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Ligações perigosas: a deterioração das relações entre os governos de João Goulart e John Kennedy no ano de 1962

Dangerous liaisons: the deterioration of the relations between the governments of João Goulart and John Kennedy in 1962

Resumo:

O ano de 1962 não tem sido tratado com a devida ênfase pela historiografia brasileira que se preocupa com o governo Goulart e o golpe de 1964. Neste artigo, descortinarei de forma mais detalhada a relação bilateral entre Brasil e Estados Unidos ao longo daquele ano, bem como demonstrarei como a posição da Política Externa Independente do governo Goulart em relação a Cuba ao longo do ano foi a causa principal do afastamento entre os países e a razão da política de desestabilização patrocinada pelos estadunidenses. Para tanto, nossos interlocutores serão a documentação oficial produzida pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, os pronunciamentos do presidente brasileiro, a grande imprensa, as cartas trocadas entre os presidentes Goulart e Kennedy e os documentos produzidos pelo governo dos Estados Unidos.

Palavras-chave:
Governo João Goulart; Crise dos Mísseis; Política Externa Independente

Abstract:

The 1962 year hasn’t been studied with emphasis by Brazilian historiography that is interested in the government of Goulart and the 1964 Brazilian coup. In this article, I am going to write the bilateral relationship between Brazil and the United States during that year. I am also going to show how the position of Goulart’s independent foreign policy (Política Externa Independente) in relation to Cuba throughout the years was the main cause of the distance between countries, and the reason for the destabilization policy supported by the USA. In order to do so, our interlocutors will be the official documentation produced by the Brazilian Ministry of Foreign Affairs, speeches given by the Brazilian president, the big press, letters between presidents Goulart and Kennedy, and documents produced by the American government.

Keywords:
Government of Goulart; Missile Crisis; Independent foreign policy

Introdução

O início dos anos 1960 representou, tanto para o Brasil quanto para os Estados Unidos da América (EUA), uma novidade na vida política. Nos Estados Unidos, depois de dois mandatos do Partido Republicano, o democrata John Fitzgerald Kennedy assumia a presidência da República em 20 de janeiro de 1961. No Brasil, onze dias depois, Jânio Quadros tomava posse, rompendo com a manutenção da aliança Partido Social Democrático-Partido Trabalhista Brasileiro (PSD-PTB), que até então vinha se mantendo no poder presidencial, e surpreendendo o país e o exterior com sua súbita renúncia em 25 de agosto.

Se ainda em seu início, no mês de abril, o governo Kennedy teve adversidades políticas em razão do apoio à invasão de Cuba no episódio da Baía dos Porcos, com a renúncia de Quadros, no Brasil, o vice-presidente João Goulart, que se encontrava na China comunista, enfrentou também complicações, porém ainda antes do início de seu governo. Quase duas semanas foi o tempo que se consumiu entre o fim do governo Quadros e o início do governo Goulart, período no qual o Brasil esteve à beira de uma guerra civil.

O dia 7 de setembro, data representativa para o Brasil, foi o escolhido para a posse de João Goulart como presidente da República, o que quase encerrou as novidades na vida política daquele ano de 1961-seu corolário se daria, indubitavelmente no caso brasileiro, com a emergência do novo regime de governo, o parlamentarismo, experiência inédita na vida republicana do país. Em teoria, Goulart seria tolhido de alguns de seus poderes presidenciais, tornando-se corresponsável pelo país juntamente com o conselho de ministros, que teve seu primeiro expoente em Tancredo Neves, membro do PSD e figura de relevo na política brasileira. Conhecido por Gabinete da União Nacional, a primeira composição do Conselho de Ministros abarcava personagens importantes dos principais partidos políticos brasileiros: PSD, PTB e União Democrática Nacional (UDN).

Parecia que tudo iria bem, mas em 1962 tudo mudou.

João Goulart visita os Estados Unidos

Aproximadamente quatros meses após a posse de João Goulart como presidente do Brasil, teve início a VIII Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, realizada em Punta del Este, no Uruguai, entre 22 e 31 de janeiro de 1962. A reunião foi convocada após um pedido da Colômbia ao Conselho da Organização dos Estados Americanos (OEA) em razão do discurso de Fidel Castro ocorrido em 2de dezembro de 1961 durante o qual o primeiro-ministro cubano se declarara marxista-leninista. A solicitação da Colômbia estava relacionada aos interesses dos Estados Unidos na Guerra Fria, que tinham como objetivo central aprovar a exclusão de Cuba da OEA e a ruptura coletiva das relações diplomáticas dos países do continente com a ilha. Contrários a essa perspectiva estavam alguns países importantes no âmbito político, como Argentina, Brasil e México. A liderança desse “grupo que discordava de medidas punitivas” era desempenhada por San Tiago Dantas, ministro das Relações Exteriores do governo Goulart (Franchini Neto, 2005FRANCHINI NETO, Hélio. A política externa independente em ação: a Conferência de Punta del Este de 1962. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v.48, n. 2, jul./dez.2005., p. 140).

Após longos debates e diversas manifestações de pressão, a reunião acabou aprovando a exclusão do governo cubano da OEA, o que deixara claro que o problema era Fidel Castro, e não seu país. O Brasil, acompanhado por Argentina, Bolívia, Chile, Equador e México, se absteve de votar pela exclusão do governo cubano, Cuba votara contra, ao passo que os demais catorze países votaram favoravelmente (Quintaneiro, 1988QUINTANEIRO, Tânia. Cuba e Brasil: da revolução ao golpe (1959-1964). Uma interpretação sobre a política externa independente. Belo Horizonte: UFMG, 1988., p. 75). Esse pode ser considerado o resultado objetivo da reunião. Subjetivamente, no entanto, a participação da delegação brasileira na VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos colocou em grande evidência a política externa do governo Goulart, denominada Política Externa Independente (PEI), tanto na esfera política interna quanto externa, contribuindo para a radicalização das posições no país e gerando insatisfação do governo Kennedy com a política exterior do governo Goulart brasileira.1 1 Paulo Vizentini, associando o resultado da VIII Reunião de Consulta com a encampação da International Telephone and Telegraph (ITT) realizada no início de fevereiro pelo governador do Rio Grande do Sul, afirma que “foi grande o impacto desses acontecimentos. Punta del Este e as encampações afetavam seriamente as relações com os EUA” (Vizentini, 1995, p. 250). Para Luiz Alberto Moniz Bandeira, “a expulsão de Cuba da OEA constituiu, no entanto, o mais importante fator de conflito entre o Brasil e os EUA” (Moniz Bandeira, 2001, p. 69). Jorge Ferreira, por sua vez, afirma que “a posição brasileira [em Punta del Este] criou tensões entre Washington e Brasília” (Ferreira, 2011, p. 272). Para melhor compreensão sobre a encampação da ITT, ver Miranda, 2006.

Mesmo assim, o Brasil era considerado um país estratégico para o bom andamento da Aliança para o Progresso.2 2 A Aliança para o Progresso era um projeto do governo Kennedy para auxiliar a América Latina que, coincidentemente, havia sido aprovado também em Punta del Este, em agosto de 1961, por todos os países latino-americanos, com exceção de Cuba, representada naquela reunião por Ernesto “Che” Guevara (Azevedo, 2007, p. 140). Em razão disso, Lucius Battle, assessor especial do Departamento de Estado, sugeriu ao departamento de Estado que “Jango fosse convidado a encontrar-se com Kennedy em Washington [...] dada a relevância de nosso êxito no Brasil para todo o programa da Aliança para o Progresso, é nosso interesse tentar convencer Goulart de que a cooperação conosco atende melhor a seu interesse a ao do Brasil” (Quintaneiro, 1988QUINTANEIRO, Tânia. Cuba e Brasil: da revolução ao golpe (1959-1964). Uma interpretação sobre a política externa independente. Belo Horizonte: UFMG, 1988., p. 82).

Em sua visita aos Estados Unidos, Goulart fora recebido pelo presidente John Kennedy em Washington, cidade em que discursou na OEA e no Congresso estadunidense. Em Nova York, esteve na Organização das Nações Unidas (ONU), onde concedeu entrevista coletiva à imprensa. Já em Omaha, visitou o Comando Aéreo Estratégico de Defesa dos Estados Unidos.3 3 BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do presidente João Goulart aos Estados Unidos da América e ao México.Rio de Janeiro: Seção de Publicações do MRE, 1962, p. 5.

