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“Para melhor exercitar os ministérios pertencentes a sua salvação”: circulação dos saberes linguísticos e conquistas nos sertões de dentro da América portuguesa

“To better exercise the ministry belonging to your salvation”: circulation of linguistic knowledge and conquests in the inner hinterlands of Portuguese America

Resumo:

A expansão para os sertões de dentro, no Brasil, na segunda metade do século XVII, foi marcada pela edificação de aldeamentos e constituição de alianças, para garantir segurança no acesso comercial às rotas dos criadores de gado que seguiam da Bahia ao Piauí. Ordens religiosas foram incumbidas de organizar as aldeias, disciplinar as almas e fornecer mão de obra nas entradas para o sertão. Coube aos padres da Companhia de Jesus a administração dos Kiriri e, visando atender às solicitações, foram realizados estudos linguísticos para sistematizar e normatizar as línguas locais e tornar possível a comunicação e a pretendida conversão. Este artigo tem como objetivo analisar as redes de comunicação entre missionários durante a conversão dos Kiriri. Por meio dos escritos do padre Ludovico Vicenzo Mamiani Della Rovere, em cotejo com outras fontes, buscam-se identificar os interesses, práticas e métodos de apreensão dos saberes linguísticos, as redes de difusão e a circulação do conhecimento.

Palavras-chave:
Companhia de Jesus; Catecismo; Kiriri

Abstract:

The expansion towards the inner hinterlands, in Brazil, during the second half of the 17th century, was marked by the settlement of villages and the constitution of alliances to ensure the safety of the commercial access to the route cattle raisers followed from Bahia to Piauí. Religious orders were entrusted with the task of organizing the villages, disciplining the souls, and supplying workforce to the advance inwards the hinterlands. The Jesuit priests were responsible for managing the Kiriri, and, to tend to the requests, linguistic studies were carried out to systematize and standardize the local languages and thus make both the communication and intended conversion possible. This paper intends to analyze the communication networks among the missionaries during the conversion of the Kiriri, in addition to identifying the interests, practices and learning methods of the linguistic knowledge, and the diffusion and circulation networks of that knowledge.

Keywords:
Company of Jesus; Catechism; Kiriri

No seu livro Memórias de Ulisses, François Hartog traça um perfil do viandante, aquele que desenvolveu a habilidade do olhar. Um sentido caro e necessário aos que transitam por outras paragens. O autor traça um perfil teórico acerca do sujeito que por meio das suas viagens, ao mesmo tempo em que flerta com o que lhe é estranho, constrói uma narrativa sobre o que ficou aprisionado no seu olhar pelo reconhecimento. A habilidade de saber olhar e não simplesmente ver, é quase um dom no mundo do conhecimento. Essa construção do saber também delineia as fronteiras das diferenças e constrói as identidades do seu mundo. Ulisses seria, para além do viajante na constante busca pelo retorno, um homem-memória.

Ao longo da história, muitos outros escreveram narrativas do tempo em diversos suportes documentais. Andarilhos, administradores, conquistadores, invasores, uma infinidade de condições sociais que permitiram, por meio dos seus escritos, construções interpretativas do passado. Esses homens-memória teceram uma malha na qual a realidade vivida se funde com as novas experiências de viagem. A hábil capacidade de olhar se torna a confluência dos múltiplos sentidos, tanto na construção quanto nas narrativas das memórias das viagens que marcam o retorno e remetem ao lar. Trata-se do ambiente de tranquilidade, que contém seu cheiro, no qual você se enxerga presente, fruto e herdeiro das paredes que o resguardam. Às vezes esse lar, esse retorno ao que lhe é conhecido, pode ser o encontro com seus pares, seus confrades, seus irmãos na construção do conhecimento, enquanto agentes de mediação (Monteiro, 2006MONTEIRO, Paula. Índios e missionário no Brasil: para uma teoria da mediação cultural. In: MONTEIRO, Paula (org.). Deus na aldeia: missionário, índios e mediação cultural. Rio de Janeiro: Globo, 2006. p.31-66., p. 33).

Ao analisar a trajetória dos agentes coloniais na América portuguesa, deparamo-nos com alguns homens-memória, os quais por meio da pena registraram as experiências nas terras do além-mar. Narrar as conquistas, a ocupação, as lutas e o outro foram a tônica de muitos desses relatos, fossem eles manuscritos, e também nos que ganhavam as autorizações necessárias à publicação. A circulação do conhecimento por meio dos manuscritos é um problema apontado por Ivone Del Valle (2009VALLE, Ivonne del. Escribiendo desde los márgenes: colonialismo y jesuítas en el siglo XVII. México: Siglo XXI, 2009.) ao analisar a América hispânica. Em seus trabalhos, Ronald Raminelli (2008RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda, 2008.) apresenta algumas das questões que podem ser mensuradas na política de mercês e nas tramas nas quais estava envolvido o trabalho da escrita.

Quando nos dedicamos a investigar a escrita e a experiência pela qual o autor sistematizou seu texto, precisamos entender o lugar social desse indivíduo: a sua formação, para quem escreve, com qual finalidade, a quais interesses atende. No âmbito dessas conjecturas e mundos que se entrelaçam, deparei-me com Ludovico Vicenzo Mamiani Della Rovere, religioso nascido na cidade de Pésaro, na Itália,1 1 No período em questão, Pésaro fazia parte do Reino de Nápoles, visto que a delimitação territorial atual se deu no século XIX, com a Unificação Italiana, cujos desdobramentos se estenderam até o século XX, com a Questão Romana, nos idos de 1929. e que nos idos de 1668 ingressou na Companhia de Jesus. Ao concluir sua formação religiosa em Veneza, seguiu viagem com destino a Lisboa (Leite, 2004LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus, v. VIII. Org. Cesar Augusto dos Santos. São Paulo: Loyola, 2004., p. 338-339). Em 1684, aos 32 anos, atravessou o oceano Atlântico, abandonando a sede do Império português com destino ao Maranhão.2 2 Após consulta à documentação, não foi possível identificar o motivo da mudança do destino do padre Mamiani. O mês de sua chegada não é apresentado nos registros. Contudo, é importante salientar que, no começo de 1684, em São Luís, estava ocorrendo o segundo levante contra a atuação dos jesuítas. No primeiro levante, em 1661, o colégio Nossa Senhora da Luz foi invadido e alguns padres foram encaminhados para a metrópole. Vinte e três anos depois, um novo conflito ocorreu na cidade, a Revolta de Beckman. Foram apresentados como motivos de insatisfação, a miséria, a cobiça dos padres da Companhia de Jesus e o não atendimento das demandas da população pela Coroa portuguesa. Ver mais em Chambouleyron (2005).

Em busca dessas experiências e da circulação de conhecimento, este trabalho tem como objetivo analisar um conjunto de escritos jesuíticos, impressos nos últimos decênios do século XVII. Ano a ano esse espaço é palco de disputas, celebrações, conquistas, vivências e sobrevivências sob a égide dos pressupostos que regiam a dinâmica colonial. E, por meio dessa distinta tipologia documental, sistematizaram saberes, práticas, experiências próprias da colonização portuguesa na América. Contudo, um tipo de conhecimento era necessário nesse espaço de fronteira, nessa confluência de sujeitos de múltiplas localidades, o conhecimento da língua (Daher, 2012DANTAS, Beatriz Góis. Missão indígena no Geru. Aracaju: UFS, 1973., p. 17).

Uma história dentre a de tantos viajantes com os quais nos deparamos ao consultar a documentação do período atinente à América portuguesa, Mamiani, assim como apontou Hartog, sistematizou a sua experiência missionária por meio da pena, eternizou o estranhamento pelo que viu e ouviu. Durante o período em que esteve no cotidiano da experiência na aldeia, registrou os hábitos do outro, identificou os sons e os sentidos da oralidade indígena, viajou por diversos aldeamentos nas capitanias da Bahia, Sergipe e São Paulo. Além disso, foi um indivíduo que, no seu retorno à Europa, após anos distante do espaço conhecido, tornou-se responsável pela tradução de sermões do português para o italiano, bem como de sua preparação para impressão. O padre Mamiani também organizou e traduziu para o italiano os sermões de Antônio Vieira. Além disso, escreveu um importante tratado acerca da probalística, quando assumiu o cargo de Procurador das Missões Jesuíticas no Oriente. Ao analisar a trajetória de Mamiani podemos perceber essa construção narrativa do viajante, que encerra seu ciclo com o retorno. No entanto, as marcas da experiência, da tradução cultural entre mundos pode ser compreendida tanto nos seus escritos acerca dos indígenas, ao registrar hábitos e costumes, quanto nas suas teorias acerca das salvações das almas voltadas para o processo de conversão no Oriente.

