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Os lusíadas, de Camões, e a História trágico-marítima: por uma poética do bem comum

Os lusíadas, by Camões, and the História trágico-marítima: by a poetics of the common good

Resumo:

O artigo analisa algumas manifestações da tópica do bem comum na epopeia de Camões e na História trágico-marítima, de Bernardo Gomes de Brito, com o intuito de propor uma leitura destituída de categorias anacrônicas como “oficial”, “marginal”, “eufórica”, “disfórica”, “positiva”, “negativa”, “crítica”, “acrítica”, que normalmente colocam essas duas práticas letradas como gêneros antagônicos, por supostamente sustentarem posições ideológicas distintas.

Palavras-chave:
Os lusíadas; História trágico-marítima; Bem comum

Abstract

The article analyses some manifestations of the topos of the common good in the Os lusíadas, by Camões, and in the História trágico-marítima, by Bernardo Gomes de Brito, with the aim of proposing a reading devoid of anachronistic categories such as “official”, “marginal”, “euphoric”, “dysphoric”, “positive”, “negative”, “critical”, “uncritical”. Historically, it’s not prudent put these two literate practices as antagonistic genres, supposedly sustaining different ideological positions.

Keywords:
Os lusíadas; História trágico-marítima; Common good

É muito recorrente a associação entre o gênero épico e a glorificação de Portugal, assim como é frequente conceber os relatos de naufrágio como indícios de sua ruína. Essa polarização, no entanto, impede o leitor de perceber alguns nexos entre as narrativas e torna aceitável a adoção de terminologias anacrônicas, utilizadas para caracterizar e diferenciar as “literaturas” produzidas entre os séculos XVI e XVIII, tais como: “oficial”, “marginal”, “eufórica”, “disfórica”, “positiva”, “negativa”, “crítica”, “acrítica”, dentre outras. Alguns desses conceitos afirmam um suposto posicionamento ideológico ou político; outros buscam precisar as intenções e inclinações do “autor” e/ou o teor de suas palavras; uns poucos nomeiam a “estética” à qual os textos supostamente estariam filiados.

Sobre a História trágico-marítima, de Bernardo Gomes de Brito, alguns trabalhos sugerem leituras incômodas, que podem ser resumidas utilizando o verbete sobre essa coletânea escrito por José Cândido de Oliveira Martins (2011MARTINS, José Cândido de Oliveira. História trágico-marítima (antiepopeia da decadência do Império). In: SILVA, Vítor Aguiar e(coord.). Dicionário de Luís de Camões. São Paulo: Leya, 2011, p. 410-416.). De início, o autor discorre sobre o gênero ao qual se afinam os relatos de naufrágio, entendendo-o como um misto de “crônica” e “reportagem jornalística”, de enorme circulação pela sua “vivacidade” e “dramatismo”. Integrante da “literatura de viagens”, esse gênero, marginal em relação ao “sistema literário instituído” e eivado por “uma mundividência maneirista ou mesmo barroca”, apresentar-se-ia como contrário à “ideologia das descobertas”. Martins afirma que a História britiana seria, por excelência, a “antiepopeia das descobertas”, o reverso da medalha das gestas heroicas dos portugueses. A visão crítica e antiépica dessas narrativas, portanto, aparece como reação à decadência que assolava Portugal e como fundamento de uma “literatura anti-heroica e anti-imperial”. Vislumbra-se, portanto, uma “retórica da decadência”, de tom mais realista, escuro e trágico, contraparte de uma “retórica historiográfica ou ideológica”, vertente “acrítica” de exaltação do empreendimento português.

É possível distinguir, em geral, três posturas recorrentes no que se refere aos estudos da História trágico-marítima: uma delas concebe-a como sendo um gênero novo, noticioso, marginal, híbrido, escrito com maior “liberdade” em relação aos protocolos retóricos se comparado aos gêneros “canônicos” (Lanciani, 1979LANCIANI, Giulia. Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII. Portugal: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979.; Madeira, 2005MADEIRA, Angélica. Livro dos naufrágios: ensaio sobre a História trágico-marítima. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2005.); outra costuma associar os relatos de naufrágio à estética maneirista ou barroca para justificar a presença de uma “retórica da decadência” (Custódio, 1992CUSTÓDIO, Pedro Balaus. A História trágico-marítima: do herói ao anti-herói. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade de Coimbra. Coimbra, 1992.); a última destaca seu teor “disfórico” e apreende-os como sendo a contraparte “realista” da fantasiosa “euforia” épica (Zurbach, 1996ZURBACH, Christine. História e ficção nos relatos de naufrágio: o caso da “Relação da muy notavel perda do Galeão Grande São João”. In: SEIXO, Maria Alzira; CARVALHO, Alberto(orgs.). A História trágico-marítima: análises e perspectivas. Lisboa: Cosmos , 1996, p. 209-224.; Ideias, 1996IDEIAS, José António Costa. A relação de viagem e naufrágio da nau “São Paulo”, de Henrique Dias: consagração martirológica e libelo acusatório. In: SEIXO, Maria Alzira; CARVALHO, Alberto (orgs.). A História trágico-marítima: análises e perspectivas. Lisboa: Cosmos, 1996, p. 67-92.). Sendo assim, os relatos de naufrágio são analisados (1) a partir de um suposto “realismo” e de um compromisso em noticiar sem o uso de artifícios retóricos, (2) por meio de categorias românticas que supõem termos anacrônicos como “estética”, “trauma”, “decadência”, e (3) como gênero “crítico” e, por extensão, antiépico, por supostamente ferir ou reagir à “ideologia” portuguesa tão bem empregada na epopeia lusíada e na historiografia de João de Barros, por exemplo.

Os três procedimentos supracitados partem de três equívocos que devem ser evitados: o primeiro de um conceito tortuoso de retórica e de uma leitura anacrônica do gênero histórico; o segundo busca filiar os exemplares desse gênero a movimentos literários do século XIX, como se fosse possível “ajustar” suas particularidades às teorizações românticas e psicologistas que supõem a naturalidade de categorias como “literatura”, “estética”, “pessimismo”; o último utiliza pares de conceito como “euforia/disforia”, “épico/antiépico”, “crítico/acrítico”, pressupondo uma dicotomia (uma literatura “oficial” e outra “marginal”) que dificilmente acomodaria a diversidade dos gêneros retóricos.

É recorrente a associação entre as relações de naufrágio, gênero que circulou na península ibérica ao longo dos séculos XVI e XVII, e uma faceta pessimista e/ou trágica da história, como se a narrativa dramática fosse indício ou reflexo de um momento ruinoso experienciado pelos narradores e seus contemporâneos.1 1 José Cândido de Oliveira Martins (2011) pondera sobre o contexto no qual a História trágico-marítima, de Bernardo Gomes de Brito, foi publicada e, em seguida, discorre sobre o gênero ao qual ela se articula, entendendo-o como um misto de “crônica” e “reportagem jornalística”, de enorme circulação pela sua “vivacidade” e “dramatismo”. Integrante da “literatura de viagens”, este gênero, marginal em relação ao “sistema literário instituído” e eivado por “uma mundividência maneirista ou mesmo barroca”, apresentar-se-ia como contrário à ideologia das descobertas. Martins afirma que a História britiana seria, por excelência, a “antiepopeia das descobertas”, o reverso da medalha das gestas heroicas dos portugueses nos mares. A visão crítica e antiépica, portanto, aparece como reação à decadência que assolava Portugal e como fundamento de uma “literatura anti-heroica e anti-imperial”. Vislumbra-se, portanto, uma “retórica da decadência”, de tom mais realista, escuro e trágico, contraparte de uma “retórica historiográfica ou ideológica”. Aponta-se, com igual frequência, para a existência de nexos entre a História trágico-marítima e o velho do Restelo camoniano, que supostamente seria contrário à empresa ultramarina portuguesa a ponto de a matéria da epopeia lusíada tornar-se conflitante, na medida em que o poeta teria incentivado e, ao mesmo tempo, censurado as descobertas marítimas.2 2 De acordo com José Cândido Martins (1997), as tragédias marítimas ocorridas na Carreira da Índia configuraram uma espécie de antiepopeia e o velho do Restelo camoniano proferiu dizeres contrários à política expansionista. Martins concluiu, na sequência, que “já é um lugar-comum estabelecer um confronto ideológico entre a grandeza dos feitos celebrados n’Os lusíadas e a narrativa dos infelizes sucessos contidos na História trágico-marítima” (p. 55). Os naufrágios e os incidentes ao longo da travessia, de forma geral, demarcariam o “lado negro” do desbravamento marítimo. Talvez isso tenha ajudado António José Saraiva (1980SARAIVA, António José. Luís de Camões: estudo e antologia. Lisboa: Bertrand, 1980., p. 166) a conceber a existência de um Camões “repartido em pedaços”, dominado, de um lado, por uma forte “ideologia cavaleiresca” pautada nos costumes medievais e, de outro, por uma inclinação humanista.

