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Valor e cálculo econômico na Alta Idade Média

Value and economic calculation in the Early Middle Ages

Resumo:

O objetivo deste artigo é analisar a relação entre valor e cálculo econômico nas sociedades altomedievais, a partir de exemplos de fontes da Gália e da Península Italiana. Para tanto, pretendo, em primeiro lugar, identificar a presença do cálculo econômico em procedimentos de avaliação de bens móveis e imóveis, bem como na definição dos preços dos gêneros alimentícios. Em segundo lugar, explorar a relação entre entre “valoração” e “avaliação”. O foco deste artigo não será a formação dos preços, problema para o qual as fontes não trazem informações suficientes, pelo menos até o século XIII, mas a compreensão dos procedimentos de avaliação dos bens e de mensuração do valor dos gêneros alimentícios.

Palavras-chave:
Bens; Alimentos; Valor; Cálculo Econômico

Abstract:

This article aims to analyze the relation between value and economic calculation in the early medieval societies, with examples from Gaul and Italian Peninsula sources. In order to do so, we intend, first of all, to identify the presence of economic calculation in procedures of evaluation of movable and immovable property, as well as in the definition of food prices. Secondly, we will explore the relationship between value and evaluation. The focus of this article will not be the formation of prices, a problem for which the medieval sources do not provide enough information at least until the thirteenth century, but the comprehension of procedures of valuation of goods and food stuffs in the first centuries of the Middle Ages.

Keywords:
Goods; Foods; Value; Economic Calculation

Gostaria de iniciar este artigo com um enunciado que é, em grande medida, um lugar comum: todas as coisas têm valor. Não me refiro, evidentemente, a um valor imanente, mas a algo que os homens projetam sobre si mesmos, sobre tudo o que os cerca e sobre todos os que os cercam. Esse valor é expresso por escalas de preferência, ações de inclusão e de exclusão, mas também pode ser expresso em termos monetários. A atribuição de valor às coisas e às pessoas é parte constitutiva do processo de construção e de reprodução da sociedade. E isso acontece por três razões: em primeiro lugar, expresso ou não em termos monetários, o valor é um instrumento de classificação, de ordenamento, de hierarquização de pessoas e de coisas. Em segundo lugar, a atribuição de valor, monetariamente ou não, tem a capacidade de transformar “coisas” em “bens comercilizáveis” ou ainda em “bens sagrados” (Feller, 2013FELLER, Laurent. Transformation des objets et valeur des choses : l’exemple de la Vita Meinwerici. In: FELLER, Laurent; RODRIGUEZ, Ana (Org.). Objets sous contrainte: circulation de richesses et valeur des choses au Moyen Âge. Paris: Publications de la Sorbonne, 2013, p. 91-122.). E, para isso, não deve haver, necessariamente, uma transformação econômica - por exemplo: uma operação fabril que teria alterado as características físicas de algo. Graças à antropologia econômica, foi possível identificar o potencial criativo da valoração (Pottage, 2004POTTAGE, Alain. Introduction: the fabrication of persons and things. In: POTTAGE, Alain; MUNDY, Martha (Org.). Law, antropology, and the constitution of the social: making persons and things. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 1-39., p. 1-39). A partir do estudo dos baruya, da Nova Guiné, Maurice Godelier demonstrou que, se existem diferenças entre as coisas que se vendem, as coisas que se dão e, finalmente, as coisas que não se vendem nem se dão (mas são guardadas para serem transmitidas), tais diferenças não são atávicas, mas devem-se aos distintos valores que lhes são atribuídos. Entre os baruya, os objetos sagrados, da mesma forma que os objetos preciosos, são investidos de um valor imaginário que não se confunde com o trabalho necessário para descobri-los ou fabricá-los. E também não se confunde com sua relativa escassez (Godelier, 2007GODELIER, Maurice. Des choses que l’on donne, des choses que l’on vend et celles qu’il ne faut ni vendre ni donner, mais garder pour les transmettre. In: GODELIER, Maurice. Au fondement des sociétés humaines: ce que nous apprend l’anthropologie. Paris: Albin Michel, 2007, p. 66-88., p. 66-88). Em terceiro lugar, a eficácia da projeção de valores - e do próprio processo de avaliação - depende da adesão de outros indivíduos ao valor inicialmente proclamado. Nesse sentido, o processo de avaliação não é uma expressão ideal do mundo material, tampouco uma manifestação subjetiva e unilateral. Ele advém de negociações e de relações de força entre os atores envolvidos nessas negociações. Em suma, ele tem origem nos mecanismos que fazem com que os valores atribuídos sejam mais do que simplesmente o produto de uma avaliação subjetiva. Como mostrou Alain Testart (2001TESTART, Alain. Échange marchand, échange non marchand. Revue Française de Sociologie (Paris). v. 42, n. 4, p. 719-748, 2001., p. 714-748), o conhecimento do valor das coisas e o estabelecimento de uma escala de comparação entre elas existem necessariamente no fundamento de toda transação, mercantil ou não mercantil.

Ao considerarem a valoração como um julgamento individual, os economistas neoclássicos a descartam como um elemento capaz de atribuir a um bem algo que possa ser considerado uma quantidade ou uma magnitude de valor - ou seja, um preço. Utilizo aqui os neoclássicos, pois, à diferença de Marx, eles propuseram uma teoria da formação de preços que seria válida, em princípio, para as sociedades não capitalistas.1 1 Sobre a formação dos preços na teoria marxiana, ver Barrière (2001). Segundo Ludwig von Mises, somente o mercado, ao estabelecer preços para cada fator de produção, tornaria possível o cálculo econômico - isto é, a avaliação. Nesse sentido, o cálculo econômico sempre lidaria com preços e nunca com valores (Mises, 1990MISES, Ludwig von. A ação humana. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990., p. 463). Essa perspectiva não considera que a atribuição de valor pode ser o fato de um grupo ou de uma instituição capaz de, em determinadas circunstâncias, converter em preço o valor atribuído a determinado bem. São exemplos disso a noção de preço justo e a política de controle de preços, que serão examinadas mais adiante. A formação dos preços resulta de um cálculo que extrapola o domínio da avaliação puramente subjetiva, mas, ao mesmo tempo, não se reduz à somatória de indicadores de ordem econômica (custo das matérias-primas, valor do trabalho necessário à sua produção, lucro, relação entre a oferta e a procura etc.). Os preços resultam de um conjunto de interações sobre as quais agem os valores atribuídos às coisas, bem como os indicadores econômicos anteriormente mencionados,2 2 Sobre a formação de preços nos primeiros séculos da Idade Média, há dois artigos de Laurent Feller que merecem destaque: “Transformation des objets et valeur des choses: l’exemple de la Vita Meinwerici” (Feller, 2013b) e “La formation des prix dans l’économie du haut Moyen Âge” (Feller, 2011). ou ainda fatores como a informação (Walliser, 2000WALLISER, Bernard. L’économie cognitive. Paris: Odile Jacob, 2000.) e as relações entre os atores envolvidos na transação (Jorion, 1990JORION, Paul. Les déterminants sociaux de la formation des prix: l’exemple de la pêche artisanale. Revue du Mauss (Paris). n. 9-10, p. 71-106, p. 49-64, 1990., p. 49-64, 71-106). Em suma, os preços constituem “fatos sociais globais”, compreendendo uma dimensão econômica, mas também múltiplas dimensões sociais, inclusive simbólicas.3 3 A abertura da economia às perspectivas sociais não é um fenômeno recente. Granovetter e Swedberg (1992) destacaram-na na introdução de uma obra intitulada precisamente The sociology of economic life.