A viagem aos sertões de dentro: o mundo dos Kiriri

Ao chegar na Bahia, mesmo sem ter feito o seu quarto voto, a trajetória desse missionário-viajante passou a integrar um projeto que atendia tanto às necessidades das redes locais de poder, como também às bases de uma ação sistemática do reino nas guerras de ocupação dos sertões (Puntoni, 2002PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil (1650- 1720). São Paulo: Hucitec, 2002., p. 30). As viagens e os contatos, desde a sua formação até o destino no Maranhão, podem ser analisados como um contexto específico da própria atuação dos padres da Companhia de Jesus na segunda metade do século XVII. Trata-se de um momento permeado por querelas internas e externas, conforme apontou Carlos Zeron (2017ZERON, Carlos. Da farsa à tragédia: a guerra de facções que pôs fim às esperanças de Antônio Vieira por um Quinto Império e transformou o modo de atuação dos jesuítas do Brasil. In: GALDEANO, Carla; ARTONI, Larissa Maia; AZEVEDO, Silvia Maria (org.). Bicentenário da Restauração da Companhia de Jesus (1814-2014). São Paulo: Loyola, 2017. p. 167-198., p. 169-170) ao apresentar as disputas acerca da gestão interna dos missionários, dos critérios de ingresso e da promoção dos religiosos. Os impasses internos da Companhia de Jesus impediram a continuidade da viagem de Mamiani ao Maranhão.

Mamiani foi então enviado à aldeia do Geru, na capitania de Sergipe, localizada nos limites com a Bahia. Os indígenas que habitavam esse espaço há algumas décadas mantinham alianças com os portugueses e auxiliaram tropas em busca de mocambos,3 3 Regimento que levou Fernão Carrilho que foi por Capitão para fazer entrada aos mocambos de Geremoabo. In: Documentos históricos. v. IV. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1928. p. 192- 194. Portaria que levaram os Capitães Agostinho da Silva Bezerra e Matheus Fernandes que vão à entrada dos Mocambos In: Documentos históricos. v. IV. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1928. p. 409. de minas de prata e de salitre. Nesse espaço, por quase duas décadas, o missionário atuou participando do capítulo de conversão dos Kiriri.4 4 Dos registros do período colonial aos clássicos da historiografia brasileira, constata-se a simplificação da complexidade dos grupos indígenas da América portuguesa, como se pode constatar na sua divisão em dois grandes grupos: os Tupi-guarani, que viviam no litoral, e os tapuias, que habitavam o sertão. Os Kiriri foram tidos como “tapuias”, pois ocupavam o sertão do atual Ceará até a Paraíba, fazendo-se presentes também no Sul e no submédio do rio São Francisco, nos atuais estados de Alagoas, Bahia e Sergipe. Conforme Dantas (1973, p. 2), os Kiriri são “índios que formavam importante grupo linguístico cultural do Nordeste brasileiro, cujo habitat se estendia desde o Paraguassu e o rio de São Francisco até o Itapirucu, afastado da linha da costa, domínio dos povos de língua Tupi”. Maria Celestino de Almeida também faz referência ao grupo: “Do tronco linguístico macro-jê e habitantes do sertão do São Francisco, os kariris (sic) tiveram seus costumes descritos por jesuítas e capuchinhos” (Almeida, 2010, p. 32).

A formação das aldeias de Saco dos Morcegos, Natuba, Canabrava e Geru se deu nos sertões entre as capitanias da Bahia e de Sergipe em momentos distintos. Em 1666, os padres da Companhia, João de Barros e Jacob Roland, passaram a defender a importância do trabalho missionário junto às aldeias dos Kiriri, e deste empenho resultou a criação das missões das Jacobinas,5 5 É o nome dado a região onde as missões se efetivaram no século XVII, localizada no sertão do atual estado da Bahia, nas proximidades do município de Jacobina. dentre as quais estava a de Canabrava. Contudo, em 1667, devido à ação dos criadores de gado da região, essas primeiras missões, com exceção de Canabrava, foram destruídas. Esse capítulo da conversão jesuítica foi estudado por Pompa (2003bPOMPA, Cristina. Cartas do sertão: catequese entre os Kariri no século XVII. Revista Anthropológicas, ano 7, v. 14, n. 1-2, p. 7-33, 2003b.). Nesse trabalho, a autora aciona um diverso conjunto documental que permite apresentar o contexto e as narrativas adotadas em torno do debate acerca dos descimentos e fixação dos padres nas missões.

Canabrava foi fundada no contexto das missões das Jacobinas. De todas as missões Kiriri foi aquela em que os jesuítas viveram por mais tempo, até 1758. Com base nas fontes, viveram na referida aldeia os padres João de Barros, Jacob Roland, Jacques Cocle e José de Araújo (Leite, 2004LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus, v. VIII. Org. Cesar Augusto dos Santos. São Paulo: Loyola, 2004.). Esses missionários tinham conhecimentos acerca das línguas indígenas. Sabe-se que essa missão foi também visitada pelo capuchinho Martinho de Nantes e que os índios de Canabrava eram recorrentemente convocados para participar das tropas indígenas. Quanto ao contingente populacional, a localidade possuía novecentas almas ao ser elevada à categoria de vila.

Nossa Senhora de Natuba foi fundada em 1666, numa região um pouco mais afastada do sertão da Jacobina. A aldeia foi edificada nas proximidades de um rio perene, o que causava constantes alagamentos, encharcando as áreas destinadas às plantações, dificultando, assim, o plantio e a colheita. Estiveram nessa aldeia os padres Jacob Roland, João Mateus Falleto e Antônio Maria Bonucci. Esse último escreveu a segunda e a terceira parte das Ephemerides Eucharisticas durante o período em que esteve na aldeia. Em 1758, quando da expulsão dos jesuítas, a aldeia contava com 780 índios.

Já a aldeia de Saco dos Morcegos era muito próxima à de Canabrava, mas não era abastecida por riacho ou rio. Em razão das constantes secas, era comum a fuga dos índios dessa localidade, que, de acordo com os relatos dos padres, viviam metade do ano fora. Havia 960 índios, quando os jesuítas foram afastados dessa aldeia.

A última das aldeias Kiriri foi Geru (ou Juru, Geruaçu, Juruaçu). Os jesuítas passaram a ocupar a região após 1683, mediante a compra do terreno dos religiosos carmelitas. Consta que lá viveram os padres Luigi Vicencio Mamiani, João Baptista Beagel, Matheus Falleto, Domingos de Matos e o irmão Manuel de Sampaio. Durante sua passagem pela aldeia, o padre Mamiani preparou a publicação da Arte de língua Kiriri e do Catecismo na mesma língua. O padre Matheus Falleto também se dedicou a escrever e publicar a obra intitulada De Regno Christi in terris consummato.

Nesses quatro espaços das missões os indígenas que ali viviam falavam o Kipeá. Outras obras do período também apresentam uma parte dedicada ao leitor, entretanto, a diferença consiste no detalhamento que o autor faz sobre o método de construção do texto. A localização dessas aldeias pode ser observada na Figura 1:

Figura 1
Aldeamentos jesuíticos dos índios Kiriri.

