Open-access Debates indigenistas peruanos na década de 1940: da revista América Indígena ao primeiro número de Perú Indígena

Peruvian debates concerning Indigenismo in the 1940s: from América Indígena to the first edition of Perú Indígena

Resumo:

O artigo analisa os debates entre diferentes propostas indigenistas levantados por intelectuais peruanos na década de 1940 envolvendo várias edições de América Indígena: Órgano Trimestral del Instituto Indigenista Interamericano e também o primeiro volume de Perú Indígena, publicação do Instituto Indigenista Peruano. O estudo desses debates é fundamental para a compreensão das transformações experimentadas pela discussão da questão indígena no país andino, num período em que propostas mais progressistas e radicais - que haviam se destacado nas primeiras décadas do século XX - deixavam de ser predominantes no cenário nacional. Mostramos como o antagonismo de ideias entre os peruanos se vinculava também a um amplo debate indigenista que marcava o cenário continental. A análise se insere no campo da história intelectual, a partir de uma abordagem transnacional, e articula o estudo das sociabilidades à metodologia do contextualismo linguístico.

Palavras-chave:
Indigenismo interamericano; Intelectuais peruanos; Revistas

Abstract:

This article analyzes the debates between different conceptions and proposals regarding Indigenismo presented by Peruvian intellectuals in the 1940s in several editions of América Indígena: Órgano Trimestral del Instituto Indigenista Interamericano and also the first issue of Perú Indígena, the official periodical published by the Instituto Indigenista Peruano. Scrutinizing these debates is essential for understanding the transformations experienced by the discussions concerning the indigenous issue in the referred Andean country at a moment in which the most progressive and radical proposals - which had stood out during the first decades of the twentieth century - were ceasing to be predominant on the national scene. I point out how the antagonism of ideas among Peruvian authors was also part of the continental debate addressing Indigenismo. The current analysis falls within the field of history of the intellectuals - articulating the study of intellectual sociability to the linguistic contextualism methodology - and is based on the transnational approach.

Keywords:
Inter-American Indigenismo; Peruvian intellectuals; Intellectual periodicals

A dimensão continental tornou-se um elemento fundamental do amplo e multifacetado fenômeno do indigenismo1 principalmente a partir do início da década de 1940, com a criação do Instituto Indigenista Interamericano (I.I.I.), entidade que buscou reunir intelectuais das Américas em torno da discussão da questão indígena nos diversos países do continente. Apesar de sua importância ao longo da história e, sobretudo, como um dos fenômenos político-sociais mais significativos do século XX na América Latina, o indigenismo permanece relativamente pouco estudado pelos historiadores e, além disso, a perspectiva nacional normalmente continua sendo a priorizada, o que dificulta o estudo de sua faceta continental, que é a perspectiva apresentada neste artigo.2 Mostraremos como, no caso peruano, alguns elementos fizeram com que a relação desse país com o indigenismo interamericano, representado pelo I.I.I., fosse bastante estreita.

Em primeiro lugar, o Peru esteve na base do projeto de criação de uma instituição indigenista continental desde o início. A proposta do que viria a ser o I.I.I. foi articulada pelo mexicano Moisés Sáenz a partir de fins dos anos 1930, precisamente quando ele atuava como representante diplomático do México em Lima. Mas a conexão de Sáenz com o indigenismo peruano remonta ao início dos anos 1930, antes mesmo de sua gestão diplomática, quando ele foi enviado pelo governo mexicano para analisar a situação dos indígenas em vários países latino-americanos, incluindo o Peru. Isso resultou, no caso desse país, na obra Sobre el indio peruano y su incorporación al medio nacional (Sáenz, 1933). A partir de meados dos anos 1930, Sáenz teve uma estada mais duradoura no país andino, atuando como representante diplomático do México. Entre idas e vindas ao seu país natal, atuou como diplomata em Lima, de 1936 até sua morte, em 1941.

Dessa forma, no contexto da criação do I.I.I. e no breve período em que atuou como o primeiro diretor da instituição (entre 1940 e 1941, quando faleceu), Sáenz esteve em intenso contato com o indigenismo peruano e o país andino teve importante participação na organização da instituição indigenista continental. O Peru não apenas fez parte do Comitê Executivo que organizou o I.I.I., como foi um dos primeiros países a criar um instituto indigenista nacional, o Instituto Indigenista Peruano (I.I.P.), vinculado ao Instituto Interamericano, ainda na década de 1940. Isso aconteceu, em grande medida, porque durante o primeiro Congresso Indigenista Interamericano - realizado na cidade de Pátzcuaro, no México, em 1940 - ficou decidido que o segundo congresso ocorreria na cidade de Cuzco, no Peru, em 1949.

A partir do Congresso de Pátzcuaro, o I.I.I. foi criado como uma instituição que buscava reunir os indigenistas de todos os países americanos. Além da realização de congressos continentais - que deveriam ocorrer de forma periódica, embora num lapso de anos entre um congresso e outro -, a interação entre os intelectuais indigenistas foi viabilizada principalmente por meio da publicação da revista América Indígena: Órgano Trimestral del Instituto Indigenista Interamericano. O periódico, que reunia contribuições de autores dos mais diversos países do continente, tornou-se o principal eixo na articulação de uma rede indigenista transnacional em torno da instituição continental.3 Por apresentar-se aberta a diferentes perspectivas a respeito do próprio indigenismo, a publicação permitia a ocorrência de debates e até mesmo polêmicas em suas páginas.4

O debate de ideias que aqui analisamos, envolvendo autores peruanos, se desenvolveu dentro dessa rede e perpassou diversas edições da revista América Indígena (AI) e o primeiro número da revista Perú Indígena (PI), publicação oficial do I.I.P., que, por sua vez, vinculava-se ao I.I.I. Nesse sentido, tratou-se de um debate inserido em uma discussão mais ampla que o contexto nacional, sendo a própria realidade peruana pensada, em grande medida, como parte de um panorama continental. Portanto, uma abordagem transnacional apresenta-se como essencial para a compreensão desse debate. Como propõe Barbara Weinstein, assumir tal abordagem pressupõe a identificação de “zonas de contato” em que se desenvolvem as interações internacionais significativas; lugares, não necessariamente físicos, mas que podem envolver “comunidades de discurso e conhecimento”, entre outros (Weinstein, 2013, p. 5).

