do Ouro, além da necessidade estrutural da irmandade em processo de expansão, estaria atrelada às investidas policiais decorrentes, inicialmente, da morte de Ceará e, posteriormente, devido à sacramentação da Santa Maria. No centro da floresta, o povo do Padrinho buscava uma vida transformadora, longe dos princípios do mundo da ilusão, utilizando-se de plantas sagradas ao conduzir suas vidas e doutrinas Amazônia adentro.

Sebastião e seguidores mudaram-se para o Mapiá em janeiro de 1983, local onde continuaram os Trabalhos de cura por desobsessão e doutrinação de Exus. Aqui, o Padrinho incorporava, não mais entidades, mas sentimentos que conturbavam o convívio coletivo, buscando reforçar a reciprocidade e a união por meio de prelações, performances e atuações.

Alves Júnior (2007ALVES J. JÚNIOR, Antônio Marques. Tambores para a rainha da floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.) descreveu as batalhas do Padrinho contra Seu Tranca e a Falange de Exus, que fora identificada como a origem dos males de saúde de Sebastião. Certo dia, bastante adoentado, o Padrinho teria sido possuído pela entidade Ogum. Seus filhos Valdete e Gregório conduziram-no até a sala, onde Sebastião encontrou-se com Tranca-Rua, firmando um pacto de persuasão. Além do recobro da saúde do Padrinho, este mítico episódio consolidou a inserção de Ogum na Corrente do Iceflu, ao mesmo tempo que estipulou Seu Tranca a se converter - junto com sua Falange - aos princípios da doutrina.

Guimarães (1992GUIMARÃES, Maria Beatriz Lisboa. A “Lua Branca” de Seu Tupinambá e de Mestre Irineu: estudo de caso de um terreiro de umbanda. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992.), Alves Júnior (2007ALVES J. JÚNIOR, Antônio Marques. Tambores para a rainha da floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.) e Lira (2016LIRA, Wagner Lins. “Daqui nós tira um ouro de chá!” Umbanda, Santo Daime e xamanismo popular no tratamento religioso de patologias físicas, mentais e espirituais: o caso de um terreiro alagoano. Tese (Doutorado em Antropologia), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.) evidenciam as viagens do Padrinho - iniciadas em 1985 - em visita às Igrejas do Sudeste. No primeiro deslocamento, Sebastião manteve vínculos com os adeptos do Terreiro de Umbanda Tatá Oju situado em Visconde de Mauá (RJ), nutrindo simpatia pela Mãe de Santo Baixinha. Do quadro de médiuns do Tatá Oju destacamos Maria Alice, que apresentou Sebastião à Baixinha. Num destes encontros, o Padrinho firmou aliança com o Caboclo Tupinambá.

Alex Polari iniciou - com auxílio da Baixinha - no Céu da Montanha (em Visconde de Mauá) ritos de Banca e Giras para exercícios de incorporação. Baixinha, então, assumiu papel relevante nas Igrejas do Iceflu, sendo seu Terreiro convertido aos Trabalhos da doutrina. Sob proteção do Santo Daime e do Caboclo Tupinambá, Baixinha e seus médiuns ordenaram as referências umbandistas acopladas no decorrer do histórico da instituição e inseridas, de maneira dispersa, nos ritos, Hinos e Hinários.

Em 1989, Maria Alice foi morar no Mapiá, onde ficou a frente dos Trabalhos mediúnicos. Assim como aconselhado por Ceará, uma clareira foi aberta mata adentro, a mando de Maria Alice, que reordenou os Trabalhos de Tronqueira e Estrela; cerimônias onde a incorporação foi permitida, sendo acentuada a tônica terapêutica à luz de preceitos kardecistas e umbandistas (Guimarães, 1992GUIMARÃES, Maria Beatriz Lisboa. A “Lua Branca” de Seu Tupinambá e de Mestre Irineu: estudo de caso de um terreiro de umbanda. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992.; Alves Júnior, 2007ALVES J. JÚNIOR, Antônio Marques. Tambores para a rainha da floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.; Lira, 2016LIRA, Wagner Lins. “Daqui nós tira um ouro de chá!” Umbanda, Santo Daime e xamanismo popular no tratamento religioso de patologias físicas, mentais e espirituais: o caso de um terreiro alagoano. Tese (Doutorado em Antropologia), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.).

Com o desencarne do Padrinho, em 20 de janeiro de 1990, Alfredo assumiu a presidência do Iceflu, onde, até hoje, vem selecionando elementos e preceitos umbandistas incorporados ao cosmos daimista. De início, optou por suspender, durante dois anos, as Sessões mediúnicas, até porque, após a morte de Sebastião, alguns daimistas questionaram o papel dos umbandistas na doutrina, gerando polêmica nas Igrejas. Contudo, no Céu do Mapiá, Maria Alice e outras mulheres seguiram resistentes nos Trabalhos de Gira e de Estrela.