Pretendo discutir aqui a relação entre “valoração” e “avaliação” nas sociedades da Alta Idade Média (entre os séculos VI e XI), dentro e fora do âmbito das trocas mercantis. Essa escolha cronológica é, sobretudo, uma tomada de posição em relação a uma ideia que prevalece ainda entre muitos historiadores. Trata-se da ideia de que, somente a partir do século XIII, com a emergência do mercado moderno, é que o valor das coisas passaria a ser medido. É o que lemos, por exemplo, na obra mais recente dedicada ao estudo do problema no período medieval e no período moderno, Valeurs et systèmes de valeurs (Genet, 2016GENET, Jean-Philippe. “Introduction”. In: BOUCHERON, Patrick; GAFFURI, Laura; GENET, Jean-Philippe (Org.). Valeurs et systèmes de valeurs (Moyen Âge et Temps modernes). Paris: Éditions de la Sorbonne, 2016, p. 9-21., p. 11-12).

Creio ser possível demonstrar, a partir da análise de alguns casos precisos, que nas sociedades da Alta Idade Média: (i) a valoração, quando expressa por um grupo, uma comunidade ou uma instituição, pôde se traduzir, ou melhor, ser convertida em preços; (ii) esses preços não são simplesmente valores simbólicos ou desprovidos de sentido e de função econômica; são grandezas que operam no âmbito do mercado e que são frutos de cálculo econômico.

Tenho consciência de que o maior problema das afirmações acima está na dificuldade de se conceber a existência de “cálculo econômico” e de “mercado” antes do advento da modernidade. A publicação, em 1944, de A grande transformação, do economista húngaro Karl Polanyi (1983POLANYI, Karl. La grande transformation: aux origines politiques et économiques de notre temps. Paris: Gallimard 1983.), contribuiu decisivamente para o estabelecimento de um cânone segundo o qual, fora do sistema de preços formado pelo mercado moderno, a análise econômica perderia a maior parte de sua relevância como método do funcionamento do sistema econômico. Estou aqui reduzindo a seu essencial algo que, evidentemente, é muito mais complexo. Para os numerosos historiadores que seguiram as teses de Polanyi, como Moses Finley (1973FINLEY, Moses. The ancient economy. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1973.) para a história antiga ou Jacques Le Goff para a história medieval, o conhecimento dos antigos em relação à economia se resumiria a um conjunto de observações empíricas e de lugares-comuns. A Idade Média, para Le Goff, não teria visto nascer o capitalismo e que ela sequer poderia ser qualificada de período pré-capitalista.4 4 Conforme Le Goff (2014, p. 256): “Parece-me uma imposição precisar, como já o fizeram muitos historiadores notórios, que o capitalismo não nasceu na Idade Média, e até mesmo que a Idade Média não foi um período pré-capitalista: a penúria de metais preciosos, a fragmentação dos mercados impediam a criação de condições para isso. Só no período que vai do século XVI ao XVIII produzir-se-á a ‘grande revolução’ que Paolo Prodi situa erradamente, como tentei demonstrar, na Idade Média. Na Idade Média, o dinheiro, como também o poder econômico, não se emancipou do sistema global de valores da religião e da sociedade cristãs. A criatividade da Idade Média está em outro ponto”. Da mesma forma, o mercado no mundo antigo ou no mundo medieval não teria o papel definidor das relações sociais que viria a ter com o advento da modernidade. Não se trata, claro, do mercado como local de troca cotidiana, do lugar físico, amplamente documentado em fontes antigas e medievais.5 5 Ver, por exemplo, no que se refere à Alta Idade Média: Bruand (2002) e Wooding (1996). Trata-se do princípio que faz funcionar os mecanismos capazes de atribuir um valor monetário às coisas e que regula as trocas mercantis. Nessa perspectiva, uma vez que a economia de mercado seria um produto do século XVIII, querer enxergar técnicas de avaliação e um sistema de trocas mercantis na Idade Média à luz da noção de cálculo econômico acabaria se revelando puro anacronismo.

É exatamente esse o desafio que gostaria de enfrentar, ao tentar demonstrar a operacionalidade da noção de cálculo econômico em procedimentos de avaliação no âmbito das sociedades da Alta Idade Média. Para tanto, dividirei esta apresentação em três partes, que correspondem ao desenvolvimento dos enunciados que seguem: (i) ainda que seja difícil definir precisamente, por conta das lacunas e da natureza das fontes documentais, o papel do mercado como instrumento de formação de preços entre os séculos VI e XI, esse papel não era marginal; (ii) as sociedades desse período foram marcadas por uma grande porosidade entre “valoração” e “avaliação”; (iii) a existência de um “valor cristão das coisas”, que é distinto de um “valor das coisas”, mas incide no valor de mercado dos bens, é o melhor indício da influência da valoração nos procedimentos de avaliação na Alta Idade Média.

Começo pelo papel do mercado como formador de preços. A posição que prevalece hoje entre os medievalistas foi expressa recentemente por Monique Bourine François Menant (2011BOURIN, Monique; MENANT, François(Org.). Les disettes dans la conjoncture de 1300 en Méditérrannée Occidentale. Paris: École Française de Rome, 2011.), em uma obra sobre a conjuntura de 1300. Tal posição se resume à ideia de que a parte do mercado na formação de preços dos cereais entre os séculos VI e XI era marginal (Bourin; Menant, 2011BOURIN, Monique; MENANT, François(Org.). Les disettes dans la conjoncture de 1300 en Méditérrannée Occidentale. Paris: École Française de Rome, 2011., p. 12). Essa interpretação tem como base o fato de que é impossível, com os dados que temos hoje, reconstituir séries de preços para o período. No entanto, gostaria de enfatizar algo que passou despercebido por esses autores: histórias, correspondências, crônicas e anais da Alta Idade Média frequentemente estabeleceram relações entre as crises alimentares e a alta dos preços dos alimentos, sobretudo cereais. É o caso do senador romano Cassiodoro († 585), que, em seis cartas escritas no final de 537 - um período de fome de amplitude continental -, tenta se antecipar à alta dos preços dos cereais, do azeite e do vinho, estabelecendo um preço máximo para esses produtos (meio sólido para trinta módios6 6 Medida de capacidade para sólidos, cada módio equivale a aproximadamente um alqueire. Essa medida esteve associada, entre os romanos e também durante os primeiros séculos da Idade Média, a uma cesta típica utilizada nos animais para carga de grão e outras cargas. A quantidade de grão contida no módio, ao ser plantada, equivale a uma área de cerca de 24 mil m2. de trigo) e atacando os especuladores.7 7 Cassiodoro, Variae, XII, 22, 23, 24, 25, 26 e 27, ed. Theodor Mommsen, Monumenta Germinae Historica (MGH), Auctores Antiquisimi, t. 12, Berlim, Weindmann, 1894, p. 378-383. Algumas décadas mais tarde, do outro lado dos Alpes, o bispo Gregório de Tours († 594), ao descrever um episódio de fome que teria atingido toda a Gália no ano de 587, menciona mercadores que “teriam explorado severamente a população, a ponto de vender um módio de trigo ou meio módio de vinho por um triens”.8 8 Gregório de Tours, Decem Libri Historiarum, VII, c. 45, ed. Bruno Krusch, MGH, Scriptores Rerum merovingicarum, t. 1, Hanover, Hann, 1951, p. 365: De fame anni praesentis. Magna hoc anno famis paene Gallias totas obpressit. Nam plurimi uvarum semina, flores avellanorum, nonnulli radices herbae filicis arefactas redactasque in pulvere, admiscentes parumper farinae, panem conficiebant. Multi enim herba segitum decidentes, similiter faciebant. Fuerunt etiam multi, quibus non erat aliquid farinae, qui diversas colligentes herbas et comedentes, tumefacti deficiebant. Plurimi enim tunc ex inaedia tabescentes, mortui sunt. Graviter tunc negutiatores populum spoliaverunt, ita ut vix vel modium annonae aut semodium vini uno triante venundarent. Subdebant pauperes servitio, ut quantulumcumque de alimenta. É possível entender que esse preço estaria acima do valor praticado, embora o bispo não diga qual era o valor praticado; ele contenta-se em apresentar ao leitor o preço exorbitante. O mais importante a destacar é a percepção do autor de que há uma anomalia na curva de preços, que essa alta é o resultado da ação especulativa de alguns mercadores e que ela é responsável pela fome. Ainda que possa ter sido exagerada pelo autor, a amplitude da fome mostra que o alcance do sistema de preços de cereais era suficientemente grande para atingir uma parcela importante da população que dependia deles para sua subsistência.