A proposta deste artigo é conceber a epopeia de Camões e os relatos de naufrágio como veículos promotores do bem comum, incentivando o respeito à hierarquia, à fidelidade, à caridade etc. É preciso evitar noções dicotômicas elaboradas por meio de critérios exteriores às práticas letradas, como aquelas elencadas há pouco. Embora haja diferenças entre os gêneros épico e histórico, ambos poderiam ser mobilizados para cumprir um propósito em comum, como pretendemos demonstrar ao longo deste trabalho.

O corpo místico e o bem comum

De acordo com João Adolfo Hansen (1996HANSEN, João Adolfo. Razão de Estado. In: NOVAES, Adauto. A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 135) a “razão de Estado” pressupõe uma “ligação necessária e sacralizada do Estado ao soberano”. Trata-se de um “imperativo em nome do qual, alegando o interesse público, o poder absoluto transgride o direito”. Há três argumentos que buscam fundamentar esta transgressão: “as medidas excepcionais são necessárias; um fim superior justifica os meios empregados; o segredo deve ser mantido”. Nessa direção, a “razão de Estado” seria uma “técnica de conquista, conservação e ampliação do poder” (Botero, 1997BOTERO, Giovanni. La ragion di Stato. Roma: Donzelli, [1589] 1997., p. 7), com vistas à “manutenção da unidade interna do reino, entendido como corpo de ordens e estamentos fortemente hierarquizados, garantindo sua soberania contra inimigos externos” (Hansen, 1996, p. 135-136). Não se trata de um conceito homogêneo: os debates em torno dele se deram de forma acalorada. Isso é perceptível, por exemplo, na postura assumida por juristas católicos perante as convicções de Lutero e Maquiavel.3 3 “Segundo os juristas católicos, Lutero e Maquiavel podem ser identificados porque ambos rejeitam a lei natural da Graça inata como base moral apropriada para a vida em sociedade. Ainda segundo eles — e o mesmo argumento se acha em Botero — é falsa a ideia de Maquiavel de que a finalidade primeira do poder é a conservação do Estado e de que, para tanto, é lícito usar de todos os meios, justos ou injustos, bons ou maus, como ‘razão de Estado’ definida pela necessidade, assim como é falsa a ideia de Lutero de que o homem é incapaz de distinguir o bem do mal e de que, por isso, o Príncipe governa por ‘direito divino’ para impor a lei e a ordem enquanto ‘razão de Estado’ definida como segredo inviolável” (Hansen, 1996, p. 150).

Para Antônio Vieira, a Providência divina e a prudência humana harmonizam-se na “razão de Estado”, definida como “possibilidade concreta de conciliação dos valores cristãos com a eficácia a obter-se nas operações temporais em que se joga a soberania do rei e Reino” (Pécora, 2007PÉCORA, Antonio Alcir Bernárdez. Política do céu (anti-Maquiavel). In: NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Companhia das Letras , 2007, p. 127-142., p. 191). De acordo com Alcir Pécora, a efetivação da “razão de Estado” em Vieira requer prudência, uma vez que a razão deve atender a um determinado fim valendo-se da “ocasião” adequada, que pode ser percebida através de um exame apurado das circunstâncias. A “ocasião” propícia seria o momento no qual a vontade histórica e a vontade divina se ajustam. Por outras palavras, é nesse intervalo que a “política de obras” e a “política do céu” entram em sintonia. A “razão de Estado” deve designar uma operação “que, ao admitir o justo fim, considera imediatamente quais os meios capazes de atender a ele tendo em vista o seu impacto sobre o ânimo corrompido das gentes” (Pécora, 2007AQUINO, São Tomás de. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes , 2005., p. 195). Uma finalidade jamais seria atendida em sua totalidade se os meios empregados não fossem orientados pela razão e iluminados pela Providência.

Para se pensar os pressupostos implicados nas versões católicas de “razão de Estado”, é necessário retomar a metáfora do “corpo místico”. Essa tópica foi utilizada muitas vezes por escritores e juristas da Contrarreforma, que retomavam os escritos de São Tomás de Aquino para pensar, por exemplo, os fundamentos e as características da monarquia portuguesa nos primeiros séculos da colonização. De acordo com Hansen (2006HANSEN, João Adolfo. Letras coloniais e historiografia literária. Matraga: Revista do Programa de Pós-graduação em Letras da Uerj (Rio de Janeiro). ano 13, n. 18, p. 13-44, 2006.), duas referências principais se unem na fórmula do corpo místico português: uma delas é teológica, e diz respeito à república cristã. Dentre as práticas que representa bem o aspecto corporativo da Igreja, destaca-se o sacramento da Eucaristia, através do qual a hóstia banhada em vinho consagra a comunhão do corpo e do sangue de Cristo. No momento da comunhão, todos os fiéis compartilham de um mesmo corpo e de um mesmo Pai, o que concretiza um vínculo orgânico e filial.

A outra faceta do corpo místico é jurídica e sugere a harmonia estabelecida entre a “razão política” e a “ética cristã”. Essa harmonia é referida nos estudos de Ernest Kantorowicz, que retomam o sistema teológico-político medieval, doutrina que foi apropriada para legitimar as bases monárquicas de Portugal, regulamentar sua hierarquia e justificar os atributos sacros do rei. A metáfora do corpo místico subentende a necessidade e relevância de uma hierarquia articulada com rigidez, entendida como reflexo da lei natural. O Império português seria regido pelo rei, cabeça da hierarquia política e, portanto, o responsável pela condução sadia de seu reino. Aos súditos, integrantes do corpo político e subservientes à vontade da cabeça, restaria o respeito incondicional, fator que proporcionaria o bem comum. Ora, se Cristo guia os fiéis tendo como fito a salvação dos mesmos, o rei, por analogia, orientaria os componentes do seu reino devido à autoridade sacra que detém, tornando-se o mediador entre o céu e a terra (Kantorowicz, 1998, p. 132-137). Desta forma, a subordinação implicava o bom uso do livre-arbítrio,4 4 É preciso recordar, com Castiglione (1997, p. 287), que a verdadeira liberdade não “é viver como se quer, mas viver segundo as boas leis, e é tão natural, útil e necessário obedecer quanto comandar”. Ele termina dizendo que “o corpo tem aptidão natural para obedecer à alma como o instinto a razão”. A tópica do livre-arbítrio, portanto, não se desatrela da obediência natural que lhe fundamenta. e o respeito aos superiores se tornaria legítimo porque análogo à situação cristã, marcada pela submissão do corpo de fiéis aos dogmas da Igreja católica, encabeçada por Cristo.

O rei, portanto, apresentava uma natureza dupla, ao mesmo tempo humana e sagrada. Esse revestimento místico de sua imagem política permitiria a edificação de uma ideia de “reino” que ele personificava e administrava, ainda que não pudesse frequentar toda a extensão geográfica do mesmo. Por necessidade, o sentido orgânico da sociedade de corte permitia e promovia uma distribuição das responsabilidades entre os súditos, como condição para seu bom regulamento. Como se dava, portanto, essa distribuição de tarefas e o devido ordenamento dos integrantes do reino? Como assegurar a organicidade do corpo político português? Como suprir a inevitável ausência física do rei? Questões como essas impulsionaram uma renovação historiográfica considerável nas últimas décadas que, dentre os seus vários propósitos, pretendia vencer as limitações impostas pelas análises reducionistas que, em linhas gerais, atribuíam à metrópole portuguesa a função de “centro administrativo” e às suas colônias um caráter “periférico”, assinalado pela submissão irrestrita às necessidades metropolitanas. O “pacto colonial”, sob a lente dessa inovação, fundamenta-se em práticas que ultrapassam o “exclusivo metropolitano”, que subtendia a sujeição das colônias, tomadas como polos economicamente complementares, à monarquia portuguesa, compreendida como centro de onde emanava toda e qualquer manifestação do poder.

