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O trabalho do historiador: pesquisar, resumir, comunicar1 1 Aula ministrada por Giovanni Levi como convidado do programa Escola de Altos Estudos/Capes, em convênio do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A transcrição do texto da palestra foi realizada por Maria Verónica Secreto de Ferreras, professora do PPGH da UFF, e Mariana Rodrigues Tavares, aluna do PPGH da UFF. Optou-se, neste texto, por se manter as características de uma aula, isto é, da exposição oral realizada pelo professor Giovanni Levi.

Gostaria de começar explicando em que sentido a História é uma ciência. Pode parecer pueril iniciar pela definição do que é História, mas acho que é fundamental para explicar por que 95% dos trabalhos na área são desinteressantes e somente 5% são interessantes. Em grande medida, porque muitos têm uma ideia falsa do sentido no qual a História é uma ciência. Minha definição é: a História é a ciência das perguntas gerais, mas das respostas locais. Não podemos imaginar uma generalização em História que seja válida. Ou seja, podemos perguntar o que é o fascismo, mas há fascismos diferentes na Itália, na Espanha ou em Portugal. Por isso, devemos preservar, nos trabalhos dos historiadores, as particularidades, preservar o local - aqui entendido como uma situação específica. Esse é o grande problema da História. Trabalhar sobre o geral, mas um geral que sempre se configura como perguntas, não como respostas.

Vou dar um exemplo não historiográfico, porém útil. Quando Freud fala do complexo de Édipo, faz uma boa pergunta geral: todos têm o complexo de Édipo, mas nenhum dos complexos é generalizável. O fato de que tenhamos, todos, o complexo de Édipo não nos diz nada. É uma pergunta relevante, porém terá respostas diferentes para cada um de nós.

A ideia de que podemos generalizar conclusões tem produzido muita história ruim. Por exemplo, quando fazemos uma biografia, não devemos procurar nela algo típico. Não podemos afirmar que a vida de cada um de vocês é típica da vida dos jovens brasileiros do século XXI. Não é possível, porque cada vida é uma vida. Não podemos imaginar a tipicidade de uma época. Muitas vezes, os historiadores fizeram essa falsificação: partiram da ideia de que uma vida é típica de um momento e isso é falso. Daniel Roche, um historiador francês muito conhecido, escreveu a biografia de Jacques-Louis Ménétra,2 2 Jacques-Louis Ménétra, Jornal de ma vie: Jacques-Louis Ménétra, compagnon vitrier au XVIIIe siècle. Edité par Daniel Roche, Paris, Montalba, 1982. um mestre vidreiro que fez uma autobiografia com 250 páginas, absolutamente maravilhosa, de uma vida hiperpessoal, sem nada típico. Que faz Daniel Roche em sua grande introdução? Seleciona tudo o que considera típico dos mestres vidreiros dos séculos XVIII e XIX. Isso é mais que uma falsificação. É uma operação inútil, porque é a renúncia à prática da História como ciência. A História como ciência propõe perguntas gerais que surgem no local e que sempre devem ter respostas diferentes.

Uma segunda característica do trabalho dos historiadores é que este se faz em três momentos diferentes. Não é o mesmo momento. O primeiro é investigar. É possível passar anos nos arquivos como muitos de vocês estão fazendo, buscando coisas, desordenadamente, porque a documentação não é organizada pelos historiadores. Para o historiador, é uma quantidade de notas e informações com muitos problemas. Depois, deve-se transformar isso em algo comunicável, que possa ser informado ao leitor. E, antes, é preciso resumir milhares de páginas de anotações, feitas em arquivos, a 200, 250 páginas.

São três tarefas: pesquisar, resumir e comunicar.

Os três momentos de nossa atividade profissional envolvem grandes modificações. Primeiro: o trabalho nos arquivos. Eu o considero muito semelhante ao trabalho dos antropólogos, porque estamos num lugar imaginário, em um cômodo do arquivo onde há documentos, que muitas vezes não encontramos significado. Da mesma forma que fazem os antropólogos quando estão em campo: em um determinado momento, os documentos começam a ter algum significado. Como uma iluminação, Deus ou um anjo diz o que ela significa. Por isso, os documentos mais interessantes não são os cotidianos, banais, evidentes para nós, mas sim os que dizem algo que, de imediato, para nós, é incompreensível, misterioso, porque nos sugerem a alteridade com o que estudamos, mas, ao mesmo tempo, há algo que devemos interpretar e dar coerência com os outros documentos evidentes e banais, já que os outros tendem ao anacronismo, porque os entendemos como se fossem documentos atuais. Diante do documento "incompreensível", entendemos que há algo que deva ser reorganizado. Esse é o trabalho dos antropólogos. Vão a uma ilha do Pacífico e passam dias sem saber de nada realmente; olham, escutam e, uma hora, começam a perceber as lógicas. Mas a lógica deve permanecer local e não pode ser geral.

Há um episódio curioso da história da Antropologia: Clifford Geertz, um grande antropólogo, foi a Bali e escreveu um livro sobre a sociedade balinesa;3 3 Clifford Geertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, LTC, 1989. vinte anos depois, outro antropólogo, Frederik Barth, foi à ilha e disse que tudo o que Geertz tinha dito sobre as regras que organizavam a sociedade balinesa não existiam, que ele não as tinha achado. Pode ser que, em 20 anos, tudo tenha mudado, diz Barth ironicamente, mas de fato aquelas regras não existem mesmo. Por quê? Porque Geertz trabalhava procurando a normativa geral do lugar; Barth buscava uma dinâmica, perguntas gerais que produzissem respostas locais, o que Barth tem chamado de modelos generativos.4 4 Fredrik Barth, Balinese worlds, Chicago, University of Chicago Press, 1993. As perguntas gerais provocam respostas infinitas, ele dizia, e nós devemos ver algo na situação local que nos sugira uma pergunta generativa geral.

O segundo momento do trabalho do historiador: reduzir. Esse é um dos trabalhos mais difíceis. Há livros com milhares de páginas totalmente inúteis, e eu leio pouca História. Mas, quando leio, sei que as duas primeiras linhas de cada período dizem tudo e é inútil continuar lendo as outras 50 linhas. A retórica dos historiadores é assim: "todos os homens têm duas pernas" e, em seguida: "Por duas pernas se entendem os instrumentos que os homens utilizam para andar... ". Ou seja, podemos terminar de um livro em meia hora, lendo somente as duas primeiras linhas, porque não houve o esforço por achar o essencial. É difícil encontrá-lo. Um episódio pessoal. Esta manhã, recebi um e-mail sobre a tradução de um artigo em francês. O tradutor dizia que ia suprimir uma frase porque era difícil traduzir e era inútil. Nesse caso, ela não era, era muito útil, mas pode ser que nós, historiadores, escrevamos muitas palavras inúteis. O esforço deve

Minha definição é: a História é a ciência das perguntas gerais, mas das respostas locais.

Não podemos imaginar uma generalização em História que seja válida

ser o de resumir até conseguir manusear o material. E, fazendo essa operação, produzimos um esforço de comunicação, porque devemos transformar todos os documentos em algo resumido que diga as mesmas coisas. Pensamos, por exemplo, que se nós colocamos todos os documentos utilizados, somos menos contestáveis, porque o leitor vê tudo. Elaboramos, então, sínteses, tabelas, gráficos, coisas que buscam concentrar a informação. Essa compilação é o lugar no qual os historiadores geralmente fazem o máximo de falsificações. Eu penso na História dita quantitativa e sei que, com percentagens, podemos mostrar o que quisermos, podemos manipular os números como desejarmos. Nos anos 1960 e 1970, houve um período em que a História quantitativa parecia mais científica. Os números são mais impressionantes e, por isso, buscávamos quantificar as coisas. O problema da história não é quantificar, mas formalizar, o que é muito diferente; é encontrar uma forma científica de comunicar as coisas e não de transformar tudo numa aparente cientificidade positivista.