O fato é que os daimistas temiam a indisciplina atribuída à práxis umbandista, que - para os mais ortodoxos - poderia minar a ordem do sistema, cabendo a Maria Alice e suas companheiras o balizamento dos dois sistemas simbólicos a ponto de doutrinar a Umbanda à luz do Santo Daime (Alves Júnior, 2007ALVES J. JÚNIOR, Antônio Marques. Tambores para a rainha da floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.). A partir de reajustes, os Trabalhos de Banca foram retomados, assim como o fenômeno da incorporação, agora reservados aos Trabalhos de Mesa Branca, reformulados por Maria Alice (Lira, 2016LIRA, Wagner Lins. “Daqui nós tira um ouro de chá!” Umbanda, Santo Daime e xamanismo popular no tratamento religioso de patologias físicas, mentais e espirituais: o caso de um terreiro alagoano. Tese (Doutorado em Antropologia), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.).

Os Bailados são ritos festivos, sendo concretizados em datas comemorativas destinadas aos santos cristãos. Daí a necessidade de os participantes trajarem a farda branca. Os Trabalhos não festivos e, por isso, mais densos, por exigirem atenção dos participantes - por estarem relacionados à cura - exigem o porte da farda azul, sendo qualificados como: Trabalho de Concentração, Trabalho de Estrela, Trabalho de São Miguel, Trabalho de Mesa Branca, Trabalho de Cura do Padrinho Sebastião, Trabalho de Cruzes, Santa Missa dos Mortos e Feitio do Santo Daime (Goulart, 2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004GOULART, Sandra Lúcia. Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2004.).

As Giras ocorrem extraoficialmente e a depender das lideranças das Igrejas, que possuem autonomia para aceitá-las ou não. Quando realizadas, procedem diferentemente dos Trabalhos da Linha daimista, de modo que os participantes não utilizam a farda branca nem a azul. Giras que acontecem fora da Igreja e sem uma padronização definida, quando se cantam Pontos e Hinos, evocando-se a força de Erês, Exus, Pretos Velhos e Caboclos incorporados pelos médiuns da Casa (Guimarães, 1992GUIMARÃES, Maria Beatriz Lisboa. A “Lua Branca” de Seu Tupinambá e de Mestre Irineu: estudo de caso de um terreiro de umbanda. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992.).

Tal qual no Alto Santo, o Iceflu traz em sua cosmologia práticas e concepções kardecistas, tangenciando-se nas noções de lei do carma, evolução espiritual e reencarnação. Ao longo das vidas, os espíritos aprendem com as vivências, sendo relembrados de sua espiritualidade à luz do Daime. O daimista vive uma peleja entre o mundo da ilusão e as forças espirituais, precisando seguir a doutrina para poder vencer.

Daí a importância dos ritos ordenadores de ações e visões de mundo. Uma disciplina estampada no fardamento, nos passos do Bailado, assim como na sincronicidade dos ritmos conduzidos por violas, cantos, pandeiros e maracás. Uma ordem cuja essência perpassa os ciclos ritualísticos, lapidando corpos e ações diante do fortalecimento do daimista no mundo da ilusão, aqui figurado pela vida ordinária (Lira, 2016LIRA, Wagner Lins. “Daqui nós tira um ouro de chá!” Umbanda, Santo Daime e xamanismo popular no tratamento religioso de patologias físicas, mentais e espirituais: o caso de um terreiro alagoano. Tese (Doutorado em Antropologia), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.).

Existe forte relação entre a materialidade e a espiritualidade, consideradas complementares. Os Hinos conduzem não só as experiências rituais, seus conteúdos trazem chaves essenciais à vivência do daimista no mundo da ilusão, onde vive em busca de autoconhecimento. Hinos e Hinários são provas do elo entre daimistas e entidades espirituais, trazendo-lhes instruções e profecias, que, para serem decodificadas, necessitam do estudo e da repetição, que favorecem a memorização (Goulart, 2002GOULART, Sandra Lúcia. O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO Wladimyr Sena. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2002, p. 277-301.; 2004GOULART, Sandra Lúcia. Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2004.).

Na doutrina vigora o viés disciplinador dos corpos, devido ao fato de que a materialidade é tida como alvo fácil para as artimanhas da ilusão, por meio de tentações, vícios, ataques de encostos e outras provações (Lira, 2016LIRA, Wagner Lins. “Daqui nós tira um ouro de chá!” Umbanda, Santo Daime e xamanismo popular no tratamento religioso de patologias físicas, mentais e espirituais: o caso de um terreiro alagoano. Tese (Doutorado em Antropologia), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.). Assim, o sistema exige sobriedade e postura sincronizadas aos preceitos doutrinários, precipuamente, durante os cerimoniais, onde todos buscam manter-se em seus lugares alinhados e atentos. As atuações corpóreas permitidas num Trabalho daimista são náuseas, vômitos e diarreias propiciados pela purgação do Daime (a peia), que atua pelo viés catártico e reestruturante do ego.