Nesses espaços tecidos pela trama da dinâmica religiosa diversos mundos disputavam o controle. Por meio de diferentes tipologias documentais é possível constatar a constante circulação entre os missionários (jesuítas e capuchinhos), os quais relatam os impasses ao projeto de conversão por meio de suas cartas. Já os curraleiros, sesmeiros e tropas do terço dos paulistas relatavam questões envolvendo os limites das aldeias,6 6 Petição pela qual se pede a Sua Majestade terras para os índios de Natuba. In: Documentos Históricos. v. LXIV. Rio de Janeiro: Typographia Baptista de Souza, 1944. p. 65. os conflitos com os Kiriri aldeados, os roubos7 7 Carta de Agostinho Azevedo e Antônio Guedes de Brito a Estevão Ribeiro Baião Parente. Bahia, 25 de maio de 1677. In: Documentos Históricos. 1663-1685. v. IX. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1929. p. 41. de gado e a fuga de africanos escravizados para as aldeias. A circulação de indígenas se encontrava presente nos relatos das cartas ânuas que tratavam das fugas para festas,8 8 Os registros feitos da festa do Varakidran por missionários jesuítas e capuchinhos já foram analisados por historiadores como o padre Serafim Leite (1945), Beatriz Gois Dantas (1973) e Cristina Pompa (2003a). como a do Varakidran.9 9 Carta do padre Manuel Correia, da Baía, 1 de junho de 1683, Bras. 9f. 382-382v. Além da circulação dos Kiriri anualmente para acompanhar as festas, havia outro empecilho, de acordo com os religiosos, à administração das aldeias: a constante convocação dos indígenas para integrar as tropas.10 10 Carta para o padre Jacobo Cocleo. Bahia, 28 de fevereiro de 1673. In: Documentos Históricos. v. III. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1929. p. 352-353.

Ao explicar o mandamento que orientava os fiéis a guardarem o domingo e os dias santos, Mamiani elenca todas as práticas diárias dos indígenas, como trabalhar na roça, levantar e cobrir a casa, cortar paus no mato, beber vinho, participar de folguedos e fiar (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., p. 87). Além disso, define as práticas diárias que deveriam ser vinculadas ao ato de se benzer, tais como na hora de acordar pela manhã, de sair de casa e de dormir à noite, situações em que deveriam adotar a prática cristã e se proteger do mal (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., p. 129).

“Enterrar os mortos” e “rogar a Deus pelos vivos, & defuntos”, são obras da Misericórdia, como exposto por Mamiani (1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., p. 17-18), sendo que a primeira está relacionada com as obras do corpo, e a segunda, com as obras do espírito. Para o Kiriri, o jesuíta ensina que, após a morte, o corpo fica enterrado na sepultura, mas a alma, eterna, poderia ir a três lugares, dependendo das ações praticadas em vida. Os bons teriam lugar no céu e viveriam felizes com Deus (p. 81). Os que não tivessem vivido inteiramente segundo a vontade de Deus iriam para o purgatório, localizado logo acima do inferno (p. 101). Por fim, os pecadores iriam para o inferno, “(...) os máos hirão ao inferno em corpo, & alma, para padecerem hum, & outra tormentos eternos em companhia do diabo” (p. 160). O missionário ainda reitera que seguir os “costumes dos vossos avós” só iria levá-los ao inferno (p. 157). Por meio desses ensinamentos acerca dos dogmas da fé católica o padre também apontava os caminhos para o distanciamento das práticas comuns aos indígenas.

Em relação aos pecados, o jesuíta italiano elenca três categorias, que são divididas por níveis de gravidade. O primeiro seria o pecado original, com o qual todos nascem e que devia ser remido por meio do batismo. É bastante singular a explicação dada por Mamiani para justificar o pecado original e para promover a aproximação do gentio com a prática que remontaria aos conflitos entre índios e portugueses da região:

M. De que modo fomos máos pelo peccado dos nossos Avós?

D. Declararei isso com hum exemplo. O principal dos Indios de Natuba cómeteo hú crime antigamente contra os Brancos matando hum Capitão; então todos os Brancos se deraõ por inimigos dos Ìndios da Natuba, e de todos os Kiriris, por serem todos da mesma Nação do principal criminoso, por isso captivárão todos q poderão préder. Assim obrou Deos comnosco: Peccou Adão nosso pay contra Deos e por isso Deos se deu por offendido não sómente de Adão, mas também de todos os seus descentes (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., p. 140-141).

O segundo é o pecado mortal, que é o mais grave contra a lei de Deus e está relacionado com os pecados capitais. Pode ser praticado por um pensamento, uma palavra ou uma obra ruim. Com esse pecado há a morte da alma, e o praticante perde a graça de Deus, sendo que seu castigo é o inferno. Por fim, o terceiro é o pecado venial, o mais leve dentre eles. A remissão desse pecado é feita por meio da confissão, “doendo-se verdadeiramente dele, batendo nos peitos, tomando água benta, rezando orações a deos, e ganhando indulgencias (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., p. 12-13).

Quanto ao cotidiano da aldeia, em duas passagens o missionário se dedica a relacionar o furto e o pecado. Estabelecendo uma hierarquia em tal prática, e ao mesmo tempo, destacando experiências fruto da observação do convívio diário entre os povos indígenas e os agentes coloniais que habitavam o entorno. Sua prática também tem relação com o pensamento, a palavra ou alguma obra contra a lei de Deus, como se pode constatar nesta passagem:

Eu furtei hua espiga de milho, ou hua abobora; ou me agastei levemente com o meu camarada; então fiz hum peccado leve contra a ley de Deos. Mas se eu furtei, ou gado, ou cavalo, ou dinheiro de alheyo, então fiz peccado grave contra a ley de Deos (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., p. 145).

No entanto, para além de gêneros alimentícios ou o furto de animais, o padre, por meio do seu catecismo, expõe elementos que apontam as disputas da terra. Algo que com base na consulta na documentação administrativa percebemos que foi recorrente, os impasses entre criadores de gado da região e os indígenas aldeados:

D. He pecado, quãdo se deseja a fazenda alhea para a furtar a seu dono; ou quando se deseja algua perda da fazenda ao próximo por ódio, ou quando temos enveja ao que possue. Porém não he pecado desejar para si outra fazenda, como aquella, que tem o próximo (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., p. 98).

Outro elemento recorrente ao longo do catecismo é como a dúvida era uma semente do demônio, um contraponto à fé. Ao atribuir a saúde ou a doença à interferência da ação de terceiros, os índios se distanciavam dos preceitos cristãos, já que o caminho que deveria ser seguido “pelos filhos de Deos” era apenas um, e passava por “crer, esperar e amar a Deus” (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., p. 157). Os índios, no entanto, temiam o poder de destruição das palavras proferidas pelos feiticeiros e recorriam a mecanismos de proteção. E Mamiani nos apresenta alguns dos procedimentos que os Kiriri adotavam para afastar as doenças e a morte:

Curar doentes com assopro: Curar de palavra, ou com cantigas, Pintar o doente de genipapo, para q não seja conhecido do diabo, & o não mate: Espalhar cinza á roda da casa aonde esta hum defunto, para que o diabo dahi não passe a matar outros: Botar cinza no caminho, quando se leva hum doente, para que o diabo não vá atráz dele: Esfregar hua creança com porco do mato & lavala com Alóa, para que, quando for grande, seja bom caçador, & bom bebedor: Não sahir de casa de madrugada, nem à noite, para não se topar com a bexiga no caminho: Fazer vinho, derramalo no chão, & varrer o adro da casa para correr com as bexigas (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., p. 84; destaques meus).

Tanto nesta carta do padre Manuel Correia quanto no Catecismo de Mamiani encontramos inúmeras referências às doenças que assolavam as aldeias dos índios do sertão ao final do século XVII e às doenças da alma.

Ainda em 1677, o governo português solicitou o empenho dos missionários na conversão dos indígenas na América portuguesa. Os contatos que os povos originários aldeados mantinham com os portugueses eram constantes, em decorrência das minas de salitre da região, das fazendas de gado nas proximidades e da participação dos índios nas tropas e expedições. As autoridades coloniais acreditavam que o êxito da ocupação e da exploração do sertão se daria através da conversão, do maior conhecimento das línguas, e das práticas indígenas:

Da mesma maneira lhe encomendo muitos os Ministros que se ocupam na conversão, e doutrina dos Gentios, para que sejam favorecidos em tudo o que para este efeito for necessário, tendo com elles a conta que é razão, fazendo-lhes fazer bom pagamento nas Ordinarias que tem de minha Fazenda para sua sustentação; porque de todo o bom efeito que nesta matéria houver, me haverei por bem servido com os Portuguezes, é o entende-se a sua língua, dará o Governador Ordem a que se faça dela vocabulário, e se imprima para com maior facilidade se poder aprender, quando não esteja feito, como se ordenou aos Governadores passados.11 11 Regimento que trouxe Roque da Costa Barreto, Mestre de campo general do Estado do Brasil. 23 de janeiro de 1677. Correspondências dos Governadores Geraes. Rendimento dado ao Governador Roque Barreto. In: Documentos Históricos. 1663-1677. v. VI da série de IV. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1928. p. 317.