Após dois encontros com o presidente John Kennedy, um comunicado conjunto dos presidentes dos Estados Unidos do Brasil e dos Estados Unidos da América foi divulgado à imprensa. Nessa declaração, era enfatizado que as reuniões entre os dois líderes se desenvolveram em um “espírito de franqueza, cordialidade e compreensão mútua” (Idem, p. 33).

Nesse mesmo sentido, era destacado

que a tradicional amizade entre o Brasil e os Estados Unidos tem prosperado através dos anos como uma consequência da fidelidade do povo brasileiro e do povo norte-americano aos ideias comuns da democracia representativa e do progresso social, ao respeito mútuo entre as nações e à determinação de ambos os Governos a trabalharem juntos pela causa da paz e da liberdade (Idem).

Portanto, temas que se mostravam importantes aos dois países estavam presentes na declaração, como o respeito à democracia, a busca pelo desenvolvimento social e a defesa da paz. Isso gerava uma ideia de aproximação entre os dois países e também entre seus dois presidentes. Além disso, houve espaço na declaração para a “democracia política, a independência e a autodeterminação nacional, a liberdade individual” (Idem), como princípios políticos que ambas as nações comungariam. Dessa forma, valores muito caros a esses governos estavam presentes. Sem mencionar Cuba ou a VIII Reunião de Consulta, aparecia o princípio de autodeterminação - um dos princípios basilares da PEI -, o que representava que o governo brasileiro não recuara em sua política externa. Ao mesmo tempo, as noções de democracia política e liberdade individual, extremamente caras ao governo dos Estados Unidos, também representavam que aquele país não retrocedera em relação ao seu entendimento a respeito de Cuba.

Na OEA, o presidente Goulart enfatizara o princípio da PEI consoante à autodeterminação dos povos: o de não-intervenção. Se tomara cuidado para não mencionar esse aspecto fundamental de sua política externa no comunicado conjunto com o presidente Kennedy, na OEA - mesmo que também sem fazer referência direta ao problema cubano - Goulart assim se manifestou:

A força e o prestígio desta Organização repousam sobretudo em princípios que constituem a razão mesma de sua existência e dos quais ela não poderá jamais se afastar sem se trair. Só o respeito de todos à soberania de cada um pode associar dignamente Estados livres e independentes. O princípio que rege, acima de todos, a nossa convivência e que torna possível a nossa unidade, é o princípio da não-intervenção. [...] A criação da Organização dos Estados Americanos representa, portanto, o reconhecimento formal por parte de todos os governos que a integram de que a cooperação entre Estados soberanos, por mais íntima que seja, não dá o direito a nenhum deles, nem mesmo à Organização que compõem, de atuar em terreno reservado exclusivamente à soberania interna das nações.4 4 BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do presidente João Goulart aos Estados Unidos da América e ao México, p. 11-12. Grifos meus.

O presidente brasileiro marcava, assim, posição dentro do hemisfério e projetava sua política externa aos demais países do continente por intermédio da OEA como caixa de ressonância. Para os setores que habitualmente apoiavam seu governo, demonstrava força e protagonismo do Brasil no exterior.

Apesar de os resultados financeiros da viagem aos Estados Unidos terem sido insuficientes - algo em torno de 30 milhões de dólares (Idem) -, em termos políticos parecem ter sido benéficos para o governo. Uma publicação oficial do Itamaraty demonstra a repercussão da viagem nos principais jornais do país: Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Jornal, Diário Carioca, O Globo, Diário de Notícias, Jornal do Comércio, Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo, Última Hora (Idem, p. 63-193).Na grande maioria das matérias - inclusive em muitas de O Estado de São Paulo, sistemático opositor do governo- se observam o apoio e o contentamento com a postura exercida pelo presidente brasileiro nos Estados Unidos.

Ao regressar para o Brasil depois de ter se encontrado com o presidente do México, Adolfo López Mateos, João Goulart foi recebido em um clima muito positivo. Afinal, era o presidente brasileiro que conversara de igual para igual com o presidente dos Estados Unidos, que naquele momento ainda contava com grande admiração tanto em seu país quanto no Brasil.5 5 Até então, a única ação que desabonava a imagem de Kennedy era sua participação nos episódios da Baía dos Porcos. Ele era tido como um jovem, idealista e competente líder político de ideias progressistas, tais quais a Aliança para o Progresso e sua política para os direitos civis em seu país. Sua verdadeira política para Cuba, a máfia orbitando que orbitava seu governo, as denúncias a respeito de sua eleição e sua participação na política para o Vietnã seriam de conhecimento público apenas na década seguinte ao seu assassinato, em especial a partir de 1975, quando foi instaurada a Comissão Church —cujo presidente era o senador Frank Church—no Senado para investigar ações da Central Intelligency Agency [CIA, Agência de Inteligência Norte-Americana] (Hersh, 1998, p. 194-210). No jornal O Estado de São Paulo foi publicado um telegrama de Kennedy para Goulart que colaboraria ainda mais para o clima de boas relações:

Em nome do povo dos EUA e no meu próprio nome, apresento-lhe os votos mais cordiais de um retorno feliz e seguro ao seu País. Nós e nossos povos nos tornamos melhores amigos e vizinhos em virtude de sua visita. Essa visita fortaleceu nos Estados Unidos a consciência da fidelidade inabalável do Brasil aos princípios da liberdade e da sua dedicação aos ideais da democracia, do progresso econômico e da justiça social. Antevejo com prazer encontrá-lo novamente quando de minha visita ao seu País ainda este ano.6 6 BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do presidente João Goulart aos Estados Unidos da América e ao México, p. 125.

Uma mensagem desse teor colaborava bastante para que os setores portadores de uma cultura política mais afinada com os valores dos Estados Unidos se tranquilizassem em relação ao governo do Brasil. Some-se a isso o fato de o Partido Comunista Brasileiro (PCB) ter criticado duramente Goulart pela visita, o que demonstrava que “não havia fundamento para acusar de comunista um presidente recebido como aliado pelo governo dos Estados Unidos - e repudiado pelos comunistas brasileiros” (Ferreira e Gomes, 2014FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964:o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2014., p. 100). Parecia uma grande vitória do governo Goulart.

As eleições de outubro de 1962 e a ausência de Kennedy

A visita do presidente dos Estados Unidos era esperada para breve, já no mês de julho, mesma época em que o secretário-geral da ONU, Tray Sithu U-Thant, estivera no país e fora recepcionado com as devidas honrarias por Goulart (Franco, 1968FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Planalto: memórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968., p. 244). O primeiro-ministro era Brochado da Rocha, e o governo Goulart começava a se preparar paras as eleições de outubro e acreditava que a presença do presidente norte-americano seria importante para obter bons resultados no pleito, pois a campanha de desestabilização política do governo já vinha em desenvolvimento, principalmente por meio do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipes) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad). O que o governo Goulart não sabia, entretanto, era que muito do financiamento desses órgãos provinha de dinheiro do governo dos Estados Unidos. Carlos Fico (2008FICO, Carlos. O Grande Irmão:da operação Brother Sam aos anos de chumbo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2008., p. 75-76) traz a dimensão dessa campanha de desestabilização:

Além de tudo isso, nunca houve na história brasileira um presidente da República que tenha enfrentado uma campanha externa de desestabilização tão grande como Goulart: “a campanha de Kennedy contra [Fidel] Castro, [João] Goulart e [o premiê da Guiana Inglesa, Cheddi] Jagan não teve precedente na história das relações interamericanas”. [...] Ou seja, podemos comprovar amplamente que uma enorme campanha de desestabilização foi patrocinada, desde, pelo menos, 1962, por organizações brasileiras e norte-americanas (sobretudo o USIS, o serviço de informações, mas outras agências Estados Unidos também atuaram).