Ao estudar os escritos jurídicos portugueses do Antigo Regime, António Manuel Hespanha insiste na inconsistência das teorias que se pautam na suposta uniformidade jurídica do Império, alegando a inexistência de um modelo político genérico que englobasse a expansão lusitana em sua totalidade. Conforme o autor, várias explicações buscaram delinear as motivações imperiais na empresa colonizadora, como o engrandecimento do rei, a expansão da fé cristã, finalidades comerciais, entre outras. Chamando a atenção para a insuficiência dessas hipóteses, Hespanha (2001, p. 169-175) nos alerta para a “pluralidade de tipos de laços políticos”, que impediam definitivamente o estabelecimento de uma regra uniforme de governo, fator este que poderia delimitar e enquadrar o alcance e as fronteiras do poderio português. Em razão disto, o autor afirma ter existido, em Portugal e em suas colônias, uma “estrutura administrativa centrífuga”, isto é, um modelo de monarquia corporativa que admitia a existência de diversas modalidades de laços políticos e de instituições de poder, que detinham certa autonomia em relação à Coroa.

Essa relativa autonomia conferida às instituições portuguesas de outrora se traduzia em uma necessidade própria do Antigo Regime, que não pretendia e nem poderia trabalhar com a simbologia da dureza e da opressão. A historiadora e antropóloga Maria Fernanda Bicalho, na esteira de Hespanha, afirma que o pacto político firmado entre o rei e seus subordinados não respeitava criteriosamente a relação mando-obediência. Muitas vezes, os reis praticavam a “liberalidade régia”, política ligada à suposta bondade do monarca para com os seus súditos que, em troca, deveriam ser obedientes. Esse procedimento reforçava os laços de solidariedade, cativando o ânimo dos súditos na medida em que se semeava honra e glória entre eles.5 5 Sugerimos a leitura de Bicalho (2005). A condução do bem comum, dessa forma, não pressuporia necessariamente um rigor coercitivo.6 6 Entendemos o conceito de reciprocidade com as limitações que lhe imputou Aristóteles, no momento em que buscou definir um patamar de ações localizadas entre a justiça e a injustiça. Para o autor, a reciprocidade não se identifica com a justiça distributiva, tampouco com a justiça corretiva. Ao contrário, ela se baseia na retribuição proporcional, o que leva em consideração as trocas e suas possíveis implicações. Ora, relendo essa assertiva, consideramos igualmente que a reciprocidade, em uma sociedade de corte, leva em consideração o desnivelamento das posições hierárquicas ocupadas, de forma que as trocas e favores são proporcionais aos lugares políticos que as partes envolvidas ocupam. Ver: Aristóteles (2009, livro V, V, p. 112-115).

No artigo “Uma leitura do Brasil Colonial: bases da materialidade e da governabilidade do Império”, João Fragoso, Maria de Fátima Gouvêa e Fernanda Bicalho desenvolveram duas categorias que são chaves de interpretação do que poderíamos chamar de “mecanismos de poder” do sistema colonial. A primeira é a “economia do bem comum”, forma de “reinvenção” do Império português com base em um sistema hierárquico excludente. Esse pressuposto se baseia numa rede de reciprocidade, num “fornecimento de serventias” regulado conforme diferentes estratégias adotadas pela sociedade colonial e suas elites. A segunda categoria é a “economia política de privilégios” que, complementando a “economia do bem comum”, baseia-se na lealdade e na vassalagem enquanto forma de “produção” de súditos ultramarinos. Trata-se da garantia dos laços de sujeição e do sentimento de pertença dos vassalos às estruturas sócio-políticas do Império. Promove-se, assim, uma aliança entre o discurso da conquista e uma lógica de caráter clientelar inscrita na economia de favores (Fragoso, Gouvêa, Bicalho, 2000HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português: revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João et al. (org.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 165-188., p. 67-88).

A legitimação da “razão de Estado”, por intermédio da metáfora do “corpo místico”, pressupõe a “pluralidade dos membros e a diversidade das funções, numa integração das partes que é ordem” (Hansen, 1996HANSEN, João Adolfo. Razão de Estado. In: NOVAES, Adauto. A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 139). Nessa direção, há pelo menos três aspectos a serem considerados: o bem comum é o fim último da “razão de Estado”; a desigualdade é natural; a obediência é pressuposto de soberania e, por isso, uma das primeiras virtudes que sustenta a “razão de Estado”, sendo requisito para a harmonia do todo social. Assim, os conceitos de razão e de ordem se justapõem: para garantir a harmonia do reino, os integrantes deveriam ordenar suas paixões e condutas para obedecer aos seus superiores, ocupando com prudência o seu devido lugar.

Contrariar as disposições hierárquicas, portanto, ocasionava discórdias, como é possível perceber no relato de naufrágio da nau São Bento. Vários homens a bordo deixaram de respeitar Fernão D’Álvares Cabral, o capitão-mor, e resolveram criar um “corpo, cuja cabeça (posto que não nestes maus ensinos) era o contramestre” (Brito, 1998BRITO, Bernardo Gomes de. História trágico-marítima. Rio de Janeiro: Lacerda, 1998., p. 54). A desobediência decorrente dessa empreitada levou o capitão a formar um conselho, para definir a melhor forma de agir perante o levante: optaram por tentar dissuadir o contramestre, “que era bom homem e sempre se mostrara seu amigo” (p. 55-56), o que funcionou, pois ele desenganou os rebelados e demonstrou grande obediência ao capitão. Mas a fortuna, que “não se contenta com pouco”, tomou a vida do capitão, que usufruiu de uma “bela morte” graças à sua prudência e conduta em geral. No entanto, era necessário rearticular o “corpo”, temporariamente apartado de sua “cabeça”.7 7 “E depois que assim estivemos juntos, vendo como para nossa salvação era necessário que fôssemos sempre unidos em um corpo, regidos por uma só pessoa, e esta jurada aos Santos Evangelhos, para que não houvesse os rebuliços que dantes havia, pusemos logo isto em obra; e como de noventa e dous homens que àquele tempo éramos por todos, setenta fossem dos do mar, todos estes juraram que Francisco Pires, o contramestre, era muito para aquilo, e que se o fizessem capitão a ele obedeceriam” (Brito, 1998, p. 57-58).

A desordem anunciada é decorrente da desarticulação do corpo. A reordenação do mesmo dependeria de sua rearticulação, agora encabeçada por um novo integrante, que ascende na hierarquia para organizar o conjunto de suas partes. Algo parecido ocorreu com os tripulantes da nau Conceição, quando o capitão Francisco Nobre fugiu com alguns de seus homens e deixou o navio à própria sorte. Como ainda restava esperança, o narrador relata que tentaram “pôr regra” nos mantimentos e escolheram novo capitão: D. Álvaro de Ataíde.