Um ano depois, as determinações seguiam sendo as mesmas. O interesse na publicação de gramáticas e instrumentos que facilitassem a comunicação e assegurassem a paz com os Kiriri, que ocupavam os sertões da rota do gado, continuava na pauta dos administradores coloniais, conforme aponta o Regimento de 1678.12 12 Registro do Regimento novo de Sua Alteza que trouxe em sua companhia o mestre de campo general deste Estado a cujo cargo está o governo dele para se guardar no dito Estado. Bahia, 14 de maio de 1678. In: Documentos Históricos. Livro 1.0 de Regimentos. 1653-1684. v. LXXIX. Rio de Janeiro: Tip. Baptista de Souza, 1948. Havia uma preocupação em diminuir o papel dos intérpretes no projeto de colonização dessas áreas. Ao analisar a documentação administrativa em cotejo com os registros dos religiosos é possível observar como o estudo das línguas dos povos originários estava intrinsecamente relacionado tanto às dinâmicas das redes locais de poder quanto à complexa teia do próprio Império.

A produção desses instrumentos linguísticos era fruto de um longo trabalho de sistematização do conhecimento adquirido pelos missionários. Contudo, à elaboração das gramáticas e vocabulários se sucediam várias outras etapas antes de sua impressão e que previam a análise de seu conteúdo por pares e censores e sua estruturação por tipógrafos, sobre os quais seus autores não tinham controle ou ingerência. O padre Antônio Vieira, quando estava em Lisboa, numa carta datada de 24 de maio de 1678 direcionada a Duarte Ribeiro de Macedo, descreveu os problemas ocasionados na impressão dos livros na Espanha (Mecenas, 2017MECENAS, Ane Luíse Silva. “O que importa para a fé e os bons costumes”: a censura e a publicação de impressos jesuíticos em Portugal (1623-1684). História, n. 36, p. 20-40, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/his/a/JvXwbKRbsQhXKVtX539Bjmx/?format=pdf⟨=pt Acesso em: 10 mar. 2021.). Nessa correspondência são destacados os problemas com relação à autorização do Santo Ofício quanto à publicação, como também erros por conta da ação do tipógrafo e o quanto as interferências prejudicam a interpretação do texto.13 13 Carta CXII a Duarte Ribeiro de Macedo de 24 de maio de 1678, In: Documentos Históricos. Livro 1.0 de Regimentos. 1653-1684. v. LXXIX. Rio de Janeiro: Tip. Baptista de Souza, 1948. p. 278.

Assim, as narrativas fruto da circulação dos saberes produzidos diante da experiência da aldeia se materializavam por meio de impressos. Foi a partir dos problemas locais, mas principalmente atendendo a uma necessidade do projeto de conquista dos sertões que os conhecimentos linguísticos foram intensamente apresentados como fundamentais. Anseios de administradores do tempo ordinário, bem como os do tempo sagrado alimentavam a proposta de controlar saberes.

O ato da escrita: circulação de saberes e produção de impressos

A experiência da escrita do viajante também pode ser observada em textos que atendem a uma forma votiva e, aparentemente, não permitiria acompanhar os estranhamentos e narrativas permeadas pelos saberes locais. No final do século XVII, Mamiani publicou, com a autorização da Ordem e das instâncias metropolitanas, atendendo às especificidades das obras da Companhia de Jesus, que após publicado o alvará de 6 de julho de 1677 necessitavam de aprovação do Provincial,14 14 Alvará de 6 de julho de 1677. In: Collecção chronologica da legislação portugueza. Compilada e Anotada por José Justino de Andrade Silva. Suplemento à Segunda Série (conclusão) 1675-1683. Lisboa: Imprensa de F. X. de Souza, 1857. p. 167. dois instrumentos de conversão, o Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri e a Arte de grammatica da lingua brasilica da naçam Kiriri, que resultaram da sistematização de suas experiências de um grupo de missionários que atuaram junto a este grupo indígena.

Quanto à estrutura das obras de Mamiani, havia uma parte dedicada ao leitor que se apresentava como uma Introdução, tanto na Gramática, quanto no Catecismo. Outras obras do período também apresentam uma parte na qual o autor explica o impresso, entretanto, a diferença consiste no detalhamento que o autor faz sobre o método de construção do texto. Nela, apresentam-se os objetivos do texto e sua utilidade para a salvação das almas dos Kiriri (Mecenas, 2020MECENAS, Ane Luíse Silva. O trato da perpétua tormenta: a conversão Kiriri nos sertões de dentro da América portuguesa. Aracaju: Edise, 2020.). Nesse espaço, o autor apontava os caminhos adotados no processo de compreensão do outro, não apenas dos sons, do conhecimento oral que foi sistematizado pelo crivo de um código latino de símbolos, como bem analisou Daher (2012DANTAS, Beatriz Góis. Missão indígena no Geru. Aracaju: UFS, 1973., p. 46), mas da experiência da missão e dos sentidos envolvidos nessa construção científica da síntese linguística dos Kiriri:

Conhecendo pois a necessidade que tem a Nação dos Kiriris nesta Provincia do Brasil de sogeitos que tenhao notícia da sua língua para tratar de suas almas, não julguey tempo perdido, nem ocupação escusada, antes muito necessária, formar hua Arte com suas regras, & preceitos para se aprender mais facilmente. He verdade que como os naturaes dela vivem sem regras, & sem ley, & deles se não pode alcançar regra algua de raiz, não parecia tão facial poder acertar sem Mestre. Mas cõtudo procurei cõ o exercício de algus anos da mesma língua, & com o estudo particular dela, tirar os fundamentos, & regras mais certas, para que cõ ellas se formasse hua Arte faci, & clara, quanto bastasse para os nossos Missionarios das Aldeas dos Kiriris apredere a lingua (Mamiani, 1699MAMIANI, Luiz Vincêncio. A arte de lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1699., p.4).

Se, ao registrar suas impressões e seu “estranhamento” em relação ao que viu e ouviu, o jesuíta pode ser percebido como um “homem-memória”, pode-se também dizer que o “mapa retórico” e as normativas nos revelam o processo de tradução cultural (Pompa, 2003aPOMPA, Cristina. Tradução cultural. São Paulo: Edusc, 2003a.) em curso durante a observação e a elaboração das duas obras. Em ambas, pode-se observar o que Paul Ricoeur (1997RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. t. III. Trad. Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 1997., p. 285) nos fala sobre os mundos que se entrelaçam no texto, sobre o mundo do autor e as mudanças operadas pelo leitor que toma contato com o texto. Mas isso não impede que nos textos de Mamiani se façam presentes também outras vozes, como se depreende do trecho a seguir:

Além da experiência de doze anos de língua entre os Indios, nos quaes desde o primeiro anno até o presente fui de proposito notando, reparando, e perguntado não somente para entender, e fallar doutiva, mas para saber a raiz, e com fundamento; conferi com os nossos Religiosos línguas mais antigos, e examinei Indios de diversas aldeas (...) (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., s.p.).

Antes de os estudos realizados pelo jesuíta ganharem a prensa e serem divulgados pelo Império português, o padre João de Barros já havia produzido um manuscrito, que, no entanto, não chegou a ser publicado. Na parte dedicada “Ao leytor”, do Catecismo, o padre Mamini ressalta a necessidade da publicação para o melhor conhecimento da língua, que muito favoreceria e asseguraria o êxito do processo de catequese. Segundo Serafim Leite (2003LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, v. V. Org. Cesar Augusto dos Santos. São Paulo: Loyola, 2003.), o padre João de Barros era natural de Lisboa e atuou nas aldeias de Canabrava, Saco dos Morcegos e Natuba. Ingressou na Companhia em 1654 e estudou latim no Colégio de São Paulo em 1659. Nos idos de 1667, junto com o padre Jacob Rolando, iniciaram a conversão dos Kiriri na aldeia de Natuba (Leite, 2003LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, v. V. Org. Cesar Augusto dos Santos. São Paulo: Loyola, 2003., p. 287). Contudo, de acordo com Leite (2003, p. 232), o Catálogo de 1679 faz referência a um vocabulário e um catecismo Kiriri produzido por João de Barros. Por não haver informações sobre a publicação dessa obra, é possível que os dois escritos circulassem como manuscritos à época, da mesma forma que o vocabulário produzido pelo padre Martinho de Nantes, que também não chegou a ser impresso. As redes de produção de vocabulários e catecismos foram operadas por sacerdotes de diferentes ordens e encontravam-se atreladas à funcionalidade de conhecimento dos povos que habitavam os sertões das capitanias do antigo norte.