Entendemos que o indigenismo interamericano, constituído em torno do I.I.I., configurou-se como um importante espaço de interação intelectual continental, dando origem a uma rede de caráter transnacional na qual a sua publicação oficial, a revista AI, funcionou como o eixo principal de conexão entre os atores. Nesse sentido, a revista continental pode ser identificada como uma re(d)vista, no sentido proposto por Claudio Maíz, entendendo que, muitas vezes, as publicações periódicas podem ser vistas, elas próprias, como redes (Maíz, 2011, p. 76). Parte-se, nesse caso, de “un concepto dinámico y móvil” de redes cuja relevância metodológica encontra-se precisamente “en su misma contingencia” (Fernández Bravo, 2011, p. 215), o que permite captar casos, como o aqui tratado, em que a conexão se estabelece prioritariamente por meio do próprio periódico e, particularmente, dos debates travados por meio dele.

As discussões que analisamos entre autores peruanos se inseriam nessa rede transnacional e eram parte do amplo debate a respeito da questão indígena que marcou o continente em meados do século XX. O período aqui tratado abarca desde o surgimento da revista AI, em 1941, até a primeira edição da revista PI, datada de 1948, que foi o único volume da publicação editado pela diretoria inicial do I.I.P., antes da sua destituição pelo golpe de Estado liderado pelo general Manuel Odría naquele mesmo ano.

O I.I.P. funcionou por pouquíssimo tempo da forma como foi idealizado durante a “primavera democrática”, representada pelo governo de José Luis Bustamante y Rivero, iniciado em 1945 e deposto justamente pelo golpe de 1948. No seu curto período de existência sob o governo democrático, a direção do I.I.P. foi encabeçada pelo reconhecido indigenista Luis E. Valcárcel e composta por outros importantes nomes que haviam surgido no cenário nacional ligados ao indigenismo radical da década de 1920, como Uriel García, José Antonio Encinas e José Sabogal, entre outros que, como bem observa Osmar Gonzáles, passaram “da rebelião à participação no establishment” (Gonzáles, 2012, p. 41). Após o golpe de Odría, a direção do I.I.P. foi rapidamente destituída e a instituição inserida no novo panorama autoritário que se impôs no país.

Nosso foco neste artigo é principalmente o período anterior à criação do I.I.P. Mostraremos que o embate de ideias e as polêmicas travadas entre intelectuais peruanos na revista continental nesse período permitem identificar a existência de uma intensa disputa entre perspectivas indigenistas antagônicas, presentes no país na primeira metade da década de 1940. A análise dos debates e disputas desse período é de grande importância para se compreender os caminhos tomados pela discussão em torno da questão indígena no Peru a partir dos anos 1930. Trata-se de um momento em que as propostas indigenistas mais radicais, que chegaram a ser hegemônicas no país andino nas primeiras décadas do século XX e que são as mais conhecidas - que envolveram autores como José Carlos Mariátegui, por exemplo, e se desenvolveram em diálogo com as vanguardas artísticas -, deixavam de ser predominantes no cenário nacional.

Existem muitos estudos sobre o indigenismo radical peruano, principalmente dos anos 1920. Mas, ao contrário disso, há pouquíssima produção sobre as décadas de 1940 e 1950, por exemplo, e inclusive não há quase nada publicado sobre o próprio I.I.P.5 Como observa a historiadora Laura Giraudo, “lo más sorprendente del caso peruano”, quando se pensa nesse período, “es que, en pocos años, parecía haber desaparecido toda esta larga historia indigenista”. Como destaca a autora, o tema do indigenismo no Peru de meados do século XX é algo que “todavía hace falta aclarar” (Giraudo, 2011, p. 82).

Nossa proposta é justamente avançar nessa compreensão a partir da identificação das vertentes indigenistas que estiveram em disputa no cenário peruano da época. Um elemento essencial nessa análise é considerar a dimensão continental envolvida no debate peruano, como destacamos anteriormente. Levar em conta esse contexto argumentativo mais amplo que o nacional peruano é fundamental para a compreensão das proposições dos autores envolvidos. Para interpretá-las, nos utilizaremos de recursos metodológicos específicos da análise de discursos político-intelectuais, conforme apontamos a seguir.

Quando analisamos esse tipo de discurso, devemos ter em mente, como propõe Quentin Skinner (2007), que “cualquier acto de comunicación constituirá siempre la asunción de determinada posición en relación con alguna conversación preexistente”. Portanto, as proposições formuladas pelos autores devem ser entendidas como “un movimiento dentro de una argumentación” e, para analisá-las, devemos resgatar “el contexto argumentativo de su ocurrencia para determinar cómo ell[a]s se conectan o se relacionan, exactamente, con otras expresiones asociadas con el mismo asunto” (Skinner, 2007, p. 203-204, 206).

Ao analisar esses discursos e os debates por eles gerados, muitas vezes, como ocorre no caso aqui tratado, nos encontramos diante de um gênero discursivo específico, configurado pelo “discurso persuasivo ou polêmico”. Esse não necessariamente envolve uma polêmica direta e nominal entre autores, mas, como explica Marc Angenot (1978), “supõe um contradiscurso antagonista presente de forma indissociável na trama do discurso atual, o qual visa, portanto, uma dupla estratégia: a demonstração de uma tese e a refutação/desqualificação de uma tese contrária”. Como destaca Angenot, esse tipo discursivo deve ser entendido como “um ato, uma tomada de posição dentro de um universo discursivo que não é hegemônico, por definição”. Trata-se, dessa forma, de um discurso que não apenas “supõe uma forte presença do enunciador no enunciado”, mas, além disso, possui um adversário-destinatário - explicitamente identificado ou não - como elemento constitutivo do processo de enunciação (Angenot, 1978, p. 260).6

Como mostraremos, essa foi a tônica do debate gerado pelos diferentes e, até mesmo, antagônicos ideais e propostas indigenistas levantados pelos autores peruanos, mesmo quando não envolveram - e algumas vezes, sim, envolveram - explicitamente a refutação direta e nominal de um autor em relação a outro. Antes de adentrar propriamente na análise dessas discussões, apresentamos brevemente os aspectos materiais característicos das edições da revista AI e do primeiro volume de PI, que nos servem de fontes para recuperar esse debate.

No caso de AI, durante o período analisado, a estruturação interna do conteúdo da revista era extremamente simples, contendo, em cada edição, um editorial curto, de cerca de duas páginas, publicado sempre em espanhol e inglês, seguido de artigos assinados por intelectuais de diferentes partes do continente. Esses textos eram apresentados um após o outro na revista, sem divisão em seções ou colunas temáticas; após os artigos, aparecia a única seção temática da revista, presente em todas as edições, “Reseñas Bibliográficas”, que apresentava, em geral, obras de caráter antropológico a respeito dos povos indígenas do continente.