Por último, a comunicação, que é uma coisa muito complicada, porque é ligada à narrativa. Como podemos contar nossas histórias? Quais as técnicas que temos para convencer? Não no sentido negativo, mas para dizer claramente o que queremos dizer. Há muitas técnicas. Vou usar como exemplo alguém que, para mim, é um grande escritor, antes de ser um bom historiador: Carlo Ginzburg. Ele tem a capacidade de dizer na página 200 o que queria dizer. Geralmente, nós falamos na primeira linha o que queremos dizer. "Este livro demonstrará que ... etc." Carlo Ginzburg não. Ele guia o leitor em 200, 250 páginas por ruas misteriosas. Não sabes aonde irás. No final, muitas vezes, diz: "essa era uma rua sem significado". Mas, ao final, diz aonde quer nos conduzir. Acho essa técnica muito persuasiva. Uma das causas do êxito de Carlo Ginzburg é sua capacidade literária, sua capacidade de convencer, porque o leitor já está hipnotizado quando chega à página 200, num labirinto e ansioso para saber o que vai acontecer no final. É como uma novela policial. Não é coincidência que, frequentemente, Ginzburg faça relações entre História e novela policial, porque nossa investigação, muitas vezes, é semelhante à investigação policial, procuramos coisas sem saber quem é o assassino.

Mas há um defeito fundamental nisso. Nós, historiadores, sabemos sempre antes quem foi o assassino - não antes de começar nossa pesquisa, mas antes no tempo: chegamos depois, conhecemos muitas das consequências - trabalhamos sobre o passado e já sabemos as consequências. Muitas vezes, corremos o risco de descobrir causas que não são as verdadeiras. Se dissermos "choveu por 15 dias, por isso, Berlusconi ganhou as eleições na Itália". Berlusconi venceu as eleições na Itália, mas por outro motivo. Nossa seleção das motivações é, muitas vezes, somente sobre o bom senso, não por causas efetivas, porque trabalhamos quando o assassino já está revelado.

Esse problema da comunicação é fundamental, porque tem gerado toda a discussão sobre o debate História e narrativa. Sempre se cita Hayden White como alguém que nega a existência da diferença real entre a atividade científica da História e a Literatura. Há uma característica fundamental que faz a diferença entre a História e a literatura: os historiadores escrevem sempre o mesmo livro. Nós escrevemos 50 livros a cada ano sobre Pedro II, Carlos V, Felipe II; é uma reescritura contínua, buscamos algo que sempre precisa de novas explicações. Mas não podemos escrever muitas vezes O homem sem atributos, ou Guerra e Paz. As novelas são únicas. As histórias são repetidas ad infinitum.

Isso não quer dizer que não haja verdade na Literatura. Há uma verdade literária que é diferente da verdade histórica. Enquanto esta tem o vínculo da documentação, a verdade literária tem ligação com entender o mundo descrito. Porém, não é a mesma coisa, porque nós escrevemos sempre o mesmo livro. Que significa escrever o mesmo livro? Por que escrever o mesmo livro? Porque a verdade histórica é sempre parcial. Nós não podemos dizer quem é Carlos V. É impossível. Podemos nos aproximar da verdade. Nossa atividade é sempre trabalhar sobre verdades parciais. O fato de que, a cada ano, possam aparecer 50 livros sobre Carlos V não significa que 49 são estúpidos e 1 é inteligente. Significa que cada um procura uma nova perspectiva sobre ele.

Vou usar um exemplo sobre a história do judaísmo. Os judeus - eu sou judeu - não podem dizer que Deus existe. Porque o Deus dos judeus é muito nervoso. Se você diz que Deus existe, alguém diz "como pode entender o sentido a existência de Deus". Ele é incompreensível para os humanos. Existem homens, nós podemos entender a existência dos homens, mas a existência de Deus é impossível de resolver. No entanto, dever dos homens é trabalhar sempre sobre a busca da compreensão da existência de Deus. Essa é um pouco a atividade dos historiadores. Nós não podemos dizer: "Carlos V era assim"; podemos trabalhar sempre sobre Carlos V, chegarmos a uma verdade que sempre será distinta da verdade que poderíamos qualificar como definitiva. Essa é a característica da comunicação dos historiadores. Sempre trabalhamos sobre algo que não se pode afirmar inquestionavelmente, que não se pode resolver definitivamente.

Esses três momentos são muito importantes como atividades diferentes. O fato de os historiadores escreverem livros, muitas vezes chatos, é que nós não pensamos no leitor. Isso é fundamental, porque devemos pensar no leitor. Geralmente, os historiadores trabalham imaginando como leitores aqueles que estão no seu próprio departamento, os outros historiadores. É uma escrita muito corporativa. Escrevemos para nossa corporação, e uma corporação sempre é mais frágil, por motivos que discutiremos depois. Isso produz livros que não se podem ler, que são chatos, que não têm público, ou têm um público de 50 pessoas, ou seja, não têm a possibilidade de falar para um público diferente que não seja os profissionais da historiografia. Pode-se pensar também em um só escritor. Por exemplo, Stendhal dizia: "quando eu escrevo penso em quatro pessoas". Mas é fundamental pensar no leitor quando se escreve. Ginzburg, que é muito amigo, me disse numa oportunidade: "você escreve para 50 pessoas, eu escrevo para 15 mil". Acho isso interessante, porque pensei: "provavelmente escreva para 50. Procurarei escrever para mais pessoas". No entanto, é importante saber que não é apenas a quantidade, mas a característica do público, identificar o público específico. Para nós, é necessário saber a quem escrevemos. Por exemplo, no livro que o André5 5 Um dos alunos que se aproximou da mesa, antes de iniciar a aula, para pedir que assinasse seu exemplar de A herança imaterial. me pediu para assinar, eu escrevi: "para meus filhos, que são somente dois". Mas o problema foi que, quando eu li o livro para meu filho menor, ele disse: "este é um livro que pode interessar somente aos médicos". Depois disso, passei um ano em Princeton e o reescrevi não só para médicos. Ao final, o livro teve certo sucesso. É fundamental, quando escrevemos, sabermos quem será o potencial leitor, 1 ou 15 mil. Mas é claro que há muita pressão acadêmica para escrevermos para acadêmicos. O exemplo mais triste, eu penso, são os Estados Unidos de hoje, em que jovens historiadores são obrigados a escrever de acordo com a moda do momento. A cada três ou quatro anos nos Estados Unidos se diz: "devemos fazer história cultural" e todos devem estudar história cultural para não ficar desempregados. Não é interessante para as universidades contratar pessoas que não façam história cultural. Depois dizem devemos fazer história da escravidão ou história das emoções. Perfeito! Todos escrevem sobre isso. Isso me parece muito impressionante. Certamente, há a vantagem de se produzir uma grande arena de debate sobre um campo específico de investigação, mas, ao mesmo tempo, se produz muito conformismo. Tenho uma aluna genial - acho que hoje em dia é professora em uma universidade americana de grande prestígio - a qual escreveu um livro com um êxito enorme. Quando o li, me pareceu banal. Por quê? Era um bom livro, mas semelhante a muitos outros livros que eu já tinha lido. Ela estava na moda, podemos dizer. Acho que esse tipo de pressão acadêmica produz uma degradação fatal na historiografia, uma possibilidade muito limitada de falar a um público diferente. Publicou-se 600 exemplares do livro da minha aluna, porque se fazem edições de 600 exemplares de todas as obras americanas academicamente importantes, mas invendíveis para 600 bibliotecas americanas que compram os livros. Isso é automático. O preço é fixado sobre 600 e, portanto, são caríssimos. Imprimem-se uns 50 a mais para presentear. O custo desses livros é de 120 e 150 euros. São livros sólidos, mas pensados para leitores corporativos locais. Outros livros são completamente diferentes. Muitas vezes, um livro publicado em tiragem de 600 exemplares, se tiver muito sucesso, será publicado em formato mais econômico.

O fato de os historiadores escreverem livros, muitas vezes chatos, é que nós não pensamos no leitor.