Retornemos à Itália. Uma coleção de biografias papais, conhecida pelo título Liber Pontificalis, redigida na Península entre os séculos IV e IX, traz vários relatos nos quais a fome é associada à alta dos preços. Menciono aqui apenas um exemplo: ao descrever o pontificado de Sabiniano (604-606), o biógrafo, em um texto escrito provavelmente pouco depois da morte do papa, menciona uma grande fome que teria ocorrido em Roma em 604. Sabiniano teria então ordenado que os celeiros da Igreja fossem abertos e, para escândalo dos contemporâneos, que trinta módios de trigo fossem vendidos a um sólido,9 9 Liber Pontificalis (Rec. I), Gesta pontif. Rom., Michel Aubrun (Ed.). Le livre des papes. Turnholt, Brepols, 2007, p. 53: Savinianus, natione Tuscus, de civitate Blera, ex patre Bono, sedit ann. I mens. V dies VIIII. Eodem tempore fuit famis in civitate Romana gravis. Tunc facta pace cum gente Langubardorum et iussit aperire horrea ecclesiae et venundari frumenta per solidum unum modios XXX. um valor duas vezes mais alto do que aquele mencionado por Cassiodoro algumas décadas antes.

Apresento, agora, um exemplo posterior, de alcance bem mais amplo. Publicado em 806, após uma das mais graves crises alimentares que atingiu o Império Carolíngio, o Capitulário de Nimègue se detém longamente na condenação da usura, da avareza e do lucro indevido. E, ao mesmo tempo, estabelece preços máximos para pães e cereais. Os legisladores carolíngios estavam convencidos de que a principal responsabilidade pela fome recaía sobre os mercadores, que praticavam preços exorbitantes.10 10 Capitulare missorum Niumagae (806), c. 15, ed. A. Boretius, MGH, Capitularia regum Francorum, t. 1, Hanover, Hann, 1883, p. 132: Turpe lucrum exercent, qui per varias circumventiones lucrando causa inhoneste res quaslibet congregare decertant. Voltarei a esse texto quando analisar a questão do preço justo.

Já em um texto escrito entre 1107 e 1108, o monge beneditino Guibert de Nogent descreve o entusiasmo provocado pelo apelo do papa Urbano II, em 1095, para que os cristãos se engajassem na expedição à Terra Santa. Ele menciona uma “fome geral”, que teria sido agravada pela ação dos especuladores.11 11 Guibert de Nogent, Gesta Dei per Francos, livro II, ed. R. Huygens, Turnholt, Brepols, 1996, p. 159.

Em todos esses textos que acabo de mencionar, o diagnóstico dos autores é moralizante: ou seja, a alta de preços seria provocada pela “cupidez” e pela “avareza” dos mercadores. No entanto, há uma percepção comum de que a alta de preços é uma das variáveis mais importantes na explicação das crises alimentares. Isso indica que, embora não possamos definir precisamente que gêneros alimentícios estavam submetidos aos imperativos da mercabilidade entre os séculos VI e XI, essa parte do mercado não era marginal, como supõem Monique Bourin e François Menant. A ausência de dados estatísticos não significa, necessariamente, uma sociedade “pré-estatística” ou uma economia que não calcula. Por vezes, é preciso procurar curvas e flutuações escondidas nas fontes mais insuspeitas, como as correspondências, as biografias ou as hagiografias, por exemplo.

O segundo ponto que gostaria de abordar é o da relação entre “valoração” e “avaliação”. A melhor maneira de fazê-lo é por meio da análise da política de preços que encontramos na legislação carolíngia. Em 794, após uma crise alimentar que teria atingido todo o vale do Reno e a região parisiense, foi publicado o Capitulário de Frankfurt. Nele, ficava estabelecido que ninguém, laico ou eclesiástico, poderia vender cereais a um preço maior do que aquele fixado pelo texto: um módio de aveia por um denário; um módio de cevada por dois denários; um módio de centeio por três denários; e um módio de trigo candial por quatro denários. Ficou estabelecido ainda um preço diferenciado e menor (cerca de metade do valor dos cereais mencionados anteriormente) para os cereais oriundos dos domínios reais: dois módios de aveia por um denário; um módio de cevada por um denário; e um módio de trigo candial por três denários.12 12 Synodus Franconofurtensis (794), c. 4, ed. A. Boretius, MGH, Capitularia regum Francorum, t. 1, Hanover, Hann, 1883, p. 74: Statuit piisimus domnus noster rex, consentienti sancta synodo, ut nullus homo, sive ecclesiasticus sive laicus sit, ut nunquam carius vendat annonam, sive tempore abundantiae sive tempore caritatis, quam modium publicum et noviter statutum, de modio de avena denario uno, modio ordii denarius duo, modio sigalo denarii tres, modio frumenti denarii quatuor. Si vero in pane vendere voluerit, duodecim panes de frumento, habentes singuli libras duas, pro denario dare debeat, sigalatius quindecim aequo pondere pro denario, ordeaceos viginti similiter pensantes, avenatios viginti quinque similiter pensantes. De vero anona publica domni regis, si venundata fuerit, de avena modius II pro denario, ordeo den. I, sigalo den. II, frumento modius denar. III. Et qui nostrum habet beneficium, diligentissime praevideat, quantum potest Deo donante, ut nullus ex mancipiis ad illum pertinentes beneficium famen moriatur; et quod superest illius familiae necessitatem, hoc libere vendat iure praescriptio.