A revista do I.I.I. sempre contou com uma periodicidade estável, sendo uma publicação trimestral cujas edições saíam sempre em janeiro, abril, julho e dezembro, contendo cerca de cem páginas cada. Os recursos gráficos utilizados eram bastante simples, com todo o conteúdo, incluindo as imagens, apresentado sempre em preto e branco. Os exemplares eram vendidos de forma avulsa, custando 1,75 pesos para o público mexicano e 0,35 dólares para os demais países e também havia a opção de assinatura anual da revista, com os preços respectivos de 10 pesos e 2 dólares. A revista não publicava qualquer tipo de anúncios comerciais.

Em relação à revista PI, seu primeiro volume, que é o único que utilizamos neste trabalho, tratou-se de uma edição propriamente de apresentação da nova instituição indigenista peruana, seu projeto político e sua vinculação com o órgão continental, o I.I.I. Não houve a publicação de artigos assinados por colaboradores nesse primeiro volume da revista - como houve nas edições subsequentes -, mas apenas um editorial, assinado pelo diretor Luis E. Valcárcel, seguido da reprodução dos seguintes documentos oficiais: o texto completo da Convenção de instituição do I.I.I.; a Resolução Legislativa peruana de aprovação da Convenção do I.I.I.; as resoluções de organização e instalação do I.I.P.; os discursos oficiais das autoridades peruanas durante a cerimônia de inauguração da instituição indigenista, entre eles o diretor Valcárcel e o próprio presidente da República. Completando a primeira edição de PI, que totalizou oitenta páginas, aparecem os Estatutos do I.I.P. e documentos relativos à organização do segundo Congresso Indigenista Interamericano, que seria realizado em Cuzco no ano seguinte. Por último, mas de fundamental importância, como abordaremos mais à frente, foi reproduzido na íntegra o texto do “Proyecto de Ley del Senador por Ayacucho A[lberto] Arca Parró”, eleito pelo Partido Socialista, no qual propunha que o I.I.P. tivesse papel central nos procedimentos para dotação de terras às comunidades indígenas.

Assim como em AI, a revista peruana não apresentava qualquer tipo de publicidade comercial, tanto nesse primeiro volume quanto nos posteriores. Mas, ao contrário da publicação continental, em PI não há menção de preços de vendas ou assinaturas da revista; é possível que ela não tenha sido vendida, mas distribuída gratuitamente. Também ao contrário de AI, a periodicidade da revista peruana foi marcada pela instabilidade, pelo menos até meados da década de 1950, variando de alguns meses até pouco mais de dois anos entre uma edição e a seguinte.

Em certa medida, pelo menos no período inicial, essa instabilidade na periodicidade de PI pode ser explicada pela própria instabilidade política vivida pelo país, tendo em vista o fato de o governo democrático, dentro do qual foi criado o I.I.P., ter sido derrubado no mês seguinte à publicação da primeira edição da revista oficial indigenista. Por esse mesmo motivo, como mostraremos, o volume inicial da revista PI se constitui em uma importantíssima fonte histórica para se compreender o projeto original da instituição indigenista peruana, construído durante o efêmero, mas muito significativo período, que é identificado como “el primer impulso” da democracia no Peru (Sosa Villagarcía, 2016).

As discussões indigenistas peruanas em América Indígena

O primeiro artigo de um autor peruano publicado na revista do I.I.I. apareceu já na segunda edição do periódico, em janeiro de 1942. Tratava-se do texto “Historia de la labor gubernamental en favor de los indígenas peruanos”, assinado por Gerardo Bedoya Saez, representante da Dirección de Asuntos Indígenas de Perú. Além de ser funcionário do órgão indigenista oficial, a revista destaca, na apresentação do autor, que ele havia participado do primeiro Congresso Indigenista Interamericano, que deu origem ao I.I.I., como parte da delegação oficial de seu país.7 Como se percebe pelo título, o autor buscou destacar o histórico de ações oficiais do Estado peruano em relação às populações nativas. Após fazer um amplo relato da situação de concentração de terras e exploração dos indígenas no país desde o período colonial, argumentou que após a Independência não houve mudanças substantivas desse quadro e que somente no século XX começaram a ser feitos esforços governamentais efetivos. Nesse sentido, o funcionário do órgão indigenista oficial peruano destacou a importância da criação da Seção de Assuntos Indígenas no país, em 1921 e, principalmente, em 1937, o surgimento da Direção de Assuntos Indígenas, da qual ele era um representante.

Fica evidente que o grande objetivo desse artigo era utilizar-se do espaço de repercussão continental representado pela revista AI para fazer propaganda do Estado peruano e sua ação indigenista oficial. A presença desse tipo de intuito propagandístico nas páginas da revista do I.I.I. não foi uma especificidade do Peru, mas também pode ser observado em relação a outros contextos nacionais, como no caso do próprio Brasil, como mostra Danielle Longo (2020) em seu trabalho sobre o indigenismo brasileiro na revista nesse mesmo período.

Chama a atenção que, tanto no caso peruano quanto no brasileiro, o primeiro artigo de cada um desses países na revista AI foi exatamente um texto de propaganda, assinado por uma figura ligada aos respectivos indigenismos oficiais nacionais.8 No caso do artigo de Gerardo Bedoya, algo que chama ainda mais a atenção é o fato de o texto aparecer na publicação ao lado de uma imagem fotográfica de um indígena peruano (Figura 1), o que permitia que a foto ajudasse a agregar sentido ao texto, apesar de a imagem não ser parte integrante do artigo.

Figura 1
Página inicial do artigo de Gerardo Bedoya com fotografia ao lado

Embora a publicação de fotografias de indígenas tenha sido algo muito presente na revista AI desde o início, em geral essas imagens, que normalmente ocupavam uma página inteira, apareciam na revista de forma totalmente independente dos textos, sendo acompanhadas somente de legendas explicativas. Mas, no caso do primeiro artigo peruano publicado na revista, a fotografia cuja legenda era “Tipo nativo de Puno, Perú”, ao ser colocada imediatamente antes do artigo, na página ao lado, praticamente funcionava como uma ilustração do mesmo e induzia a reiterar o sentido positivo do indigenismo oficial peruano apresentado no texto, ao exibir a imagem de um indígena sorridente vestido com roupas típicas andinas. Se considerarmos que essa associação entre imagem e texto não era algo comum na revista em seu início,9 podemos imaginar que a referida fotografia possa inclusive ter sido sugerida pelo próprio autor, representante da Dirección de Asuntos Indígenas de Perú, para acompanhar seu artigo. Como era comum na revista, não há identificação de origem e/ou autoria da foto.

