Acessibilidade / Reportar erro

No rastro do Museu do Carnaval Tia Dodô da Portela: por uma proposta decolonial

On the path of Museu do Carnaval Tia Dodô da Portela: propositions for a decolonial museum

Resumo:

Através da preservação da cultura material produzida pelos sujeitos negros no universo do samba e carnaval, abordaremos a trajetória de Tia Dodô da Portela, refletindo os regimes de visibilidade, protagonismo e emancipação desenvolvidos por mulheres negras na dimensão política, cultural e de organização dos espaços da memória em países de reminiscências coloniais, como é o caso do Brasil. Tia Dodô inscreveu seu nome na história social das mulheres pela via do samba e foi responsável por outra intervenção no mundo ao transformar sua casa, em uma favela do Rio de Janeiro, em um museu do carnaval. Atualizando a prática política por tornar visível o trabalho que mulheres negras empreendem a partir das margens, teve nesse espaço uma abertura radical de resistência e possibilidades, pois a criação de sítios museológicos elaborados por mulheres negras acionam a potência das histórias múltiplas na partilha do comum.

Palavras-chave:
Carnaval; Memória; Museu

Abstract:

Through the preservation of material culture produced by black subjects in the universe of samba and carnival, the article broaches the course of Tia Dodô from Portela samba school and the way it reflects in regimes of visibility, leading roles and emancipation processes developed in society by black women in the dimensions of politics, culture and the room of memory in countries ruled by colonial reminiscences, as it is the case of Brazil. Tia Dodô fixed her important role in the social history of women throughout the samba and was responsible for another intervention in this world when she transformed her house, located in a favela in Rio de Janeiro, into a museum of carnival. She brought up to date the political practice by bringing visibility to the work of black women in the borders of social hierarchy. This place created by her was a radical opening for resistance and possibilities, since the creation of museum sites elaborated by black women moves toward the empowerment of multiple histories in the common share.

Keywords:
Carnival; Memory; Museum

A princípio convém apresentar Maria das Dores Alves ao leitor. Mulher negra, brasileira, nascida em Barra Mansa, interior do estado do Rio de Janeiro em 1920. Aos 4 anos de idade ela e seis irmãos, sob a liderança da mãe, se mudam para o morro da Providência, uma das primeiras favelas1 1 Favelas, morros ou, no português angolano, musseques, são aglomerados urbanos densamente povoados por uma população mais pobre das cidades, marcados pelo estigma da violência, da precariedade e do abandono do poder público. no centro da cidade do Rio de Janeiro. Em 1934, ela começa a trabalhar em uma fábrica onde também têm um fortuito encontro com o universo do samba, sendo levada a conhecer a escola de samba Portela, no subúrbio carioca de Madureira. Assim nascia a porta-bandeira Tia Dodô da Portela, uma das maiores representantes do samba carioca e que teve uma intervenção fundamental no campo da memória ao alçar sua casa à categoria de museu.

Teve toda uma vida dedicada ao samba, representando sua escola de 1935 a 2015, ano de sua morte, aos 95 anos. Uma de suas maiores realizações, já na fase final da vida, foi ter conseguido transformar sua casa, no morro da Providência, no Museu do Carnaval Tia Dodô da Portela, e é este trabalho de preservação da cultura material do povo negro através dos objetos da sua escola de samba que nos interessa, sobretudo, para refletir ações propositivas de militância profunda das sujeitas e sujeitos negros na história.

Refinando os instrumentos de análise, vemos que a ação pública que Tia Dodô desempenhou, no cuidado e preservação dos objetos materiais, se relaciona aos espaços de autonomia, protagonismo e emancipação que mulheres negras têm criado a partir das margens. Lendo as margens na perspectiva de bell hooks, que a representa não apenas como sinônimo de periferia, mas um espaço mais complexo que, por ser tanto um local de repressão quanto de resistência, se apresenta como um “espaço de abertura radical” de possibilidades e criatividade (hooks, 1989hooks, bell. Talking back: thinking feminist, talking black. Boston: South End Press, 1989., p. 149).

Lembrando com outra interlocutora que:

Falar sobre a margem como lugar de criatividade pode, sem dúvida, dar vazão ao perigo de romantizar a opressão... No entanto, bell hooks argumenta que este não é um exercício romântico, mas o simples reconhecimento da margem como uma posição complexa que incorpora mais de um local (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 68).