É importante ressaltar que a definição de um preço justo para o pão e para os cereais era válida tanto para os períodos de abundância quanto para os períodos de carestia. Essas medidas eram, portanto, mais do que uma simples resposta pontual a uma conjuntura de falta de alimentos e de especulação; elas constituíam um conjunto de regras projetadas sobre todo o conjunto dos sistemas de produção e de comercialização. Além disso, não é apenas o preço justo que é quantificado. Isso, em si, não tem nada de extraordinário; define-se o valor do próprio “lucro justo”, que equivale à diferença entre o preço justo e o preço dos cereais oriundos dos domínios reais. Assim, o “lucro justo” seria de meio denário para a venda de aveia, um denário para a cevada e um denário para o trigo. Os princípios de justiça são, portanto, indissociáveis de operações de cálculo (Cândido da Silva, 2018CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo. Crise et famine dans le haut Moyen Âge. In: CHAMBODUC DE SAINT PULGENT, Diane; DEJOUX, Marie (Org.). La fabrique des sociétés médiévales méditerranéennes: les Moyen Âges de François Menant. Paris: Éditions de la Sorbonne, 2018, p. 97-107., p. 106).

Isso fica ainda mais claro se comparamos os preços justos estabelecidos pelo Capitulário de Frankfurt com os preços justos definidos, 12 anos mais tarde, no Capitulário de Nimègue. No capítulo 18 deste último, fica estabelecido que os cereais não poderiam ser vendidos por um valor superior a dois denários por módio de aveia, três denários por módio de cevada, três denários por módio de espelta debulhada, quatro denários por módio de centeio e seis denários por módio de trigo candial debulhado.13 13 Capitulare missorum Niumagae (806), c. 18, ed. A. Boretius, MGH, Capitularia regum Francorum, t. 1, Hanover, Hann, 1883, p. 132: Consideravimus itaque, ut praesente anno, quia per plurima loca fames valida esse videtur, ut omnes episcopi, abbates, abbatissae, obtimates et comites seu domestici et cuncti fideles qui beneficia regalia tam de rebus ecclesiae quamque et de reliquis habere videntur, unusquisque de suo beneficio suam familiam nutricare faciat, et de sua proprietate propriam familiam nutriat; et si Deo donante super se et super familiam suam, aut in beneficio aut in alode, annonam habuerit et venundare voluerit, non carius vendat nisi modium de avena dinarios duos, modium unum de ordeo contra dinarios tres, modium unum de spelta contra denarios tres si disparata fuerit, modium unum de sigale contra denarios quattuor, modium unum de frumento parato contra denarios sex. Et ipsum modium sit quod omnibus habere constitutum est, ut unusquisque habeat aequam mensuram et aequalia modia. Entre 794 e 806, há um aumento significativo dos preços, como pode ser observado na Tabela 2 (Devroey, 2015DEVROEY, Jean-Pierre. Activité monétaire, marchés et politique à l’âge des empereurs carolingiens. Revue Belge de Numismatique et de Sigillographie (Bruxelles). n. 161, p. 177-232, 2015., p. 204).

Tabela 1:
Preços máximos de cereais no Capitulário de Frankfurt (794)

Resultantes de uma curva inflacionária ou da simples constatação do fracasso das medidas adotadas anteriormente, os valores apresentados no Capitulário de Nimègue indicam que o estabelecimento do preço justo implicava a necessária adaptação aos preços de mercado. Implicava, portanto, operações de cálculo. O estabelecimento de um peso e um preço justo correspondente, assim como de regras para o bom comércio, e a regulamentação da ajuda aos necessitados constituem meios para vencer as tribulações e restabelecer o equilíbrio da sociedade. No entanto, esses meios também são operações por meio das quais a produção e as trocas mercantis de bens alimentícios (cereais e pão) são regulamentadas e avaliadas (Cândido da Silva, 2013CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo. A ‘economia moral’ e o combate à fome na Alta Idade Média. Anos 90 (Porto Alegre). v. 20, n. 38, p. 43-74, 2013., p. 61).

Tabela 2:
Preços máximos dos cereais no Capitulário de Frankfurt (794) e no Capitulário de Nimègue (806)

Os preços indicados nesses textos legislativos não se reduzem à somatória de indicadores de ordem econômica (custo das matérias-primas, valor do trabalho necessário à sua produção, lucro, relação entre a oferta e a procura etc.). Eles são o resultado de um conjunto de interações sobre o qual agem esses indicadores econômicos. As mais visíveis são a estimativa do custo de produção de cereais nos domínios reais, a informação a respeito da alta exorbitante de preços14 14 O papel da informação na determinação dos preços foi discutido por Bernard Walliser (2000), em seu livro L’économie cognitive. e também uma definição acerca da justiça das trocas mercantis. A antropologia econômica costuma abordar o fenômeno do controle de preços como o resultado da atuação dos “agentes não econômicos”. Não me parece totalmente apropriado considerar o poder real como um agente extraeconômico. A partir do momento em que ele age como um ator da produção e das trocas, ele se converte em agente econômico. Nesse sentido, o mais correto seria afirmar que o que marca as sociedades pré-modernas não é a atuação de fatores extraeconômicos no processo de formação dos preços, mas sim uma grande porosidade entre “valoração” e “avaliação”. Em outras palavras, os preços vigentes nas transações mercantis dependem, em boa parte, do julgamento de valor de atores que não estão, necessariamente, envolvidos nessas transações. Tais atores traduzem seu julgamento por meio de procedimentos de cálculo que se assemelham aos da avaliação.

Passo, agora, a tratar do terceiro ponto levantado no início deste artigo: a existência, na Alta Idade Média, de um “valor cristão” das coisas, distinto de um “valor” das coisas. Para podermos verificar em que medida essa porosidade não é apenas uma especificidade de alguns capitulários de Carlos Magno, é necessário ampliar o escopo da documentação, de forma a incluir transações envolvendo bens imóveis. Tendo em vista o caráter majoritariamente eclesiástico dessa documentação, nosso foco será aquilo que designaremos aqui de “valor cristão” das coisas, ou seja, o resultado de estratégias construídas pela Igreja para atribuir aos bens que estão inicialmente sob o seu controle (dominium) uma natureza distinta daquela que é atribuída aos bens que pertencem aos laicos. Esse procedimento é visível, sobretudo, nos concílios e nas hagiografias dos séculos VI a IX, que construíram o princípio segundo o qual os bens das igrejas eram bens de Deus (Cândido da Silva, 2014CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo. Uma história do roubo na Idade Média. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014.).

Existem algumas dificuldades para o estudo quantitativo do “valor cristão” das coisas, ainda que a ideia de uma suposta incompatibilidade entre cristianismo e economia tenha sido amplamente superada desde Max Weber. Ele mostrou, em sua “sociologia das religiões”, que o cristianismo é uma “religião ética”, na qual atos bons ou maus não se limitam ao domínio do culto ou às prescrições rituais, mas se aplicam à totalidade das atividades humanas, incluindo as relações dos indivíduos entre si e dos indivíduos com as coisas. Mais recentemente, Giacomo Todeschini (2017TODESCHINI, Giacomo. Les marchands et le temple:la société chrétienne et le cercle vertueux de la richesse du Moyen Âge à l’Epoque moderne. Paris: Albin Michel 2017.), Laurent Feller (2016FELLER, Laurent. Mesurer la valeur des choses au Moyen Âge. In: BOUCHERON, Patrick; GAFFURI, Laura; GENET, Jean-Philippe (Org.). Valeurs et systèmes de valeurs (Moyen Âge et Temps modernes). Paris: Éditions de la Sorbonne 2016, p. 57-76.), Valentina Toneatto (2010TONEATTO, Valentina. Élites et rationalité économique : les lexiques de l’administration monastique du haut Moyen Âge. In: DEVROEY, Jean-Pierre; FELLER, Laurent; LE JAN, Régine (Org.). Les élites et la richesse au haut Moyen Âge. Turnholt: Brepols, 2010, p. 71-99.; 2012TONEATTO, Valentina. Pour une histoire de l’expertise économico-administrative. In: Société des Historiens Médiévistes de l‘Enseignement Supérieur Public (Dir.). Experts et expertise au Moyen Âge: consilium quaeritur a perito. Paris: Publications de la Sorbonne 2012, p. 189-199.) e Jean-Michel Salamito (2006SALAMITO, Jean-Michel. Christianisme antique et économie: raisons et modalités d’une rencontre historique. Antiquité Tardive (Turnhout). v. 14, p. 27-37, 2006.) mostraram que os autores cristãos foram capazes de refletir sobre a produção, a distribuição e o consumo de bens, além de produzirem técnicas acerca da avaliação das coisas, especialmente no ambiente monástico.