Mamiani não descuidava, também, de enfatizar que a obra era tributária das experiências acumuladas pelos missionários da Companhia ao longo do tempo: “Há mais de vinte e cinco anos que os religiosos da Companhia desta Província do Brasil desejosos de dilatação, conforme o próprio instituto, as conquistas da fé na gentilidade Brasílica” (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., s.p.). Podemos inferir acerca dessa construção linguística feita a partir da troca entre diversos indivíduos, na qual a circulação e a vivência permitiram compreender e sistematizar o conhecimento necessário à elaboração do escrito fruto de um conjunto de práticas culturais. Outro ponto importante, já ressaltado por Bouza (2001BOUZA, Fernando. Corre manuscrito: una história cultural del Siglo de Oro. Madrid: Marcial Pons, 2001.), consiste em ponderar o papel desses manuscritos, com base nas cartas. Percebe-se que a construção desses vocábulos com gêneses das artes de língua consistia em prática recorrente. Isso aponta como a sistêmica observação e transmissão do saber por diferentes sujeitos no espaço dos sertões da América portuguesa permitiu estruturar os sons em códigos latinos de comunicação.

No entanto, nessa tarimba diária devemos ponderar que, além do círculo de religiosos que atuavam nos sertões, havia os intérpretes, que também desempenharam um papel significativo na transmissão dos ensinamentos. Desde os primórdios da colonização, os jesuítas estiveram envolvidos em projetos que facilitassem a comunicação com os índios, por meio da elaboração de catecismos ou utilizando intérpretes (Castelnau-L’Estoile, 2006CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril. Tradução de Ilka Stern Cohen. Bauru: Edusc, 2006., p. 152-153). Seus serviços, diante da importância do seu conhecimento, foram solicitados em vários momentos, principalmente diante dos conflitos. É o caso de Francisco Fernandes Preto, que viveu em São Paulo, tido como “grande língua” e que fora convocado a integrar as tropas do sertão.15 15 Carta para o sargento maior Gaspar ... mas de Brum, Bahia 22 de maio de 1651. In: Documentos Históricos. 1648-1661. v. III da série de I dos Documentos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928. p. 110-111. Outra referência é de Antonio Pereira, que na documentação aparece com a qualidade de “crioulo escravo do Padre Antonio Pereira” como um indivíduo prático no sertão e “língua”.16 16 Em 7 de dezembro de 1668, foi instituída uma portaria que determinava a prisão do dito Antônio, conforme a portaria que se passou para ser preso Antônio Crioulo escravo do padre Antônio Pereira. In: Documentos Históricos. 1648-1661. v. VII da série de V dos Documentos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1929. P. 380. Em uma epístola, Antônio Vieira apresenta os índios “Quiriri” que falavam língua distinta das conhecidas e manifesta sua preocupação com o envio de padres que não tivessem o conhecimento das línguas indígenas faladas no sertão para o trabalho nas aldeias:

Sessenta léguas desta cidade temos quatro missões de índios, não vulgares, ou gerais, como dizem os línguas, mas Tapuya, quer dizer Bárbaros, muito diferentes e de língua difícil, chamados Quiriri. O padre Aloysio Mamiani, que desconhece a língua, com um sócio, escolheu a primeira; a segunda Matheus Fallleto, a terceira José Coelho, experto da língua, sem sócio, e na quarta há o padre Nicolau Siqueira, que não conhece a língua, mas tem um sócio que ensina os mistérios da fé e funciona como intérprete.17 17 Carta do padre Antônio Vieira ao padre Geral Tirso González, Bahia, 27 de junho de 1689. Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), Bras. v. 3, n. 2, f. 267v.

Em outras cartas Vieira já relatava os “perigos” na utilização de intérpretes18 18 Veira,, Antônio. Visita, 27 apud Leite, (1945, p. 115). e descrevia que os padres precisavam conhecer as línguas dos povos, principalmente na administração dos sacramentos. Com o passar dos anos e o aprimoramento no exercício da comunicação, o combate à presença dos tradutores nas aldeias se intensificou e o discurso acerca da importância de controlar os saberes linguísticos era evidenciado.

Com frases em Kiriri e em português, Mamiani acreditava que dessa maneira o leitor poderia ter maior facilidade para aprender a língua indígena, fosse ele um padre ou qualquer outra pessoa. E esse é um ponto significativo também do texto, ou seja, a recepção, quem utilizaria esse material. Mais uma vez, o autor aponta indício acerca dos usos do impresso. Assim, o texto se apresentava sob a forma bilíngue, no intuito de favorecer o missionário que precisava aprender a língua para que pudesse se comunicar com os habitantes locais e o indivíduo que pretendia ensinar o catecismo aos seus filhos ou a escravizados, indígenas ou africanos, que falavam Kiriri ou português.

Ajuntei neste Catecismo a significação Portugueza correspondente à fraze da língua Kiriri por duas causas. A primeira, para que os novos Missionarios por essa via vendo os exemplos na língua, e o modo de falar, e assim aprender mais depressa a língua. A segunda causa he, porque se acaso este livrinho vier às maõs de quem não sabe a língua Kiriri, se aproveite tambem dele, ou para aprender os mysterios, ou para os ensinar com esse método aos filhos, escravos e outros de sua obrigação (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., p. IV).

O texto evidencia a preocupação de Mamiani com a transmissão dos ensinamentos e revela não apenas as múltiplas possibilidades de recepção da obra pelos diferentes sujeitos que a ela tinha acesso, mas, também, o papel desempenhado pelos índios na transmissão e sistematização do conhecimento linguístico. Outro aspecto que merece ser também considerado diz respeito aos diferentes atores sociais que circulavam ou conviviam com os indígenas das aldeias, como, por exemplo, os africanos escravizados. Para Russel-Wood, aliás, existe “uma área de intercâmbio que quase não provocou qualquer perturbação na superfície histórica [e é a que] diz respeito à interpenetração cultural índio-africana” (Russel-Wood, 2014RUSSEL-WOOD, John. Histórias do Atlântico português. Organização de Ângela Domingues e Denise Aparecida Soares de Moura. São Paulo: Editora da Unesp, 2014., p. 291). A historiografia cristalizou a interpretação de que o convívio entre esses grupos era controlado pelos jesuítas; todavia, deve-se pensar que, na zona de ocupação dos “caminhos de dentro”, o que imperou foi a prática da negociação e o convívio intenso entre os sujeitos, devido à proximidade das aldeias e das fazendas de gado.

A recepção pelos pares: as licenças de publicação

Essa relação com os outros religiosos e as observações feitas por eles ao texto podem ser observadas nas licenças de publicação. No Catecismo, encontramos três licenças, sendo que a primeira é assinada pelo jesuíta Antônio de Barros. Serafim Leite (2004LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus, v. VIII. Org. Cesar Augusto dos Santos. São Paulo: Loyola, 2004.) não apresenta a biografia do padre Antônio de Barros, o que dificultou a obtenção de informações sobre o período em que ele atuou junto aos Kiriri, antes do dia da assinatura da licença na aldeia de Canabrava, em 2 de maio de 1697.