O governo brasileiro investia bastante nos bons resultados da eleição de outubro. A estratégia consistia em conquistar a maioria na Câmara dos Deputados, de modo a obter melhores condições para aprovar as Reformas de Base. Pelo menos desde 1º de maio, em seu pronunciamento em Volta Redonda, Goulart já mencionava a necessidade de “reformas - que o povo se habituou a identificar como reformas de base”.7 7 Discurso de Goulart durante comemorações do Dia do Trabalho em 1º de maio de 1962.In: FICO, Carlos, 2014, p. 243. Nesse momento, destacava a importância da eleição de 7 de outubro, propondo, inclusive, que o pleito se destinasse à escolha de membros de uma Assembleia Constituinte para que as reformas pudessem ser realizadas:

Muitas dessas reformas dependem de leis ordinárias, mas muitas delas só poderão ser alcançadas se antes se reformar parcialmente a Constituição de 1946. Não poderíamos, sem reforma constitucional, defender a ordem econômica contra certos abusos que comprometem o verdadeiro interesse nacional. Se o atual Congresso entende que não é possível, de parte da sua última reunião legislativa, realizar a reforma constitucional, que normalmente demanda o tempo de duas sessões, estará ao seu alcance um gesto de sabedoria política, de caráter eminentemente popular, tomar a iniciativa de outorgar, aos mandatários que a Nação vai eleger a 7 de outubro, poderes que lhes permitam promover esta reforma. [...] Antevendo, por isso, a possibilidade de serem atribuídos poderes constitucionais ao novo Congresso, sinto que, tomada esta patriótica atitude pelos legisladores desta atual legislatura, encontraremos o caminho certo de uma eleição decisiva para os destinos do país e acredito que através dela vamos chegar às reformas tão ansiosamente reclamadas, já não só pelos trabalhadores, mas por todos os setores da vida nacional (Idem, p. 244-245).

Em razão dessa “eleição decisiva para os destinos do país”, a presença do “reverenciado, nos EUA e também no Brasil, John Kennedy” (Azevedo, 2007AZEVEDO, Cecília. Em nome da América: os Corpos da Paz no Brasil. São Paulo: Alameda, 2007., p. 158), era importante, pois reforçaria um afiançamento do governo Goulart com setores mais vinculados ao governo dos Estados Unidos. Kennedy, porém, entendia isso muito bem e não estava disposto a colaborar com o sucesso de Goulart:

Foi no contexto da campanha para as eleições parlamentares de 1962 que a intervenção norte-americana no processo político brasileiro intensificou-se, ultrapassando, em muito, os níveis “normais” de propaganda ideológica que os Estados Unidos habitualmente faziam em qualquer país, enaltecendo os costumes norte-americanos e defendendo o capitalismo contra o comunismo. O próprio embaixador Lincoln Gordon confessou que foram gastos, pelo menos, US$ 5 milhões de dólares para financiar a campanha eleitoral dos candidatos favoráveis à política norte-americana e opositores de Goulart. Naturalmente, a autorização para tal intervenção foi dada pelo presidente Kennedy (Fico, 2008FICO, Carlos. Além do golpe:versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2014., p. 77. Grifos meus).

Essa outra instituição, o IBAD, atuava diretamente sob a direção da CIA, que a financiava, utilizando como seu agente um certo Ivan Hasslocher. Ela mantinha íntima conexão com uma empresa de publicidade - S.A. Incrementadora de Vendas Promotion - e, embora fundada em 1959, suas atividades somente se intensificaram a partir da posse de Goulart na Presidência da República. Em 1962, com a criação da Ação Democrática Popular (ADEP), o IBAD interveio abertamente na campanha eleitoral, subvencionando candidaturas de elementos direitistas, que assumiam o compromisso ideológico de defender o capital estrangeiro e condenar a reforma agrária bem como a política externa independente do governo brasileiro (Moniz Bandeira, 2001MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O Governo João Goulart -As lutas sociais no Brasil 1961-1964. 7ª ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro: Revan, 2001., p. 83. Grifos meus).

Além desse apoio ilegal aos candidatos de oposição ao governo Goulart e sua Política Externa Independente (PEI), Kennedy resolvera adiar sua vinda ao Brasil para depois das eleições. Seu objetivo era impedir que Goulart obtivesse ganhos eleitorais com sua presença, concordando com a “preocupação de Gordon de que a vinda de Kennedy, tão popular entre os brasileiros, mesmo favorecendo a imagem dos EUA, pudesse beneficiar Goulart, que insistia para que ela se realizasse” (Azevedo, 2007AZEVEDO, Cecília. Em nome da América: os Corpos da Paz no Brasil. São Paulo: Alameda, 2007., p. 161).

Não restara saída a Goulart, portanto, senão divulgar que a visita do presidente dos Estados Unidos fora adiada para 12 de novembro, ante a justificativa da realização das eleições nos dois países e de problemas internos de Kennedy:

Depois de um entendimento pessoal que chegaram através de conversa telefônica direta, seguida da vinda ao Brasil de Pierre Salinger, Secretário de Imprensa da Casa Branca, os Presidentes Goulart do Brasil e Kennedy dos Estados Unidos concordaram que a visita ao Brasil do Presidente e Senhora Kennedy deverá ser adiada até dia 12 de novembro próximo. Esse adiamento se deve ao fato de que nos dois países se realizarão eleições para o Congresso em um futuro próximo, no Brasil em sete de outubro e nos Estados Unidos em seis de novembro. Acresce ainda que problemas que estão surgindo em Washington durante o período final da sessão do Congresso exigem a atenção especial do Presidente Kennedy. Nestas circunstâncias considerou-se desejável marcar nova data para a visita, imediatamente após essas eleições. Tanto o Presidente Goulart como o Presidente Kennedy declararam lamenta esse adiamento temporário, tendo ambos expressado satisfação e prazer que a visita se realize daqui apenas quatro meses.8 8 Despacho telegráfico para a embaixada em Washington. Num. 440. URGENTE. Assunto: Visita do Presidente Kennedy ao Brasil. Data: 12 de julho de 1962. Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores (AHMRE), Palácio do Itamaraty. Brasília/DF.

Às vésperas da eleição de 7 de outubro, a visita do norte-americano voltava a ser notícia no país. Dessa vez, porém, se estabelecia uma associação entre ele e o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, o principal opositor de Goulart, enfatizando-se que os dois poderiam realizar um novo encontro, dado que já haviam conversado na Casa Branca em 1961. O Estado de São Paulo, em 4 de outubro de 1962, noticiou: “Recorda-se que o presidente Kennedy, na ocasião, quebrou o protocolo da Casa Branca, ultrapassando em mais de 50 minutos a palestra que manteve com o governador da Guanabara, na presença de seus principais assessores e do embaixador Roberto Campos.”

Politicamente, procurava-se criar uma aproximação pública entre Kennedy e Lacerda. Com isso, nesse contexto pré-eleitoral imediato, objetivava-se fragilizar a noção de proximidade entre o Goulart e o norte-americano, tão desejada pelo brasileiro naquele momento. Além disso, a Guanabara era, junto com alguns estados do Nordeste, grande beneficiário dos recursos da Aliança para o Progresso, dentro da estratégia para desestabilizar Goulart.

O governo, no entanto, parecia ainda acreditar que os Estados Unidos buscavam uma relação de proximidade com o Brasil, subestimando que naquele momento ocorria em Washington a reunião informal dos chanceleres e que a posição defendida pelo governo brasileiro não era a esperada pelos ianques.

No mesmo dia da eleição, em 7 de outubro, o representante do Brasil na ONU - e que também representou o país na reunião informal de chanceleres -, senador Afonso Arinos de Melo Franco, enviava um telegrama destinado a Goulart e ao primeiro-ministro, Hermes Lima. Na mensagem, trazia uma informação que até então era totalmente inesperada: “Soube, por fonte absolutamente idônea, que Stevenson informa haver dúvidas, em Washington, sobre a visita do Presidente Kennedy ao Brasil. Segundo ele, o assunto ‘estaria sendo examinado’. Referiu-se à situação do comunismo integrado na posição do Governador Brizola e na questão de Cuba”.9 9 Telegrama da Delegação do Brasil na ONU. Num. 44. SECRETO. URGENTE. Assunto: Visita do Presidente Kennedy ao Brasil. Data: 7 de outubro de 1962.

A notícia era tão inesperada que o próprio Arinos descrevia no telegrama sua surpresa e alguma dúvida a respeito da informação: “Parece-me notável essa conversa de Stevenson porque, em Washington, soube que o Protocolo do Departamento de Estado informava esta sendo preparado o programa e circula a notícia de que Salinger estava no Brasil examinando os pormenores da viagem” (Idem).

Se antes Goulart desconsiderava o impacto que a posição do Brasil na reunião Informal de chanceleres, a partir do aviso de Arinos, que ressaltava com clareza a questão de Cuba como uma das causas, o Itamaraty passaria a acompanhar a situação com mais atenção. Para tanto, enviara um telegrama ao embaixador Roberto Campos, em Washington, mencionando haver conhecimento de notícias a respeito da possibilidade de Kennedy considerar “um novo adiamento para a sua projetada visita ao Brasil”10 10 Despacho telegráfico para a embaixada em Washington. Num. 538. SECRETO. Assunto: Visita do presidente Kennedy. Data: 10 de outubro de 1962. e solicitava que o embaixador realizasse gestões “cercadas de grande cautela e discrição”, no sentido de “evitar que venha a concretizar-se uma decisão cujo efeito traria sérios embaraços ao fortalecimento das boas relações entre os dois países” (Idem).