A principal dificuldade para o estudo do “valor cristão” das coisas está nas fontes. As séries de documentos que trazem informações sobre preços não comportam elementos que permitam associar esses preços ao caráter sagrado dos bens envolvidos na ação em curso. Além disso, frequentemente, os textos nos quais o “valor cristão” das coisas é expresso não trazem dados quantitativos, mas simplesmente qualitativos. As crônicas, as histórias e as hagiografias da Alta Idade Média trazem inúmeras narrativas envolvendo o roubo de bens das igrejas. Nelas, esses bens retornam sistematicamente aos seus proprietários de direito, ao contrário do que ocorria com os bens que não eram das igrejas (Cândido da Silva, 2014CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo. Uma história do roubo na Idade Média. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014., p. 103-127). Essa propriedade resulta do fato de que esses bens pertenciam à Igreja e, em última instância, a Deus. Muito embora o seu valor monetário não entre em consideração na descrição da punição aos ladrões, os bens dos santos possuem um estatuto e uma natureza à parte nas narrativas hagiográficas sobre o roubo. Os relatos de roubo desses bens nas vidas de santos cumprem um papel na defesa dos bens da Igreja, em face dos ataques perpetrados por eclesiásticos e, sobretudo, por laicos. Assim, a construção jurídica da figura do “Deus proprietário” altera a natureza desses bens, colocando-os num patamar qualitativamente superior ao patamar dos bens que não pertenciam à Igreja (e a Deus). Contudo, pretendo demostrar aqui, por meio de dois exemplos, que esse “valor cristão” também pôde se converter em preço.

O primeiro desses exemplos tentará responder a uma questão preliminar: havia uma reflexão sobre o valor das coisas que pertenciam à Igreja? Em outras palavras: de que forma e por quais meios se definia o valor das coisas cristãs? Recorro a uma permuta de terras, ocorrida no início do século IX, entre dois monastérios situados na Itália. Em 813, o monge Adalardo de Corbie supervisionou a operação ocorrida entre dois monastérios reais, o de São Silvestre de Nonantola e o de São Salvador de Brescia. Adalardo havia sido requisitado nesse sentido pelo abade de Nonantola, Pedro, depois uma estadia naquele monastério. No início do ano 813, Pedro e Adalardo viajaram até a Frância, a fim de obter a autorização de Carlos Magno para a troca de terras. Adalardo retornou à Itália e solicitou ao bispo de Brescia que reunisse associados idôneos (idoneis sociis). Esses associados deveriam ir aos dois locais e cuidar, com a maior diligência, da maneira pela qual a permuta seria feita, em termos justos e racionais para ambas as partes (ex utraque parte iuste et rationaviliter fieret). Ele também deixou por escrito um relato (brevium) da maneira pela qual havia procedido (Bougard, 2008BOUGARD, François. Adhalard de Corbie entre Nonantola et Brescia (813): commutation, gestion des biens monastiques et marché de terres. In: CUOZZO, Errico; DEROCHE, Vicent; PETERS-CUSTOT, Annick; PRIGENT, Vivien (Org.). Puer Apuliae: mélanges offerts à Jean-Marie Martin. Paris: Peeters, 2008, p. 51-68., p. 51-68).

A transação que envolve os dois monastérios é das mais complexas. A princípio, a inalienabilidade dos bens da Igreja faria da locação e da troca os dois únicos instrumentos jurídicos permitidos. No entanto, o Código Justiniano, no século VI, bem como os concílios que ocorreram no mesmo período, autorizavam a permuta, com a condição de que não houvesse perda para o estabelecimento religioso. Havia ainda uma condição suplementar que é importante destacar: se a outra parte da permuta fosse laica, a parte eclesiástica deveria ter alguma vantagem, recebendo mais do que havia dado (Vismara, 1987VISMARA, Giulio. Ricerche sulla permuta nell’alto medioevo. In: VISMARA, Giulio. Scritti di storia giuridica II: la vita del diritto negli atti privati medievali. Milão: Giuffrè, 1987, p. 79-141., p. 79-141). Esses textos estabelecem, portanto, um valor das coisas que pertenciam à Igreja superior, de antemão, ao valor das coisas que não pertenciam à Igreja. Esse princípio precede e determina toda e qualquer técnica de avaliação dos bens, mas não torna essas técnicas supérfluas. Ao contrário, é no âmbito de cada transação, de cada operação, que o “valor cristão” (necessariamente maior que o “valor não cristão”) deve ser definido.

No caso da permuta entre Brescia e Nonantola, no entanto, as duas partes eram eclesiásticas. Mas havia um outro problema a ser resolvido pelos responsáveis pela permuta: as terras dos dois monastérios não eram equivalentes entre si. Adalardo registra que os rendimentos de cada uma das terras eram distintos, ou seja, quando a segunda tem um rendimento superior à primeira, esta tem um rendimento inferior; quando o rendimento da primeira é alto, a segunda tem um rendimento inferior. A primeira solução encontrada por ele é a seguinte: uma vez efetuada a permuta, as terras ficariam mais próximas de seus respectivos monastérios, fazendo com que cada monastério tivesse um rendimento superior ao que tinha antes da permuta.15 15 Bougard (2008, p. 64): [4] Reversi autem nuntiaverunt nobis quod hoc praefatum concambium ad utriusque monasterium conpendium fieri potuisset, et quamvis ipsa loca aequalia non sint, dum unus istum et alter magis alteram habet gratiam, secundum tamen gratiam quam iste magiorem, et ille minorem, et rursus ille magiorem, et alter habeat minorem quam iste, ita hinc et inde ordinari potuisset, ut fructus maior ad singola monasteria propter vicinitatem, ut praernissum est, locorum adcriscere potuisset, ex eo quod in concambium suscipisset quam ex illo prius habere potuisset, quod suum antea fuit. O cálculo efetuado levava em conta, portanto, o rendimento de cada uma das parcelas de terra e também os custos de transporte e de comunicação até as sedes dos respectivos monastérios.