Algum tempo depois, em abril de 1944, outro autor peruano publicou um artigo com argumentos diametralmente opostos à ideia de que a existência de órgãos estatais indigenistas seriam, por si, a solução para as questões indígenas. O texto, intitulado “La ley y el indio en el Perú”, foi assinado por Vladmiro Bermejo, que era uma figura intelectual identificada ao indigenismo radical das décadas anteriores. No texto - que o autor informa se tratar de um fragmento de uma obra anterior, El indio ante el problema jurídico peruano, de 1935 -, Bermejo argumenta, citando nominalmente Mariátegui como referência na análise do assunto, que a solução dos problemas que afligiam os indígenas deveria partir da resolução da questão da concentração de terras e particularmente do gamonalismo:10 “confiar el rehabilitamiento jurídico del indio, como relación social, en la escuela, la administración, la legislación tutelar, el mejoramiento racial, etc., es una bella utopía, mientras exista el gamonal que contraviene siempre el cumplimiento estricto de las leyes”.11

Esse artigo de Vladimiro Bermejo gerou uma resposta oficial da Dirección de Asuntos Indígenas de Perú, que foi publicada em AI na edição de janeiro de 1945. O órgão indigenista peruano enviou seu texto de forma explicitamente oficial, por meio da Embaixada peruana no México, como foi informado na publicação, e rebateu nominalmente as ideias de Bermejo. O referido texto foi publicado em AI com o mesmo título do artigo a ser rebatido, “La ley y el indio en el Perú”, acrescido da expressão “aclarando conceptos”. Tratava-se, portanto, de um esclarecimento público e oficial sobre as ideias contidas no texto de Vladimiro Bermejo publicado anteriormente na revista.

No seu texto oficial, a Dirección acusava Bermejo de ser “unilateral”, de simplesmente tomar parte da defesa dos indígenas, sem “estudiar este problema [indígena] desde un plano sociológico”, ou seja, sem a suposta objetividade científica. O artigo argumentava que a questão do latifúndio no Peru era uma herança da colonização e que os governos republicanos se esforçaram ao longo do tempo para criar leis para coibir os abusos contra os indígenas. Após citar diversas leis, o texto concluía, de sua perspectiva oficial e em um tom bastante paternalista, que era “enorme el bien y el amparo que el Gobierno presta al indígena”. E terminava afirmando: “con lo anteriormente expuesto, dejamos aclarados y rectificados los conceptos vertidos en el artículo tantas veces mencionado [en el propio texto]”, que era o artigo de Bermejo.12 Nesse caso, portanto, tratou-se de uma polêmica explícita, com uma crítica nominal ao autor que se queria rebater.

De forma muito distinta, sem envolver exatamente uma polêmica direta entre autores, é possível identificar outro debate opondo diferentes propostas indigenistas levantadas por autores peruanos nas páginas da revista AI ainda na década de 1940. Nesse caso, tratou-se de um confronto entre dois ideais que sintetizavam projetos indigenistas opostos. De um lado, a perspectiva de um indigenismo crítico e progressista, que em muito remontava ao indigenismo radical da década de 1920, sobretudo a valorização das culturas indígenas; de outro, uma posição bastante conservadora em termos indigenistas, que almejava a “incorporação indígena” à civilização ocidental.

O autor identificado à proposta progressista era o advogado Hildebrando Castro Pozo, cujos ideais que permearam toda a sua trajetória intelectual podem ser descritos como um “socialismo de raiz coletivista e democrática”, como propõem Osmar Gonzáles e Benjamín Blass Rivarola (2008, p. 35). Durante sua juventude, ainda na década de 1910, Castro Pozo participou do movimento estudantil ligado à reforma universitária, atuando em conjunto com organizações sindicais de orientação anarquista na luta pela jornada de oito horas de trabalho. No início dos anos 1920, já formado em direito, chegou a ocupar alguns cargos no serviço público, incluindo o de chefe da Seção de Assuntos Indígenas, criada no início do governo de Augusto Leguía. Nesse período, ajudou a promover vários congressos das comunidades indígenas (Ramos Rau, 2006, p. 97; Gonzáles; Blass, 2008, p. 36).

Durante os anos 1920, Castro Pozo acabou sendo preso e exilado devido ao endurecimento do regime de Leguía. Nesse mesmo período, aproximou-se de Mariátegui e, em 1930, tornou-se um dos membros fundadores do Partido Socialista do Peru em Piura, sua cidade natal. Pouco depois, foi eleito deputado para o Congresso Constituinte, convocado após o fim do oncenio de Leguía, e atuou no Legislativo pelo Partido Socialista até 1936 (Gonzáles; Blass, 2008, p. 37). Foi nesse período que publicou sua principal obra, Del ayllu al cooperativismo socialista, de 1936. Seu artigo publicado em AI, no início dos anos 1940, é claramente uma decorrência da referida obra, porém o autor não usa a expressão “socialista” no título, nem mesmo no próprio texto. O artigo de Castro Pozo foi publicado em AI em abril de 1942 com o título: “El ayllo13peruano debe transformarse en cooperativa agropecuaria”.

Como boa parte do indigenismo radical que havia sido hegemônico no Peru nas primeiras décadas do século XX, o autor defendia que os ayllus andinos deveriam ser não somente preservados, mas revitalizados, mantendo seus ideais comunitários. Castro Pozo propunha que a produção das comunidades indígenas deveria passar a se estruturar na forma de cooperativas agropecuárias, com a utilização de novas tecnologias. Embora o texto não mencione a palavra socialismo, o ideal dos ayllus como base de uma organização social mais justa e cooperativa permanece o mesmo de toda a obra desse autor.