O governo brasileiro instruía Campos a mencionar o “aspecto crescente da estabilidade da presente administração” e o sucesso na consecução das eleições do dia 7, além de enfatizar que o país é o “exemplo mais frisante do respeito às liberdades públicas e de obediência à ordem constitucional” (Idem), como forma de convencimento para a manutenção da visita de John Kennedy.

Como última cartada, autorizava Roberto Campos o embaixador a mencionar os seguintes aspectos:

A visita do Presidente Kennedy na data fixada viria a dar uma demonstração prática para todo o hemisfério do desejo que tem este país de ver consolidado o regime democrático nas Américas e contribuiria para criar no Brasil um clima extremamente favorável para a solução de vários problemas pendentes ainda entre os dois países (Idem).

Mesmo tendo obtido bons resultados na eleição, o governo brasileiro sentia a forte campanha de desestabilização a que vinha sendo submetido nos últimos meses. Goulart acreditava que a presença de Kennedy no Brasil lhe conferiria maior tranquilidade política e entendia que um novo adiamento da visita representaria um desgaste a mais. Na tentativa de evitar isso, ofereceu o que podia: a reafirmação do compromisso do Brasil com a democracia- o que seria uma forma de amenizar a questão de Cuba - e a solução de vários problemas pendentes entre os dois países, que passava inequivocamente pela questão das encampações de empresas de capital estadunidense no país.

A justificativa é a Crise dos Mísseis

Em 15 de outubro, sancionou-se a visita do norte-americano. Campos relatava ter feito gestões diretamente ao vice-presidente, Lyndon Johnson, em sua estância no Texas que teria ratificado as “fontes governamentais em diversos níveis em Washington, que confirmam que todos os preparativos estão sendo feitos para que a viagem presidencial se realize a doze de novembro, indicando, sem sombra de dúvida, que a data fixada é final”.11 11 Telegrama da embaixada em Washington. Num. 743. SECRETO. Assunto: Visita do presidente Kennedy ao Brasil. Data: 15 de outubro de 1962.

Além disso, Campos comunicava que partiam nessa data para o Brasil “um grupo de cerca de trinta funcionários civis e militares, chefiado por Ralph Dungan, assistente especial do Presidente, a fim de assentar as medidas preparatórias” (Idem). Kennedy queria se encontrar com Goulart, mas também com os governadores Carvalho Pinto, de São Paulo, Carlos Lacerda, do Rio de Janeiro, e Aluísio Alves, do Rio Grande do Norte. A razão do encontro com os dois últimos era assinar convênios para liberar recursos para programas da Aliança para o Progresso.12 12 O Estado de São Paulo, 14 de outubro de 1962, p. 8. BSF. Brasília/DF. Também estava sendo programada uma visita de Jacqueline Kennedy ao bairro Aliança, onde o estado da Guanabara “constrói casas para favelados com recursos da Aliança para o Progresso”. O Estado de São Paulo, 21 de outubro de 1962, p. 7.

Até então, Washington não fora notificada sobre a existência de mísseis soviéticos em Cuba, algo de que só tomaria conhecimento na manhã de 16 de outubro. Portanto, mesmo descontente com a posição defendida pelo Brasil na reunião informal de chanceleres, Kennedy ainda pretendia vir ao Brasil conferenciar com Goulart. Uma das razões para isso pode ser depreendida a partir do encontro realizado em 17 de outubro, entre o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, e Goulart, para tratar da visita de Kennedy ao país. Nessa ocasião, teria sido anunciado pelo porta-voz da presidência da República que, “entre os assuntos, deverá figurar o da encampação das empresas norte-americanas concessionários de serviços de utilidade pública no Brasil”.13 13 O Estado de São Paulo, 18 de outubro de 1962, contracapa.

A programação de Kennedy no Brasil foi tornada pública em 19 de outubro, data na qual o estadunidense já tomara conhecimento da existência dos mísseis soviéticos em Cuba. Sua recepção seria realizada dia 12 de novembro, em Brasília, onde teria o primeiro encontro com o presidente brasileiro e discursaria no Congresso Nacional, ficando hospedado no Palácio da Alvorada. No dia seguinte, o estadunidense passaria por São Paulo e pela Guanabara para encontros com os governadores. No dia 14 iria para Natal, onde “deverá firmar acordo com o governador Aluísio Alves, pelo qual o Rio Grande do Norte receberá 3.600.000 dólares da Aliança para o Progresso”, e depois retornar para seu país.14 14 O Estado de São Paulo, 19 de outubro de 1962, contracapa. Era anunciado também que, em 11 de novembro, chegaria a comitiva do presidente dos Estados Unidos, composta de 110 assessores e seguranças, além de 80 jornalistas, e que Kennedy gostaria de se encontrar com Pelé e Garrincha, “de quem era entusiasta” em razão da “conquista do Bicampeonato Mundial de Futebol pelo Brasil”.15 15 O Estado de São Paulo, 21 de outubro de 1962, p. 7.

Na noite de 22 de outubro, Kennedy realizou um pronunciamento na televisão anunciando que a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) estava instalando armamentos nucleares em Cuba e que seu país reagiria a essas ações. Apesar disso, no dia seguinte, o secretário de Imprensa dos Estados Unidos, Pierre Salinger, em resposta aos questionamentos sobre a crise com Cuba e seus desdobramentos, afirmava “que não foram alterados os planos para a visita do presidente Kennedy ao Brasil de 12 a 14 de novembro”.16 16 O Estado de São Paulo, 24 de outubro de 1962, contracapa. No mesmo dia, o primeiro-ministro Hermes Lima, perguntado sobre o assunto, afirmara “que, até ontem, o Governo não recebera informe algum de Washington sobre um possível adiamento ou suspensão da viagem do presidente norte-americano” (Idem).

Entretanto, já no dia seguinte, a situação fora modificada. Salinger já não mais afirmava que a viagem se realizaria nas datas programadas e declarara que, “embora os planos de viagem do presidente não tenham sido modificados até agora, todas as suas viagens vão ser examinadas tendo em vista a presente situação internacional”, sendo “possível que ocorram fatores suscetíveis de modificar esses planos”.17 17 O Estado de São Paulo, 25 de outubro de 1962, contracapa. Muito bem-informado, o jornal O Estado de São Paulo noticiava que “cerca das 21 horas chegavam ao Itamaraty as notícias - não oficiais - do reexame das atividades de Kennedy até o fim do ano, diante dos problemas surgidos com a crise cubana” (Idem).

Um dia depois, em Washington, a Casa Branca alertava que, “devido à tensão internacional, foi anulada a visita oficial do presidente Kennedy ao Brasil”.18 18 O Estado de São Paulo, 26 de outubro de 1962, contracapa. Também era mencionado que Gordon “entregou hoje ao sr. João Goulart carta do presidente dos Estados Unidos, informando-o de que precisou adiar a visita que faria ao Brasil em 12 de novembro deste ano, prometendo marcar nova data em janeiro de 1963” (Idem).

Nessa correspondência, Kennedy lamentava, juntamente com a esposa, ter sido obrigado a adiar a visita e afirmava que envidara esforços para que pudesse vir ao país em novembro. Contudo, dizia que isso não seria possível e justificava sua nova ausência da seguinte maneira: “Infelizmente, o recente desafio à paz e à segurança deste Hemisfério, apresentado pelo evento do poderio militar soviético em Cuba, exige minha presença nos Estados Unidos e força-me a solicitar a sua aquiescência a um novo adiamento da nossa vista ao Brasil”.19 19 Carta de Kennedy a Goulart. O Estado de São Paulo, 27 de outubro de 1962, contracapa. BSF. Brasília/DF.

No mesmo dia, Goulart respondia à carta de seu homólogo estadunidense. Aludindo às causas apresentadas por Kennedy, dissera: “Reconhecendo que a gravidade da conjuntura não lhe permite outra alternativa, só me cabe dizer-lhe que minha esposa e eu fazemos sinceros votos para que, o mais depressa possível, cessem os motivos que estão determinando o adiamento da visita de v. exa. e da sra. Kennedy ao nosso país” (Idem).