Portanto, a história que vamos apresentar passa a ter um duplo alcance na medida em que é a história de vida de uma mulher negra e de sua intervenção no mundo, que, para além de porta-bandeira, passa a gestora de um espaço de memória. E isso envolve práticas de organização da memória através do trabalho que mulheres empreendem a partir das margens, deslocando assim a ideia de “sujeito universal” e (re)fundando “universais”, colocando em perspectiva projetos de descentralização do poder. Estamos refletindo uma das instituições que nascem no bojo do colonialismo, desse modo, nosso exercício implica no ato decolonial, no sentido de decompor o pensamento.

Ao nos colocarmos a pensar o próprio pensamento que fundou museus, que erigiu patrimônios e que moldou os limites axiológicos de um campo de exclusões de subjetividades que não se materializaram, propomos desafiar o pensamento racional iluminista para encontrar saídas imaginativas que permitam produzir uma nova ordem material. Assim, a descolonização do pensamento museológico significa a revisão das gramáticas museais, propiciando que patrimônios e museus possam ser disputados por um maior número de atores, materializando os sujeitos subalternizados no bojo de um fluxo cultural intenso que leve à composição de novos regimes de valor, a partir da denúncia dos regimes de colonialidade imperantes (Brulon, 2020BRULON, Bruno. Descolonizar o pensamento museológico: reintegrando a matéria para re-pensar os museus. Anais do Museu Paulista (São Paulo). Nova Série, v. 28, p. 1-30, 2020., p. 5).

Digo ainda que a existência desse espaço de memória do samba em uma favela carioca participou de uma tripla requalificação: do território, da memória e do patrimônio museal. Do território das favelas, que já serviram de argumentação para desenhar a cidade como partida e, hoje, são inerentes à existência das cidades, se impondo na geografia, na arquitetura, na vida cultural e na dinamização da vida econômica. Dos patrimônios, na medida em que provoca o diálogo com os museus, ampliando as funções sociais destes últimos de maneira propositiva, operando com a transposição do espaço da contemplação para o da incidência política. E da memória, que enquanto espaço de disputa aciona a potência das histórias múltiplas na partilha do comum ou do “sensível” nas palavras de Rancière:

Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outras tomam parte nessa partilha (Rancière, 2005RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimentalorg.; Ed. 34, 2005., p. 15).

Na trajetória de vida de Tia Dodô, essa discussão guarda relação profunda com o fato de ela ter sido, durante toda a sua vida, uma colecionadora dos objetos materiais e das fontes documentais de sua escola de samba ou, como ela mesma se intitulava, ter sido uma “acumuladora”. Conhecida pela sua personalidade “acumuladora”, pois ela mesma se dizia ser uma pessoa que gostava de acumular objetos em sua casa, chamada por ela de um verdadeiro “museu do pobre”, já que gostava de expor tudo que acumulava nas estantes da casa, pelas paredes, nos móveis e até no quintal. Vizinhos, visitantes e amigos se aglomeravam em sua casa a fim de apreciar os objetos materiais que faziam parte da memória de sua escola de samba, a Portela. Das imagens de santos católicos, às lembrancinhas dos grandes eventos na quadra da escola de samba, às bandeiras que ela desfilara em carnavais anteriores, inclusive a que usou em 1935, ano do seu primeiro desfile. Fotos, discos, documentos, vestuários, troféus, medalhas e outros objetos que faziam parte do seu rico acervo patrimonial.

No ano de 2012, Tia Dodô nos contou em entrevistas2 2 Todas as falas, imagens e representações de Tia Dodô neste trabalho foram retiradas de entrevistas realizadas por mim no ano de 2012. que sonhava transformar sua casa em um pequeno museu, dizia ser uma vontade antiga inscrever sua casa, o “museu do pobre”, no roteiro turístico da cidade. No mesmo ano, houve um projeto de pacificação de algumas favelas cariocas, e o morro da Providência, localizado na Zona Portuária do Rio de Janeiro, foi espaço de laboratório da primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), projeto que visava retirar os grupos civis armados e colocar postos da polícia nas áreas de risco. Dentro de um projeto maior de “revitalização” da região do Porto, as UPPs formavam o braço armado da segurança pública na intervenção urbana da cidade.

Nesse momento, o morro da Providência foi projetado nos roteiros turísticos da cidade, contando com Museu a Céu Aberto, projeto de Plano Inclinado, restauração de algumas igrejas católicas e espaços de memória,3 3 O morro da Providência começa a ser amplamente habitado no final do século XIX, após a demolição dos espaços de cortiços e ao fim da Guerra de Canudos (1896-1897) com o desembarque dos ex-combatentes no Porto do Rio. Seu principal acesso é pela ladeira do Barroso, abrigando alguns pontos históricos: a Capela das Almas, datada de 1860; a igreja de Nossa Senhora da Penha e o Oratório, do início do século XX, na praça do antigo Cruzeiro; as escadarias da ladeira do Barroso e uma capelinha, construída por negros escravizados, antes mesmo de sua ampla habitação. e, é nesse movimento que o “museu do pobre” de Tia Dodô ganha aderência junto aos interventores públicos para se transformar em um “museu-narrativa” em escala maior.