Manuel Rangel anuncia e reprova a escolha do novo capitão, mas o que interessa no episódio é a importância conferida à ordem, através da qual se poderia remediar a situação. D. Álvaro de Ataíde era “homem mancebo” e não inspirava temor, ou seja, faltava-lhe experiência e autoridade. Ele mesmo o percebeu, assumindo desde então uma postura cautelosa e defensiva, mas logo deixou o comando, alegando má disposição e enjoo. No entanto, as escolhas para capitão nem sempre eram imprudentes, como no caso da opção feita pelos tripulantes da nau São Paulo. O padre da Companhia de Jesus que viajava nessa nau, de nome Manuel Álvares, convocou a todos e, “com palavras dignas de tal varão e a tal tempo necessárias”, disse:

Caríssimos Irmãos em Cristo, trago-vos à memória aquele santo dito do Evangelho, que Omne regnum in se divisum desolabitur, e com a concórdia é tão certo que as cousas pequenas e mui mínimas se fazem muito grandes e duráveis, e com a discórdia as cousas muito grandes se desfazem e diminuem, e tornam em nada; devia-vos, Irmãos, de lembrar que todas as outras naus que se perderam no cabo de Boa Esperança, como foi o Galeão, e S. Bento, e outras muitas, uma das cousas que destruiu e totalmente matou a gente delas foi a discórdia que entre si houve, fazendo-se e dividindo-se em magotes, e entregando suas armas, e confiando-as dos inimigos de nossa santa Fé, bárbaros e cruéis e tão cobiçosos do nosso sangue. Não diminuamos nossas forças, pois virtus unita fortior est se ipsa dispersa. E pois somos próximos e todos irmãos, e de tanto tempo companheiros, em tão breve lugar, onde tantas fortunas havemos passado e corrido, penetrando a grandeza toda do oceano, com todos os perigos e tormentas quantas outros jamais sofreram. E assim espero e fio na muita misericórdia de Cristo e sua Santíssima Morte e Paixão sermos todos juntos no Céu, seus mártires e seus cavaleiros, o que aqui acabarmos, pois assim nos escolhe o Senhor para a Glória e para ele ser melhor servido e seu Santo Nome glorificado e nos pôr a salvamento em terra de cristãos, livrando-nos de nossos inimigos em seu braço forte. Pois tendo a ele por nós, Quis contra nos? É-nos, caríssimos, muito necessário e cousa importantíssima termos uma cabeça todos, de que os membros se rejam, governem e a que obedeçamos, por não sermos corpos sem almas; e para isto haver feito, eu por minha ordem e hábito, com conselho de todos os principais, olhando o que mais pertence e é proveitoso ao nosso bem comum, digo que elejamos e criemos por nosso capitão o que foi até o presente soberano para tudo, ao próprio Rui de Melo da Câmara, pois para o ser basta só ser feito da mão da Rainha, Nossa Senhora, e haver-lhe entregue ela esta sua nau e gente que ela e El-Rei seu neto, Nosso Senhor, tanto estimam e prezam, sob cuja capitania e bandeira até aqui havemos militado, e é que ele tem dado mostras de singular e humaníssimo capitão; pelo que não há ai a quem melhor se entregue, e com razão, o cargo; o que tudo, crede, nos não digo nem aconselho, senão por bem de todos e segundo minha consciência e alma e como religioso, e da Companhia de Jesus, que estimo tanto, e quero a salvação da vida e da alma do menor escravo cristão que entre nós há, como a minha própria; e já de mim deveis ter conhecido, pois de todos sou padre espiritual, se vos falarei verdade ou não, e desejarei vossa salvação; e para de todo vos tirar de má suspeita em minhas palavras, pois são puras e limpas e ditas como de pai a filho, eu vos juro, quanto a mim, e vos prometo por minhas ordens, desta ilha me não partir nunca sem todos juntos (Brito, 1998BRITO, Bernardo Gomes de. História trágico-marítima. Rio de Janeiro: Lacerda, 1998., p. 58-59).

Por se tratar da fala de um padre, é comum a presença de fragmentos do Evangelho em latim, forma de autorizar seu posicionamento com base na Sagrada Escritura. Além disso, ele assinala a importância da concórdia evocando exemplos de outros naufrágios, como os ocorridos com o Galeão São João e com o Galeão São Bento. Para a sobrevivência da tripulação, seria preciso restaurar a ordem e eleger uma “cabeça” que pudesse reger a todos. Manuel Álvares menciona os atributos do “singular e humaníssimo” Rui de Melo da Câmera, tomando-o como melhor candidato para intervir pelo “bem de todos”. Os exemplos acima reafirmam os pressupostos da razão de Estado, uma vez que as condutas das personagens propõem a centralidade da obediência e de uma hierarquia bem definida como forma de garantir o bem comum.

O respeito (ou desrespeito) à hierarquia pode ser notado também entre os deuses. Reunidos em concílio, os deuses olímpicos deliberavam sobre o destino de Vasco da Gama e de seus homens. Com entonação profética, Júpiter revela a vitória dos portugueses em sua empresa no ultramar:

Prometido lhe está do Fado eterno,

Cuja alta lei não pode ser quebrada,

Que tenham longos tempos o governo

Do mar que vê do Sol a roxa entrada.

Nas águas têm passado o duro Inverno;

A gente vem perdida e trabalhada.

Já parece bem feito que lhe seja

Mostrada a nova terra que deseja.

(Camões, 2005CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisséia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy, 2005., I, 28)

O “Fado eterno” promete que os portugueses terão o governo do mar. A conduta que lhes confere tal prestígio é contemplada e legitimada pela “alta lei”, à qual todos os eventos humanos se submetem. Essa graça, que assume diferentes conotações, será legada aos portugueses por diferentes razões: bravura, persistência, sujeição a trabalhos contínuos, dentre outras. A figura de Júpiter, com seus vaticínios e alegações, pode ser entendida a partir de algumas chaves de leitura: por ser aquele que preside o Olimpo, a autoridade de sua fala e as suas resoluções são enunciadas com dignidade, como se ele ocupasse o papel de causa segunda. Em outras palavras, as ponderações de Júpiter apresentam alegoricamente a vontade providencial. Em versos esclarecedores, Camões admite esta analogia: “E também, porque a santa providência / Que em Júpiter aqui se representa” (Camões, 2005CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisséia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy, 2005., X, 83). Por outro lado, levando-se em consideração os seus intentos, a voz do deus autoriza a fortuna favorável, pois recompensa os portugueses com bons agouros. Sua fala, portanto, mostra-se ajuizada e seus desígnios ecoam com entonação divina.

O deus Baco toma para si outra postura: sua oposição frente aos “vaticínios” que favorecem os portugueses leva-o a mobilizar um grande arsenal de infortúnios contra os nautas. Além de ser um deus pagão, Baco exerce o papel de mentor dos mouros, o que lhe rende duplo estigma - o de pagão e o de infiel - e torna suas atitudes ainda mais reprováveis. Na épica camoniana, é próprio dessa deidade agir em dissonância com os preceitos da ortodoxia cristã, utilizando-se da vaidade, do engano, da ambição. Ao contrário de Júpiter, Baco age como o antagonista da providência: aquele que trama obstinadamente as desventuras, instrui astutamente sua prole de mouros e corrobora a efetivação das peripécias.

Enquanto ornatos poéticos, Júpiter e Baco aprimoram o estilo da épica e, em consequência, deleitam os leitores; metaforicamente, ambos mobilizam, figurativamente, a boa e a má fortuna, respectivamente. Como alegorias, Júpiter remonta à vontade providencial e encabeça as hierarquias celestes. Baco, por outro lado, opõe-se às disposições hierárquicas e aos desígnios divinos, representando o antípoda de Júpiter.8 8 Sobre as possíveis leituras que se possa fazer da mitologia n’Os lusíadas, ver: Morganti (2004, p. 156-171). Essa leitura pode embasar-se, por exemplo, em uma das versões mitológicas na qual Baco fora expulso do Olimpo pela enciumada Juno, uma vez que o deus é fruto do amor proibido entre Júpiter e a mortal Sêmele. Quer se adote essa ou outra interpretação, os deuses, na ordem da épica cristã, dinamizam a narrativa e personificam o fado, a Providência, a perdição, o pecado, o bárbaro, o cristão etc.