O mais interessante em relação ao seu artigo publicado em AI, em 1942, é que ele apareceu na revista com uma nota explicativa de que se tratava do texto da “ponencia presentada [por Castro Pozo] al Primer Congreso Indigenista Interamericano. Pátzcuaro, 1940”.14 Apesar de o título se referir ao “ayllu peruano” e as reflexões se basearem em estudos do autor sobre a realidade nacional do Peru, a abordagem conferida ao texto foi eminentemente continental. Não há dúvidas de que tal perspectiva se apresentava em consonância com o contexto de sua exposição, tanto no Congresso Indigenista Interamericano, quanto na revista continental. Mas é importante destacar que uma perspectiva “indoamericana” já se fazia presente no pensamento do advogado peruano muito antes de sua apresentação no primeiro Congresso Indigenista Interamericano.

A identificação continental de Castro Pozo remontava aos inícios de sua própria trajetória intelectual, dentro do processo de reforma universitária. Já durante sua atuação como deputado pelo Partido Socialista, este se aproximou, em sua atuação opositora, de setores ligados à Aliança Popular Revolucionária Americana (Apra), cujas origens também remontavam ao reformismo universitário e sua faceta “americanista”.15 Certamente essa identificação, aliada à sua posição indigenista crítica, foi importante para que ele participasse do Congresso de Pátzcuaro como um dos “convidados especiais” do México, a partir de uma lista produzida por Moisés Sáenz como estratégia para garantir a presença de personalidades com posições indigenistas mais progressistas, que certamente não fariam parte das delegações oficiais de seus países.16

Em seu texto, lido no Congresso de Pátzcuaro e reproduzido em AI, o advogado peruano ressaltou a importância dos ayllus andinos e demais comunidades indígenas ancestrais, que, conforme apontou, “aún perdura[n] en algunos países de Hispanoamérica” e, especificamente no caso do Peru, “supervive[n] en casi toda la región serrana del país”, como “la más importante institución económico-social indígena”. Além de se manterem vivas na atualidade, destacou que essas comunidades “coexisten en nuestros tiempos con las [instituciones] que nosotros hemos organizado y, lo que es más importante, llevando a cabo una función social de valiosa trascendencia para el futuro de la raza que las instituyó”.17

Na perspectiva de Castro Pozo, a comunidade indígena teria o papel crucial de servir como “soporte al desenvolvimiento de un nuevo estado cultural indígena”, porém simplesmente “conservar la Comunidad tal como exist[ía]” implicaria deixá-la vulnerável às “maquinaciones del gamonalismo”. Portanto, defendeu: “creemos que se le debe transformar, pero no desaparecer”. Ele refutava a ideia de uma reforma agrária que significasse a mera repartição das terras em lotes individuais, argumentando que isso fatalmente levaria à submissão econômica dos indígenas em relação àqueles que tinham condições de adquirir grandes quantidades de terras, como, segundo ele, já acontecia na costa peruana, “en donde la Comunidad ha desaparecido y el indio y mestizo viven económicamente esclavizados”.18

Para Castro Pozo, as comunidades indígenas que persistiam ao longo de séculos deveriam ser inseridas no novo contexto de industrialização da agricultura por meio de “un gran fondo comunal” que permitisse a aquisição de modernas máquinas agrícolas, gerando, assim, um baixo custo de produção, tornando-as competitivas no mercado. Em sua concepção, essa nova configuração não suplantaria “los dos grandes factores sobre los que se basa toda cooperación, estos son: acervo y propiedad rural colectivos e intención y trabajo mancomunados para realizar el bien de todos los comuneros”.19 Como se pode perceber, as ideias desse autor estavam longe de se apresentarem como um ideal romantizado de retorno ao passado indígena ou uma negação completa da modernidade. O que se buscava era preservar a lógica das relações produtivas baseadas no comunitarismo, mas inserindo-as no processo inexorável de desenvolvimento tecnológico.

O texto de Castro Pozo publicado em AI, em 1942, acabou envolvido em um debate na revista continental quando, em 1946, apareceu na mesma publicação um texto diametralmente contrário ao seu argumento. Apesar de não citar nominalmente o artigo do advogado peruano, o texto em questão, assinado pelo médico social de origem alemã Maxime Kuczynski Godard, rebatia explícita e enfaticamente a proposta de revitalização dos ayllus.

Maxime, cujo nome de nascimento era Max Hans e tinha ascendência judaica, havia deixado a Alemanha devido à ascensão nazista, passando a assinar Maxime, para evitar a identificação de sua origem germânica. Ele chegou ao Peru em 1936 e ali se estabeleceu pelo resto da vida. Inicialmente, foi acolhido por Carlos Enrique Soldán, diretor do Instituto de Medicina da Universidade de San Marcos, com quem colaborou na revista La Reforma Médica, então dirigida pelo médico peruano. A partir do início dos anos 1940, Maxime Kuczynski passou a exercer diversos cargos ligados ao governo na área de salubridade, inicialmente na região amazônica e depois, também, na serra peruana (Cueto, 2000, p. 42-55). Tendo se radicado no Peru, passou a se identificar como peruano.20 A revista AI, por exemplo, quando da publicação de seu artigo, em 1946, o apresenta como “Peruano. Doctor en Medicina e Ciencias Naturales”.21

Em seu referido artigo publicado na revista AI, o médico peruano-alemão apresentou vários dados estatísticos que provinham do trabalho que desenvolveu nas regiões de Cuzco e Puno, onde se deparou com a situação de superexploração vivida pelos indígenas. Conforme destacou no texto, seu trabalho como “higienista” (assim se identificou) o levava a “ocuparse de tal padecimiento social grave como del terreno esencial del cual brotan sus propios problemas [médico-sanitarios]”. Por essa razão, desenvolveu uma investigação a respeito de um enorme latifúndio serrano, que, segundo ele, “si no e[ra] el fondo más grande del Cuzco, por lo menos e[ra] de extensión excepcional valorándose su superficie en no menos de 40 leguas cuadradas”. Ainda segundo o autor, esse terreno correspondia a uma área que “originalmente fueron 6 ayllus”.22

No texto decorrente desse estudo que publicou em AI, Kuczynski buscou levantar argumentos gerais sobre a questão indígena relacionada ao problema do latifúndio, partindo de suas observações sobre o caso específico por ele analisado. Apesar de reconhecer a existência de uma “explotación del indio según principios feudales”, o que transformava latifundiários e nativos em “dos facciones profundamente opuestas”, para o médico peruano-alemão, não lhe competia tomar partido de nenhum dos lados, tendo em vista seu papel como cientista, que deveria ser um “observador estrictamente neutral”.23