Fora isso, outras manifestações são inconcebíveis, evitadas e desaconselhadas, como é o caso das incorporações (Alves Júnior, 2007ALVES J. JÚNIOR, Antônio Marques. Tambores para a rainha da floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.). Nos Trabalhos oficiais, os gêneros não interagem, contudo, nota-se o oposto nos Trabalhos não oficiais, especialmente, nas Giras, que trazem as atuações dos Aparelhos a dançar, gargalhar e gritar, fazendo o corpo se expressar involuntariamente, dançando com as entidades, de modo que o rigor daimista é diluído.

O tesouro de Gabriel

José Gabriel da Costa nasceu em 10 de fevereiro de 1922, em Coração de Maria (BA). Seus biógrafos indicam sua participação em religiões populares, especialmente, em terreiros de matrizes africanas no estado da Bahia (Andrade, 1995ANDRADE, Afrânio Patrocínio. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla: um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1995.; Brissac, 1999BRISSAC, Sérgio. A Estrela do Norte iluminando até o Sul: uma etnografia da União do Vegetal em um contexto urbano. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; Ricciardi, 2008RICCIARDI, Gabriela Santos. O uso da ayahuasca e a experiência de transformação, alívio e cura na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.; Melo, 2010MELO, Rosa Virgínia. “Beber na Fonte”: adesão e transformação na União do Vegetal. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de Brasília, Brasília, 2010.). Aos 18 anos serviu à Polícia Militar, chegando à patente de cabo de esquadra. De 1941 a 1943 residiu em Salvador, filiando-se a terreiros de Candomblé, incorporado pela entidade Sultão das Matas. Assim, tratava e curava suplicantes, pois o Sultão era conhecedor de plantas e remédios, prescrevendo-os aos clientes, assim como passes e conselhos.

Em 1943 evadiu da cidade de Salvador devido ao envolvimento numa briga, alistando-se ao exército da borracha no segundo ciclo do extrativismo gomífero. Chegou a Porto Velho (RO) em 13 de setembro de 1943, indo trabalhar nos seringais. Logo se destacou como bom seringueiro. Na sequência decidiu mudar-se para a cidade, exercendo profissão de enfermeiro num hospital público. Lá conheceu, em 1946, a esposa - Raimunda Ferreira da Costa -com quem constituiu família. Na capital, recebia os clientes na própria residência sob auxílio do Sultão das Matas (Andrade, 1995ANDRADE, Afrânio Patrocínio. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla: um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1995.; Brissac, 1999BRISSAC, Sérgio. A Estrela do Norte iluminando até o Sul: uma etnografia da União do Vegetal em um contexto urbano. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; Ricciardi, 2008RICCIARDI, Gabriela Santos. O uso da ayahuasca e a experiência de transformação, alívio e cura na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.; Melo, 2010MELO, Rosa Virgínia. “Beber na Fonte”: adesão e transformação na União do Vegetal. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de Brasília, Brasília, 2010.).

Ao frequentar, em Porto Velho, o Terreiro da Mãe de Santo Chica Macaxeira - uma Casa de Mina Jeje - Gabriel continuou com o Sultão a ministrar remédios e passes, sendo promovido à função de Ogã. Todavia, precisou retornar aos seringais em decorrência de perseguições políticas. No seringal Orion fundou um terreiro, onde passou a realizar - junto ao Sultão das Matas - ritos de cura semelhantes aos das pajelanças (Ricciardi, 2008RICCIARDI, Gabriela Santos. O uso da ayahuasca e a experiência de transformação, alívio e cura na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.).

Em 1959 Gabriel conheceu a ayahuasca no seringal Sunta21 21 Para Ricciardi (2008), o contato de Gabriel com ayahuasca ocorreu na fronteira entre o Brasil e a Bolívia, porém no seringal Guarapari. - na fronteira do Brasil com a Bolívia - através do seringueiro Chico Lourenço. Em 1961 fundou a União do Vegetal - o “Centro Espírita Beneficente União do Vegetal” (CEBUDV) - distinguindo-se de outros mestres ayahuasqueiros, por ele intitulados mestres de curiosidade. Os mitos da União nos contam que, no dia 6 de janeiro de 1962, Gabriel reuniu-se com 12 mestres ayahuasqueiros em Vila Plácido (AC). Nesse encontro, os participantes do mítico ritual teriam reconhecido Gabriel como Mestre Superior, inclusive muitos deles passaram a acompanhá-lo nos Trabalhos da Linha da UDV (Andrade, 1995ANDRADE, Afrânio Patrocínio. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla: um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1995.; Brissac, 1999BRISSAC, Sérgio. A Estrela do Norte iluminando até o Sul: uma etnografia da União do Vegetal em um contexto urbano. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; Ricciardi, 2008RICCIARDI, Gabriela Santos. O uso da ayahuasca e a experiência de transformação, alívio e cura na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.; Melo, 2010MELO, Rosa Virgínia. “Beber na Fonte”: adesão e transformação na União do Vegetal. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de Brasília, Brasília, 2010.).