Isso é fundamental, porque devemos pensar no leitor

Mas, em geral, os livros acadêmicos são produzidos para acadêmicos. Essa é uma verdadeira tragédia. Por que uma tragédia? Porque os historiadores perderam seu papel. Nós não temos mais o rol central que a história teve no passado. O grande triunfo da História foi o século XIX, quando foram criados os Estados-nações. A historiografia tinha o papel de falar com a nação, de dizer coisas que eram interessantes para todos. Por quê? Porque tinham um papel político. "Devemos construir uma mitologia histórica, uma mitologia nacional". Isso produziu a grande literatura histórica do século XIX. Hoje em dia, o problema não é muito interessante. Por exemplo, penso na historiografia dos palestinos; é uma historiografia muito fraca, mas uma historiografia muito interessante. Os palestinos têm o problema da criação do Estado Palestino e a necessidade de dizer que eram uma nação antes de nascer o Estado de Israel. Devem fazer uma demonstração que o povo palestino não era uma parte do povo sírio, nem uma parte do povo árabe, mas sim um povo específico. Assim, os historiadores palestinos buscam os fragmentos de um nacionalismo palestino no final do século XIX, para provar que a sua nacionalidade não nasceu como consequência do conflito com Israel ou do conflito de não aceitação dos demais países árabes e sim por ser um povo específico. O significado político disso é a ideia de que o Estado-nação deve ser criado com sua tradição, com sua larga tradição cultural interna e não sua tradição contingente ligada a outros países. Por exemplo, Rashid Khalidi,6 6 Rashid Khalidi, Palestinian identity. The construction of modern national consciousness, New York, Columbia University Press, 1997. o melhor historiador palestino, que atua em Harvard, trabalha muito sobre a revista Filistin, a revista dos filisteus e dos palestinos, como um sintoma importante do nascimento do Estado-nação. É uma revista cultural que devia ter uma pequena elite de leitores, eu imagino, no final do século XIX.

Até meados do século XX, a história foi a ciência das ciências; a ciência social das ciências sociais. Foi a razão do sucesso de Braudel, por exemplo. Hoje, quando se fala de Braudel, é quase como falar da Bíblia: um livro difícil de ler hoje, mas que teve muito sucesso; um livro que vendeu milhões de exemplares, que foi traduzido a todos os idiomas possíveis. Hoje não acontece isso. Por quê? Porque, depois dos anos 1950, começou a se fazer história fora do livro. O livro parou de ser o instrumento exclusivo de comunicação, da investigação e comunicação historiográfica. Nasceram outras mídias mais eficazes por terem um público maior. Ler um livro se tornou cada vez mais raro, e mais ainda um livro de História. A televisão tem produzido um público enorme. Atraiu uma atenção diferente. Demoramos quatro anos para escrever um livro, vendemos mil exemplares quando temos um sucesso enorme, e a TV fala em pouco tempo de fatos históricos e tem milhões de espectadores. Isso produziu um sentido histórico diferente do de antes. Temos um senso de História diferente de quando o livro era o centro da comunicação historiográfica. Por que diferente? Porque nossa profissão está caracterizada por algo absurdo: fazemos as coisas lentamente e de forma complexa. "Por que fazer as coisas simples se podem fazê-las complicadas?", disse Jacques Revel na introdução da tradução francesa da Herança imaterial. A TV, pelo contrário, é simplicidade e rapidez. As coisas devem ser imediatamente compreensíveis, ainda quando não são verdadeiras. Por exemplo: Hitler é como Stalin. Essa é uma coisa que se nós falamos com um público de não especialistas, ele vai achar que Hitler era como Stalin. Na verdade, ambos eram muito malvados, mas muito diferentes, e o trabalho do historiador é dizer em que sentido Hitler é diferente de Stalin. O trabalho que faz a televisão é dizer que Hitler é como Stalin. Há algumas simplificações, slogans que, paulatinamente, penetram na cabeça das pessoas. "O comunismo é igual ao fascismo", na Itália, isso se escuta muitas vezes. Simplicidade e rapidez contra complexidade e lentidão. Essa, acredito que seja a grande transformação antropológica que a historiografia tem tido neste século nos últimos 60 anos. Tem mudado nosso papel. Por isso, ficamos alienados, não temos mais o papel politicamente relevante que tivemos antes. O que causou isso? Causou o que se chama de revisionismo histórico. Ou seja, que os livros de sucesso sejam os que causam polêmica. Se nós escrevemos um livro dizendo que Napoleão era homossexual, venderá milhões. Recentemente, na Itália, apareceu um livro de muito sucesso sobre Primo Levi (1919-1987), um historiador muito importante que escreveu sobre a shoah. Então, um jovem historiador escreveu um livro em que afirma que Primo Levi participou de um fuzilamento de um "partisano", o que não é verdadeiro, mas foi um escândalo, todos os jornais falaram disso, e o livro teve grande sucesso editorial. Por que isso tem sido tão importante na historiografia em sua validade científica? Porque há causas mais importantes, mas também porque há uma deseducação do público a respeito do conhecimento histórico. O conhecimento histórico tem entrado no sentido comum não como complexidade, mas como simplificação. Nisso, podemos introduzir todas as formas de escândalo. Há motivos mais importantes, como falei, como o pós-modernismo. Devemos ter em conta que trabalhamos em uma época em que o papel do historiador ficou muito reduzido. Há um público com um senso de história muito diferente do que existia há 30, 40, 50 anos.

Com isso, fecho a primeira parte de minha exposição. Alguém tem perguntas?

Aluna: O senhor comentou que não devemos procurar algo típico, mas perceber a especificidade da biografia. Minha pergunta é como articular uma biografia com o coletivo sem procurar o típico?

Giovanni Levi: Para mim, é evidente que uma biografia típica não funciona, porque todos nós somos diferentes. Isso é interessante. Há limites em nossa possibilidade de conhecer as pessoas, de escrever uma biografia, mas a tendência à tipicidade tem produzido o quê? Em geral, tem produzido coerências biográficas, a ideia de que nossa vida é coerente. Nós sabemos que não é verdade. Nossa vida não é coerente. Temos várias contradições de vários tipos... Quando verbalizamos, transformamos em palavras nossas emoções... nossas intuições, e cortamos as coisas, as simplificamos para obter uma coerência e linearidade da biografia. O verdadeiro problema é como podemos evitar isso? Dilthey, um filósofo alemão, dizia que ninguém pode imaginar as emoções, as impressões das pessoas, se não tiverem tido, de algum modo, uma expressão objetiva. Trabalhamos sobre documentos e sobre pessoas apenas quando há algo dito, de evidente, mas o que passa nas cabeças das pessoas nem as pessoas mesmas sabem. Mas temos a impressão de que falta algo de diferente, de não coerente. Ademais, temos uma vida dupla: se estamos conscientes, temos uma vida. Quando dormimos e sonhamos, temos outra vida. Nosso inconsciente nos sugere coisas que preferimos não transformar em palavras. A dificuldade de escrever uma biografia é exatamente essa: evitar tipicidade, coerências e linearidades. O verdadeiro problema é sempre ter que dizer tudo e saber que a vida das pessoas é um mistério, que nós podemos nos aproximar, mas não resolver. Não podemos saber tudo. Sabendo disso, talvez possamos escrever uma biografia interessante. Acho que isso foi muito debatido, sobretudo em literatura. Cito Schwob,7 7 Marcel Schwob, Vidas imaginarias. Estudio preliminar y traducción de Julio Pérez Millán. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1980. escritor que escreveu Vidas breves, ou algo assim. Em dez linhas, buscava caracterizar o personagem. Outra pessoa que trabalhou sobre isso foi Winfried George Sebald, um escritor alemão já falecido e muito popular no debate recente. Ele trabalhou sobre fragmentos ínfimos. Em seu livro, Os Emigrantes,8 8 Winfried George Sebald, Os emigrantes: quatro narrativas longas, São Paulo, Companhia das Letras, 2002. fala de pessoas desaparecidas que deixaram para trás de si fragmentos: uma foto, o lugar em que estavam, uma carta, alguma coisa. Acho que isto é muito importante: falar ao leitor, solicitar seus sentidos. Por quê? Porque a história não se faz com documentos; quero dizer que os documentos são mentirosos porque são sempre parciais. São sempre produzidos em atos de decisão e ação. Mas os homens são feitos de coisas que não são nem decisões, nem ações, em 90% de suas vidas. Por isso, tenho citado Schwob e Sebald porque eles buscam trabalhar sobre algo que não dá informações, que dá poucas informações, porque é nossa, não podemos dizer fantasia, mas sim nosso esforço, de entender através de fragmentos que criam mais compreensão do que a quantidade de documentos.