A relutância de Baco, no que se refere às conquistas ultramarinas lusitanas, decorre de sua vaidade,9 9 A vaidade pode ser entendida como a exposição imprudente dos pensamentos. De acordo com o filósofo italiano seiscentista Torquato Accetto (2001, p. 63), “o erro que se pode cometer com o compasso que gira em torno da opinião que temos de nós mesmos costuma ser a causa de que transborde aquilo que se deve reter nos limites do peito; pois quem se estima mais do que é efetivamente, apenas fala como mestre, e, parecendo-lhe que todos os outros sejam menos que ele, faz pompa do saber e diz muitas coisas que sua boa sorte poderia ter calado”. Accetto está refletindo sobre a “dissimulação honesta”, mas podemos entender suas inferências mais amplamente, pois essa soberba e o descompasso entre o “ser” e a “imagem que o ser faz de si próprio” é amplamente prejudicial a qualquer sociedade que viva com base em disposições hierárquicas rígidas, como é o caso da monarquia portuguesa. pois ele temia ser esquecido. Temor esse que se justifica pela sua fama no Oriente, local no qual é considerado o responsável pela difusão da civilização e pelo fabrico do vinho.10 10 Ver comentários à estância 30 em: Camões (2005, p. 97). Ou seja: a glória dos portugueses, caso viessem a descobrir as rotas marítimas de acesso às Índias, ofuscaria a sua, e a memória de uma divindade olímpica sucumbiria nas águas do Letes mitológico (apresentado como “negro vaso de água do esquecimento” (Camões, 2008CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2008., I, 32) ou “rio do negro esquecimento e eterno sono” (X, 9) devido à ousadia dos mortais.11 11 Entre os gregos da Antiguidade, Letes “é uma divindade feminina que forma um par contrastante com Mnemosyne, deusa da memória e mãe das musas. Segundo a genealogia e teogonia, Lete vem da linhagem da Noite (em grego Nyx, Nox em latim), mas não posso deixar de mencionar o nome de sua mãe. É a Discórdia (em grego, Eris, em latim, Discordia) — o ponto escuro nesse parentesco”. A relação entre Mnemosyne e Letes “não configura um mito unificado da memória e do esquecimento (inexistente tanto em Hesíodo quanto em Píndaro); mas a realidade do esquecimento imbrica-se à da memória”. Ver: Weinrich (2001, p. 23-24). O poeta desacredita as crendices pagãs - ao querer lançar as memórias de Baco nos confins do esquecimento - e, ao mesmo tempo, valoriza e amplifica a memória das conquistas lusitanas. Sepulta-se, de uma só vez, um deus pagão (que representa as crenças heterodoxas) e os feitos inverossímeis (em contraposição à vivacidade e verossimilhança dos feitos portugueses).

Vênus e Marte apoiam Júpiter e defendem a vitória dos portugueses. Frente aos argumentos de ambos, o deus patrono mantém-se favorável ao sucesso lusitano e encerra o concílio, mesmo sem o consentimento do ressentido Baco. Encerrada a comitiva das deidades, o poeta se ocupa de Vasco da Gama e sua frota que, a esta altura, velejavam em algum ponto entre Madagascar e Moçambique. Gama, súdito do rei a quem a “fortuna sempre favorece”, ancora em uma ilha e se depara com os mouros pela primeira vez. O encontro, que parecia fluir bem, leva o descontente Baco a maquinar uma maneira de impedir o avanço dos heróis. Resoluto, o deus alimenta pensamentos soberbos que reafirmam o seu lugar entre as deidades olímpicas:

Está do Fado já determinado

Que tamanhas vitórias, tão famosas,

Hajam os portugueses alcançado

Das Indianas gentes belicosas.

E eu só, filho do Padre sublimado,

Com tantas qualidades generosas,

Hei de sofrer que o Fado favoreça

Outrem, por quem meu nome se escureça?

(Camões, 2005CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisséia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy, 2005., I, 74)

A vaidade é retratada como conduta vil que impede o respeito às hierarquias e, logo, a manutenção da paz pública. Na narrativa camoniana, Baco desrespeita seu pai, crime grave e passível de punição. O deus do vinho arquiteta seus pretensos enganos à revelia do poder instituído, atitude indigna e fruto da cobiça, da supervalorização das vontades particulares. Em Tomás de Aquino (2005AQUINO, São Tomás de. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes , 2005., p. 31-32), a vaidade conforma-se a uma atitude imprudente, pois se baseia na “falta de governo de si próprio” e na cega priorização do particular em detrimento do bem comum, o que incita o desrespeito às escalas superiores da hierarquia. Os pensamentos soberbos de Baco remontam às ações de Juno que, no contexto da Eneida, cogita “no íntimo do peito” os seus privilégios, uma vez que precede os imortais e é “de Jove esposa e irmã” (Virgílio, 2004VIRGÍLIO. Eneida. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes , 2004., p. 6-7). Baco se envaidece por ser “filho do Padre sublimado” e se deixa dominar pela ira e insanidade, à maneira de Juno. A postura de ambos os deuses dista em grandes proporções da de Vasco da Gama e de seus pares, apresentados como súditos fiéis ao rei:

Corrupto já e danado o mantimento,

Danoso e mau ao fraco corpo humano;

E, além disso, nenhum contentamento,

Que sequer da esperança fosse engano.

Crês tu que, se este nosso ajuntamento

De soldados não fora Lusitano,

Que durara ele tanto obediente,

Porventura, a seu Rei e a seu regente?

(Camões, 2008CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2008., V, 71)

Se, de um lado, há um deus vaidoso que facilmente desrespeita as ordens do pai/rei/deus, de outro agem os lusitanos, homens que, mesmo submetidos aos mais graves infortúnios, continuam a acatar as ordens e a respeitar a hierarquia. No primeiro caso, situa-se a corrupção do bom juízo promovida pela vaidade; no segundo, o juízo dos heróis traduzido em fidelidade. A estrofe acima afirma que a obediência é devida não somente ao rei, mas também a Vasco da Gama, aquele que representa e manifesta a vontade do rei em ocasião de sua ausência. Em outros termos, nas adjacências de sua nau, Gama é aquele que mais detém voz de comando, devido ao lugar privilegiado que ocupa na hierarquia política e por agir como instrumento do rei, que se faz presente por seu intermédio.

Se o deus Baco, por meio de uma fala vaidosa, utiliza a origem nobre como critério para justificar sua fama e contrariar a vontade providencial, Jorge d’Albuquerque Coelho assume uma postura modesta ao afirmar que os incidentes ocorridos com a nau Santo Antônio seriam devidos aos seus pecados e faltas. Em um de seus discursos, após ter passado por inúmeras provações, o protagonista admitiu a gravidade dos vários trabalhos e danos sofridos, mas utiliza este mesmo argumento para demonstrar que cada superação deveu-se à intervenção divina. Em seguida, afirma que os trabalhos e provações são mimos do Senhor, e que Ele os deixaria viver para testemunhar seus milagres. Na conclusão, além de invocar uma passagem do Evangelho, o narrador utiliza uma metonímia e uma hipérbole para arrematar a ideia nuclear de seu argumento: “Portanto, irmãos meus, postos neste estado de fé e confiança neste Senhor, esperemos que neste pedaço de pau nos livrará do profundo abismo do mar” (Brito, 1998BRITO, Bernardo Gomes de. História trágico-marítima. Rio de Janeiro: Lacerda, 1998., p. 283). A postura de Jorge d’Albuquerque Coelho não dista muito da de Vasco da Gama e contraria os argumentos de Baco. Enquanto o deus menciona sua estirpe nobre, seu poderio e seus direitos enquanto divindade do panteão grego, o heroi católico alude à sua condição de pecador, continua a cumprir com seus deveres de súdito e admite que qualquer poder provém de Deus e da sua providência.12 12 Sobre os discursos pronunciados por Jorge d’Albuquerque Coelho ao longo do relato de naufrágio da nau Santo Antônio, ver: Vitorino (1996, p. 200-207).

Na Prosopopeia, também protagonizada por Jorge de Albuquerque Coelho, o poeta lhe atribui grandes virtudes e refere a sua origem nobre:

E vós, sublime Jorge, em quem se esmalta

A estirpe d’Albuquerques excelente,

E cujo eco da fama corre e salta

Do cauro glacial à zona ardente,

Suspendei por agora a mente alta

Dos casos vários da olindesa gente,

E vereis vosso irmão e vós supremo

No valor abater Quirino e Remo.