Após esse encontro, Gabriel anunciou o afastamento das práticas de matrizes africanas, vegetalistas e indigenistas, não admitindo incorporações nas Sessões com o chá, que passou a ser denominado Vegetal. Aqui, a bebida propicia, segundo o merecimento do sujeito, um êxtase de excorporação conhecido por Burracheira (Lira, 2016LIRA, Wagner Lins. “Daqui nós tira um ouro de chá!” Umbanda, Santo Daime e xamanismo popular no tratamento religioso de patologias físicas, mentais e espirituais: o caso de um terreiro alagoano. Tese (Doutorado em Antropologia), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.). O Mestre justificou as pretéritas atuações e consultas do Sultão das Matas taxando-as de encenações, pois revelou ter adquirido ciência de que o Sultão era ele próprio, não existindo entidade alguma envolvida nos atendimentos desenvolvidos em sua residência ou nos terreiros que frequentava.

Assim, a UDV desacreditou os fenômenos de incorporação, afirmando que num só corpo não havia possibilidade, nem espaço, para atuação de dois ou mais espíritos aquém da alma do encarnado. Nesses termos, a Burracheira é vista como uma força estranha propiciada pela união, tanto das pessoas, quanto dos vegetais; o cipó Mariri (Banisteriopsis caapi) e as folhas da Chacrona (Psychotria viridis), que em união formam o Vegetal; uma bebida transmissora de mensagens e conselhos, cujas origens remetem aos ensinos do Mestre Gabriel transubstanciado na beberagem (Andrade, 1995ANDRADE, Afrânio Patrocínio. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla: um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1995.; Brissac, 1999BRISSAC, Sérgio. A Estrela do Norte iluminando até o Sul: uma etnografia da União do Vegetal em um contexto urbano. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; Ricciardi, 2008RICCIARDI, Gabriela Santos. O uso da ayahuasca e a experiência de transformação, alívio e cura na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.; Melo, 2010MELO, Rosa Virgínia. “Beber na Fonte”: adesão e transformação na União do Vegetal. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de Brasília, Brasília, 2010.).

Segundo os mitos udvistas, Gabriel fundou a União através de uma série de recordações experienciadas a partir de seu contato com o chá. Nesses instantes foram-lhe apresentadas Histórias (entre as quais a História da Hoasca)22 22 A História da Hoasca é narrada pelos Mestres representantes dos Núcleos, durante as Sessões de Escala ou Sessões Instrutivas. Na UDV, no teste para que o discípulo progrida para o Corpo dos Mestres, além de sua conduta e comprometimento com a doutrina, avalia-se sua concentração ao narrar o mito sob efeito do Vegetal. e Chamadas (cânticos relativos a estas Histórias), inclusive, elementos simbólicos, que estruturam as Sessões, a hierarquia da instituição e a vida dos adeptos, cujo fundamento repousa em mitos, tangencialmente, na História da Hoasca, que narra o surgimento da UDV, assim como seus desaparecimentos e recriações ao longo das reencarnações de Gabriel.

Seguindo o mito - tal qual indicado por Andrade (1995ANDRADE, Afrânio Patrocínio. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla: um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1995.) e Melo (2010MELO, Rosa Virgínia. “Beber na Fonte”: adesão e transformação na União do Vegetal. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de Brasília, Brasília, 2010.) - somos remetidos à época antediluviana, em terras israelenses, num reinado imagético governado pelo Rei Inca. O monarca era aconselhado por uma mulher de nome Hoasca dotada de poderes espetaculares. Certo dia, Hoasca faleceu, deixando Inca desnorteado. Contudo, de sua sepultura brotou uma planta desconhecida.

Anos após a morte de Hoasca, nasceu no reinado um garoto de nome Tiuaco, que se tornou um dos Marechais do Rei, sendo convidado por Inca a visitar o túmulo de Hoasca. Foi quando surgiu a ideia do Rei de fazer um chá com as folhas da planta, que havia brotado da sepultura da Conselheira, visto que Inca acreditava que a sabedoria de Hoasca estava contida naquelas folhas misteriosas. O Rei colheu algumas delas, preparou a bebida, servindo-a a Tiuaco, que foi tomado pela sabedoria de Hoasca a ponto de não resistir ao poder do chá das folhas, chegando a desencarnar. Sendo assim, Inca sepultou Tiuaco, e de sua cova brotou outra planta, dessa vez, contendo cipós, mas que também era desconhecida.