Terminei um artigo sobre uma pessoa chamada Giorgio Cardoso.9 9 Giorgio Cardoso, "Intimité marrane", Penser/Rever, n. 25, 2014, p. 103-113. Eu não sei nada dele, sei pouquíssimo, mas fiz uma polêmica entre os que trabalham com atos inquisitoriais. Em geral, são documentos maravilhosos porque dão muitas informações para os historiadores, mas são todos documentos externos. O resultado é que os marranos e mouriscos julgados pela inquisição sempre são tratados por sua exterioridade; ao final, fica a impressão de que usavam sua possibilidade de ser muçulmano, judeu e católico, dependendo da ocasião, criando uma imagem que não dá o sentido da tragédia pessoal dessas vidas. Há um livro muito interessante, mais que os de Nathan Wachtel, que é o de García-Arenal, sobre uma família de marranos.10 10 Mercedes García-Arenal; Gerard Albert Wiegers, Un hombre en tres mundos. Samuel Pallache, un judío marroquí en la Europa protestante y en la católica, 2. ed. corregida y aumentada, Madrid, Siglo XXI, 2007. O livro sugere que eles se utilizavam da sua condição marrana. Ao contrário, o problema é a tragédia. Então, na vida de Cardoso, que eu estudei, sabia só uma coisa, algo de sua educação familiar. Em sua família, praticava-se o judaísmo secretamente. Não sei mais nada, só imagino. Depois, quando se tornou adulto, permaneceu solidário à sua família, que se mostrava muito católica para os outros, mas praticava o judaísmo clandestinamente. Quando morreu seu pai, seu tio e tutor decidiu torná-lo monge, padre servita, e ele mudou de nome, deixou de ser Giorgio Cardoso para ser conhecido por Frei Francisco. Gastaram muito dinheiro comprando roupas, imagens, mas, no dia em que ele deveria entrar para o convento, sumiu. O tio escreveu no livro da contabilidade de família: "paguei 36 ducados a Giorgio que não se chama mais frei Francisco porque fugiu". Isso é tudo o que sabia dele. Mas me intrigava o mistério dessa vida, eu pensava em como funcionaria a intimidade. Sua intimidade quando criança. Quando ele devia, ao mesmo tempo, ser judeu em casa e católico fora. Sua intimidade pessoal, familiar. Um jovem que devia ser muito judeu em casa e muito católico na rua. Sua vida de quando escapou e procurou outra intimidade, provavelmente a intimidade dos outros da nação, fugiu buscando os outros que tinham a mesma condição, digamos.

Agora eu acho que poucos documentos nos fazem pensar. Isso é o que devemos fazer. Porque nos permite fazer perguntas gerais para outros casos.

Não devemos trabalhar sobre o que se vê; aí está o problema das intimidades dos personagens que tinham sido julgados pela inquisição. Não sei se esse exemplo é demonstrativo, mas acho que sugere dúvidas quanto aos documentos, quanto ao excesso de documentos.

Aluno: Minha pergunta diz respeito às três etapas descritas sobre o trabalho do historiador. Sobre o fenômeno que Kant chamou de imaginação a priori e, posteriormente, Humboldt chamou de "imaginação histórica" e, depois, Collingwood chamou de "a ideia de História" e, mais recentemente, Hayden White chamou de "meta-história", essa espécie de antecipação que acontece na cabeça do historiador antes dele se colocar a trabalhar. Na sua opinião, isso acontece numa etapa separada do trabalho do historiador, ou é um fenômeno que vem acoplado a todas essas etapas que o senhor descreveu, ou é um fenômeno que não tem lugar na sua definição de História como ciência?

Giovanni Levi: Os historiadores têm uma fantasia contínua porque não são neutros. São como os antropólogos que, quando vão ao campo, têm ideias, mas devem ser variáveis e elásticas porque temos muitos inimigos. O principal inimigo é o anacronismo. Devemos explicar com nossas palavras, apenas transformando nossas autoperguntas em perguntas gerais, em perguntas aos outros, mas sem fazê-los iguais a nós. Isso é evidente quando trabalhamos sobre o passado mesmo que muito recente. Por exemplo, as relações entre pais e filhos mudaram muito nos últimos 30 anos. Então, não podemos explicar as relações de pais e filhos de há 30 anos com nossa autobiografia, mas podemos perguntar o que mudou. Mas, automaticamente, trazemos nossa cultura, nossa sensibilidade. Fazemos isso no momento em que trabalhamos nos arquivos, especialmente quando encontramos a dificuldade dos documentos, do que é incompreensível. Isso é um choque automático contra nossa cultura, nossa sensibilidade, por isso, nossa fantasia começa a trabalhar, muitas vezes, sem dar resultados imediatos, mas sabemos que há algo que não sabemos explicar. É a mesma coisa quando resumimos e quando escrevemos. Isso sempre existe, nossa personalidade, eu não acredito em um historiador neutral que não sabe nada e somente escuta os documentos. Deve escutar sabendo que deve renunciar a muito de si mesmo, de suas ideias e de suas informações. Deve buscar novas informações, sem anacronismos. Sua pergunta envolve uma apreciação geral. Você utilizou a palavra fantasia e acho que esse é o problema dos historiadores. Os historiadores devem ter muitíssima fantasia porque têm um inimigo escondido fundamental: os documentos, que sempre são falsos, por dois motivos. Primeiro, os documentos sempre são parciais. Também, se temos montes de documentos sobre algo, temos só fragmentos - um monte de fragmentos. Os documentos sugerem que nós sabemos o que é necessário saber, mas mentem por sua parcialidade. Sempre! A segunda razão é que os documentos se produzem quando há ação e decisão; caso contrário, por que fazê-los? Todos os documentos notariais - que são a fonte mais interessante para os historiadores - estão situados em ação e decisão. Fazemos testamento, dote, compra e venda, empréstimos, coisas que são ações, mas falta muita coisa. É importante para o historiador e sua fantasia ler as entrelinhas do documento. Por exemplo, nos testamentos, são interessantes as testemunhas que geralmente não são usadas. Para os dotes, há também testemunhas. Aí há informações indiretas que, muitas vezes, dizem muito, por exemplo, do mundo relacional onde uma ação foi feita. Esse é o primeiro defeito das fontes: sua parcialidade de criação. Os gregos, por exemplo, nos anos 1980, por decisão do parlamento, queimaram todos os documentos da guerra civil, da ditadura dos anos 1935 a 1948. Decidiram que seria melhor para a pacificação da sociedade grega se fosse apagado esse momento de maior conflito, do massacre de quase um milhão de mortos da guerra civil. Agora devemos renunciar a escrever sobre a história da guerra civil grega? Não! Sempre há fragmentos, diários, documentos de outros países, cartas, documentos pessoais que não foram queimados. Temos muitas informações, mas não temos os documentos que o Estado produziu, temos apenas os documentos públicos e privados que não foram queimados. Então, devemos escrever a história sobre a guerra civil grega também sem a aparente totalidade de documentação que estaria disponível. A segunda consequência é esta. Acho que os historiadores são menos perspicazes quando trabalham com assuntos contemporâneos. Desculpe-me os adeptos do contemporâneo. Por quê? Burros, não no sentido físico, nem psíquico, mas como condição. Porque têm documentos demais e lidam com vários documentos. Depois, temos os modernistas, um pouco mais inteligentes, mas também têm muitos documentos. Depois, os da Idade Média, muito inteligentes e, ao final, os mais inteligentes são os pré-historiólogos, que têm pequenos fragmentos, mas usam mais o cérebro do que os documentos. Pelo contrário, nós, modernistas, usamos mais documentos do que cérebro e os do contemporâneo só usam a documentação. Isso é uma tragédia, um paradoxo, mas acho que esse problema da nossa relação com os documentos deve abandonar o fetichismo da documentação. Devemos usar muita fantasia em nosso trabalho. Não inventar coisas, nem criar documentos falsos, e sim ver nos fragmentos que nós temos, que perguntas nos sugerem.