O ‘museu-narrativa’ surge e desenvolve-se num contexto urbano, em que a relação com o público ainda guarda uma marca pessoal. Ele não é um museu feito para atender grandes multidões. [...] A fruição do ‘museu-narrativa’ supõe, da parte do visitante, um estado de distensão psicológica que não é mais possível no contexto de uma grande metrópole... Essa experiência supõe aquele estado de distensão psicológica, próxima da experiência do narrador e dos seus ouvintes [...] Uma grande quantidade de objetos é exposta, acumulando-se em salas e vitrines, sem textos que os situem em algum período histórico. O deslocamento dos visitantes faz-se com lentidão. Os objetos impõem-se à atenção dos visitantes, exercendo seu poder evocativo (Gonçalves, 2007GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro: Iphan, 2007., p. 70).

A elaboração do “museu-narrativa” nasce em contraposição ao “museu-informação” em que:

O sistema de relações sociais e o conjunto de ideias e valores a que estou chamando ‘museu-informação’ desenvolvem-se em função das grandes metrópoles e de suas multidões anônimas, definindo-se a partir de suas relações com o mercado, com um vasto público voltado para o consumo de informações e bens culturais. Ele existe basicamente para atender a esse público, e pelo qual vê-se na contingência de competir com os meios de comunicação de massa (Gonçalves, 2007GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro: Iphan, 2007., p. 72).

Partindo das análises que Walter Benjamin faz da figura do narrador, a narrativa ganha centralidade enquanto modalidade específica de comunicação, e o narrador é aquele que intercambia as experiências da memória. Se para Benjamin os grandes narradores são os velhos artesãos e os marinheiros que conhecem a experiência de sua aldeia e de suas viagens, o compromisso do narrador é com a narrativa e não com a interpretação do que está sendo narrado. Sendo assim, o ato da narração estimula uma distensão psicológica necessária da audiência para o registro da memória, pois na narração, segundo ele: “quanto mais o ouvinte esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido” (Benjamin, 1986, p. 205).

Analisando o relato dos visitantes da casa de Tia Dodô, entendemos que ela fazia parte do acervo vivo de seu museu, o encontro com ela era uma das coisas mais esperadas por parte dos visitantes. Assim, ela ocupava também o papel social de narradora, seja das memórias do samba, do morro da Providência e das lições de vida, atualizando na dimensão material dos objetos e do museu as noções de presença, ancestralidade e devir.

Analisando os antigos narradores na cultura africana, nos vemos diante daqueles que foram chamados pelo estrangeirismo francês de griots e, aportuguesando o termo, griôs. Velhos narradores que formam castas em alguns países africanos como Senegal, Mali, Burkina Faso e Mauritânia, partes da Costa do Marfim e da Nigéria, e são considerados os memorialistas das histórias de suas aldeias. Eles se esmeram na arte da narrativa, intercambiando experiências, impondo pessoalidade em sua performance. Guardadas as devidas diferenças de um ofício que existe em alguns países do continente africano, queremos chamar atenção para o ofício dos griôs enquanto experiência performativa que atravessa o continente e se pulveriza na diáspora através do ato da narração, do lugar da oralidade e da música, pois a evocação musical dos sujeitos negros nos interessa em especial para entender Tia Dodô enquanto uma griô do samba (Gilroy, 2012GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel Moreira. 2 ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora 34/Ucam, 2012.).

Nesse sentido é que a leitura dela enquanto uma griô está alicerçada no compromisso de transmissão de uma sabedoria ancestral, que organiza uma espécie de memória genealógica, calcada na arte da narração como (re)existência de mundo. Portanto, ampliamos a perspectiva da requalificação na edificação do seu museu. Para além da requalificação do território com a inclusão das favelas na arquitetura do saber; requalificação dos espaços de memória, na proposta do “museu-narrativa”, o que implica a ampliação da concepção de patrimônio e, logo, do que será preservado. E, agora, uma requalificação subjetiva a partir da tradução da categoria griô, enquanto produtora e atualizadora de uma determinada memória.