Com o passar dos tempos, o Rei Inca faleceu e seu reinado ruiu. Anos após a morte de Inca nasceu um garoto de nome Salomão. Rapaz inteligente, considerado Rei da Ciência (Andrade, 1995ANDRADE, Afrânio Patrocínio. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla: um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1995.; Melo, 2010MELO, Rosa Virgínia. “Beber na Fonte”: adesão e transformação na União do Vegetal. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de Brasília, Brasília, 2010.). Ao tomar conhecimento das Histórias de Hoasca, Inca e Tiuaco, Salomão decidiu - junto com o vassalo Caiano (reencarnação do Rei Inca) - visitar os túmulos da Conselheira e do Marechal. Ao identificar as plantas da sepultura de Hoasca, Salomão reconheceu a sabedoria da Conselheira no vegetal, denominando suas folhas de Chacrona, que significa: “chá temeroso para quem não respeita”. Os cipós do túmulo de Tiuaco foram associados à força do Marechal e denominados por Salomão de Mariri, cujo significado nos remete à expressão Marechal.

Salomão colheu as folhas e os cipós das catacumbas, produzindo um chá, por ele denominado Vegetal. De acordo com o mito, isso representou evento significativo para a humanidade, pois Salomão uniu os dois vegetais de poder numa mesma bebida, servindo-a a Caiano, quem primeiro entrou em contato com os mistérios da natureza. Mistérios estes que foram, por Salomão, intitulados de Burracheira, sendo o Mariri (personificado no Marechal Tiuaco) o Rei da Força, e a Chacrona (transubstanciada na sabedoria de Hoasca) a Rainha da Luz. Ao ser conduzido por Salomão a adentrar nos Encantos, Caiano tornou-se o primeiro hoasqueiro, que recebeu de Salomão o maior segredo da natureza; a União do Vegetal.

Caiano reencarnou em locais e tempos distintos com a missão de reconstituir a União. Uma das encarnações ocorreu na imagética tribo peruana, formado por um povo mitológico denominado Tucunacá, onde Caiano encarnou em Iagora; sujeito que distribuía o Vegetal e divulgava as Chamadas e as Histórias de Inca, Hoasca, Tiuaco, Caiano e Salomão. O mito delega a Iagora a fundação do Império Inca, pois tais saberes empoderaram os sujeitos, embora Iagora tenha sido morto por seguidores tomados pela ganância do ouro.

O Império Inca ruiu, deixando os seguidores de Iagora desnorteados, de modo que cada um seguiu seu caminho, dando origem aos grupos dos Mestres da Curiosidade, que teriam transmitido seus saberes aos seringueiros e outros práticos da ayahuasca, que se utilizariam da bebida equivocadamente. Iagora, por último, encarnou em Coração de Maria (BA), na figura do Mestre Gabriel. Ao tomar ciência da História da Hoasca, recordando eventos e saberes adquiridos por seu espírito em vidas anteriores, o Mestre justificou miticamente como as coisas começaram, afirmando sua autoridade, ao mesmo tempo que recriou a UDV, trazendo de volta os primores desse tesouro perdido (Andrade, 1995ANDRADE, Afrânio Patrocínio. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla: um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1995.; Brissac, 1999BRISSAC, Sérgio. A Estrela do Norte iluminando até o Sul: uma etnografia da União do Vegetal em um contexto urbano. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; Ricciardi, 2008RICCIARDI, Gabriela Santos. O uso da ayahuasca e a experiência de transformação, alívio e cura na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.; Melo, 2010MELO, Rosa Virgínia. “Beber na Fonte”: adesão e transformação na União do Vegetal. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de Brasília, Brasília, 2010.).

De início, na UDV, Gabriel continuou com os Trabalhos de cura, erguendo na sede, em Porto Velho, um Salão de Curas, onde tratava infortunados, ministrando remédios e conselhos, produzindo medicamentos à base do chá, além de preparar o Vegetal, incluindo nove plantas medicinais conhecidas como nove vegetais23 23 A bebida era produzida pelo Mestre incrementada com nove plantas amazônicas: o breuzim (Protium heptaphyllum), a sumaúma (Ceiba pentandra), o apuí (Ficus sp.), a castanheira (Bertholletia excelsa), o pau-d’ arco (Tabebuia serratifolia), o mulateiro (Calycophyllum spruceanum), a imburana-de-cheiro (Amburana cearensis), a carnaúba (Copernicia prunifera) e a maçaranduba (Manilkara amazonica). (Andrade, 1995ANDRADE, Afrânio Patrocínio. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla: um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1995.; Ricciardi, 2008RICCIARDI, Gabriela Santos. O uso da ayahuasca e a experiência de transformação, alívio e cura na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.). Porém, o Salão foi encerrado, pois o Mestre não teria encontrado seguidores para dar continuidade aos saberes, e o preparo com os nove vegetais foi suspenso após seu desencarne em 24 de setembro de 1971 (Ricciardi, 2008RICCIARDI, Gabriela Santos. O uso da ayahuasca e a experiência de transformação, alívio e cura na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.). Um ano após o falecimento do Mestre foram inaugurados os primeiros Núcleos do país, iniciando a expansão por Manaus e São Paulo.