Se tivermos um crânio de um Neandertal, ele é um documento para fazermos muitas perguntas. Se tivermos dez crânios de Neandertal, o rendimento já fica decrescente. Se tivermos dez mil, então, o rendimento do último é de zero. Acho que esse é o problema fundamental. Não é a quantidade de documentação o fundamental. Se pensarmos em quem é o maior historiador do século XX, eu diria que é o Marc Bloch, medievalista. Quem é o maior especialista em História contemporânea do século XX? Karl Polany, antropólogo, não historiador. De fato, há um problema e acho que é a quantidade sufocante de documentação.

Aluna: Você falou do bom senso que o historiador deve ter para achar as "motivações" mais acertadas aos fatos estudados. Minha pergunta é como encontrar o bom senso?

Giovanni Levi: É, não é simples, porque o bom senso não tem uma medição fácil, mas efetivamente, muitas vezes, há explicações em que faltam o bom senso, digo, antes estava falando com a Verônica sobre um dos problemas dramáticos da historiografia recente norte-americana... Eu li dois livros que falavam sobre aspectos europeus, livros escritos por norte-americanos que citavam exclusivamente livros em inglês. Em um deles, um senhor escreveu uma feroz resenha no Journal of Economy History, que dizia: "Braudel escreveu o livro sobre o Mediterrâneo no século XVI. Agora eu vou escrever sobre o século XVII." E escreveu sobre o Mediterrâneo, sem citar um livro que não estivesse em inglês. O resultado foi que ele citou livros de historiadores de outras nacionalidades, mas só se estivessem traduzidos para o inglês.11 11 Faruk Tabak, The warning of the Mediterranean - 1550-1870: a geo-historical approach, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 2008. O outro, que estou lendo agora, é um livro contra Guha, o grande historiador indiano do Grupo de Estudos Subalternos. Vamos falar disso depois.12 12 Vivek Chibber, Post-colonial theory and the specter of capital, London; New York, Verso, 2013. Ele também fala muitíssimo no fato de que, segundo Guha, eu explico depois, a França e a Inglaterra construíram um Estado Moderno e a Índia não, por motivos fundamentais de como foram suas revoluções burguesas. Ele cita muitíssimo a França em seu livro, mas tudo o que escreveu sobre a organização francesa é baseado em livros americanos. Agora, isso é um uso do "mau" senso, porque somente dois ganham com isso: o imperialismo dos americanos, "o que nós fazemos é suficiente", e, segundo, os editores americanos que traduziram livros de historiadores franceses, mas só os traduzidos por alguns editores foram usados. É assim que se forma o editor o qual escolhe os livros que nós lemos ou não. Isso é um verdadeiro paradoxo agora, é um indício muito importante do fato de que, no final, não há bom senso, e sim causalidades interpretadas. No caso do segundo livro, de uma maneira muito política, no sentido negativo, eles falam que a Europa não teve uma revolução burguesa, mas a Índia sim. Que não há diferença entre a Índia, a Inglaterra e a França, o que é uma estupidez. Mas qual é a causalidade nesse sentido? É uma causalidade que chega da bibliografia usada e de uma mentalidade... Não polemizo sobre o imperialismo americano, mas sim sobre o seu imperialismo cultural. Acham que é suficiente ler apenas o que eles produzem. Isso é um perigo fatal. Eu não vou aos Estados Unidos há muitos anos porque não quero que fiquem averiguando meu passaporte, mas é verdade que, paulatinamente, a historiografia norte-americana se fechou numa margem totalitária, e isso é muito triste. Porque na minha geração sempre falavam para eles que não podiam, não era legítimo estudar o Marrocos sem saber falar árabe. Não se podia estudar os Bálcãs sem saber as línguas eslavas. Agora, não! Temos tudo nas mãos traduzido para o inglês. E o paradoxo é que há uma observação neste livro sobre os Estudos Subalternos que diz: "Até agora, este livro não foi traduzido para o inglês e não posso citá-lo", assim, sem pudor. Não é uma boa resposta para a sua pergunta, mas é a melhor que posso fazer.

Relacionado ao que disse antes sobre a crise da historiografia, há um problema fundamental que é: nem toda ciência social marcha na mesma velocidade. Acho que muito disso é causado pela organização corporativa das academias, e os historiadores trabalham entre eles mesmos, assim como os economistas e os antropólogos. A opinião de Karl Marx era de que a ciência social é uma só, e acho que isso é verdade. Nós nos propomos um problema qualquer e ele deve ser encarado com todas as possibilidades. Não podemos dizer que aqui termina a nossa capacidade de historiadores e agora é com os economistas. Isso não pode ser assim. Não podemos saber tudo, mas temos que saber alguma coisa. Devemos conhecer que o resultado é a velocidade diferente do desenvolvimento das ciências sociais. A segunda consequência é que nós, se usarmos leituras também diletantes de outras ciências sociais, podemos encontrar perguntas muito importantes para nós. Uma das aulas que vou dar será ser sobre o não uso da Psicanálise na História, das perguntas da Psicanálise e não das interpretações. Mas qual é a sugestão da Psicanálise que os historiadores também deviam perguntar, mas não se perguntam? Falaremos sobre isso e sobre a temporalidade, depois. O que quero dizer é o seguinte: a velocidade diferente fez com que outras ciências sociais se fizessem perguntas fundamentais que nós não achamos importante.

O conhecimento histórico tem entrado no sentido comum não como complexidade, mas como simplificação. Nisso, podemos

introduzir todas as formas de escândalo

Um exemplo é a economia. A economia é muito ignorante, os economistas em geral são muito ignorantes sobre História, mas têm uma grande crise que também seria muito interessante para nós. Eles se construíram como uma ciência bastante exata, formaram-se imaginando que os homens são todos, grosso modo, iguais em suas utilidades, em seus comportamentos racionais. De modo geral, eles sempre falam que todos têm os mesmos desejos, os mesmos usos, porque não dá para construir uma ciência se os homens agirem de maneira diferente quanto aos comportamentos sobre os mercados etc. Devem encontrar uma coerência de vontade. Os homens são iguais. De modo geral, toda a teoria clássica, e a teoria econômica, construiu-se sobre a ideia de que há uma homogeneidade comportamental entre as pessoas. Isso permite formular leis sobre o consumo, o funcionamento dos mercados etc. Nos últimos 50 anos, os economistas perceberam algo fatal: que as pessoas são diferentes. Falando assim, parece banal que devamos nos perguntar como construir uma teoria, uma ciência considerando as pessoas diferentes. Devemos começar a trabalhar com essas diferenças e saindo de Simon13 13 Herbert Alexander Simon, Models of discovery, Dordrecht, D. Meidel Publishing Compagny, 1977. e chegando a Tversky,14 14 Psicólogo e matemático. Publicou estudos em parceria com Daniel Kahneman. Kahneman...15 15 Daniel Kahneman é psicólogo. Teórico em finanças comportamentais. Professor da Universidade de Princeton. Ganhador do Prêmio Banco da Suécia em Ciências Econômicas em memória de Alfred Nobel, em 2002. e aos prêmios Nobel recentes... os economistas destruíram a ciência econômica e começaram a trabalhar sobre a racionalidade das pessoas. Se imaginarmos uma homogeneidade na racionalidade entre os homens, fazemos ciência.