(Teixeira, 2008TEIXEIRA, Bento. Prosopopeia. In: TEIXEIRA, Ivan(org.). Épicos: Prosopopéia / O Uraguai / Caramuru / Vila Rica / A Confederação dos Tamoios / I Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008., III)

O elogio que o poeta lhe dirige não contradiz a modéstia do herói, muito pelo contrário: reafirma suas virtudes. Quando Baco menciona suas próprias conquistas e méritos, seu discurso soa como vaidoso, sobretudo pela conduta que ele assumiu ao longo da narrativa. No caso de Jorge d’Albuquerque, suas virtudes são mencionadas pelo narrador, e não por ele próprio, o que confere aos dizeres certo grau de confiabilidade e aceitação. Por outras palavras, o decoro do discurso em homenagem a um terceiro corresponde à falta de decoro de um discurso que tem por objeto as virtudes do próprio orador que o profere. A tópica retórica mobilizada em ambos os casos é a da origem (genus), segundo a qual os filhos geralmente se assemelham aos pais e aos ancestrais. A maneira como ela foi utilizada nos exemplos referidos, contudo, causa juízos opostos: de um lado, a fama da família Albuquerque, de Pernambuco, e de outro, a infame ancestralidade das divindades pagãs.

O herói católico bem ajuizado, portanto, é aquele que prioriza o bem comum e se manifesta tal como o rei se manifestaria caso estivesse presente, utilizando de seu discernimento e ponderando bem o seu agir. Esta impossibilidade de o rei se fazer presente fisicamente e, em contrapartida, a presentificação do mesmo através da fidelidade de seus súditos é essencial para a construção da ideia política de um reino, como nos adverte Ana Paula Megiani (2004MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004., p. 16): a ordenação do reino dependeria do compromisso dos homens e de sua disposição enquanto súditos atentos e benevolentes.13 13 O jesuíta Baltasar Gracián (1998, p. 63), em suas máximas sobre a prudência, discorre sobre este bom juízo: “Nem todo mundo é rei, mas seus atos devem ter a mesma dignidade, dentro dos limites de sua esfera. Uma maneira régia de fazer as coisas: grandiosidade de ação, uma mente sublime. É preciso assemelhar-se a um rei em mérito, mesmo não sendo, pois a verdadeira soberania está na integridade dos costumes. Não teremos de invejar a grandeza se se pudermos servir-lhe de padrão. Aqueles que se encontram próximos ao trono, em especial, devem tentar assimilar um pouco da verdadeira superioridade. Procurem partilhar os dons morais da majestade, em vez da pompa, e aspirar a coisas elevadas e substanciais, em vez da vaidade tola”.

Dentre os lugares comuns presentes nessa passagem, situam-se a dignidade do agir, a importância do mérito e da integridade dos costumes e a superioridade moral (que orientam o agir) frente à pompa (aspiração de prêmios e mercês). Por outras palavras, o homem deve se espelhar em um bom rei, independente se integra ou não a realeza ou se ocupa uma posição de destaque no corpo político do Império. Como estímulo, ele deveria “aspirar a coisas elevadas e substanciais”, atento aos desígnios que partem da Providência.

Os homens que ocupam lugares privilegiados no corpo social deveriam interceder pelos seus subordinados. A importância da posição que se ocupa é proporcional à gravidade das responsabilidades adquiridas, o que faz do rei, representante de Cristo na terra, o grande responsável pela administração do Império. Nesse sentido, a vaidade é intolerável em um organismo que pretende manter sua coesão com base na prescrição de lugares hierárquicos. Ela indispõe um indivíduo contra o outro, ao mesmo tempo em que o leva a conferir primazia aos seus interesses privados. Essa atitude intensifica o seu descaso pelos seus pares e altera os seus interesses mais urgentes: a prioridade passa a ser fruto da cobiça. Torna-se latente o desejo por fama e glória, e não mais a submissão ao bem coletivo. A vaidade leva o pastor terreno a querer se igualar e substituir o verdadeiro “Pastor”, tutor das ovelhas: Cristo.

A fidelidade, que segue em direção contrária à vaidade, ajuíza os homens quanto aos caminhos retos que devem ser percorridos. Os súditos deveriam incorporar os desígnios que partiam da Coroa portuguesa, e abraçá-los independentemente da ocasião. Quando desembarca nas proximidades da cidade de Melinde, por exemplo, Vasco da Gama é bem recepcionado, mas, precavido, o herói opta por não desembarcar de imediato e envia um emissário até o rei para justificar a sua conduta:

E não cuides, ó Rei, que não saísse

O nosso Capitão esclarecido

A ver-te ou a servir-te, porque visse

Ou suspeitasse em ti peito fingido;

Mas saberás que o fez, por que comprisse

O regimento, em tudo obedecido,

De seu Rei, que lhe manda que não saia,

Deixando a frota, em nenhum porto ou praia.

E, porque é de vassalos o exercício,

Que os membros têm, regidos da cabeça,

Não quererás, pois tens de Rei o ofício,

Que ninguém a seu Rei desobedeça [...];

(Camões, 2008CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2008., II, 83-84)

Camões recorre à metáfora do corpo místico para discorrer sobre a função da “cabeça” do reino e de seus “membros”. É obrigação do súdito, portanto, cumprir o regimento que lhe compete e manter-se fiel a ele. No caso, o emissário afirma ao rei que Gama não nutria suspeitas em relação à sua boa intenção quando se recusou a desembarcar, mas o fez por respeito à cabeça do reino.

Após a deliberação do emissário, o rei de Melinde se mostra impressionado com a fidelidade de Vasco da Gama:

[...] E o Rei ilustre, o peito obediente

Dos Portugueses na alma imaginando,

Tinha por valor grande e mui subido

O do Rei que é tão longe obedecido.

(Camões, 2008CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2008., II, 85)

Apesar de desejar o desembarque imediato dos navegantes lusitanos, o rei aceita a resolução do herói, pois reconhece na postura de Vasco da Gama algo ilustre a ser preservado:

De não sair em terra toda a gente,

Por observar a usada preeminência,

Ainda que me pese estranhamente,

Em muito tenho a muita obediência.

Mas, se lho o regimento não consente,

Nem eu consentirei que a excelência

De peitos tão leais em si desfaça,

por que o meu desejo satisfaça.

(Camões, 2008CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2008., II, 87)

O rei de Melinde tem em alta estima a preeminência, ou seja, o respeito às ordens superiores. Na sua posição de rei, essa disposição de ânimo é essencial para a articulação e administração de um Império. Ele, então, age de maneira contrária à de Baco: longe de criar qualquer ressentimento contra os portugueses, ele coloca em segundo plano suas vontades e prioriza a determinação dos visitantes estrangeiros. Mais uma vez, a ausência de vaidade demonstra a boa disposição do rei, ao contrário dos mouros que, até então, haviam travado conhecimento com Gama e sua tripulação. É sobre a égide desse juízo prudente que, posteriormente, o rei mouro e o herói lusitano travariam amizade. Por outro lado, se o rei de Melinde mostra-se surpreendido, é por desígnio providencial, que ilumina seu entendimento. Nesta leitura, Vasco da Gama age como instrumento que apresenta ao infiel a verdade por intermédio da Revelação. Não por acaso, o poeta deixa transparecer a centralidade do papel desempenhado pelo rei de Melinde, referindo-se a ele como “Rei mais amigo”, “Sublime Rei”, “Rei benigno”, “Rei ilustre”, “Rei Pagão”, e “Pagão benigno”.

O bem comum é apresentado como uma meta associada aos interesses do Estado português. Ele nasceria, conforme Hansen (2002HANSEN, João Adolfo. Uma introdução. In: PÉCORA, Alcir. Poesia seiscentista: Fênix renascida & Postilhão de Apolo. São Paulo: Hedra, 2002, p. 19-71., p. 27-28), “do controle que os membros desse corpo deviam impor-se a si mesmos, reprimindo os apetites particulares, para obterem e manterem a concórdia do todo, como unidade pública da paz”. Frente a esta assertiva, deduz-se o seguinte: o todo depende de suas partes para concretizar a “unidade pública de paz”; a parte necessita conter os “apetites particulares” em prol da coletividade. Por outras palavras, a pessoa, para ser aceita e fazer parte do “corpo” em que vive, deve agir e ser o que este corpo dela espera; em contrapartida, o corpo precisa de “partes” comprometidas para proporcionar a concórdia. Ser prudente, nessa chave escolástica, significa se tornar a peça que a monarquia cristã portuguesa almeja para o quebra-cabeça do bem comum.