Antes de falecer, Gabriel instituiu os preceitos hierárquicos e morais da doutrina, incluindo o fardamento e os níveis sacerdotais, que subdividem os adeptos nas categorias de Sócios, membros do Corpo Instrutivo, Conselheiros e Mestres. Assim também procedeu ao estruturar as Sessões e a transmissão dos segredos da doutrina obtidos a partir da posição ocupada pelo sujeito na instituição. Mediante conceitos de merecimento, grau de memória e recordação os compartícipes são, ou não, elevados na hierarquia institucional. Na UDV encontramos Sessões do Corpo Instrutivo, do Corpo de Conselheiros e do Corpo dos Mestres. A instituição conta ainda com Sessões de Escala Quinzenais, que ocorrem nos primeiros e terceiros sábados de cada mês, Sessões Extraordinárias, rituais de Preparo do Vegetal e Sessões específicas para visitantes, denominados Adventícios.

Após o desencarne do Mestre, observamos o surgimento de novas lideranças encarregadas de desvincular a UDV da práxis curandeirística, tendo em vista ressalvas condizentes às possíveis acusações de charlatanismo ou exercício ilegal da medicina. Conquanto as análises venham demonstrando a permanência de elementos atrelados à tônica do recobro, incluindo os depoimentos dos adeptos sobre curas e a evocação ritualística de entidades curadoras (Andrade, 1995ANDRADE, Afrânio Patrocínio. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla: um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1995.; Brissac, 1999BRISSAC, Sérgio. A Estrela do Norte iluminando até o Sul: uma etnografia da União do Vegetal em um contexto urbano. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; Ricciardi, 2008RICCIARDI, Gabriela Santos. O uso da ayahuasca e a experiência de transformação, alívio e cura na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.; Melo, 2010MELO, Rosa Virgínia. “Beber na Fonte”: adesão e transformação na União do Vegetal. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de Brasília, Brasília, 2010.).

Sendo assim, a instituição reestruturou sua lógica, adotando meios rígidos e seletivos para a escolha de membros e lideranças, constituindo quadros e setores hierarquizados, cujas determinações fundamentam-se em paridade com concepções racionais e científicas. Dessa forma, surgiram setores específicos, cujas áreas de atuação e competência enaltecem leis, normas e estatutos (Andrade, 1995ANDRADE, Afrânio Patrocínio. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla: um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1995.; Brissac, 1999BRISSAC, Sérgio. A Estrela do Norte iluminando até o Sul: uma etnografia da União do Vegetal em um contexto urbano. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; Ricciardi, 2008RICCIARDI, Gabriela Santos. O uso da ayahuasca e a experiência de transformação, alívio e cura na União do Vegetal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.; Melo, 2010MELO, Rosa Virgínia. “Beber na Fonte”: adesão e transformação na União do Vegetal. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de Brasília, Brasília, 2010.).

Uma característica udvista é sua configuração organizacional e estrutural ancoradas em preceitos científicos, políticos e jurídicos, e que, para os adeptos, são tidos como evoluídos por serem racionais. Após o falecimento do Mestre, a sede foi transferida para Brasília (DF), enquanto outros Núcleos surgiram no Brasil e no mundo. Em 1986 a UDV reuniu adeptos para pesquisar as propriedades do chá, criando o “Departamento Médico Científico da União do Vegetal” (Demec-UDV), também localizado em Brasília.24 24 Na UDV encontramos o “Conselho da Recordação dos Ensinos do Mestre Gabriel” e o “Departamento de Memória e Documentação”, que representam setores interligados e encarregados de preservar a memória da instituição.

A ética udvista volta-se para a manutenção de sujeitos saudáveis, curados, em tratamento ou infortunados, a depender de seus merecimentos, enquanto espíritos encarnados no ciclo das reencarnações das almas em busca de iluminação, aliás, condição pareada ao conceito kardecista de evolução espiritual. Aqui, prega-se a retidão do sujeito que busca seguir os ensinos do Cristo, alçando posições e graus específicos de evolução espiritual, até chegar ao estado de cientificação, quando as almas retornam ao plano celeste considerado espaço sagrado, onde os espíritos só entram quando livres de vícios e pecados.