Mas e se a racionalidade das pessoas não for homogênea? Simon começou dizendo que as pessoas são diferentes por muitos motivos, mas no campo econômico, porque têm informações diferentes. Isso foi uma grande revolução tanto na teoria econômica como em outras ciências sociais. Têm informações diferentes e, por isso, não podem imaginar que tenham os mesmos comportamentos no mercado. Há um diferencial de informação que nasceu com o grande desenvolvimento da ciência da informação, exatamente por isso, há informações diferentes. Mas, paulatinamente, os economistas começaram a pensar que talvez a racionalidade das pessoas não seja homogênea, que reagem de formas diferentes, que têm vontades diferentes e também formações cerebrais diferentes. Não que haja burros e inteligentes, mas há pessoas sensíveis a algumas coisas, insensíveis a outras e vice-versa.

Toda ciência econômica de hoje está discutindo a teoria da racionalidade. É muito interessante, mas também incompreensível para nós que não somos economistas. Mas sugere coisas. É melhor ler um livro de Daniel Kahneman do que não ler, embora nem tudo seja "entendível".16 16 Ver, entre outros, Daniel Kahneman, Rápido e devagar: duas formas de pensar, Rio de Janeiro, Objetiva, 2011. 17Robert Musil, O homem sem qualidades, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989. Também é útil ler Simon, porque podemos constatar se nossos personagens respondem à pluralidade de motivações como os dele. É verdade e não! Nossos personagens têm uma racionalidade homogênea. Isso é uma tragédia para a historiografia. Uma pesquisa que seria interessante fazer é como os historiadores interpretam os comportamentos psicológicos em seus livros. Eu tentei, mas minha psicóloga era petulante demais e não terminamos a pesquisa. A ideia era pegar vários livros de História e descobrir explicações psicológicas que os historiadores usam. Grandes livros, para ver como eles explicam os comportamentos. Eu sugiro uma pesquisa sobre isso porque é trágico. Nós pensamos que os homens são marionetes porque os imaginamos com uma racionalidade trivial. Lembro que um grande mestre, um grande historiador, chamado Franco Venturi, dizia: "Franco Genovesi é advogado porque o pai dele era advogado". Essa não é uma boa explicação, podemos dizer. Eu sou historiador e meu pai era engenheiro. Devemos ver, de fato, como usamos a psicologia em nossas interpretações historiográficas. Os economistas fizeram isso destruindo a ciência econômica. Poucas ciências são, nessa crise profunda porém vital que existe hoje, como a ciência econômica, mas é grande a capacidade de progresso que nós, até agora, nem começamos nesse meio quanto à racionalidade das pessoas.

Antes, falamos de biografia; os novelistas escrevem biografias muito mais reais que as nossas. O vínculo com a documentação faz com que nossos personagens sejam menos emotivamente interessantes que os da ficção. Devemos nos questionar por quê. Para mim, um livro maravilhoso é O Homem sem qualidades, de Musil.17 Ler sobre a contradição de seu personagem que continua se questionando sobre os contrários das mesmas coisas. Ou Miss Dalloway, de Virginia Woolf. Ela está sentada num banco de um jardim público e pensa. Nossos personagens não podem pensar, mas nós devemos pensar que nossos personagens pensavam e quanta mentira nós introduzimos ao simplificar demais as biografias que escrevemos. Outro atraso: quando estive em Princeton, eu morava na rua Einstein, esquina com a rua Von Neumann, porque Einstein tinha morado em uma casa daquela rua e Von Neumann, na outra. Von Neumann era um grande matemático e dizia que a matemática do século XX é uma matemática de qualidades, não de quantidades. Ele falava isso já nos anos 1930 e os historiadores pensavam, como dissemos antes, que a quantidade era muito científica, melhor. Apenas recentemente, os historiadores começaram a estudar as relações, a qualidade, como sendo mais importantes que as quantidades, como no exemplo das pessoas. O mundo relacional, que se trabalha muito em Antropologia, e também, mas nem tanto, em Sociologia. Não falo de Sociologia porque um grande etno-historiador, John Murra, dizia: "que não somos nem amigos, nem colegas dos sociólogos". Então, acho que os sociólogos são muito diferentes de nós. Os antropólogos, mais interessantes para a nossa atividade, de fato se questionaram sobre problemas muito interessantes que nós, historiadores, não examinamos. Eles foram os que introduziram com violência, digamos como uma epidemia, a "network analysis". Por quê? Porque, de fato, nós somos definidos pelo nosso mundo relacional, não só por sermos determinados pela nossa família, nossos pais, mas também porque nossas diferenças derivam do mundo, de como organizamos nosso mundo de relação. Por exemplo, Boissevain, um antropólogo canadense que trabalhou sobre Malta, pequena ilha no Mediterrâneo,17 17 Jeremy Boissevain, "Factions, parties, and politics in a Maltese village", American Anthropologist, vol. 66, 1964, p. 1275-1287. descobriu uma coisa impressionante: os mineiros de Malta - uma ilha pequena e com um trabalho muito limitado - tinham 1.500 relações diferentes por ano; seu network, sua rede relacional, era de 1.500 pessoas. A minha é modesta, de 4 mil pessoas. Todo ano, eu me encontro e troco informações com 4 mil pessoas. Isso é muito importante, porque podemos desenhar também o mundo antigo. No mundo antigo, uma das cláusulas que a Igreja impunha para permitir os casamentos consanguíneos era a debilidade relacional. Dizia-se que alguém devia casar-se com um primo porque, em seu povoado, não havia mais pessoas do mesmo nível social com quem se pudesse casar. Por isso, era permitido o casamento entre primos. Isso é muito interessante, porque há uma diferença enorme entre nossa sociedade, bem aberta, e uma sociedade do mundo antigo em que todos se conheciam, mas em áreas pequenas. Nós não conhecemos quase ninguém em áreas enormes. Conhecemos muita gente, somos determinados. Isso muda a estrutura mental e o próprio significado das pessoas. Antropólogos como Clyde Mitchell, Kapferer, Van Velsen, todo um grupo que trabalhou em Manchester, alunos de Max Gluckman, tentaram inventar regras para provar o significado social de diferentes networks, para descobrir, por exemplo, se havia como fazer uma propaganda política. Qual é e como se deslocam áreas de pessoas por situações eleitorais. Outros, como a Elisabeth Bott - que trabalhou na Inglaterra -, tentaram estudar as diferenças de redes sociais entre casais operários e casais de empregados.18 18 Elisabeth Bott, Family and social network. Roles, norms, and external relationships in ordinary urban families, London, Tavistock Institute of Human Relations, 1957. Elisabeth Bott concluiu, num estudo muito interessante, mas fraco estatisticamente - porque ela trabalhou com mais ou menos 30 famílias -, que em famílias de operários ingleses havia relações muito comuns entre mulher e homem e redes muito densas. As famílias frequentavam quase sempre as mesmas pessoas num grupo muito solidário. E, nas famílias de empregados, de classe média, era o contrário: homens e mulheres tinham muitas relações diferentes e amplas, menos repetidas e densas. Todas essas coisas são muito importantes para os historiadores, mas difíceis de usar.

Por exemplo, fizemos uma experiência com Veneza, onde tínhamos um Senado com mil senadores, todos aristocratas. Um Estado pequeno com muitos aristocratas. Quando um senador morria, nomeavam outro. Sabíamos todos os resultados das eleições do século XV até o final do século XVII, cada uma das nomeações. Ao analisarmos os mil aristocratas e suas redes relacionais, podemos prever antes quem vai ser eleito. Não sei se ficou claro. Sabemos que eram as redes e as fontes que elegiam, então, como um espaço a ser preenchido, algo a ser substituído, é possível adivinhar com quase 100% de certeza por meio de um estudo de redes. E isso pode ser usado para muitas coisas, porque as redes são socialmente muito diferentes. Os médicos de hoje têm redes diferentes

Nossos personagens têm uma racionalidade homogênea. Isso é uma tragédia para a historiografia

das dos professores, por exemplo. Um estudo publicado na França analisou professores e médicos no Rio de Janeiro, em Moscou, em Paris e em Roma durante 15 dias. Quem os médicos e professores desses países frequentavam? Quais eram suas redes inter-relacionais? Dá para ver estratégias diferentes de construção de relacionamento. Bem, disse isso porque os historiadores até agora usam muito pouco isso. Foi importante o fim da cegueira quanto ao problema das redes, não das quantidades, mas esse problema das redes é muito usado por nós metaforicamente. Falamos de redes, mas elas podem ser analisadas a partir de suas características, densidade, morfologia etc.