Se investigarmos mais a fundo, porém, podemos nos aproximar de uma outra situação, que acreditamos estar mais de acordo com o que de fato se passara. O presidente John Kennedy, com certeza, já sabia da existência do armamento nuclear soviético em Cuba desde a manhã de 16 de outubro.20 20 A CIA obteve prova fotográfica de uma instalação de mísseis balísticos soviéticos em Cuba a partir do voo do U-2 espião. McGeorge Bundy, conselheiro especial de Segurança Nacional, foi notificado sobre a descoberta na noite de 15 de outubro e resolveu comunicar a Kennedy na manhã seguinte, sob a explicação de que o presidente passara o dia anterior em campanha e, estava muito esgotado e que uma boa noite de sono seria a melhor preparação de que alguém poderia dispor para enfrentar o problema nos dias seguintes (Hersh, 1998, p. 363). No dia 22, anunciara ao seu país e ao mundo o que estava acontecendo na ilha caribenha. Até então, manteve todos os procedimentos para a viagem ao Brasil. A decisão de desmarcar a visita oficial foi tomada possivelmente no dia 24, dado que a correspondência a Goulart foi enviada no dia 25. Entre os dias 23 e 24, dois acontecimentos contribuíram para que o ianque não considerasse Goulart um aliado privilegiado: a posição do Brasil na votação da OEA e a carta enviada pelo brasileiro a Kennedy. Em ambas as situações, o Brasil expressava suas reservas, para dizer o mínimo, em relação às posições do estadunidense a respeito do governo cubano. Para Kennedy, essa postura de Brasília foi considerada imperdoável, como aponta Jorge Ferreira:

Se o presidente norte-americano assassinado em Dallas, desde a crise dos mísseis cubanos, afastara-se de João Goulart, por considerá-lo um perigo à segurança nacional dos Estados Unidos, seu sucessor, Lyndon Johnson, manteve idêntica avaliação. Para eles, a recusa de Goulart em apoiar a intervenção militar em Cuba, bem como romper relações diplomáticas e comerciais com a ilha, foi imperdoável (2011, p. 400).

O descontentamento de Kennedy fica mais evidente em telegrama enviado por Campos ao Itamaraty:

Fonte da Casa Branca, que ainda não consegui identificar, teria expressado suspicácia em relação à missão do General Albino Silva, que interpreta como destinada a facilitar a sobrevivência de Castro, acrescentando ainda que o Brasil e a Itália teriam sido no mundo ocidental os países menos cooperativos na crise presente.21 21 Telegrama da embaixada em Washington. Num. 815. SECRETO. URGENTE. Assunto: Questão de Cuba. Data: 1º de novembro de 1962. Grifos meus.

Apesar da dificuldade para estabelecer a origem da fonte, fica bastante evidente que dentro da Casa Branca alguém bastante próximo do poder desconfiava do governo brasileiro em relação aos reais objetivos da missão Albino Silva e entendia o Brasil como um dos dois países que menos “cooperaram” com os Estados Unidos na Crise dos Mísseis. O mesmo documento ainda aponta que Kennedy questionara diretamente Campos acerca das “inclinações ideológicas” do general Albino Silva (Idem). Desse modo, há fortes indícios de que a razão para o adiamento da viagem ao Brasil, mais do que a necessidade de estar em seu país em 14 de novembro, era seu descontentamento com a PEI do governo brasileiro e sua aplicação na questão de Cuba.22 22 Também fortalece nossa interpretação o fato de que, em 30 de outubro, quando já estavam sendo implementadas as negociações Kennedy-Kruschev, o presidente dos Estados Unidos recebera na Casa Branca oitenta oficiais brasileiros, membros da ESG, que em geral mantinha aversão a respeito do nacional-reformismo de Goulart e de seus subprodutos, como a PEI. O Estado de São Paulo, 31 de outubro de 1962, p. 2.

Em 16 de novembro, Gordon se encontrou “demoradamente” com Goulart e Hermes Lima. A grande imprensa insistia em perguntar a respeito da visita de Kennedy ao país, assim como de Goulart, que precisava melhorar as relações com a Casa Branca. O tempo da política se modificara, todavia, e Washington perdera o interesse em negociar com o país e ter o governo central como parceiro da Aliança para o Progresso.

O embaixador, por sua vez, disse que nem com o sr. Goulart nem com o primeiro-ministro debateu aspectos da visita do presidente Kennedy ao Brasil. As conversas a esse respeito, acrescentou, só serão iniciadas em janeiro, isto é, depois do plebiscito “quando o regime estiver consolidado”.23 23 O Estado de São Paulo, 17 de novembro de 1962, contracapa.

Além de tirar da agenda a visita a Goulart no fim de novembro, quando a quarentena sobre Cuba já fora levantada, Kennedy dava continuidade a receber setores de oposição ao presidente brasileiro, como fizera com os militares vinculados à Escola Superior de Guerra (ESG). Dessa vez, ele recebeu o recém-eleito governador de São Paulo, Ademar de Barros. Após o encontro, Ademar de Barros este se jactava de ter vencido nas eleições o “candidato pró-Cuba, sr. Jânio Quadros, com uma plataforma abertamente filo norte-americana”. Também elogiara o presidente ianque “por sua ação no caso cubano” e teceu considerações sobre a importância da “amizade entre o Brasil e os Estados Unidos”.24 24 O Estado de São Paulo, 30 de novembro de 1962, p. 3. Se para Barros o encontro com Kennedy colaborava para sua projeção política, para este era mais uma forma de desestabilizar o governo Goulart.

Kennedy chega ao Brasil, mas não o John

O presidente brasileiro tinha consciência de que as relações com o governo de Kennedy não iam bem. O adiamento sem data da visita, somado aos episódios como a atenção dispensada por Kennedy aos oficiais da ESG e ao governador eleito de São Paulo, reforçava esse entendimento. O que ele não sabia, no entanto, é que o interesse pelo Brasil tinha motivado uma reunião do Comitê Executivo do Conselho de Segurança Nacional (ExComm) - o mesmo órgão que assessorou o presidente dos EUA Kennedy no transcorrer da Crise dos Mísseis - em 11 de dezembro na qual o Brasil foi o único assunto da pauta.25 25 Dessa reunião, além de Kennedy, participaram Johnson; o secretário de Defesa, Robert McNamara; o de Estado, Dean Rusk; o do Tesouro, Douglas Dillon; o procurador-geral, Robert Kennedy; o diretor da CIA, John McCone; o chefe da Junta Militar, Maxwell Taylor; o conselheiro especial de Segurança Nacional, McGeorge Bundy; o secretário assistente de Assuntos Interamericanos, Edwin Martin; os conselheiros especiais Ralph Dungan e Arthur Schlesinger Jr.; e o embaixador no Brasil, Lincoln Gordon (Silva, 2008, p. 197).

Nessa reunião, o ExComm se preocupou com a política interna e externa que o Brasil vinha desenvolvendo sob o comando de Goulart. Na avaliação, era uma “condição necessária” a de que o governo brasileiro alterasse tais políticas para obter a “colaboração dos Estados Unidos”.26 26 Políticas de curto prazo dos Estados Unidos para o Brasil. In: Silva, 2008, p. 198. Já sabendo que ocorreria um encontro de Goulart com representante estadunidense, a Casa Branca apresentaria as seguintes posições:

Dentro das próximas duas semanas, antes do natal de 1962, haverá uma discussão com o presidente Goulart em termos gerais, que refletirá os pontos de vista do presidente Kennedy e que enfatizará (a) as preocupações dos Estados Unidos com os desenvolvimentos políticos e econômicos do Brasil; (b) o desejo de colaboração dos Estados Unidos com o Brasil nas áreas econômica e política; e (c) a convicção dos Estados Unidos de que tal colaboração será prejudicada enquanto persistirem certas dificuldades (Idem).

A ata da reunião enfatizava a preocupação dos estadunidenses com a “estabilização econômica e clima para investimentos privados internacionais”, ou seja, estavam preocupados com o endividamento externo do país e com casos como o da ITT. Havia também, contudo, grande destaque para a PEI, em especial sua atuação na questão de Cuba, em que se recomendava que o representante dos Estados Unidos levasse a seguinte posição a Brasília: “Ações que os Estados Unidos poderão iniciar na OEA com respeito a Cuba para os propósitos de proteção dos interesses nacionais e hemisféricos não devem ser evitadas por meio de uma reação adversa brasileira” (Idem).

A Casa Branca queria deixar claro que, mesmo que se mantivesse a PEI, os Estados Unidos não parariam de manter sua política externa em relação a Cuba. Isso soou como uma ameaça no Congresso Nacional.