Mas, apesar do argumento de uma suposta neutralidade científica, o médico sanitarista peruano-alemão não deixou de expressar sua visão a respeito da problemática social analisada e propor uma solução, que passava pela crítica veemente ao ideal de revitalização dos ayllus como algo sentimentalista e sem possibilidade de aplicação prática. Em suas próprias palavras:

Me parece muy falso ceder a movimientos más bien sentimentales que racionales, y propagar el restablecimiento de ‘comunidades indígenas.’ Esta no es la solución del dilema actual […]. La ‘comunidad indígena’ difícilmente por su propia actividad podría desarrollarse, progresar como lo deseamos en el interés del campesino y del Estado. […] Si no queremos al campesino económicamente esclavizado, tampoco es ideal vislumbrarle ‘libre’, pero ocioso, arcaico, ‘indígena.’ […] Los intereses de 3 a 4 millones de peruanos, hoy todavía ‘indígenas’, estrechamente coinciden con los de la Nación. […] El verdadero problema nacional es la incorporación de esta masa, tanto en el sentido cultural cuanto económico.24

A argumentação apresentada por Kuczynski expressa de modo exemplar uma posição indigenista bastante disseminada naquele momento na América Latina, identificada ao ideal de “incorporação indígena” à civilização ocidental, entendida como a única moderna e superior. Nessa perspectiva, a identidade indígena era entendida como algo transitório, que deixaria de existir com o avanço do processo de incorporação cultural. Aqueles que “ainda” eram indígenas deveriam ser transformados em camponeses, cultural e economicamente inseridos no Estado nacional. Tal processo de incorporação era identificado como algo essencial para se consolidar uma nação moderna, entendida como culturalmente homogênea.

O debate peruano em diálogo continental: o primeiro número da revista Perú Indígena e seus vínculos com os inícios do indigenismo interamericano

Quando o texto de Kuczynski foi publicado na revista AI, em 1946, o paradigma da incorporação havia se tornado o dominante dentro do I.I.I., ao contrário da concepção que havia guiado Moisés Sáenz e os demais articuladores - entre eles os peruanos - dos inícios da instituição continental. O Congresso de Pátzcuaro e as resoluções oficiais constantes da Acta Final do evento erigiram um indigenismo politicamente engajado na luta por uma reforma agrária que permitisse aos indígenas não apenas o acesso à terra, mas a manutenção de sua posse comunal, e pelo respeito e valorização da diversidade cultural indígena dentro dos países do continente.25 No entanto, esse indigenismo bastante progressista não foi o que de fato se consolidou no I.I.I. Com a morte de Sáenz e a ascensão do arqueólogo e antropólogo mexicano Manuel Gamio à direção da instituição, prevaleceu a sua lógica de unificar culturalmente as sociedades nacionais por meio da mestiçagem cultural - como propôs em sua conhecida obra Forjando patria (1916) -, o que não passava de uma expressão do paradigma da “incorporação indígena”.26

Mas, enquanto esse panorama indigenista bastante conservador prevalecia em boa parte do continente, no Peru de meados da década de 1940, foi o indigenismo crítico e progressista que se tornou o oficial durante o governo de Bustamente y Rivero (1945-1948), eleito pela Frente Democrática formada por partidos e movimentos sociais de oposição. A criação do I.I.P. ocorreu nesse contexto e significou a implementação institucional de boa parte dos ideais progressistas que haviam sido dominantes não apenas no Peru nas décadas anteriores, mas também no indigenismo interamericano em seus inícios.

Com a direção do I.I.P. nas mãos de importantes nomes ligados ao indigenismo radical dos anos 1920, como Luis E. Valcárcel, José Sabogal, e outros que também haviam se ligado ao projeto original do I.I.I., como Uriel García e José Antonio Encinas, a instituição indigenista peruana foi criada alinhada aos ideais de Pátzcuaro27 - apesar de esses já não serem os vigentes dentro do próprio I.I.I. Uma ausência importante nessa lista de integrantes da direção do I.I.P. é Hildebrando Castro Pozo, que foi um dos peruanos mais atuantes no Congresso de Páztcuaro, tendo apresentado ali sua proposta de revitalização das comunidades indígenas sob a forma de cooperativas agropecuárias, que posteriormente foi publicada em AI, como mostramos. Castro Pozo faleceu em 1945, antes da criação do I.I.P. No entanto, sua proposta esteve na base do programa da nova instituição indigenista peruana.

O I.I.P. foi criado em 1946, tendo como projeto central “anfronta[r] y resolve[r] el problema de la tierra”. Como afirmou o diretor Luis Valcárcel no discurso de inauguração da instituição, que foi reproduzido na primeira edição de sua revista oficial, essa era uma condição primordial para que se concretizasse um “efectivo cambio progresista”.28 A proposta oficial era que o I.I.P. fosse o órgão responsável pela aplicação do artigo 211 da Constituição peruana de 1933, que estabelecia que o Estado deveria outorgar terras às comunidades indígenas que não as tivessem em quantidade suficiente. Nesse sentido, caberia ao I.I.P. tanto a elaboração do orçamento quanto a execução técnica das investigações sobre as reclamações de terras pelos indígenas. Essa proposta foi apresentada também na primeira edição da revista PI, por meio da reprodução na íntegra do projeto de lei do senador Alberto Arca Parró, do Partido Socialista.29

Podemos compreender o referido projeto de lei, que foi colocado como o texto de fechamento da edição inaugural da revista peruana, no sentido de uma complementariedade ao texto inicial da publicação, que era o discurso do diretor Valcárcel na inauguração do I.I.P. Enquanto o projeto de lei de Arca Parró estabelecia os critérios para a reforma agrária a ser realizada, colocando o I.I.P. como o órgão central para sua execução, o discurso do diretor da instituição indigenista explicava o formato em que seriam outorgadas as terras às comunidades indígenas, não sob o sistema de lotes individuais, mas sim “la reconstitución de la Comunidad Agropecuaria de antiquísima tradición peruana sobre las bases de la moderna técnica de las Granjas Colectivas”.30 Como se pode perceber, tratava-se da mesma lógica dos argumentos de Castro Pozo, de manter a estrutura dos ayllus, mas dotando-os de novas tecnologias agrícolas.

Portanto, quando o texto de Maxime Kuczynski foi publicado na revista AI, em 1946, rebatendo enfaticamente a proposta de revitalização dos ayllus - como havia sido apresentada alguns anos antes por Castro Pozo na mesma revista -, seu contexto específico de publicação respondia à efetivação da referida proposta no cenário peruano daquele momento. De fato, o Peru representava uma espécie de microcosmo de um debate que perpassava o continente em meados dos anos 1940, opondo dois grandes projetos indigenistas que disputavam hegemonia.