"Quantos passos são necessários para chegar a se relacionar com alguém?" Eu tinha um colega que toda quinta almoçava com o papa João Paulo II. Daí, eu me perguntava quantos passos devia seguir para fazer isso? Agora, as distâncias são mensuráveis e muito relevantes porque todas as formas clientelistas e hierárquicas são problemas de diferenças de passos em direção ao centro. O cardeal De Luca é um cardeal não ligado a João Paulo II porque é do século XVII, começo do XVIII, e é um gênio. Foi quem escreveu 18 fólios enormes sobre tudo o que um historiador precisa conhecer sobre a política eclesiástica. Se você procurar os muçulmanos no volume 18, digamos, lá ele diz tudo o que o papado decidiu sobre os muçulmanos. É um instrumento fundamental para os historiadores. O cardeal De Luca dizia: "Como a honra é julgada em nossa sociedade?" - no Antigo Regime - "É julgada de acordo com a distância do centro." Ele dizia que a sociedade é como um ovo, e o centro está no meio do ovo e as pessoas estão a diferentes distâncias do centro desse ovo. Quanto mais próximas as pessoas estiverem do local do poder central, mais honradas elas serão e podem ter, por exemplo, prestígio ou salários mais altos.

Vou citar outro caso que acho maravilhoso. Outro advogado católico do século XVII, que não era um cardeal, escreveu um livro muito importante sobre salários. Perguntou como calcular o salário de um médico. Não podemos pagar um médico por ele compreender sobre a vida e a morte. Não se paga por isso, mas podemos pagar de acordo com a sua honra, a distância do centro ou sua distância na hierarquia social. E ele termina dizendo: "por isso que o salário do médico chama-se honorário". Então é como falamos hoje em dia, "honorários". É pagar pelos diversos níveis de honra das pessoas. Tudo isso para mostrar que esses estudos sobre as redes e as distâncias do poder, a densidade e a forma das redes etc. são um tema muito útil como temas de história social, não só da história social que nós fazemos. Mas estamos muito atrasados nesse quesito e podíamos continuar falando sobre isso, mas é só para dizer que a distância que temos das outras ciências sociais envolve atrasos, significa que estamos encapsulados em algo que não se comunica com as outras ciências. Não é um erro nosso, é de Deus, do governo, das autoridades acadêmicas ou da corporação. Mas podemos nos rebelar e ler esses livros.

Creio que os livros mais interessantes para o historiador não são os livros de história, são novelas, se as lermos como historiadores. Elas sugerem perguntas gerais que não imaginamos que não conseguimos pensar. Por isso, as outras ciências são fundamentais. Depois, não hoje, vou dar um exemplo sobre uma ciência mais paradoxal: a psicanálise na História, sobre a concepção do tempo que os historiadores têm e as sugestões que a Psicanálise pode nos dar sobre isso.

Verónica Secreto: Eu gostaria de voltar à questão da racionalidade porque acho uma questão muito presente na nossa historiografia. Saímos de uma historiografia que não dava nenhuma racionalidade aos sujeitos subalternos e passou, pelo menos aqui no Brasil, a ser uma historiografia, na década de 1980, que optou por uma racionalidade absoluta, inclusive com a ideia de que os sujeitos são totalmente informados. O sujeito tem informação das leis, das brechas da lei, de como correlacionar. Por exemplo, a historiografia da escravidão pensou o escravo com uma racionalidade contemporânea, uma racionalidade próxima da nossa, cartesiana. De alguma forma, permeia os princípios da liberdade, da fraternidade e da igualdade a ideia de que os sujeitos sempre estão em busca da liberdade, da realização da liberdade, no sentido que nós a entendemos. Então, essa questão me chamou bastante a atenção. Você poderia relacionar a questão da racionalidade junto com a economia.

Giovanni Levi: Sim, os historiadores, como, por exemplo, Edward Thompson, têm debatido um pouco o tema da racionalidade. O que Thompson diz em seu famoso artigo sobre os motins na Inglaterra?19 19 Edward Thompson, "The Moral Economy of the English Crowd in the Eighteenth Century", Past and Present, vol. 50, 1971, p. 76-136. Ele diz que não eram motins irracionais, mas motins racionais que seguiam uma racionalidade inspirada por uma sociedade morta, que era a racionalidade medieval, com uma referência à filosofia escolástica. Todos têm o direito ao pão e os motins destruíam as panificadoras, as roubavam, mas eram motins que causavam a entrega gratuita do pão contra a especulação dos padeiros e vendedores de trigo. Isso é porque Thompson consegue imaginar uma racionalidade diferente, mas é diferente do que a Verónica queria dizer, eu acho. É a ideia de que há lógicas diferentes que pertencem a estratos sociais ou sociedades diferentes. É uma coisa que o prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen,20 20 Amartya Sen, Inequality reexamined, Oxford, Oxford University Press, 1992. disse: devemos construir uma teoria econômica que tome em consideração valores europeus, por exemplo, e valores indianos que são diferentes. É algo que os historiadores usaram muito. Por exemplo, todos que usaram as teorias de Chayanov,21 21 Alexander V. Chayanov, The Theory of Peasant Economy, Homewood, Irwin, 1966. explicando como há uma lógica econômica camponesa muito diferente da lógica econômica industrial dos operários. Por isso, houve especialmente após a Segunda Guerra Mundial uma grande quantidade de estudos sobre as sociedades duais, porque não eram só sociedades duais quanto ao seu desenvolvimento, mas eram também sociedades duais como lógica econômica. O problema estava na relação entre duas sociedades. Penso em Bumke, que é um economista que estudou, usando Chayanov, a Indonésia para descobrir qual era a relação entre o mundo rural e o mundo urbano, o mundo colonial e o mundo camponês, com a ideia de dualidade de leitura. Isso foi muito usado também por antropólogos e historiadores, por exemplo, muitos que estudaram as economias dos índios americanos também utilizaram Chayanov como um dos modelos de leitura. Qual era a máxima diferença entre as duas lógicas? Uma era a lógica de prevalência do valor de uso e a outra era a lógica de prevalência de valor de troca, no sentido de que, por exemplo, se você precisar de alguma coisa, o preço é determinado pela sua necessidade pessoal e, se você não precisar, pode vendê-lo a um preço não mercantil, segundo o uso que lhe der. A compra de terra entre duas lógicas econômicas diferentes, por exemplo, também foi muito estudada. Se dois camponeses têm uma família pequena e muita terra, podem vender o que estiver sobrando por quase nada, mas, se a família for maior do que a sua terra, podem pagar demasiado pela terra que querem comprar. Quase como se cada troca fosse todo o mercado, não há uma relação entre todas as terras, e sim uma ideia fundamental de valor. Eu acho que é muito interessante entender a sociedade do passado, mas também a atual, por muitas razões. Se considerarmos hoje o trabalho doméstico, vemos que é avaliado sempre com um valor de uso e não de troca. Há trabalho aferido como valor de uso e o aferido como valor de troca. Isso é diferente da racionalidade, pois não temos racionalidades diferentes se somos camponeses ou se somos operários, ou seja, dentro dos grupos sociais, há comportamentos diferentes e, por isso, é difícil construir uma teoria econômica pois é também uma teoria histórica e social. Porque cada um reage de forma diferente.