A segunda solução encontrada foi questionar os habitantes de Brescia e de Nonantola sobre o preço pelo qual essas terras poderiam ser compradas, se estivessem à venda, segundo o costume local (quali praetio secundum more singolorum locorum comparari potuissent). Todos estavam de acordo que a terra que pertencia a Brescia não poderia nunca ser vendida por mais que oito denários a cada iugerum. Aqueles que habitavam próximo ao local que dependia de Nonantola afirmaram que não seria possível ali comprar um iugerum por menos de três sólidos. E isso seria raro, pois o hábito era vendê-lo por quatro ou cinco sólidos.16 16 Bougard (2008, p. 64): [5] Interrogavimus autem cives singolorum locorum, si eedem terre venundande essent, quali praetio secundum more singolorum locorum conparari potuissent, qui omnes una consentientes dixerunt: «Terra ista, que modum ad Brexia pertinet, nunquam carius venundari potest, quam singoli iugeres dinariis octo ». Ceteri vero cives circa iacentes loco illo, qui ad Nonantulum pertinebat, ad testantes dixerunt numquam minus iugerem unum inibi, quam tribus solidis conparari potuisset, quamvis hoc etiam valde raro fierit, quia magis quattuor aut quinque solidis venundari consuidudo esset. Temos, portanto, uma referência implícita à existência de um mercado de terras em ambas as regiões, nas quais havia uma avaliação corrente sobre o valor de terras que eram compradas e vendidas. Mais importante ainda, esse valor de mercado é utilizado para a avaliação dos bens da Igreja.

Para se atingir um equilíbrio entre os dois monastérios, aos oito denários das terras de Brescia foram acrescidos quatro; aos três sólidos das terras de Nonantola foram retirados o quarto e o quinto. Os avaliadores estavam convencidos de que as terras de Nonantola valiam três vezes as terras de Brescia. No que se refere aos outros rendimentos, as terras de Nonantola não seriam melhores que as de Brescia, nem inferiores a elas. A exceção era o fato de que as terras de Brescia não seriam tão boas quanto as de Nonatola, quanto ao trigo. Assim, a parte de Nonantola seria de 110 iugera, aos quais foram acrescentadas várias construções estimadas em quinze libras de prata. Na possessão da parte de Brescia, as construções não eram estimadas em nem mesmo cem sólidos. Por isso, as construções valendo o triplo ou mais foram compensadas com o acréscimo de três igrejas com seus ornamentos.17 17 Bougard (2008, p. 64): [6] Nos autem hec audientes propter plenitudinem satisfaciendi ad illos octo dinarios quattuor iungentes, de istis vero tribus solidis quartum et quintum subtrahentes, triplici pratio istam contra illam terram valere invenimus ; sed et in reliquis gratiis terram illam, que ad Nonantolum pertinebat, aut meliorem aut non inferiore terre Brexinse esse conperimus, excepto quod terra frumentalis talis non est qualis illa. Quamobrem quia illa, m dictum, siliginis, id est frumenti gratia, huic terre praeminit, idcirco cencumdecimb iugeres pars Nonantule et insuper tecta plura et nobiliore quindecim libris argent! apretiata superposui, et cum in possessione supradicte Brexinse ne centum soletorum tecta illa praetio valeredinuscantur, ut etiam sicut terra uberior, ita quoque tecta triplici aut eo amplius pretium valente reconpensarentur adiunctis ecclesie tribus cum hornamentis [suis], cum illa nulla esse disnuscatur.

Esse brevium descreve várias operações de cálculo e de avaliação que mostram que seria um equívoco considerar que os “bens sagrados” eram incomensuráveis na Idade Média. A proibição da venda de bens da Igreja não é uma norma rígida e há muitos exemplos de terras reintroduzidas nos circuitos de troca por meio de artifícios jurídicos, sem que esses bens perdessem o tal valor agregado decorrente de seu caráter “sagrado”. Em princípio, o “valor cristão” das coisas não é incompatível com a venda de bens da Igreja, especialmente os bens fundiários.

As circunstâncias mercantis não são as únicas nas quais o “valor cristão” das coisas foi objeto de cálculo. O último exemplo que gostaria de apresentar está no Pactus legis Salicae, também conhecido como Lei Sálica. Uma das características da legislação dos reinos bárbaros é a presença de um valor de composição a ser pago à vítima (ou a seus próximos) por quem é considerado culpado do delito (ou por sua família). A composição leva em conta, especialmente no caso de roubo, o valor dos bens roubados. Em seu segundo título, o Pactus trata do roubo de porcos. A composição pelo roubo de um “porco consagrado” é de setecentos denários, superior em cem denários à multa pelo roubo de um porco “não consagrado”.

Bruno Dumézil acredita que essa diferença entre os valores da composição é um indício da presença de um regime de proteção ao culto pagão. No entanto, três famílias de manuscritos do Pactus, A1, A4 e K, salientam que o porco sacrium é uotiuo, isto é, consagrado a Deus.18 18 Pactus Legis Salicae, MGH, Leges, vol. 4, t. 1, ed. K.A. Eckhardt, 1962:A1: “II:16. Si quia maialem uotiuo furauerit et hoc testibus quod uotius fuit potuerit adprobare...”; A4: “II:11. Se quis maiale uodiuo furauerit et hoc cum testibus quod uotiuus fuisset adprobatum...”; a família K é ainda mais incisiva, e não deixa dúvidas quanto à identidade do proprietário do porco: “II:14. Si quis maialem sacriuum, qui dicitur uotium...” (grifos nossos). A palavra uotiuus é utilizada para caracterizar o bem doado a uma igreja. Além do mais, no Preceito de Clotário II, texto do final do século VI, há referências a isenções sobre terras da Igreja destinadas à pastagem de porcos. Isso indica que o número de porcos “consagrados” era realmente importante, inclusive a ponto de receberem na legislação real uma cláusula de proteção contra roubo. Nesse sentido, os cem denários a mais a serem pagos pelo roubo de um “porco consagrado” em relação a um porco “comum” representam a quantificação do “valor cristão”.

Ainda que, originalmente, não pudesse ser quantificado, reduzido a um número, o “valor cristão” acaba sendo avaliado e quantificado, ao ser projetado em determinados tipos de bens (os bens sagrados) postos em situação mercantil. Não se trata de um valor intrínseco às coisas sagradas: seria preciso supor que a sacralidade, por ser um princípio absoluto, teria como implicação um valor constante, já que imanente. Não é o que ocorre nos exemplos que vimos aqui. Esses exemplos são sintomáticos do fato de que o “valor cristão” das coisas, na Idade Média, é fruto de cálculo econômico - tanto no âmbito das disputas judiciárias, quanto no âmbito das transações comerciais. Esse cálculo dá a essas coisas um valor que serve para reconhecer sua distinção.

Considerações finais

É de Henri Pirenne a tese da regressão da economia monetária e da ruralização das sociedades ocidentais como decorrência da expansão muçulmana. Ela tem sido, ao longo das últimas décadas, apontada como a grande responsável pela má reputação dos primeiros séculos da Idade Média entre os economistas. Creio, por outro lado, que a razão dessa má reputação está no predomínio de uma abordagem “primitivista” do comportamento econômico das sujeitos do período. Mais precisamente, na ideia de que os medievais eram incapazes, pelo menos até o século XIII, de praticar qualquer tipo de ação racional no âmbito de suas relações com os bens. Não pretendo aqui fazer um inventário da contribuição da antropologia para a ampliação do conhecimento sobre as sociedades medievais. Minha intenção é apenas apontar um paradoxo: por um lado, o aporte dos antropólogos levou os historiadores a se interessar por aspectos até então desconhecidos, como as relações de parentesco; por outro lado, a transmissão de bens ou ritos frequentemente reduziu os comportamentos dos agentes econômicos do período à expressão de um pensamento primitivo.