Em relação aos textos das autorizações, constata-se que são muito semelhantes em sua estrutura. Primeiramente, iniciavam apresentando de quem foi a determinação para que a obra fosse avaliada, o que, no caso da primeira, ocorreu por designação do provincial da Província, padre Alexandre de Gusmão. Nas cinco linhas antes da assinatura, o padre apresentou suas justificativas e legitimou sua aptidão para realizar tal tarefa. Nessa autorização, o que chama a atenção é o fato de o jesuíta informar que “reviu” o Catecismo, o que constitui diferença em relação aos outros pareceres, completando sua observação da seguinte forma: “(...) e nele não achei cousa, que pudesse notar na composição desta língua, senão louvar em trazer a luz obra tam necessária para o bem das almas, com que poderão agora se melhor doutrinadas nos mysterios de nossa Santa Fé” (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., s.p.).

Em 27 de maio de 1697, João Matheus Falletto, que se encontrava na aldeia do Geru, missão de Nossa Senhora do Socorro, concedeu também licença para publicação da obra. O missionário entrou na Companhia em outubro de 1666, na Província de Milão. De Lisboa seguiu para o Brasil em 1681. A profissão solene ocorreu no dia 15 de agosto de 1683 na aldeia de Natuba de Nossa Senhora da Conceição. Veio a falecer, na capitania do Espírito Santo, em 20 de abril de 1730 (Leite, 2004LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus, v. VIII. Org. Cesar Augusto dos Santos. São Paulo: Loyola, 2004., p. 314). Mesmo vivendo na mesma aldeia em que padre Mamiani missionava, padre Falletto, diferentemente de Antônio de Barros, afirmou não ter tido contato com a obra antes da versão entregue para avaliação. Sabe-se, de acordo com o texto da licença, que ele viveu dezesseis anos com os povos daquela nação e devido à experiência nas aldeias do sertão poderia atestar a importância da publicação:

(...) vi declarados os mysterios de nossa Santa Fé com brevidade, & clareza accomodada à capacidade dos que se instruem; & com a propriedade da língua que se pode humanamente alcançar da pronunciação barbara, & fechada, q usam estes Indios; me parece grandemente necessário para facilitar aos Padres Missionarios a instrucção, & salvação destas almas; & como não tem cousa alguma, que seja contra nossa Santa Fé, & bons costumes, julgo que he digno de se imprimir (Mamiani, 1698MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698., s.p.).

E o terceiro a autorizar a impressão foi o provincial da Companhia, padre Alexandre de Gusmão, que a assinou no Colégio da Bahia. Padre Gusmão nasceu em Lisboa e tinha quinze anos quando chegou ao Brasil, em 1644. Dois anos depois, ingressou no colégio da Companhia no Rio de Janeiro, onde fez a profissão. Foi professor de Humanidades e responsável pela criação do Seminário de Belém, localizado em Cachoeira, no Recôncavo da Bahia. Teve uma vasta produção, com destaque para os livros: Escola de Bethlem Jesus nascido no presépio, História do Predestinado Peregrino e Arte de crear bom os filhos na idade de puericia dedicada ao menino de Belem. Foi mestre de noviços, reitor do Colégio do Espírito Santo, reitor do Colégio da Bahia e, por duas vezes, provincial.

Os textos das licenças evidenciam a importância que os padres atribuem à obra. Para o padre Antônio de Barros, o catecismo iria beneficiar as “almas, com que poderão agora ser melhor doutrinadas nos mysterios”. Para João Matheus Falletto, a obra não feria os bons costumes e só iria facilitar a instrução e a salvação das almas por parte dos missionários. Já o provincial autorizava a impressão, não pelos fins que ela iria atender, mas por ter sido avaliada e respaldada pelos outros padres especialistas na língua. Sua licença é semelhante a que foi atribuída à Arte da Língua de Angola, do padre Pedro Dias, obra que teve todas as licenças elaboradas por jesuítas que se encontravam no Colégio da Bahia.

O jesuíta Pedro Dias, tido como “apóstolo dos negros”, entrou na Companhia com 19 anos de idade, em julho de 1641, no Rio de Janeiro, onde fez o terceiro e o quarto voto (Lima, 2017LIMA, Ivana Stolze. Escravidão e comunicação no mundo atlântico: em torno da “língua de Angola”, século XVII. História Unisinos, v. 21, n. 1, p. 109-121, 2017., p. 110). Ocupou vários cargos no Império português na América, por quatro anos foi superior em Porto Seguro, em seguida exerceu o cargo de reitor de Santos, por três anos. Após esse período, foi nomeado procurador nos Engenhos de Açúcar e, posteriormente, desempenhou o cargo de superior de Olinda por seis anos (Leite, 2004LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus, v. VIII. Org. Cesar Augusto dos Santos. São Paulo: Loyola, 2004., p. 277). Durante o período em que esteve na capitania de Pernambuco, a população foi assolada por uma grave epidemia de febre amarela.19 19 Carta do padre Pedro Dias, reitor de Olinda, ao padre Antônio do Rego, assistente de Portugal em Roma. 30 de julho de 1689. Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), Bras. n. 9, p. 351-356. O possível contato com indivíduos da nação Angola, que desempenhavam as mais diferentes funções como escravizados na Bahia, contribuiu para que pudesse escrever a Arte da Língua de Angola, a qual conta com uma edição fac-similar publicada pela Biblioteca Nacional no ano de 2006. Na carta de 3 de agosto de 1694, Pedro Dias informou que estava elaborando um vocabulário português-angolano. Contudo, não há notícias de sua publicação nem do manuscrito.20 20 Carta do padre Pedro Dias ao padre Tiso González, da Bahia, 3 de agosto de 1684. Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), Bras., v. 3, n. 2, p. 337. Ao compararmos as licenças concedidas a estas duas gramáticas, constata-se que ambas receberam autorização do provincial Alexandre de Gusmão, sob os mesmos termos, sendo assinadas na mesma data, 27 de junho de 1697, apenas com a alteração do nome da obra.

Na licença concedida pelo padre João Matheus Falletto à Arte da gramática Kiriri, o padre não apenas manifestou preocupação com a utilização do texto e com a necessidade de o instrumento ser utilizado com clareza e corretamente, como também ressaltou três pontos: a experiência da missão, a dificuldade da língua e as contribuições do impresso.

(...) & nella não somente não achei cousa, que encontre à nossa Santa Fé, & bons costumes; mas pela notícia da mesma língua, que adquiri em dezaseis anos nestas mis­soens, admirei o engenho do Autor em reduzir com tal clareza, & distinção e regras certas, & próprias hua língua não só por si mesma, mas pelo modo bárbaro, & fechado, que usam os naturaes em a pronunciar, muito mais difficultosa; pelo que julgo ser obra mui necessária aos Padres Missionarios desta Nação, para alcançar com facilidade, & brevidade o uso dela, & melhor exercitar os ministérios pertencentes à sua salvação (...) (Mamiani, 1699MAMIANI, Luiz Vincêncio. A arte de lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1699., s.p.).

Trata-se, portanto, de um testemunho que expressa as funcionalidades do livro no processo de catequese do povo Kiriri. Já o padre José Coelho salientou que viveu por 19 anos junto aos índios Kiriri e que apoiava a publicação em virtude das contribuições que a Arte da gramática Kiriri proporcionaria aos missionários na “salvação daquelas almas”. Sobre o autor de uma das três licenças, o capuchinho Martinho de Nantes afirmou:

(...) flamengo de nação, distante da sua perto de doze léguas. Foi a essas duas aldeias que o padre Anastácio levou os pobres escravos que conseguira libertar do cativeiro. Esse último padre jesuíta era um homem de mérito, muito virtuoso e que tinha muito talento. Ele já me conhecia de Pernambuco e o encontrara outra vez. Deu-me o melhor acolhimento possível; prestei-lhe também um serviço considerável a respeito desses índios (Nantes, 1979NANTES, Martinho. Relação de uma missão no rio São Francisco. Tradução e comentários de Barbosa Lima Sobrinho. São Paulo: Editora Nacional, [1706]1979., p. 77).

Quanto às demais licenças de impressão das duas obras de Mamiani, a que foi dada pelo Santo Ofício foi assinada por frei Gonçalo Grato, no dia 22 de abril de 1698, a do Ordinário, pelo frei Pedro Bispo de Bona, em 2 de julho de 1698, e a do Paço, no dia seguinte, assinada por Ribeyro Oliveyra.