A conduta dos heróis afina-se à noção de prudência política adotada por Tomás de Aquino (2005AQUINO, São Tomás de. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes , 2005., p. 52-53). Trata-se de uma forma de “retidão de governo”, a partir da qual os súditos, fazendo bom uso do livre arbítrio, deveriam “dirigir-se a si mesmos na obediência aos governantes”, evitando a priorização de si em favor do bem coletivo. Nessa medida, a pessoa deve governar a si mesma e, em consequência, se deixar governar pelo rei ou superior hierárquico a quem deve serviço. Como exemplo, há um trecho de Jerusalém libertada na qual os grandes heróis cristãos se dobram perante a integridade de Godefredo:

Os mais o aprovam. Cabe-lhe o comando

E o conselho também; leis à vontade

Impor aos que se forem sujeitando;

E escolher guerra e paz em liberdade.

Os dantes seus parceiros do seu mando

Se submetem agora à autoridade.

Isto feito, voando corre a fama,

E pela voz dos homens se derrama.

Godefredo aos soldados aparece,

Que o julgam digno do supremo posto;

E as saudações que a multidão lhe tece

E o aplauso aceita plácido, composto.

Depois de tantas mostras agradece

De obediência e amor, sereno o rosto,

Decide, mal o dia vindo seja,

Que a hoste pronta em largo campo esteja.

(Tasso, 1998TASSO, Torquato. Jerusalém libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e notas de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998., I, 33-34)

Antes desta aprovação, contudo, os guerreiros cristãos ouviram uma máxima que lhes ergueu o ânimo, proferida por um ancião de nome Pedro, o Ermita:

Formai um corpo só, o qual sustenham

Todos os membros seus, como é preciso;

Um chefe nomeai-lhe; e que este o império

Exercite no sumo ministério.

(Tasso, 1998TASSO, Torquato. Jerusalém libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e notas de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998., I, 31)

É razoável supor que a conotação orgânica a que incorre tal advertência ajusta-se à metáfora do corpo místico, pois cada integrante do exército cristão deveria agir conforme autoridade do chefe que seria escolhido. É a partir desse conselho que todos optam por se submeter à Godefredo, escolhido por Deus para guiar as tropas cristãs rumo a Jerusalém. Com placidez, isto é, sem afetação ou cerimônia demasiada, o herói de bom grado acata a “obediência” e o “amor” de seus subordinados. Bela conjunção esta, que equipara a obediência à liberdade da ação reta, e o amor ao laço filial que transcende a pura serventia. O amor, certamente com conotações platônicas, investe o súdito de um ânimo que ultrapassa qualquer interesse ou vaidade. Só com amor e obediência seria possível formar o tal “corpo”, encabeçado pelo chefe, nomeado pelos súditos e escolhido por Deus.

Decerto, os súditos nada fariam caso não houvesse uma política de benefícios da qual pudessem usufruir. A fidelidade, na épica camoniana, é recompensada pela obrigação da reciprocidade, isto é, o ato de servir pressupõe certos benefícios àquele que serve, como em ocasiões nas quais o rei confia ao súdito uma grande responsabilidade. O poeta d’Os lusíadas contempla esse lugar comum, recorrendo à tópica da amizade que se estabelece entre o rei português e o nauta Vasco da Gama, no momento em que este último é designado para liderar a empresa ultramarina:

E com rogo e palavras amorosas,

Que é um mando nos Reis que a mais obriga,

Me disse: “As cousas árduas e lustrosas

Se alcançam com trabalho e com fadiga;

Faz as pessoas altas e famosas

A vida que se perde e que periga,

Que, quando ao medo infame não se rende,

Então, se menos dura, mais se estende.

Eu vos tenho entre todos escolhido

Para uma empresa, qual a vós se deve,

Trabalho ilustre, duro e esclarecido,

O que eu sei que por mi vos será leve.”

Não sofri mais, mas logo: “Ó Rei subido,

Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve,

É tão pouco por vós, que mais me pena

Ser esta vida cousa tão pequena.”

(Camões, 2005CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisséia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy, 2005., IV, 78-79)

Neste episódio, o rei D. Manuel menciona a bravura e a experiência de Vasco da Gama e, por isso, lhe concede uma missão ilustre. Antes disso, o rei disserta sobre a necessidade e o valor do “trabalho”, quando visa o bem estar geral: é essa motivação que, de fato, confere glória e fama aos homens munidos de princípios, garante o rei. Esse é um lugar comum que pode ser encontrado nos escritos de Hesíodo (2010HESÍODO. Teogonia: trabalhos e dias. Tradução de Sueli Maria de Regino. São Paulo: Martin Claret , 2010., p. 76-77), quando afirma: “A riqueza é sempre acompanhada de mérito e glória. E seja qual for a tua sorte, trabalhar é o melhor para ti”. Recorrendo ao lugar da amizade, o rei concede ao protagonista trabalho “ilustre, duro e esclarecido”. Essas instruções e o reconhecimento movem o herói que, animoso, acata as designações prontamente. Ao final, o poeta recorre à tópica da brevidade da vida, presente, por exemplo, nos textos de Homero, como no caso em que é retratado o ressentimento de Aquiles perante a sua condição de mortal. Havia uma fronteira intransponível que distinguia a condição humana da condição das divindades: o homem, na épica de Homero, apresenta vida curta, enquanto os deuses viviam eternamente. Em Camões, este lugar recobra outra dimensão: a imortalidade da alma, possibilidade cristã de salvação e vida eterna. Essa finalidade seria alcançada se o vassalo cristão se dispusesse a cumprir seu legado, definido, legitimado e sugerido pelo rei, representante de Cristo na terra e detentor de um lugar sacro e hierarquicamente sem equivalência.

O comprometimento dos súditos assegurava a possibilidade de premiações justas e dignas. A reciprocidade, nesse caso, é proporcional aos serviços prestados em favor da Coroa portuguesa, como é possível constatar no seguinte fragmento de Prosopopeia:14 14 Ver: Luz (2013, p. 121-122).

Mas quem por seus serviços bons não herda,

Desgosta de fazer coisa lustrosa,

Que a condição do rei que não é franco

O vassalo faz ser nas obras manco.

(Teixeira, 2008TEIXEIRA, Bento. Prosopopeia. In: TEIXEIRA, Ivan(org.). Épicos: Prosopopéia / O Uraguai / Caramuru / Vila Rica / A Confederação dos Tamoios / I Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008., XX)

A falta de franqueza por parte do rei que não valoriza a fidelidade de seus súditos é entendida como indecorosa, pois não cumpre com os protocolos da reciprocidade. A não premiação, nesse caso, seria um repelente contra qualquer boa vontade que pudesse partir do leitor. São prudentes aqueles que, ansiosos por ascensão social, servem ao rei; por outro lado, é prudente o rei que estimula e incentiva a boa disposição de seus subordinados. Tomás de Aquino (2005AQUINO, São Tomás de. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes , 2005., p. 51-52) fala de uma modalidade de prudência muito particular, que nomeia “prudência de reinar”, compatível com o modelo de rei justo ao qual nos referimos. Para cogitar a possibilidade de uma relação concorde, anseia-se pela manutenção de um “pacto” político, a partir do qual uma das partes se dispõe a servir perscrutando benesses e recompensas, e a outra concede honrarias diversas para, assim, obter respeito.

O pacto político, entretanto, prescreve modos de agir convenientes ao poder vigente, de tal maneira que as prioridades do monarca se confundem com as prioridades do herói anunciado. O herói personifica, assim, a vontade do rei, agindo como braço do mesmo e, inversamente, na ausência do rei, ele encabeça a hierarquia, sempre atento às prescrições reinóis, pois anseia por reconhecimento e premiações. O poeta, à sombra desse poder, dispõe lugares hierárquicos e instrui sobre a maneira prudente de agir, pois se trata de um agir subserviente à Coroa. Vislumbrar possibilidades de reciprocidade, nesse modelo de ação, é antever o que pode vir a ocorrer e perscrutar com perspicácia as boas oportunidades que, porventura, surgirem.15 15 Ver: Aquino (2005, p. 33-56).

Caberia ao rei, enquanto administrador do Império, cativar e qualificar os seus súditos e movê-los na direção que lhe convinha: já o súdito deveria ser fiel e grato ao rei:

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse

A quem ao bem comum e do seu Rei

Antepuser seu próprio interesse,

Immigo da divina e humana Lei.