Desde a publicação póstuma de Maomé e Carlos Magno, passando por Guerriers et paysans, de Georges Duby (1973DUBY, Georges. Guerriers et paysans: premier essor de l’économie européenne. Paris: Gallimard, 1973.), até os livros de Pierre Toubert (2005TOUBERT, Pierre. L’Europe dans sa première croissance. Paris: Fayard, 2005.), L’Europe dans sa première croissance, de Chris Wickham (2008WICKHAM, Chris. Framing the Early Middle Ages: Europe and the Mediterranean, 400-1000. Oxford: Oxford University Press, 2008.), Framing the Early Middle Ages, e de Jean-Pierre Devroey (2006DEVROEY, Jean-Pierre. Puissants et misérables: système social et monde paysan dans l’Europe des Francs, VIe-IXe siècles. Bruxelas: Académie Royale de Belgique, 2006.), Puissants et misérables, todo o debate acerca da questão se concentra no volume de recursos disponíveis na economia dominial. Pirenne e Duby sustentam que a escassez de meios técnicos era a principal característica dos primeiros séculos da Idade Média. Já Toubert, Wickham e Devroey acreditam que houve relativa abundância da produção agrícola. “Abundância” ou “escassez” me parecem alternativas insuficientes para elucidar a questão da economia dos primeiros séculos da Idade Média. O fundamental, como se observa especialmente nas obras de Wickham e Devroey, é saber como as pessoas lidavam com os recursos que tinham à disposição, fossem eles escassos ou abundantes. No estágio atual das pesquisas sobre as sociedades pré-capitalistas, compreender a relação com os recursos é mais importante do que simplesmente quantificá-los.

As sociedades cristãs na Idade Média foram capazes de atribuir um valor monetário às coisas consideradas como pertencentes à esfera do sagrado; um valor distinto daqueles que eram até então vigentes. Existe, portanto, um “valor cristão” das coisas, distinto de um “valor” das coisas. Deve ser entendida como “valor cristão” uma avaliação que é projetada sobre as coisas e que reafirma a distinção das mesmas em relação às coisas que não pertencem à Igreja. O fundamento dessa avaliação é um princípio de justiça, bem como uma doutrina fundada na submissão do mundo terreno aos imperativos da Salvação. Vimos que o “valor cristão” das coisas não se confunde com o “valor” das coisas. Há operações de cálculo a partir das quais ele é alcançado, com o objetivo de traduzir em preço a superioridade qualitativa dos bens eclesiásticos. Trata-se de um valor que pode ser traduzido em termos numéricos ou apenas em fórmulas qualitativas. A atribuição de um “valor cristão” às coisas, sobreposto ao seu valor corrente, tem o potencial de alterar a natureza das coisas. No entanto, isso não as retira da esfera da circulação mercantil. Em outras palavras, o “valor cristão” das coisas não anula sua mercabilidade. Ao contrário, atribuir “valor cristão” significa transformar coisas em bens segundo dispositivos técnicos e princípios morais. Eis aí, portanto, um terreno interdisciplinar por excelência, no cruzamento entre a história, a economia, a psicologia e a antropologia.

Gostaria de concluir esta reflexão com uma discordância em relação àquilo que afirma Ludwig von Mises a respeito do preço justo. Em A ação humana, ele sustenta que o conceito de preço “justo” ou “legítimo” é desprovido de qualquer significado científico. Segundo o autor, “é um disfarce para certos desejos, uma tentativa de fugir da realidade” (Mises, 1990MISES, Ludwig von. A ação humana. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990., p. 464). O exemplo do “valor cristão” das coisas, expresso tanto por meio do preço mais elevado atribuído a bens imóveis, tanto por meio da definição dos preços justos dos cereais e do pão, mostra que estamos diante de um fenômeno de grande relevância e que pode ser sim objeto de análise histórica. Pretendi salientar, ao longo desta exposição, que o domínio ético-moral de reflexão sobre as coisas é perfeitamente compatível com os processos de avaliação e de mensuração. Mais importante ainda, quis demonstrar que esse domínio foi capaz de produzir mecanismos de avaliação e de mensuração. A possibilidade de se realizar uma história social e econômica da valoração ainda não foi completamente explorada pelos historiadores. Acredito que ela possa nos ajudar na compreensão do processo de construção e de reprodução da sociedade, mas também a pôr em xeque as fronteiras tradicionais entre as sociedades modernas e as sociedades pré-modernas.