Há apenas uma diferença entre as autorizações. No caso da Arte da gramática Kiriri, o trâmite de solicitação foi iniciado no dia 7 de abril pelo frei Gonçalo Crato e encaminhado para mestre Francisco de Santa Maria, com a solicitação de um parecer dos “livros”. O frade autorizava a publicação em 19 de abril de 1698. Mesmo fazendo referência a livros, essa observação se encontra presente apenas nas licenças dadas para a Gramática.

Estes foram os caminhos que as obras de Mamiani percorreram, ao longo de três meses, até o momento da impressão, o que, no caso do Catecismo, ocorreu no segundo semestre do ano de 1698 e, no caso da Gramática, se deu apenas no ano seguinte. A demora na autorização, no entanto, parece ter sido também causada por fatores de outra ordem. Na Carta Ânua de 1695, o padre geral Tirso Gonsales informava que havia sido composto um catecismo para atender aos Tapuia, mas que, passado um ano, o texto ainda não havia sido enviado à Lisboa, porque o padre Mamiani havia solicitado o retorno à aldeia a fim de fazer complementações e concluir a obra.

Considerações finais

A escrita da Gramática e do Catecismo foi, como já afirmamos, a primeira experiência de autor do jesuíta italiano. Um ano após a impressão da Arte de língua Kiriri, Mamiani se voltava para outra questão, que, no entanto, não se encontrava totalmente afastada da sua vivência junto aos índios nos “caminhos de dentro”. Foi após sua visita ao Colégio de São Paulo que o jesuíta passou a se dedicar à escrita do Memorial sobre o governo temporal do Colégio de São Paulo21 21 Mamiani, Luiz Vincêncio. Memorial sobre o governo temporal do Colégio de São Paulo oferecido ao padre provincial Francisco de Matos para se propor e examinar na consulta da província e para se apresentar ao N.R.P. Geral. Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), Fondo Gesuitico, Colleg., 1588, busta 203/12, fl.39-39v. [1652-1730] 1701. (Zeron, Velloso, 2015ZERON, Carlos; VELLOSO, Gustavo. Economia cristã e religiosa política: o “Memorial sobre o governo temporal do colégio de São Paulo”, de Luigi Vincenzo Mamiani. História Unisinos, v.19, n. 2, p. 120-137, 2015., p. 136).

Ao retornar à Itália, após vinte anos de missionação na América portuguesa, Mamiani se dedicou à tradução, primeiramente, das prédicas escritas em português para o idioma de sua terra natal. Admirador da virtude e engenhosidade do padre Antônio Vieira, o que se intensificou após tê-lo conhecido pessoalmente, Mamiani traduziu também os Sermões quaresmais para o italiano (Mamiani, 1707MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698.).

Em outra de suas obras, La veritá, e l’innocenza de’ missionarj della Compagnia di Giesu, Mamiani construiu uma análise teológica pautada nos conceitos de verdade e inocência, para defender a atuação dos missionários da Companhia de Jesus na China. Esse trabalho, cabe ressaltar, tem relação com a função de procurador das missões que, posteriormente, veio a exercer em Roma (Mamiani, 1709MAMIANI, Luiz Vincêncio. Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilica da nação Kiriri. Lisboa: Deslandes, 1698.). O retorno à Itália e os ofícios aos quais Mamiani se dedicaria nos fazem lembrar das reflexões de Hartog (2004HARTOG, François. Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia Antiga. Trad. Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004., p.26), para quem uma viagem só se completa com o retorno, e que, para o viajante, o passado, suas experiências, se fazem presentes na construção de sua memória.

Ao analisar a trajetória de Mamiani é possível perceber os mundos que se entrecruzam, nas observações das práticas culturais dos Kiriri, quando elencou as proibições para definir o que é permitido, ao estabelecer formas de enterramento, controle da produção de bebidas, tratamento de doenças, formas de plantação e constituição familiar. Assim, o instrumento do controle permite uma breve fresta sobre o mundo dos povos indígenas, principalmente, quando o cotejamos com as cartas ânuas ou documentação administrativa.

Por meio das leituras que fez, é possível identificar as influências dos autores na estruturação de seus instrumentos linguísticos. Evidencia-nos a circulação de ideias ao indicar em seu catecismo que ele atende ao que havia sido proposto em bulas, mas, principalmente, quando referencia o Itinerário dos párocos de Peña Montenegro (1678PEÑA MONTENEGRO, Alonso de la. Itinerario para párrocos de indios. En Leon de Francia: A costa de Joan-Ant. Huguenta y Compañia, 1678.). Este se constitui num esforço de pensar as interferências dessas experiências de leitura na construção do texto. Da mesma forma, podemos inferir acerca da prática catequética como uma constante e a transmissão dos conhecimentos do cotidiano e da produção de conhecimento que circulou por meio da oralidade, como também como manuscritos.

As regras de impressão nos permitem acompanhar a recepção das suas obras pelos seus companheiros da ação missionária por meio das licenças. Em virtude do conjunto de regras acerca da autorização para publicação de obras, podemos inferir sobre uma rede de linguistas que, por meio da prática, aprimoraram seus conhecimentos e redefiniram o mundo da oralidade através da escrita. Outro elemento passível de análise é a recepção da obra para além da Ordem. Um texto publicado e lido do capuchinho Bernardo de Nantes justifica a publicação do seu catecismo para Kariri, visto que há poucos anos havia sido impresso outro texto (Nantes, [1709] 1896NANTES, Bernardo de. Catecismo da lingua Kariris, acrescentado de várias práticas doutrinaes e moraes, adaptadas ao gentio e capacidade dos indios do Brasil. Edição fac-similar. Leipzig: [s.n. ], [1709] 1896.). Assim, destaca os limites da obra anterior e as lacunas que seu escrito visava preencher. Desse modo, buscamos apontar os caminhos que nos permitem acompanhar a circulação de ideias, práticas e conhecimento nos sertões de dentro da América portuguesa.