De um lado, estava um indigenismo identificado com projetos de homogeneização cultural e desligado das questões sociais mais profundas, como foi o indigenismo oficial interamericano sob a liderança de Gamio, que marcou fortemente o cenário continental, pelo menos até a década de 1960. Para se ter uma ideia da desconexão dessa corrente indigenista com a luta indígena, o tema da terra foi praticamente ignorado nos editoriais e artigos publicados pelo diretor Gamio na revista AI durante sua longa gestão, de 1942 a 1960 (Dias, Boaventura, 2021, p. 564).

De outro lado, havia uma matriz indigenista progressista e democrática, identificada com o engajamento na busca por justiça social e respeito à diversidade cultural, que havia ganhado repercussão continental no Congresso de Pátzcuaro, em 1940, mas já fazia parte da luta social em diversos contextos nacionais nas décadas anteriores.31 Esse indigenismo pluralista e engajado continuou existindo, ainda que de forma marginal, em boa parte do continente nas décadas seguintes e voltaria a ocupar um lugar central nas discussões oficiais do indigenismo interamericano - embora sem sucesso imediato - durante o quarto Congresso Indigenista, realizado na Guatemala em 1959.32

Ao contrário da maioria dos países americanos, o Peru foi um lugar onde o indigenismo progressista conseguiu se firmar oficialmente, ainda que por um curto espaço de tempo. Essa experiência, apesar de efêmera e muito sintomaticamente destruída pelo autoritarismo, permanece como parte do rico histórico - pouquíssimo estudado - de uma tradição indigenista pluralista, democrática, crítica e progressista que perpassou o continente desde a primeira metade do século XX e que, por vezes, chegou a assumir o lugar de um projeto oficial.33