No que diz respeito à vindade Kennedy ao Brasil, o ExComm decidira que ela “deve ser transferida para longo prazo” (Idem). Desse modo, a expectativa de Goulart de receber Kennedy seria frustrada. Não se trataria mais de tomar uma decisão logo após o plebiscito. O que Washington pretendia era utilizar a possibilidade da visita como mais uma forma de pressão. “Uma confrontação com o presidente Goulart em relação a suas políticas internas e externas podem produzir uma mudança de rumo, mas é improvável que isso ocorra imediatamente. Será necessário manter a pressão e continuamente discutir com ele tópicos específicos.”27 27 Políticas de curto prazo dos Estados Unidos para o Brasil.In: Silva, 2008, p. 200. Grifos meus.

O escolhido para essa confrontação foi Robert Kennedy, o homem em quem o presidente mais confiava em seu núcleo de poder. Desse modo, Robert se encontraria com Goulart menos de uma semana após a reunião do ExComm. O emissário também ficaria incumbido de ponderar ao brasileiro as “preocupações do governo estadunidense em relação ao que os oficias norte-americanos consideravam como ‘desenvolvimentos esquerdistas’ no interior do governo brasileiro” (Idem, p. 202). As advertências chegavam ao ponto de agredir a soberania nacional: “Recomendava-se que o interlocutor do presidente Kennedy em tal encontro advertisse Goulart sobre os “perigos” relacionados à opção de seguir um caminho diferente daquele “recomendado” pelos Estados Unidos” (Idem, p. 203).

Em 16 de dezembro, era noticiado que Robert viria ao Brasil se encontrar com o presidente, mas muitas dúvidas ainda pairavam a respeito do encontro. Na mesma matéria, noticiava-se que a visita fora “proposta pelo embaixador Lincoln Gordon em comunicação telefônica que manteve com o sr. Goulart sexta-feira [dia 14 de dezembro] à tarde”, e que a “viagem deveria ser sigilosa”, em contraste com a informação obtida de “fontes bem informadas no gabinete de Kennedy e no departamento de Estado [que] declararam que o procurador-geral iria ao Brasil oficiosamente, a convite do presidente João Goulart”, mas sem que houvesse “indicações em Washington quanto ao motivo do governo brasileiro”.28 28 O Estado de São Paulo, 16 de dezembro de 1962, p. 6.

Autores como Moniz Bandeira e Jorge Ferreira afirmam que o emissário chegou ao Brasil “sem que houvesse convite do governo brasileiro” (Moniz Bandeira, 2001, p. 95), de forma “inesperada” (Ferreira, 2011FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011., p. 318). Se antes da Crise dos Mísseis, todavia, Goulart já procurava melhorar as relações entre os dois países coma recepção de Kennedy, após a Crise dos Mísseis depois dela esse desejo se transformou em necessidade. Em razão disso e ante a impossibilidade da presença do líder ianque, o governo brasileiro vinha negociando uma visita que fosse capaz de levar ao estadunidense argumentos para retomar uma maior aproximação entre os países: “Atendendo a convite do Presidente João Goulart, deverão chegar aí na próxima segunda-feira procedentes do Panamá os senhores Robert Kennedy e Edwin Martin”.29 29 Telegrama da embaixada em Washington. Num. 921. URGENTE. Assunto: Visita ao Brasil dos senhores Robert Kennedy e Edwin Martin. Data: 13 de dezembro de 1962.

De fato, em dia 17 de dezembro de 1962 foi realizado, em Brasília, um encontro entre Goulart e o procurador-geral, o que à época gerou grande repercussão, conforme pode ser avaliado pela cobertura jornalística. Houve também uma aura de mistério a respeito do teor das conversações entre os líderes. Existe uma versão do encontro publicada por Lincoln Gordon como apêndice em seu livro sobre o desenvolvimento econômico-social do Brasil no século XX.30 30 Registro da conversa ocorrida entre Goulart e Robert.In: Gordon, 2002, p. 371-392. Esse apêndice não se trata de uma lembrança ou de suas memórias- que andavam bastante desacreditadas, por sinal -,31 31 James Green e Abigail Jones publicaram um interessante artigo no qual confrontam as memórias de Gordon com a documentação diplomática que foi sendo liberada pelo governo dos Estados Unidos recentemente e que fora produzida pelo próprio embaixador (Green e Jones, 2009, p. 67-89). mas sim de um registro produzido pelo embaixador dos Estados Unidos e enviado ao departamento de Estado de seu país em 19 de dezembro de 1962. Nesse documento, Gordon afirma que em tal encontro, pelo lado brasileiro, estava presente apenas o presidente, e que junto a Robert havia o intérprete do departamento de Estado, José de Seabra.

Em linhas gerais, o documento se referia ao fato de Robert mencionar que “os acontecimentos dos últimos oito meses no Brasil criaram enormes dúvidas” quanto ao desejo de bom relacionamento estabelecido entre os presidentes na visita de Goulart aos Estados Unidos em abril.32 32 Registro da conversa ocorrida entre Goulart e Robert. In:Gordon, 2002, p. 372. Além disso, advogava que tais dúvidas estavam relacionadas à infiltração comunista “ou de nacionalistas da ala da extrema esquerda” no governo, no Exército, nos sindicatos e nas entidades estudantis (Idem). Ressaltava a “omissão do próprio presidente Goulart na adoção de um claro posicionamento público contra as posições violentamente antiamericanas assumidas por brasileiros influentes, alguns deles dentro do governo” (Idem, p. 373), em relação à deterioração da economia brasileira (Idem) e à ausência “de justificativa para expropriar sem uma indenização adequada” as empresas estadunidenses “como acontecera no caso da IT&T” (Idem).Esses quatro pontos estavam previstos na reunião de 11 de dezembro do ExComm.

Segundo o documento produzido por Gordon, “o presidente Goulart deu início então a uma resposta muito extensa, que durou mais de uma hora” (Idem, p. 371-392). O brasileiro respondera às dúvidas de Robert e destacara que os grupos nacionalistas, em geral, “não alimentam nenhuma animosidade pessoal contra o presidente Kennedy; sempre se opuseram às políticas preconizadas pelo Partido Republicano, mas depositaram grandes esperanças no governo de Kennedy” (Idem). Tudo leva a crer que, de fato, Goulart tivesse essa avaliação naquele momento quanto à tendência nacionalista da vida política brasileira, haja vista seu grande interesse em que Kennedy viesse ao Brasil.

De acordo com o documento produzido por Gordon, teria sido o presidente brasileiro quem tocara na questão de Cuba durante a conversa:

Sobre a política internacional, prosseguiu o presidente João Goulart, não há de parte do governo brasileiro uma predisposição contrária às políticas americanas. Pelo contrário. É bem verdade que o problema cubano criou dificuldades para nós, porque havia muita simpatia no Brasil por esse pequeno país e sua revolução popular. Mas por duas razões Castro perdeu em grande parte essa simpatia do povo brasileiro: sua declaração aberta de simpatia pelo marxismo-leninismo e a clara intervenção russa em outubro (Idem, 382. Grifos meus).

É possível que o presidente brasileiro tenha realmente utilizado essa argumentação. A política externa de seu governo procurava uma posição de independência no teatro da Guerra Fria, mas o palco era muito estreito.

Robert se manifestou a respeito da política internacional seguida pelo governo brasileiro. De forma cuidadosa, procurava respeitar a soberania do país ao mesmo tempo que exercia pressão sobre Goulart, utilizando a assistência financeira que a Casa Branca poderia fornecer ao Brasil. Mesmo sem citar nomes, criticava a PEI.

Quanto à assistência do bloco soviético, se o presidente João Goulart e o povo brasileiro julgam que essa seria a solução para o Brasil, têm perfeitamente o direito de procurar essa solução. Se o Brasil deseja obter assistência dos Estados Unidos em estradas e projetos siderúrgicos e de energia, estamos certamente preparados para estender essa assistência. Mas só poderemos fazê-lo se trabalharmos com autoridades que desejem cooperar conosco. Não podemos cooperar com os que sistematicamente se opõem a nós. Uma política destinada a provar a independência do Brasil através da hostilidade sistemática aos Estados Unidos não pode se conciliar com um bom relacionamento entre os dois países. Os Estados Unidos não querem controlar a política brasileira, e cooperarão em uma base bilateral. Mas se todas as autoridades brasileiras atacam constantemente os Estados Unidos ou silenciam diante de tais ataques, essa cooperação não será possível.33 33 Registro da conversa entre Goulart e Robert. In: Gordon, 2002,p. 385. Grifos meus.