Nós, historiadores, vemos os resultados e eles parecem sugerir homogeneidades, porque, no final, o resultado é único, mas ele lembra Guerra e Paz, de Tolstoi, que é um bom exemplo, ou O vermelho e o negro, de Stendhal. Há uma totalidade de incoerências que produzem coerência no final, mas que não podemos explicá-las como se sua origem fosse uma causa única. É uma multiplicidade que produz um imprevisível no final, mas que para nós, historiadores, são previsíveis porque nós trabalhamos já sabendo quem é o assassino. Produzem uma coerência através da multiplicidade de incoerências, mas essas incoerências também são muito interessantes. São um problema histórico fundamental que não podemos transformar numa operação simples de causa e efeito. Devemos ver como um efeito que foi produzido de uma maneira impossível de prever. Esse é o verdadeiro problema: a História não é coerente. Ela tem incoerências que devemos tentar preservar. Para finalizar, devo contar uma história pessoal. Há muitos anos, tenho escrito um livro sobre o consumo e

Creio que os livros mais interessantes para o historiador não são os livros de história, são

novelas, se as lermos como historiadores

meu interesse pelo consumo é a ideia de que, no Antigo Regime, as pessoas consumiam de forma diferente, até no próprio seio familiar. Hoje em dia, também fazemos isso. Fazemos diferenças entre os filhos, mas sempre pensamos que os tratamos da mesma maneira, quando, na verdade, gastamos mais com um filho e o favorecemos, geralmente o menos inteligente, porque os inteligentes costumam conseguir fazer o que querem. Mas achamos que os filhos são iguais e, portanto, o consumo é igual, mas é mentira. No passado, era estrutural que o consumo devesse ser diferente, porque era uma sociedade sem welfare state, sem nenhuma proteção. Então, se um sapateiro tinha três filhos, não podia ter filhos sapateiros e sim três filhos com atividades diferentes, tentando conservar sua solidariedade, mas de forma diferenciada, porque era um mercado de trabalho restrito, pequeno. Estou trabalhando há anos com esse problema da diferença fundamental entre consumos e não vou terminar nunca. Espero que meus filhos joguem minhas coisas fora quando eu morrer. Debato muito com os economistas, porque os economistas de hoje trabalham sobre a racionalidade, e minha pergunta era: algumas distorções aparentes que existem no sistema mercantil do Antigo Regime são produto do Antigo Regime ou produto do cérebro dos homens, da racionalidade dos homens? É o mesmo que temos hoje ou não? Devemos fazer experimentos e buscá-los, mas nisso os economistas estão muito atrasados. Eles têm um bom desenvolvimento do problema, mas as experiências em laboratório são ruins. Fazem investigações do tipo: "Como as pessoas reagem a uma propaganda?". Dizer "viver nele" é melhor do que dizer "viva nele" e coisas parecidas e, ao contrário, são experimentos muito pequenos, porque só alguns são sensíveis a uma formulação de uma propaganda e outros são sensíveis a outras formulações. Como laboratório, eles procuram qual a melhor forma de montar uma propaganda para que seja fácil de ser memorizada. São coisas pequenas demais para agora. São trabalhos sobre a racionalidade dos homens. Quanto de consciência e inconsciência participa na atividade econômica normal, mas são fragmentos. Para nós, historiadores, o problema é mais complexo, porque devemos descobrir, por exemplo, se há uma caracterização específica do sistema econômico geral, ou uma caracterização específica do funcionamento do cérebro humano. Mas acho que o problema em si é fascinante. Como funcionava a racionalidade do passado? Acho que, em um momento, os economistas serão capazes de me permitir fazer uma observação final de cada capítulo no qual descrevo experimentos, como se diferencia o consumo dentro da família. Os economistas debateram bastante sobre um problema importante e interessante também para o passado. Nosso patrimônio econômico, nossa riqueza é produzida por nós e em qual porcentagem é produzida por gerações anteriores? Quanto do dinheiro que gastamos em nossa vida vem da geração anterior? Houve um grande debate onde Modigliani, outro prêmio Nobel, afirmava que nós produzimos 80% e herdamos 20%. Por outro lado, Summers, candidato ao Banco Central americano antes que a outra candidata ganhasse, afirmava o contrário: "Nós produzimos 20% e herdamos 80%". Mas essa também é uma boa pergunta para os historiadores: como é a relação entre gerações, a relação econômica entre gerações? Muitas vezes, os economistas e, principalmente, os sociólogos, estudam a riqueza como algo que produzimos, mas há uma diferença entre dois operários, se um herdar a casa de seu pai e o outro não. Os salários dos pais têm um significado completamente diferente. A condição social de ambos é completamente diferente e, por isso, muito do que questionamos no que diz respeito às solidariedades automáticas dentro da mesma condição profissional, são falsas porque os operários não são iguais. Depois, vamos falar disso, porque uma discussão sobre isso é um dos motivos do nascimento da micro-história. Se considerarmos que os operários são automaticamente de esquerda, é um fracasso. Seria o fracasso da esquerda no mundo. Achar que há uma solidariedade automática. Devemos trabalhar também com as diferenças, não só de racionalidade, mas também de condição social e psicológica no interior da própria condição de trabalho e condição social, porque há uma hierarquia evidente.

Se não há mais perguntas concluímos por hoje e continuamos no nosso próximo encontro.

  • 1
    Aula ministrada por Giovanni Levi como convidado do programa Escola de Altos Estudos/Capes, em convênio do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A transcrição do texto da palestra foi realizada por Maria Verónica Secreto de Ferreras, professora do PPGH da UFF, e Mariana Rodrigues Tavares, aluna do PPGH da UFF. Optou-se, neste texto, por se manter as características de uma aula, isto é, da exposição oral realizada pelo professor Giovanni Levi.
  • 2
    Jacques-Louis Ménétra, Jornal de ma vie: Jacques-Louis Ménétra, compagnon vitrier au XVIIIe siècle. Edité par Daniel Roche, Paris, Montalba, 1982.
  • 3
    Clifford Geertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, LTC, 1989.
  • 4
    Fredrik Barth, Balinese worlds, Chicago, University of Chicago Press, 1993.
  • 5
    Um dos alunos que se aproximou da mesa, antes de iniciar a aula, para pedir que assinasse seu exemplar de A herança imaterial.
  • 6
    Rashid Khalidi, Palestinian identity. The construction of modern national consciousness, New York, Columbia University Press, 1997.
  • 7
    Marcel Schwob, Vidas imaginarias. Estudio preliminar y traducción de Julio Pérez Millán. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1980.
  • 8
    Winfried George Sebald, Os emigrantes: quatro narrativas longas, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
  • 9
    Giorgio Cardoso, "Intimité marrane", Penser/Rever, n. 25, 2014, p. 103-113.
  • 10
    Mercedes García-Arenal; Gerard Albert Wiegers, Un hombre en tres mundos. Samuel Pallache, un judío marroquí en la Europa protestante y en la católica, 2. ed. corregida y aumentada, Madrid, Siglo XXI, 2007.
  • 11
    Faruk Tabak, The warning of the Mediterranean - 1550-1870: a geo-historical approach, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 2008.
  • 12
    Vivek Chibber, Post-colonial theory and the specter of capital, London; New York, Verso, 2013.
  • 13
    Herbert Alexander Simon, Models of discovery, Dordrecht, D. Meidel Publishing Compagny, 1977.
  • 14
    Psicólogo e matemático. Publicou estudos em parceria com Daniel Kahneman.
  • 15
    Daniel Kahneman é psicólogo. Teórico em finanças comportamentais. Professor da Universidade de Princeton. Ganhador do Prêmio Banco da Suécia em Ciências Econômicas em memória de Alfred Nobel, em 2002.
  • 16
    Ver, entre outros, Daniel Kahneman, Rápido e devagar: duas formas de pensar, Rio de Janeiro, Objetiva, 2011. 17Robert Musil, O homem sem qualidades, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989.
  • 17
    Jeremy Boissevain, "Factions, parties, and politics in a Maltese village", American Anthropologist, vol. 66, 1964, p. 1275-1287.
  • 18
    Elisabeth Bott, Family and social network. Roles, norms, and external relationships in ordinary urban families, London, Tavistock Institute of Human Relations, 1957.
  • 19
    Edward Thompson, "The Moral Economy of the English Crowd in the Eighteenth Century", Past and Present, vol. 50, 1971, p. 76-136.
  • 20
    Amartya Sen, Inequality reexamined, Oxford, Oxford University Press, 1992.
  • 21
    Alexander V. Chayanov, The Theory of Peasant Economy, Homewood, Irwin, 1966.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2014

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2014
  • Aceito
    14 Jul 2014
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