Ao analisarmos os encadeamentos da UDV detectamos que a doutrina instituiu sua identidade inspirada nos discursos de ordem e legalidade, sendo esta uma das características principais de seu processo de racionalização. Interditando a influência de entidades extra-humanas, o sistema estipulou um tipo de espiritismo autocentrado, no qual a valorização do indivíduo é exacerbada. Assim, os hoasqueiros acreditam serem conduzidos por conceitos e valores evoluídos, oriundos de sua cosmologia encantada.

Considerações finais

Neste artigo discorremos sobre as trajetórias dos mentores da ayahuasca em territórios amazônicos, debruçando-nos sobre contextos do início do século XX, assim como sobre os diálogos transculturais erigidos entre distintos sistemas simbólicos que tiveram como pano de fundo o uso ritual da ayahuasca. Desse modo, aludimos ao surgimento das religiões ayahuasqueiras brasileiras reveladas como sistemas populares de resistência contra as opressões condutoras a condições precárias de existência e cidadania a assolar populações nativas e caboclas em tempos de urbanização desordenada e rutilada por constantes crises nos ciclos do extrativismo gomífero.

Antes de tudo, verificamos como tais agrupamentos subalternizados - inicialmente liderados por imigrantes nordestinos- elaboraram estratégias voltadas para o cuidado, a assistência e a cura, utilizando-se de repertórios de culturas e religiões populares, quando o uso da ayahuasca se adequou às realidades e necessidades locais. Daí a emergência das matrizes daimistas (representadas pelo Alto Santo e pelo Iceflu), da Barquinha e da UDV, que se expandiram da Amazônia para o mundo no final do século XX e início do XXI.

Na atualidade, observamos a expansão global da bebida e suas doutrinas, assim como a formação de novos grupos e irmandades que, de uma forma ou de outra, têm como base os exemplos de vida deixados pelos primeiros mentores. Ainda, conforme as histórias de Irineu, Daniel, Sebastião e Gabriel, localizamos no campo religioso movimentos de proximidade e afastamento de elementos indígenas, vegetalistas e africanos, especialmente dos últimos, quando o assunto gira em torno de transes de incorporação.

Logo estabelecem-se as distinções e os conflitos no campo religioso, quando as irmandades estipulam categorias acusatórias a favor da racionalização do sagrado. Nesse sentido, os grupos mais antigos - e por isso mais estruturados institucional e financeiramente - passam a se identificar com a “magia branca do chá”, acusando de bruxaria e charlatanismo àqueles Centros mais modestos e oriundos de classes populares. Diante desse jogo de forças e poder ainda impera o princípio da legitimidade pela proximidade da tradição, ao passo que os Centros mais antigos reivindicam o status de protetores e guardiões do sagrado.

O fato é que, longe ou perto da floresta, a ayahuasca continua a auxiliar sujeitos de outras regiões, países e continentes, onde o chá é utilizado com propósitos de expansão mental, condutor de cura, alívio e transformação. Desse modo, mudam os contextos e as classes sociais, todavia, algo da experiência permanece no tocante à mística, aos conteúdos imagéticos, às releituras do catolicismo, do esoterismo, assim como noções espíritas kardecistas e umbandistas.

Outrossim, na contemporaneidade, localizamos novos grupos e outros movimentos ecléticos, que trazem distintos repertórios culturais, voltando-se para os Trabalhos mediúnicos, unindo transes de incorporação e excorporação, ao passo que permitem a assistência de entidades de outros panteões. Dessa feita, Mestres e discípulos de novos e antigos Centros da ayahuasca trazem em sua biografia algo em comum. Todos parecem ter encontrado a bebida em momentos de crise, quase sempre associados a patologias e distúrbios de ordem física, mental e ou espiritual. Assim, a ayahuasca, suas doutrinas e variações seguem no tratamento e na cura das mazelas contemporâneas num mundo em constante transformação, individualismo e progresso tecnológico paradoxalmente promotor de conflitos, incertezas e sofrimentos.