No tocante a esse ponto, de acordo com o documento produzido por Robert, Goulart “reagiu de forma um pouco brusca” e o confrontou para que dissesse “objetivamente quais são os elementos da estrutura governamental que hostilizam de modo sistemático os Estados Unidos”. Goulart afirmara que “nunca permitiu conscientemente que qualquer autoridade federal atacasse o presidente Kennedy” e declarara haver “um grande exagero na visão do procurador-geral sobre esse ponto” (Idem, p.386). Robert, de acordo com a fonte em questão, recuara, afirmando que não “queria entrar em detalhes a respeito de nomes”, e passara o problema para Gordon, que “disse que ele também achava impróprio discutir nomes” (Idem).

Não obstante, Goulart estava empenhado em melhorar a relação com os Estados Unidos e, apesar de algumas divergências, procurava amenizar o teor do encontro, mas sem abrir mão da presença do presidente norte-americano. De forma bastante altiva para quem estava numa situação desfavorável, Goulart praticamente exigiu a presença de Kennedy.

Algumas das dificuldades atuais podem ser superadas por um maior entendimento público. Nesse particular, a visita do presidente Kennedy ao Brasil é absolutamente indispensável. Sua omissão será explorada pelos elementos hostis aos Estados Unidos. Ele deve vir logo que possível, e pode estar certo de que será recebido com entusiasmo. Não deve haver um terceiro adiamento. A data deve ser escolhida de acordo com a conveniência do presidente Kennedy, mas, uma vez fixada, a visita deve ser realizada conforme previsto.34 34 Registro da conversa entre Goulart e Robert. In: Gordon, 2002, p. 390.

Conforme o estabelecido na reunião do ExComm, Robert respondeu “que o presidente dissera que deseja vir em algum momento de 1963”, sem mencionar uma data, que, como vimos, deveria ser transferida para longo prazo.Para inspirar confiança em Washington, Goulart convidou para que almoçasse junto com ele e Robert o conceituado economista Celso Furtado, que estava preparando o Plano Trienal.

No dia seguinte, publicou-se uma foto do encontro dos dois, ambos sorridentes, no jornal O Estado de São Paulo. Havia grande interesse no que teria acontecido na reunião, que fora mantida em sigilo. Robert deu uma entrevista coletiva, mas não entrou em maiores detalhes.Foi questionado sobrea Aliança para o Progresso, a negociação do Brasil com a Polônia para compra de helicópteros, uma “reunião secreta da OEA”, a encampação das empresas estadunidenses e a data da visita de Kennedy ao Brasil. Suas respostas foram sempre evasivas, a exemplo do seguinte questionamento:

Os EUA estão satisfeitos a respeito das atuais relações com o Brasil?

Achamos que temos boas relações neste momento entre os dois países, mas que podem ser melhoradas e nós estamos nos esforçando para isso.35 35 O Estado de São Paulo, 18 de dezembro de 1962, contracapa.

Da parte do governo brasileiro, não houve nenhum comentário sobre o encontro, apenas uma breve nota oficial, também muito vaga, que mencionava que “foram examinados e debatidos os aspectos mais importantes das relações entre os dois países, em um clima de inteira franqueza e cordialidade”.36 36 Nota Oficial da Presidência.O Estado de São Paulo, 18 de dezembro de 1962, contracapa.

Enquanto isso, destacava-se, com notícias provenientes de Washington, que o governo norte-americano se mantinha preocupado com a PEI.

Todavia, as questões políticas são as que dão origem as maiores incertezas. Em primeiro plano, há a preocupação sobre a política exterior brasileira, que o governo chama de “independente” mas que, na opinião de Washington, parece às vezes tender para um tipo perigoso de neutralismo. [...] Um exemplo disso ocorreu na recente crise cubana, quando o Brasil tentou agir como “mediador” entre os EUA e o regime de Fidel Castro, enganando-se completamente sobre o fato de que a situação há muito deixara de ser uma disputa entre os EUA e Cuba, tornando-se uma confrontação direta entre o primeiro país e a União Soviética.37 37 O Estado de São Paulo, 20 de dezembro de 1962, contracapa. Interpolações minhas.

Nesse quadro de desconfianças por parte do governo Kennedy e de preocupação do governo Goulart com a situação política interna, em que as oposições, contando com apoio estadunidense, mantinham a política de desgaste do governo, era encerrada oficialmente a Crise dos Mísseis, com um acordo firmado entre Washington e Moscou na ONU, em 7 de janeiro de 1963. De forma praticamente concomitante, com o plebiscito de 6 de janeiro, encerrava-se também o parlamentarismo no Brasil republicano, o que não representava uma trégua para Goulart.

Conclusões

O golpe de 1º de abril de 1964 foi perpetrado por frações da própria sociedade brasileira, de modo que é um grande equívoco responsabilizar exclusivamente o governo dos Estados Unidos. Parcelas importantes da sociedade civil apoiaram e colaboraram com os militares que executaram a tomada do poder. A desestabilização política do governo Goulart empreendida por Kennedy, no entanto, foi fundamental para o sucesso dos golpistas.

A política exterior de Goulart desagradou ao governo Kennedy, em especial por meio de seus princípios de autodeterminação e não intervenção, que iam de encontro às formulações políticas dos Estados Unidos na Guerra Fria, de forma geral, e mais ainda em relação à latino-americanização a partir da Revolução Cubana.

O ano de 1962 foi o momento em que opções foram tomadas e tiveram grandes consequências em curto período. Era ainda o início dos governos Kennedy e Goulart - mais deste do que daquele. Para o brasileiro, era importante manter boas relações com o líder ianque, que tinha imensa popularidade na época. Mas também era necessário mostrar ao mundo as potencialidades do Brasil mediante uma política exterior altiva e independente. Tudo isso se deu num momento em que a Revolução Cubana era protagonista.

Goulart buscava melhorar a relação com os Estados Unidos, mas acabou descobrindo que o país incentivava a campanha de desestabilização do seu governo. Mesmo assim, manteve grande confiança em que o plebiscito daria vitória esmagadora ao “não” ao regime parlamentarista - afinal os grandes líderes políticos, inclusive da oposição, queriam o retorno do presidencialismo, com vistas às eleições de 1965 - e, para tanto, precisaria contar com apoio de Kennedy, ou ao menos com o fim da atuação deste para desgastar seu governo, a fim de desempenhar suas políticas com mais tranquilidade. A posição de seu governo, todavia, após Fidel Castro se declarar marxista-leninista em 2 de dezembro de 1961 e durante a Crise dos Mísseis foi de enfrentamento às pressões dos Estados Unidos, de forma mais intensa em janeiro e mais moderada em outubro. Mesmo com intensidades diferentes, em nenhuma dessas situações seu governo acatou a vontade da Casa Branca, a despeito das fortes pressões.

A posição da PEI, mesmo com sua moderação na crise de outubro, constituiu o ápice do desgaste entre os dois governos. Com a ruptura da dualidade existente no governo estadunidense entre negociação/desestabilização e Aliança para o Progresso/Doutrina da Contra insurgência - passando a ter largo predomínio na política de Kennedy o segundo elemento de cada relação em detrimento do primeiro -, as condições para o enfraquecimento do governo Goulart estavam iniciadas. Como resposta, o presidente brasileiro esvaziaria a política externa a partir da resolução da Crise dos Mísseis, esperando, assim, granjear maior apoio interno dos setores mais ao centro da vida política.Agora era disputar para ver qual dos lados venceria o outro na luta política interna do Brasil.

Fontes primárias:

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  • O Estado de São Paulo O Estado de São Paulo Edições de out./nov./dez. de 1962. Brasília: Biblioteca do Senado Federal.
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  • Registro Registro da conversa ocorrida entre o presidente João Goulart e o procurador-geral Robert Kennedy no Palácio da Alvorada, em Brasília, no dia em 17 de dezembro de 1962, das 11h15 às 14h30. In:GORDON, Lincoln. A segunda chance do Brasil: a caminho do primeiro mundo. 2 ed. São Paulo: Senac, 2002, p. 371-392.