Referências

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  • DAHER, Andrea. A oralidade perdida: ensaios de história das práticas letradas Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
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  • LIMA, Ivana Stolze. Escravidão e comunicação no mundo atlântico: em torno da “língua de Angola”, século XVII. História Unisinos, v. 21, n. 1, p. 109-121, 2017.
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  • MAMIANI, Luigi Vicenzo. La veritá, e l’innocenza de’ missionarj della Compagnia di Giesu’ nella Cina difesa contro un libello intitolato Apologia delle risposte date dal procuratore dell’eminentissimo signor cardinal di Tournon alli cinque memoriali del padre Provana contro le osservazioni di un’autore anonimo, Roma, 1709.
  • MAMIANI, Luigi Vicenzo. Prediche sopra gli evangelj della Quaresima del P. Antonio Vieyra Della Compagnia di Giesy Predicatore che sù di trè Rè di Portogallo: Raccolte da dodici Tomi dele sua Prediche in froma d’ un Quaresimale. Tradotte Dall’ Idioma Portoghese nell’ Italiano, ed. Oferte ala Sagra Reale Maesta di D. Giovanni V. Re” Di Portogallo & c. Dal P. Luigi Vincenzo Mamiani Della Rovere Della Compania di Giesu Parte Prima. Roma: Nella Stamperia, e Gettaria di Giorgio Placho, 1707.
  • MECENAS, Ane Luíse Silva. “O que importa para a fé e os bons costumes”: a censura e a publicação de impressos jesuíticos em Portugal (1623-1684). História, n. 36, p. 20-40, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/his/a/JvXwbKRbsQhXKVtX539Bjmx/?format=pdf⟨=pt Acesso em: 10 mar. 2021.
  • MECENAS, Ane Luíse Silva. O trato da perpétua tormenta: a conversão Kiriri nos sertões de dentro da América portuguesa Aracaju: Edise, 2020.
  • MONTEIRO, Paula. Índios e missionário no Brasil: para uma teoria da mediação cultural. In: MONTEIRO, Paula (org.). Deus na aldeia: missionário, índios e mediação cultural Rio de Janeiro: Globo, 2006. p.31-66.
  • NANTES, Bernardo de. Catecismo da lingua Kariris, acrescentado de várias práticas doutrinaes e moraes, adaptadas ao gentio e capacidade dos indios do Brasil Edição fac-similar. Leipzig: [s.n. ], [1709] 1896.
  • NANTES, Martinho. Relação de uma missão no rio São Francisco Tradução e comentários de Barbosa Lima Sobrinho. São Paulo: Editora Nacional, [1706]1979.
  • PEÑA MONTENEGRO, Alonso de la. Itinerario para párrocos de indios En Leon de Francia: A costa de Joan-Ant. Huguenta y Compañia, 1678.
  • POMPA, Cristina. Tradução cultural São Paulo: Edusc, 2003a.
  • POMPA, Cristina. Cartas do sertão: catequese entre os Kariri no século XVII. Revista Anthropológicas, ano 7, v. 14, n. 1-2, p. 7-33, 2003b.
  • PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil (1650- 1720) São Paulo: Hucitec, 2002.
  • RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo à distância São Paulo: Alameda, 2008.
  • RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa t. III. Trad. Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 1997.
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  • VALLE, Ivonne del. Escribiendo desde los márgenes: colonialismo y jesuítas en el siglo XVII México: Siglo XXI, 2009.
  • ZERON, Carlos. Da farsa à tragédia: a guerra de facções que pôs fim às esperanças de Antônio Vieira por um Quinto Império e transformou o modo de atuação dos jesuítas do Brasil. In: GALDEANO, Carla; ARTONI, Larissa Maia; AZEVEDO, Silvia Maria (org.). Bicentenário da Restauração da Companhia de Jesus (1814-2014) São Paulo: Loyola, 2017. p. 167-198.
  • ZERON, Carlos; VELLOSO, Gustavo. Economia cristã e religiosa política: o “Memorial sobre o governo temporal do colégio de São Paulo”, de Luigi Vincenzo Mamiani. História Unisinos, v.19, n. 2, p. 120-137, 2015.
  • 1
    No período em questão, Pésaro fazia parte do Reino de Nápoles, visto que a delimitação territorial atual se deu no século XIX, com a Unificação Italiana, cujos desdobramentos se estenderam até o século XX, com a Questão Romana, nos idos de 1929.
  • 2
    Após consulta à documentação, não foi possível identificar o motivo da mudança do destino do padre Mamiani. O mês de sua chegada não é apresentado nos registros. Contudo, é importante salientar que, no começo de 1684, em São Luís, estava ocorrendo o segundo levante contra a atuação dos jesuítas. No primeiro levante, em 1661, o colégio Nossa Senhora da Luz foi invadido e alguns padres foram encaminhados para a metrópole. Vinte e três anos depois, um novo conflito ocorreu na cidade, a Revolta de Beckman. Foram apresentados como motivos de insatisfação, a miséria, a cobiça dos padres da Companhia de Jesus e o não atendimento das demandas da população pela Coroa portuguesa. Ver mais em Chambouleyron (2005).
  • 3
    Regimento que levou Fernão Carrilho que foi por Capitão para fazer entrada aos mocambos de Geremoabo. In: Documentos históricos. v. IV. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1928. p. 192- 194. Portaria que levaram os Capitães Agostinho da Silva Bezerra e Matheus Fernandes que vão à entrada dos Mocambos In: Documentos históricos. v. IV. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1928. p. 409.
  • 4
    Dos registros do período colonial aos clássicos da historiografia brasileira, constata-se a simplificação da complexidade dos grupos indígenas da América portuguesa, como se pode constatar na sua divisão em dois grandes grupos: os Tupi-guarani, que viviam no litoral, e os tapuias, que habitavam o sertão. Os Kiriri foram tidos como “tapuias”, pois ocupavam o sertão do atual Ceará até a Paraíba, fazendo-se presentes também no Sul e no submédio do rio São Francisco, nos atuais estados de Alagoas, Bahia e Sergipe. Conforme Dantas (1973, p. 2), os Kiriri são “índios que formavam importante grupo linguístico cultural do Nordeste brasileiro, cujo habitat se estendia desde o Paraguassu e o rio de São Francisco até o Itapirucu, afastado da linha da costa, domínio dos povos de língua Tupi”. Maria Celestino de Almeida também faz referência ao grupo: “Do tronco linguístico macro-jê e habitantes do sertão do São Francisco, os kariris (sic) tiveram seus costumes descritos por jesuítas e capuchinhos” (Almeida, 2010, p. 32).
  • 5
    É o nome dado a região onde as missões se efetivaram no século XVII, localizada no sertão do atual estado da Bahia, nas proximidades do município de Jacobina.
  • 6
    Petição pela qual se pede a Sua Majestade terras para os índios de Natuba. In: Documentos Históricos. v. LXIV. Rio de Janeiro: Typographia Baptista de Souza, 1944. p. 65.
  • 7
    Carta de Agostinho Azevedo e Antônio Guedes de Brito a Estevão Ribeiro Baião Parente. Bahia, 25 de maio de 1677. In: Documentos Históricos. 1663-1685. v. IX. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1929. p. 41.
  • 8
    Os registros feitos da festa do Varakidran por missionários jesuítas e capuchinhos já foram analisados por historiadores como o padre Serafim Leite (1945), Beatriz Gois Dantas (1973) e Cristina Pompa (2003a).
  • 9
    Carta do padre Manuel Correia, da Baía, 1 de junho de 1683, Bras. 9f. 382-382v.
  • 10
    Carta para o padre Jacobo Cocleo. Bahia, 28 de fevereiro de 1673. In: Documentos Históricos. v. III. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1929. p. 352-353.
  • 11
    Regimento que trouxe Roque da Costa Barreto, Mestre de campo general do Estado do Brasil. 23 de janeiro de 1677. Correspondências dos Governadores Geraes. Rendimento dado ao Governador Roque Barreto. In: Documentos Históricos. 1663-1677. v. VI da série de IV. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1928. p. 317.
  • 12
    Registro do Regimento novo de Sua Alteza que trouxe em sua companhia o mestre de campo general deste Estado a cujo cargo está o governo dele para se guardar no dito Estado. Bahia, 14 de maio de 1678. In: Documentos Históricos. Livro 1.0 de Regimentos. 1653-1684. v. LXXIX. Rio de Janeiro: Tip. Baptista de Souza, 1948.
  • 13
    Carta CXII a Duarte Ribeiro de Macedo de 24 de maio de 1678, In: Documentos Históricos. Livro 1.0 de Regimentos. 1653-1684. v. LXXIX. Rio de Janeiro: Tip. Baptista de Souza, 1948. p. 278.
  • 14
    Alvará de 6 de julho de 1677. In: Collecção chronologica da legislação portugueza. Compilada e Anotada por José Justino de Andrade Silva. Suplemento à Segunda Série (conclusão) 1675-1683. Lisboa: Imprensa de F. X. de Souza, 1857. p. 167.
  • 15
    Carta para o sargento maior Gaspar ... mas de Brum, Bahia 22 de maio de 1651. In: Documentos Históricos. 1648-1661. v. III da série de I dos Documentos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928. p. 110-111.
  • 16
    Em 7 de dezembro de 1668, foi instituída uma portaria que determinava a prisão do dito Antônio, conforme a portaria que se passou para ser preso Antônio Crioulo escravo do padre Antônio Pereira. In: Documentos Históricos. 1648-1661. v. VII da série de V dos Documentos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1929. P. 380.
  • 17
    Carta do padre Antônio Vieira ao padre Geral Tirso González, Bahia, 27 de junho de 1689. Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), Bras. v. 3, n. 2, f. 267v.
  • 18
    Veira,, Antônio. Visita, 27 apud Leite, (1945, p. 115).
  • 19
    Carta do padre Pedro Dias, reitor de Olinda, ao padre Antônio do Rego, assistente de Portugal em Roma. 30 de julho de 1689. Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), Bras. n. 9, p. 351-356.
  • 20
    Carta do padre Pedro Dias ao padre Tiso González, da Bahia, 3 de agosto de 1684. Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), Bras., v. 3, n. 2, p. 337.
  • 21
    Mamiani, Luiz Vincêncio. Memorial sobre o governo temporal do Colégio de São Paulo oferecido ao padre provincial Francisco de Matos para se propor e examinar na consulta da província e para se apresentar ao N.R.P. Geral. Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), Fondo Gesuitico, Colleg., 1588, busta 203/12, fl.39-39v. [1652-1730] 1701.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2021
  • Aceito
    18 Abr 2022
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