Nenhum ambicioso, que quisesse

Subir a grandes cargos, cantarei,

por poder com torpes exercícios

Usar mais largamente de seus vícios;

(Camões, 2008CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2008., VII, 84)

A estrofe acima trata do súdito que quebra o “pacto”, pois retrata alguém que privilegia suas ambições e abandona o bem comum e a lealdade ao rei. Em decorrência dessa atitude, esse súdito se torna inimigo da lei divina e da lei civil. A fidelidade, portanto, é avaliada como escolha prudente e legítima. A vaidade, por outro lado, é tratada como ilegítima e própria daqueles que se encontram ou se colocam à margem do poder legitimado. Como observa Camões, a vaidade leva o indivíduo a ser inimigo da “divina” e da “humana” lei.

Referências

  • ACCETTO, Torquato. Da dissimulação honesta São Paulo: Martins Fontes, 2001.
  • AQUINO, São Tomás de. A prudência: a virtude da decisão certa Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes , 2005.
  • ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009.
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  • 1
    José Cândido de Oliveira Martins (2011) pondera sobre o contexto no qual a História trágico-marítima, de Bernardo Gomes de Brito, foi publicada e, em seguida, discorre sobre o gênero ao qual ela se articula, entendendo-o como um misto de “crônica” e “reportagem jornalística”, de enorme circulação pela sua “vivacidade” e “dramatismo”. Integrante da “literatura de viagens”, este gênero, marginal em relação ao “sistema literário instituído” e eivado por “uma mundividência maneirista ou mesmo barroca”, apresentar-se-ia como contrário à ideologia das descobertas. Martins afirma que a História britiana seria, por excelência, a “antiepopeia das descobertas”, o reverso da medalha das gestas heroicas dos portugueses nos mares. A visão crítica e antiépica, portanto, aparece como reação à decadência que assolava Portugal e como fundamento de uma “literatura anti-heroica e anti-imperial”. Vislumbra-se, portanto, uma “retórica da decadência”, de tom mais realista, escuro e trágico, contraparte de uma “retórica historiográfica ou ideológica”.
  • 2
    De acordo com José Cândido Martins (1997), as tragédias marítimas ocorridas na Carreira da Índia configuraram uma espécie de antiepopeia e o velho do Restelo camoniano proferiu dizeres contrários à política expansionista. Martins concluiu, na sequência, que “já é um lugar-comum estabelecer um confronto ideológico entre a grandeza dos feitos celebrados n’Os lusíadas e a narrativa dos infelizes sucessos contidos na História trágico-marítima” (p. 55). Os naufrágios e os incidentes ao longo da travessia, de forma geral, demarcariam o “lado negro” do desbravamento marítimo.
  • 3
    “Segundo os juristas católicos, Lutero e Maquiavel podem ser identificados porque ambos rejeitam a lei natural da Graça inata como base moral apropriada para a vida em sociedade. Ainda segundo eles — e o mesmo argumento se acha em Botero — é falsa a ideia de Maquiavel de que a finalidade primeira do poder é a conservação do Estado e de que, para tanto, é lícito usar de todos os meios, justos ou injustos, bons ou maus, como ‘razão de Estado’ definida pela necessidade, assim como é falsa a ideia de Lutero de que o homem é incapaz de distinguir o bem do mal e de que, por isso, o Príncipe governa por ‘direito divino’ para impor a lei e a ordem enquanto ‘razão de Estado’ definida como segredo inviolável” (Hansen, 1996, p. 150).
  • 4
    É preciso recordar, com Castiglione (1997, p. 287), que a verdadeira liberdade não “é viver como se quer, mas viver segundo as boas leis, e é tão natural, útil e necessário obedecer quanto comandar”. Ele termina dizendo que “o corpo tem aptidão natural para obedecer à alma como o instinto a razão”. A tópica do livre-arbítrio, portanto, não se desatrela da obediência natural que lhe fundamenta.
  • 5
    Sugerimos a leitura de Bicalho (2005).
  • 6
    Entendemos o conceito de reciprocidade com as limitações que lhe imputou Aristóteles, no momento em que buscou definir um patamar de ações localizadas entre a justiça e a injustiça. Para o autor, a reciprocidade não se identifica com a justiça distributiva, tampouco com a justiça corretiva. Ao contrário, ela se baseia na retribuição proporcional, o que leva em consideração as trocas e suas possíveis implicações. Ora, relendo essa assertiva, consideramos igualmente que a reciprocidade, em uma sociedade de corte, leva em consideração o desnivelamento das posições hierárquicas ocupadas, de forma que as trocas e favores são proporcionais aos lugares políticos que as partes envolvidas ocupam. Ver: Aristóteles (2009, livro V, V, p. 112-115).
  • 7
    “E depois que assim estivemos juntos, vendo como para nossa salvação era necessário que fôssemos sempre unidos em um corpo, regidos por uma só pessoa, e esta jurada aos Santos Evangelhos, para que não houvesse os rebuliços que dantes havia, pusemos logo isto em obra; e como de noventa e dous homens que àquele tempo éramos por todos, setenta fossem dos do mar, todos estes juraram que Francisco Pires, o contramestre, era muito para aquilo, e que se o fizessem capitão a ele obedeceriam” (Brito, 1998, p. 57-58).
  • 8
    Sobre as possíveis leituras que se possa fazer da mitologia n’Os lusíadas, ver: Morganti (2004, p. 156-171).
  • 9
    A vaidade pode ser entendida como a exposição imprudente dos pensamentos. De acordo com o filósofo italiano seiscentista Torquato Accetto (2001, p. 63), “o erro que se pode cometer com o compasso que gira em torno da opinião que temos de nós mesmos costuma ser a causa de que transborde aquilo que se deve reter nos limites do peito; pois quem se estima mais do que é efetivamente, apenas fala como mestre, e, parecendo-lhe que todos os outros sejam menos que ele, faz pompa do saber e diz muitas coisas que sua boa sorte poderia ter calado”. Accetto está refletindo sobre a “dissimulação honesta”, mas podemos entender suas inferências mais amplamente, pois essa soberba e o descompasso entre o “ser” e a “imagem que o ser faz de si próprio” é amplamente prejudicial a qualquer sociedade que viva com base em disposições hierárquicas rígidas, como é o caso da monarquia portuguesa.
  • 10
    Ver comentários à estância 30 em: Camões (2005, p. 97).
  • 11
    Entre os gregos da Antiguidade, Letes “é uma divindade feminina que forma um par contrastante com Mnemosyne, deusa da memória e mãe das musas. Segundo a genealogia e teogonia, Lete vem da linhagem da Noite (em grego Nyx, Nox em latim), mas não posso deixar de mencionar o nome de sua mãe. É a Discórdia (em grego, Eris, em latim, Discordia) — o ponto escuro nesse parentesco”. A relação entre Mnemosyne e Letes “não configura um mito unificado da memória e do esquecimento (inexistente tanto em Hesíodo quanto em Píndaro); mas a realidade do esquecimento imbrica-se à da memória”. Ver: Weinrich (2001, p. 23-24).
  • 12
    Sobre os discursos pronunciados por Jorge d’Albuquerque Coelho ao longo do relato de naufrágio da nau Santo Antônio, ver: Vitorino (1996, p. 200-207).
  • 13
    O jesuíta Baltasar Gracián (1998, p. 63), em suas máximas sobre a prudência, discorre sobre este bom juízo: “Nem todo mundo é rei, mas seus atos devem ter a mesma dignidade, dentro dos limites de sua esfera. Uma maneira régia de fazer as coisas: grandiosidade de ação, uma mente sublime. É preciso assemelhar-se a um rei em mérito, mesmo não sendo, pois a verdadeira soberania está na integridade dos costumes. Não teremos de invejar a grandeza se se pudermos servir-lhe de padrão. Aqueles que se encontram próximos ao trono, em especial, devem tentar assimilar um pouco da verdadeira superioridade. Procurem partilhar os dons morais da majestade, em vez da pompa, e aspirar a coisas elevadas e substanciais, em vez da vaidade tola”.
  • 14
    Ver: Luz (2013, p. 121-122).
  • 15
    Ver: Aquino (2005, p. 33-56).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2019
  • Aceito
    08 Abr 2019
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