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  • WOODING, Jonathan. Communication and commerce along the Western sea lanes, AD 400-800 Oxford: Oxford University Press 1996
  • 1
    Sobre a formação dos preços na teoria marxiana, ver Barrière (2001 BARRIÈRE, Christian. Comprendre la formation des prixcontemporains: les limites de l’analyse marxienne. In: DELAUNAY, Jean-Claude(Org.). Le capitalisme contemporain: des théorisations nouvelles? Paris: L’Harmattan, 2001, p. 15-54.).
  • 2
    Sobre a formação de preços nos primeiros séculos da Idade Média, há dois artigos de Laurent Feller que merecem destaque: “Transformation des objets et valeur des choses: l’exemple de la Vita Meinwerici” (Feller, 2013b) e “La formation des prix dans l’économie du haut Moyen Âge” (Feller, 2011FELLER, Laurent. Sur la formation des prix dans l’économie du haut Moyen Âge. Annales. Histoire, Sciences Sociales (Paris). v. 66, n. 3, p. 627-661, 2011.).
  • 3
    A abertura da economia às perspectivas sociais não é um fenômeno recente. Granovetter e Swedberg (1992GRANOVETTER, Mark; SWEDBERG, Richard(Org.). The sociology of economic life. Boulder/San Francisco/Oxford: Westview Press, 1992.) destacaram-na na introdução de uma obra intitulada precisamente The sociology of economic life.
  • 4
    Conforme Le Goff (2014LE GOFF, Jacques. A Idade Média e o dinheiro: ensaio de uma antropologia histórica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014., p. 256): “Parece-me uma imposição precisar, como já o fizeram muitos historiadores notórios, que o capitalismo não nasceu na Idade Média, e até mesmo que a Idade Média não foi um período pré-capitalista: a penúria de metais preciosos, a fragmentação dos mercados impediam a criação de condições para isso. Só no período que vai do século XVI ao XVIII produzir-se-á a ‘grande revolução’ que Paolo Prodi situa erradamente, como tentei demonstrar, na Idade Média. Na Idade Média, o dinheiro, como também o poder econômico, não se emancipou do sistema global de valores da religião e da sociedade cristãs. A criatividade da Idade Média está em outro ponto”.
  • 5
    Ver, por exemplo, no que se refere à Alta Idade Média: Bruand (2002BRUAND, Olivier. Voyageurs et marchands aux temps carolingiens: les réseaux de communication entre Loire et Meuse aux VIIIe et IXe siècles. Bruxelas: De Boeck Université, 2002.) e Wooding (1996WOODING, Jonathan. Communication and commerce along the Western sea lanes, AD 400-800. Oxford: Oxford University Press 1996.).
  • 6
    Medida de capacidade para sólidos, cada módio equivale a aproximadamente um alqueire. Essa medida esteve associada, entre os romanos e também durante os primeiros séculos da Idade Média, a uma cesta típica utilizada nos animais para carga de grão e outras cargas. A quantidade de grão contida no módio, ao ser plantada, equivale a uma área de cerca de 24 mil m2.
  • 7
    Cassiodoro, Variae, XII, 22, 23, 24, 25, 26 e 27, ed. Theodor Mommsen, Monumenta Germinae Historica (MGH), Auctores Antiquisimi, t. 12, Berlim, Weindmann, 1894, p. 378-383.
  • 8
    Gregório de Tours, Decem Libri Historiarum, VII, c. 45, ed. Bruno Krusch, MGH, Scriptores Rerum merovingicarum, t. 1, Hanover, Hann, 1951, p. 365: De fame anni praesentis. Magna hoc anno famis paene Gallias totas obpressit. Nam plurimi uvarum semina, flores avellanorum, nonnulli radices herbae filicis arefactas redactasque in pulvere, admiscentes parumper farinae, panem conficiebant. Multi enim herba segitum decidentes, similiter faciebant. Fuerunt etiam multi, quibus non erat aliquid farinae, qui diversas colligentes herbas et comedentes, tumefacti deficiebant. Plurimi enim tunc ex inaedia tabescentes, mortui sunt. Graviter tunc negutiatores populum spoliaverunt, ita ut vix vel modium annonae aut semodium vini uno triante venundarent. Subdebant pauperes servitio, ut quantulumcumque de alimenta.
  • 9
    Liber Pontificalis (Rec. I), Gesta pontif. Rom., Michel Aubrun (Ed.). Le livre des papes. Turnholt, Brepols, 2007, p. 53: Savinianus, natione Tuscus, de civitate Blera, ex patre Bono, sedit ann. I mens. V dies VIIII. Eodem tempore fuit famis in civitate Romana gravis. Tunc facta pace cum gente Langubardorum et iussit aperire horrea ecclesiae et venundari frumenta per solidum unum modios XXX.
  • 10
    Capitulare missorum Niumagae (806), c. 15, ed. A. Boretius, MGH, Capitularia regum Francorum, t. 1, Hanover, Hann, 1883, p. 132: Turpe lucrum exercent, qui per varias circumventiones lucrando causa inhoneste res quaslibet congregare decertant.
  • 11
    Guibert de Nogent, Gesta Dei per Francos, livro II, ed. R. Huygens, Turnholt, Brepols, 1996, p. 159.
  • 12
    Synodus Franconofurtensis (794), c. 4, ed. A. Boretius, MGH, Capitularia regum Francorum, t. 1, Hanover, Hann, 1883, p. 74: Statuit piisimus domnus noster rex, consentienti sancta synodo, ut nullus homo, sive ecclesiasticus sive laicus sit, ut nunquam carius vendat annonam, sive tempore abundantiae sive tempore caritatis, quam modium publicum et noviter statutum, de modio de avena denario uno, modio ordii denarius duo, modio sigalo denarii tres, modio frumenti denarii quatuor. Si vero in pane vendere voluerit, duodecim panes de frumento, habentes singuli libras duas, pro denario dare debeat, sigalatius quindecim aequo pondere pro denario, ordeaceos viginti similiter pensantes, avenatios viginti quinque similiter pensantes. De vero anona publica domni regis, si venundata fuerit, de avena modius II pro denario, ordeo den. I, sigalo den. II, frumento modius denar. III. Et qui nostrum habet beneficium, diligentissime praevideat, quantum potest Deo donante, ut nullus ex mancipiis ad illum pertinentes beneficium famen moriatur; et quod superest illius familiae necessitatem, hoc libere vendat iure praescriptio.
  • 13
    Capitulare missorum Niumagae (806), c. 18, ed. A. Boretius, MGH, Capitularia regum Francorum, t. 1, Hanover, Hann, 1883, p. 132: Consideravimus itaque, ut praesente anno, quia per plurima loca fames valida esse videtur, ut omnes episcopi, abbates, abbatissae, obtimates et comites seu domestici et cuncti fideles qui beneficia regalia tam de rebus ecclesiae quamque et de reliquis habere videntur, unusquisque de suo beneficio suam familiam nutricare faciat, et de sua proprietate propriam familiam nutriat; et si Deo donante super se et super familiam suam, aut in beneficio aut in alode, annonam habuerit et venundare voluerit, non carius vendat nisi modium de avena dinarios duos, modium unum de ordeo contra dinarios tres, modium unum de spelta contra denarios tres si disparata fuerit, modium unum de sigale contra denarios quattuor, modium unum de frumento parato contra denarios sex. Et ipsum modium sit quod omnibus habere constitutum est, ut unusquisque habeat aequam mensuram et aequalia modia.
  • 14
    O papel da informação na determinação dos preços foi discutido por Bernard Walliser (2000), em seu livro L’économie cognitive.
  • 15
    Bougard (2008, p. 64): [4] Reversi autem nuntiaverunt nobis quod hoc praefatum concambium ad utriusque monasterium conpendium fieri potuisset, et quamvis ipsa loca aequalia non sint, dum unus istum et alter magis alteram habet gratiam, secundum tamen gratiam quam iste magiorem, et ille minorem, et rursus ille magiorem, et alter habeat minorem quam iste, ita hinc et inde ordinari potuisset, ut fructus maior ad singola monasteria propter vicinitatem, ut praernissum est, locorum adcriscere potuisset, ex eo quod in concambium suscipisset quam ex illo prius habere potuisset, quod suum antea fuit.
  • 16
    Bougard (2008, p. 64): [5] Interrogavimus autem cives singolorum locorum, si eedem terre venundande essent, quali praetio secundum more singolorum locorum conparari potuissent, qui omnes una consentientes dixerunt: «Terra ista, que modum ad Brexia pertinet, nunquam carius venundari potest, quam singoli iugeres dinariis octo ». Ceteri vero cives circa iacentes loco illo, qui ad Nonantulum pertinebat, ad testantes dixerunt numquam minus iugerem unum inibi, quam tribus solidis conparari potuisset, quamvis hoc etiam valde raro fierit, quia magis quattuor aut quinque solidis venundari consuidudo esset.
  • 17
    Bougard (2008, p. 64): [6] Nos autem hec audientes propter plenitudinem satisfaciendi ad illos octo dinarios quattuor iungentes, de istis vero tribus solidis quartum et quintum subtrahentes, triplici pratio istam contra illam terram valere invenimus ; sed et in reliquis gratiis terram illam, que ad Nonantolum pertinebat, aut meliorem aut non inferiore terre Brexinse esse conperimus, excepto quod terra frumentalis talis non est qualis illa. Quamobrem quia illa, m dictum, siliginis, id est frumenti gratia, huic terre praeminit, idcirco cencumdecimb iugeres pars Nonantule et insuper tecta plura et nobiliore quindecim libris argent! apretiata superposui, et cum in possessione supradicte Brexinse ne centum soletorum tecta illa praetio valeredinuscantur, ut etiam sicut terra uberior, ita quoque tecta triplici aut eo amplius pretium valente reconpensarentur adiunctis ecclesie tribus cum hornamentis [suis], cum illa nulla esse disnuscatur.
  • 18
    Pactus Legis Salicae, MGH, Leges, vol. 4, t. 1, ed. K.A. Eckhardt, 1962:A1: “II:16. Si quia maialem uotiuo furauerit et hoc testibus quod uotius fuit potuerit adprobare...”; A4: “II:11. Se quis maiale uodiuo furauerit et hoc cum testibus quod uotiuus fuisset adprobatum...”; a família K é ainda mais incisiva, e não deixa dúvidas quanto à identidade do proprietário do porco: “II:14. Si quis maialem sacriuum, qui dicitur uotium...” (grifos nossos).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2019
  • Aceito
    13 Set 2019
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