Referências

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  • WEINSTEIN, Barbara. Pensando la historia más allá de la nación: la historiografía de América Latina y la perspectiva transnacional. Memoria Académica, v. 3, n. 6, p. 1-14, 2013.
  • 1
    Como bem delimita Henri Favre (1999), o indigenismo como “corrente de opinião favorável aos indígenas”, expressa em discursos e práticas correspondentes, é um fenômeno que perpassa, de forma “permanente e difusa”, a história do continente americano desde a chegada dos colonizadores europeus. A partir da segunda metade do século XIX, o indigenismo constituiu-se como um “movimento ideológico”, de expressões sociopolíticas e culturais, que “considera o indígena no contexto de uma problemática nacional” (Favre, 1999, p. 7-8). O período aqui analisado se insere no contexto de auge do movimento indigenista, que ocorreu aproximadamente entre as décadas de 1920 e 1960.
  • 2
    Uma discussão a respeito das limitações que ainda imperam nos estudos sobre o indigenismo pode ser encontrada em: Dias (2023).
  • 3
    Sobre a constituição do I.I.I. e a respeito do papel da revista na articulação de uma rede indigenista transnacional em torno da instituição, consultar respectivamente: Giraudo (2011) e Dias (2018).
  • 4
    Além do caso peruano, aqui analisado, o desencadeamento de polêmicas entre autores nas páginas da revista AI também foi identificada no caso estadunidense. A respeito, ver: Santos (2021).
  • 5
    Entre os poucos trabalhos existentes sobre o I.I.P., desatacam-se os artigos de Osmar Gonzáles (2011, 2012).
  • 6
    A tradução das citações de Marc Angenot em francês é nossa.
  • 7
    Seção Colaboradores. América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano, México DF, v. II, n. 1, s.p., jan. 1942.
  • 8
    No caso do Brasil, o primeiro artigo do país na revista AI foi assinado pelo próprio diretor do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), Vicente de Paula Teixeira Fonseca Vasconcelos, e publicado já na primeira edição da revista, em outubro de 1941 (Longo, 2020, p. 44).
  • 9
    Como salienta Deborah Dorotinsky (2022) em trabalho sobre a relação das imagens presentes na revista AI com a formação de uma cultura visual indigenista, “in general, photography and text were not often intertwined in the journal until after the 1950s” (Dorotinsky, 2022, p. 460).
  • 10
    O termo gamonalismo, usado por vários autores peruanos da época, remete ao fenômeno social do latifúndio e sua relação de opressão dos camponeses e/ou indígenas, que, muitas vezes, eles também identificam como uma condição “feudal”. Para uma análise sobre o fenômeno, consultar: Ibarra (2002).
  • 11
    Bermejo, Vladimiro. La ley y el indio en el Perú. América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano, México DF, v. IV, n. 2, p. 109, abr. 1944.
  • 12
    Dirección de Asuntos Indígenas de Perú. La ley y el indio en el Perú: aclarando conceptos. América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano, México DF, v. V, n. 1, p. 51-55, jan. 1945.
  • 13
    Apesar de, nesse texto especificamente, a grafia empregada ter sido ayllo, a mais comumente usada tanto pelo próprio Catro Pozo quanto por outros autores peruanos é ayllu.
  • 14
    Castro Pozo, Hildebrando. El ayllo peruano debe transformarse en cooperativa agropecuaria. América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano, México DF, v. II, n. 2, p. 16, 1942.
  • 15
    Sobre a reforma universitária, que se iniciou na Universidade de Córdoba, na Argentina, em 1918, e se transformou em um movimento multifacetado e de dimensões continentais, consultar: Funes (2021); Portantiero (1978).
  • 16
    Além de Castro Pozo, os outros peruanos que participaram do I Congresso Indigenista Interamericano como convidados, a partir da lista de Moisés Sáenz, foram Uriel Garcia e José Antonio Encinas, que, posteriormente fizeram parte da direção inicial do I.I.P., além de José María Arguedas, que, na época ainda era um jovem escritor, mas já bastante identificado ao indigenismo crítico. Para mais informações sobre a lista elaborada por Sáenz, que incluía nomes de diversos países do continente, ver: Giraudo (2011, p. 34-39).
  • 17
    Castro Pozo, Hildebrando. El ayllo peruano debe transformarse en cooperativa agropecuaria. América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano, México DF, v. II, n. 2, p. 11-12, 1942. O uso da palavra “raça” por Castro Pozo não carregava um sentido racialista. Muito ao contrário disso, como observam Gonzáles e Blass (2008), ao longo de toda a sua obra, ele se “deslinda muy claramente […] de la visión racial que prevalecía sobre el social”, ainda presente em boa parte da intelectualidade da época. Em seu pensamento, a questão étnica se cruza com a classista, configurando uma postura “sumamente moderna cuando analiza la condición humana, pues basa su análisis en lo social y promueve la interacción cultural, lejos de egoísmos chauvinistas y romanticismos anacrónicos” (Gonzáles; Blass, 2008, p. 39).
  • 18
    Castro Pozo, Hildebrando. El ayllo peruano debe transformarse en cooperativa agropecuaria. América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano, México DF, v. II, n. 2, p. 14-15, 1942.
  • 19
    Castro Pozo, Hildebrando. El ayllo peruano debe transformarse en cooperativa agropecuaria. América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano, México DF, v. II, n. 2, p. 15, 1942.
  • 20
    Maxime Kuczynski - cujo filho Pedro Pablo chegou a ser, décadas depois, presidente do Peru - trabalhou em diversos cargos ligados ao Ministério de Saúde peruano até 1948, quando foi preso pela ditadura de Manuel Odría, acusado injustamente de ser aprista. Depois desse episódio, não voltou a trabalhar para o governo, tendo terminado seus dias atendendo como médico em seu consultório (Cueto, 2000, p. 61).
  • 21
    Seção Colaboradores. América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano, México DF, v. VI, n. 3, s.p., jul. 1946.
  • 22
    Kuczynski Godard, Maxime. Un latifundio del sur: contribución al conocimiento del problema social. América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano, México DF, v. VI, n. 3, p. 259, jul. 1946.
  • 23
    Kuczynski Godard, Maxime. Un latifundio del sur: contribución al conocimiento del problema social. América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano, México DF, v. VI, n. 3, p. 263-264, jul. 1946.
  • 24
    Kuczynski Godard, Maxime. Un latifundio del sur: contribución al conocimiento del problema social. América Indígena: órgano trimestral del Instituto Indigenista Interamericano, México DF, v. VI, n. 3, p. 272-273, jul. 1946 (destaque nosso).
  • 25
    Em grande medida, o ideal de pluralismo cultural e justiça social, que marcou o indigenismo de Pátzcuaro, encontra-se expresso na última obra de Moisés Sáenz, México íntegro, de 1939. A respeito do relativo esquecimento desse importante autor pela historiografia e seu papel central na articulação do I.I.I., ver: Dias (2018).
  • 26
    Sobre a lógica da “incorporação indígena” em Manuel Gamio e o afastamento de Moisés Sáenz dessa perspectiva, consultar: Aguirre Beltrán (1990, p. 155-156). A respeito do indigenismo defendido por Gamio à frente do I.I.I., ver: Dias e Boaventura (2021).
  • 27
    O I.I.P. apresentou-se, na edição inaugural de sua revista Perú Indígena, em 1948, como um órgão vinculado ao I.I.I. Explicitando sua relação direta com o projeto original da instituição interamericana, publicou na íntegra o texto da Convenção que instituiu o I.I.I. no contexto do Congresso de Pátzcuaro, em 1940. Esse documento ocupou as primeiras páginas da revista peruana, antes da reprodução da própria Resolução de criação do I.I.P.
  • 28
    Discurso del director del Instituto, Dr. Luis E. Valcárcel. Perú Indígena: órgano del Instituto Indigenista Peruano, Lima, ano 1, v. 1, p. 30, set. 1948.
  • 29
    El Artículo 221 de la Constitución y la Provisión de Tierras para las Comunidades de Indígenas. Perú Indígena: órgano del Instituto Indigenista Peruano, Lima, ano 1, v. 1, p. 72-78, set. 1948.
  • 30
    Discurso del director del Instituto, Dr. Luis E. Valcárcel. Perú Indígena: órgano del Instituto Indigenista Peruano, Lima, ano 1, v. 1, p. 30, set. 1948.
  • 31
    Além do indigenismo radical peruano dos anos 1920, destacam-se casos como o de parte significativa do indigenismo decorrente da Revolução de 1910, no México, contexto no qual emergiu a posição pluralista assumida por Moisés Sáenz a partir da década de 1930; e o estadunidense do período do chamado Indian New Deal, como ficou conhecida a política indigenista levada a cabo durante a presidência de F. D. Roosevelt, que nomeou como comissário de Assuntos Indígenas o reconhecido indigenista John Collier. Como mostra Guilherme G. dos Santos (2021), esse conjunto de reformas é visto por diversos estudiosos e, sobretudo, por importantes intelectuais indígenas - como Vine Deloria Jr. - como algo que “garantiu a preservação dos povos indígenas enquanto grupos dotados de especificidades culturais, por ter permitido a posse comunal das terras das comunidades indígenas e o respeito a suas tradições culturais, como as línguas e religiosidades ancestrais dos nativos” (Santos, 2021, p. 8). Em relação ao indigenismo interamericano, John Collier foi, ao lado do mexicano Moisés Sáenz, um dos principais articuladores do Congresso de Pátzcuaro, com seus ideais progressistas, e do projeto inicial do I.I.I. Sobre John Collier e sua relação com o indigenismo interamericano, consultar: Santos (2021).
  • 32
    No âmbito do IV Congresso Indigenista Interamericano foi oficialmente reconhecida a limitação do paradigma da incorporação indígena, ao se estabelecer uma “Comissão sobre Integração Social” - dirigida por Darcy Ribeiro e com participação de vários outros antropólogos latino-americanos - para elaborar uma nova “teoria de integração social”. Sobre o contexto muito particular da realização do Congresso na Guatemala em 1959, as origens e os desdobramentos da lógica de integração social, contrária ao paradigma da incorporação, consultar: Dias e Santos (2023).
  • 33
    Outros casos, além do estadunidense, em que o indigenismo progressista alcançou uma expressão institucional podem ser identificados na Guatemala, com o “indigenismo de base” decorrente da Revolução de 1944; e na Colômbia de fins dos anos 1950, quando, sob o governo liberal durante a guerra civil, a Jefatura de Resguardos Indígenas foi encabeçada por Gregorio Hernández de Alba, que possuía uma longa trajetória de engajamento indigenista e atuou na instituição no sentido de consolidar o protagonismo dos próprios indígenas. Consultar a respeito, respectivamente: Escobar Urrutia (2013) e Troyan (2007).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2024
  • Aceito
    06 Jun 2024
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