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  • VIZENTINI, Paulo Gilberto Fagundes. Relações internacionais e desenvolvimento:o nacionalismo e a Política Externa Independente. Petrópolis: Vozes, 1995.
  • 1
    Paulo Vizentini, associando o resultado da VIII Reunião de Consulta com a encampação da International Telephone and Telegraph (ITT) realizada no início de fevereiro pelo governador do Rio Grande do Sul, afirma que “foi grande o impacto desses acontecimentos. Punta del Este e as encampações afetavam seriamente as relações com os EUA” (Vizentini, 1995VIZENTINI, Paulo Gilberto Fagundes. Relações internacionais e desenvolvimento:o nacionalismo e a Política Externa Independente. Petrópolis: Vozes, 1995., p. 250). Para Luiz Alberto Moniz Bandeira, “a expulsão de Cuba da OEA constituiu, no entanto, o mais importante fator de conflito entre o Brasil e os EUA” (Moniz Bandeira, 2001, p. 69). Jorge Ferreira, por sua vez, afirma que “a posição brasileira [em Punta del Este] criou tensões entre Washington e Brasília” (Ferreira, 2011, p. 272). Para melhor compreensão sobre a encampação da ITT, ver Miranda, 2006MIRANDA, Samir Perrone. Projeto de desenvolvimento e encampações no discurso do governo Leonel Brizola: Rio Grande do Sul (1959-1963). Dissertação de mestrado em ciência política. Porto Alegre: UFRGS, 2006..
  • 2
    A Aliança para o Progresso era um projeto do governo Kennedy para auxiliar a América Latina que, coincidentemente, havia sido aprovado também em Punta del Este, em agosto de 1961, por todos os países latino-americanos, com exceção de Cuba, representada naquela reunião por Ernesto “Che” Guevara (Azevedo, 2007, p. 140).
  • 3
    BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do presidente João Goulart aos Estados Unidos da América e ao México.Rio de Janeiro: Seção de Publicações do MRE, 1962, p. 5.
  • 4
    BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do presidente João Goulart aos Estados Unidos da América e ao México, p. 11-12. Grifos meus.
  • 5
    Até então, a única ação que desabonava a imagem de Kennedy era sua participação nos episódios da Baía dos Porcos. Ele era tido como um jovem, idealista e competente líder político de ideias progressistas, tais quais a Aliança para o Progresso e sua política para os direitos civis em seu país. Sua verdadeira política para Cuba, a máfia orbitando que orbitava seu governo, as denúncias a respeito de sua eleição e sua participação na política para o Vietnã seriam de conhecimento público apenas na década seguinte ao seu assassinato, em especial a partir de 1975, quando foi instaurada a Comissão Church —cujo presidente era o senador Frank Church—no Senado para investigar ações da Central Intelligency Agency [CIA, Agência de Inteligência Norte-Americana] (Hersh, 1998HERSH, Seymour. O lado negro de Camelot. Porto Alegre: L&PM, 1998., p. 194-210).
  • 6
    BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do presidente João Goulart aos Estados Unidos da América e ao México, p. 125.
  • 7
    Discurso de Goulart durante comemorações do Dia do Trabalho em 1º de maio de 1962.In: FICO, Carlos, 2014, p. 243.
  • 8
    Despacho telegráfico para a embaixada em Washington. Num. 440. URGENTE. Assunto: Visita do Presidente Kennedy ao Brasil. Data: 12 de julho de 1962. Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores (AHMRE), Palácio do Itamaraty. Brasília/DF.
  • 9
    Telegrama da Delegação do Brasil na ONU. Num. 44. SECRETO. URGENTE. Assunto: Visita do Presidente Kennedy ao Brasil. Data: 7 de outubro de 1962.
  • 10
    Despacho telegráfico para a embaixada em Washington. Num. 538. SECRETO. Assunto: Visita do presidente Kennedy. Data: 10 de outubro de 1962.
  • 11
    Telegrama da embaixada em Washington. Num. 743. SECRETO. Assunto: Visita do presidente Kennedy ao Brasil. Data: 15 de outubro de 1962.
  • 12
    O Estado de São Paulo, 14 de outubro de 1962, p. 8. BSF. Brasília/DF. Também estava sendo programada uma visita de Jacqueline Kennedy ao bairro Aliança, onde o estado da Guanabara “constrói casas para favelados com recursos da Aliança para o Progresso”. O Estado de São Paulo, 21 de outubro de 1962, p. 7.
  • 13
    O Estado de São Paulo, 18 de outubro de 1962, contracapa.
  • 14
    O Estado de São Paulo, 19 de outubro de 1962, contracapa.
  • 15
    O Estado de São Paulo, 21 de outubro de 1962, p. 7.
  • 16
    O Estado de São Paulo, 24 de outubro de 1962, contracapa.
  • 17
    O Estado de São Paulo, 25 de outubro de 1962, contracapa.
  • 18
    O Estado de São Paulo, 26 de outubro de 1962, contracapa.
  • 19
    Carta de Kennedy a Goulart. O Estado de São Paulo, 27 de outubro de 1962, contracapa. BSF. Brasília/DF.
  • 20
    A CIA obteve prova fotográfica de uma instalação de mísseis balísticos soviéticos em Cuba a partir do voo do U-2 espião. McGeorge Bundy, conselheiro especial de Segurança Nacional, foi notificado sobre a descoberta na noite de 15 de outubro e resolveu comunicar a Kennedy na manhã seguinte, sob a explicação de que o presidente passara o dia anterior em campanha e, estava muito esgotado e que uma boa noite de sono seria a melhor preparação de que alguém poderia dispor para enfrentar o problema nos dias seguintes (Hersh, 1998, p. 363).
  • 21
    Telegrama da embaixada em Washington. Num. 815. SECRETO. URGENTE. Assunto: Questão de Cuba. Data: 1º de novembro de 1962. Grifos meus.
  • 22
    Também fortalece nossa interpretação o fato de que, em 30 de outubro, quando já estavam sendo implementadas as negociações Kennedy-Kruschev, o presidente dos Estados Unidos recebera na Casa Branca oitenta oficiais brasileiros, membros da ESG, que em geral mantinha aversão a respeito do nacional-reformismo de Goulart e de seus subprodutos, como a PEI. O Estado de São Paulo, 31 de outubro de 1962, p. 2.
  • 23
    O Estado de São Paulo, 17 de novembro de 1962, contracapa.
  • 24
    O Estado de São Paulo, 30 de novembro de 1962, p. 3.
  • 25
    Dessa reunião, além de Kennedy, participaram Johnson; o secretário de Defesa, Robert McNamara; o de Estado, Dean Rusk; o do Tesouro, Douglas Dillon; o procurador-geral, Robert Kennedy; o diretor da CIA, John McCone; o chefe da Junta Militar, Maxwell Taylor; o conselheiro especial de Segurança Nacional, McGeorge Bundy; o secretário assistente de Assuntos Interamericanos, Edwin Martin; os conselheiros especiais Ralph Dungan e Arthur Schlesinger Jr.; e o embaixador no Brasil, Lincoln Gordon (Silva, 2008SILVA, Vicente Gil da. A aliança para o progresso no Brasil: de propaganda anticomunista a instrumento de intervenção política (1961-1964). Dissertação de mestrado em história. Porto Alegre: UFRGS, 2008., p. 197).
  • 26
    Políticas de curto prazo dos Estados Unidos para o Brasil. In: Silva, 2008, p. 198.
  • 27
    Políticas de curto prazo dos Estados Unidos para o Brasil.In: Silva, 2008, p. 200. Grifos meus.
  • 28
    O Estado de São Paulo, 16 de dezembro de 1962, p. 6.
  • 29
    Telegrama da embaixada em Washington. Num. 921. URGENTE. Assunto: Visita ao Brasil dos senhores Robert Kennedy e Edwin Martin. Data: 13 de dezembro de 1962.
  • 30
    Registro da conversa ocorrida entre Goulart e Robert.In: Gordon, 2002, p. 371-392.
  • 31
    James Green e Abigail Jones publicaram um interessante artigo no qual confrontam as memórias de Gordon com a documentação diplomática que foi sendo liberada pelo governo dos Estados Unidos recentemente e que fora produzida pelo próprio embaixador (Green e Jones, 2009GREEN, James N.; JONES, Abigail. Reinventando a história: Lincoln Gordon e as suas múltiplas versões de 1964. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.29, n. 57, p. 67-89, 2009., p. 67-89).
  • 32
    Registro da conversa ocorrida entre Goulart e Robert. In:Gordon, 2002, p. 372.
  • 33
    Registro da conversa entre Goulart e Robert. In: Gordon, 2002,p. 385. Grifos meus.
  • 34
    Registro da conversa entre Goulart e Robert. In: Gordon, 2002, p. 390.
  • 35
    O Estado de São Paulo, 18 de dezembro de 1962, contracapa.
  • 36
    Nota Oficial da Presidência.O Estado de São Paulo, 18 de dezembro de 1962, contracapa.
  • 37
    O Estado de São Paulo, 20 de dezembro de 1962, contracapa. Interpolações minhas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2017
  • Aceito
    24 Abr 2018
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