Referências

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  • RICCIARDI, Gabriela Santos. O uso da ayahuasca e a experiência de transformação, alívio e cura na União do Vegetal Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.
  • 1
    Nascido em São Vicente Ferrer (MA), em 1890, alistou-se no exército da borracha em 1914, quando emigrou para o Acre. Conheceu a ayahuasca em seringais peruanos, onde conviveu com os primos Antônio e André Costa. Em 1930 passou a ser reconhecido como curador, permanecendo no Acre até 1971, quando faleceu.
  • 2
    Irineu e seus primos participaram, antes da fundação do Alto Santo, do Círculo de Regeneração e Fé (CRF), um centro esotérico onde já se consumia ayahuasca.
  • 3
    Em 1963, o Alto Santo foi renomeado por Irineu e passou a chamar-se “Centro de Iluminação Cristã Luz Universal - Alto Santo” (Ciclu-Alto Santo).
  • 4
    Santa católica que, de acordo com Labate e Pacheco (2002), assume relevância para a religiosidade popular maranhense, especificamente para a Linha da Pajelança.
  • 5
    Labate e Pacheco (2002) atentam para a possibilidade de o culto daimista ter tido influências de elementos da cultura maranhense, dentre os quais a Pajelança, a Festa do Divino e o Baile de São Gonçalo.
  • 6
    Localidade atualmente intitulada Bairro Irineu Serra.
  • 7
    A noção de Trabalho é destinada ao corpo e espírito dos adeptos, girando em torno das Mirações.
  • 8
    Hinos trazem ensinos na forma de canto e música, permitindo que os mitos e os princípios daimistas sejam repetidos e reforçados.
  • 9
    Todos os ritos do Alto Santo são festivos, com exceção da Missa de Finados.
  • 10
    Araújo (1999) afirmou que o primeiro contato de Daniel com o Daime deu-se em 1936.
  • 11
    Nos tempos de Daniel, a Capelinha sofreu quatro incursões policiais.
  • 12
    Os adeptos também denominam a bebida de Santa Luz.
  • 13
    Os médiuns recebem espíritos de Pretos Velhos, além de Caboclos e Encantados. Encontramos a presença de espíritos de bispos, padres e arcebispos, pois a Barquinha representa uma missão franciscana.
  • 14
    Prática oposta à Umbanda, acredita-se que quimbandeiros usam de magia para atacar infortunados.
  • 15
    Decidimos manter a sigla atual da instituição, mesmo detectando que, no campo ayahuasqueiro, as igrejas deste Centro ainda são reconhecidas pela antiga sigla Cefluris.
  • 16
    No final de 1970, a Cinco Mil possuía cerca de quatrocentos habitantes organizados em torno da agricultura coletiva.
  • 17
    Parte dos mochileiros retornou aos estados do Sul e do Sudeste, fundando as igrejas do Iceflu. A primeira foi inaugurada em 1982, no Rio de Janeiro, batizada de Céu do Mar. Na sequência, outras surgiram em Minas Gerais, Santa Catarina, São Paulo, Distrito Federal e regiões Norte e Nordeste. Atualmente, o Iceflu conta com filiais estrangeiras nos Estados Unidos, na Europa e no Japão.
  • 18
    Para os adeptos, Mestre Irineu é considerado a última encarnação de Cristo, enquanto o Padrinho Sebastião seria a reencarnação de João Batista, invertendo a ordem do Novo Testamento, pois, desta vez, o Profeta Sebastião veio dar continuidade aos desígnios deixados por Irineu.
  • 19
    Desde a época de Irineu, o Santo Cruzeiro - representado pela Cruz de Caravaca - ganhou destaque na doutrina. Para os daimistas, o segundo braço da cruz simboliza a vinda de Mestre Irineu, ou melhor, a segunda volta de Cristo à Terra.
  • 20
    Na perspectiva do Padrinho, a Santa Maria representava a energia feminina, enquanto o Santo Daime a força masculina do Pai Celestial. O uso recreativo da planta era visto como desrespeitoso por afrontar suas propriedades divinas. Apesar da precaução em manter o uso da Cannabis restrito a cerimoniais, a Cinco Mil sofreu incursão policial em 1981, na qual os Jardins de Santa Maria foram incinerados. Na época, o episódio desencadeou uma perseguição contra todos os Centros ayahuasqueiros, mesmo aqueles que não aprovavam o uso do cânhamo. Após o ocorrido, os líderes do Iceflu decidiram interromper os rituais com Santa Maria.
  • 21
    Para Ricciardi (2008), o contato de Gabriel com ayahuasca ocorreu na fronteira entre o Brasil e a Bolívia, porém no seringal Guarapari.
  • 22
    A História da Hoasca é narrada pelos Mestres representantes dos Núcleos, durante as Sessões de Escala ou Sessões Instrutivas. Na UDV, no teste para que o discípulo progrida para o Corpo dos Mestres, além de sua conduta e comprometimento com a doutrina, avalia-se sua concentração ao narrar o mito sob efeito do Vegetal.
  • 23
    A bebida era produzida pelo Mestre incrementada com nove plantas amazônicas: o breuzim (Protium heptaphyllum), a sumaúma (Ceiba pentandra), o apuí (Ficus sp.), a castanheira (Bertholletia excelsa), o pau-d’ arco (Tabebuia serratifolia), o mulateiro (Calycophyllum spruceanum), a imburana-de-cheiro (Amburana cearensis), a carnaúba (Copernicia prunifera) e a maçaranduba (Manilkara amazonica).
  • 24
    Na UDV encontramos o “Conselho da Recordação dos Ensinos do Mestre Gabriel” e o “Departamento de Memória e Documentação”, que representam setores interligados e encarregados de preservar a memória da instituição.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2019
  • Aceito
    31 Ago 2020
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