Partindo do pressuposto de que os objetos materiais e o conjunto de imagens que deles se depreendem materializam concepções das mais diversas que possibilitam a compreensão de domínios da esfera da cultura, da economia e da política, o objeto se torna metonímia de um sistema cultural, sendo um documento passível de um processo interpretativo capaz de remetê-lo a paisagens culturais específicas, seguindo historicidades particulares.

Os objetos trazem uma circularidade cultural que está diretamente relacionada ao processo de pertencimento cultural e, portanto, de identidade. Logo, a presença de objetos e a memória dos mesmos contam muito sobre identidades e vão ao encontro de subjetividades que ressoam no próprio objeto enquanto categoria que engendra memórias, linguagens e poderes. Acionar o “museu-narrativa” de Tia Dodô, significa sugerir ao campo da museologia social esse espaço de memória como dispositivo de poder capaz de trazer a cena um museu decolonial. Dispositivo, na perspectiva foucaultiana, são todos os instrumentos que ligam as redes:

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (Foucault, 1979FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979., p. 244).

Se o dispositivo é a rede entre os elementos, a seleção deles passa por uma escolha do crivo humano, e, mais uma vez, faremos uma proposta de leitura de mundo racializada, ao refletir os critérios utilizados para eleição do que será considerado acervo, patrimônio e objeto da memória. O que se guarda e o que se mostra, toda seleção parte de relações de poder nas quais os dispositivos estabelecem desejos, se posicionam, ora em um campo, ora em outro, em posições móveis que variam conforme os agentes políticos e seus interesses. Uma seleção que encobre argumentos de autoridades, por isso a memória está sempre em disputa.

O filósofo Mogobe Ramose (2011RAMOSE, Mogobe. Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana. Revista Ensaios Filosóficos (Rio de Janeiro). v. 4, n. 4, p. 6-25, 2011. Disponível em:Disponível em:http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo4/RAMOSE_MB.pdf . Acesso em:21/10/2020
http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Art...
), ao refletir as epistemologias ocidentais que cunharam a filosofia tida como “universal” em contraposição ao processo de violência epistemológica que sofreu o pensamento africano numa espécie de tentativa de apagamento, cunhou o termo epistemicídio. Questionando o argumento de autoridade e o império dos saberes dos sujeitos brancos ocidentais, tencionamos pensar a cultura material dos sujeitos negros pela possibilidade de montagem de acervo a partir dos objetos/documentos subaproveitados da história. Este foi o grande desafio de elaboração do museu de Tia Dodô, quando deixa de ser uma casa museu ou o “museu do pobre” para ser o Museu do Carnaval.

No Brasil, a produção da cultura material e a seleção dos objetos de acervo se cruza com a cultura institucional de base colonial dos espaços de memória e a política de disciplina autoritária imposta pela instituição do Estado. Sendo assim, pensamos que as propostas para alavancar a construção de alternativas teóricas descolonizadoras e emancipatórias pode e deve partir dos sujeitos da diáspora, já que a experiência diaspórica diz respeito ao conjunto dos deslocamentos forçados de histórias, culturas, saberes científicos e demais saberes cujas epistemes foram recorrentemente invisibilizadas.

A colonização, como projeto político e ideológico, penetrou insidiosamente nas mentes colonizadas, cujos saberes e criatividades permanecem ainda subordinados a lógicas externas: mentes obrigadas a adaptar e a copiar lógicas e formas de pensar exógenas [...] Descolonizar implica abrir o espaço a outros saberes sequestrados para ampliar o resgate da história, democratizando-a, condição indispensável a uma efetiva demodiversidade (Meneses, 2016MENESES, Maria Paula. Os sentidos da descolonização: uma análise a partir de Moçambique. OPSIS(Goiânia). v. 16, n. 1, p. 26-44, 2016. Disponível em: file:///C:/Users/PHILCO/Downloads/Os_sentidos_da_descolonizacao_uma_analise_a_partir%20(3).pdf. Acesso em: 13 out. 2020, p. 29).

Assegurar regimes para a produção e preservação da cultura material e a elaboração de políticas da memória é criar espaço para a montagem de mundo pelas epistemes do povo negro, e logo vislumbramos a possibilidade de um novo museu. A realização do Museu do Carnaval de Tia Dodô abre um desfecho interessante para um reposicionamento do olhar, como um ato político e autêntico, na busca por partilhar o espaço do sensível, através da insurgência de vozes de mulheres negras e da ação política engendrada nos espaços da margem.

Um pouco mais sobre o Museu do Carnaval de Tia Dodô da Portela

Queremos salientar que a historicidade dos objetos e dos utensílios de um “tempo passado” só se atualizam no tempo porque encontram ressonância no “presente”, e esse movimento parte de interesses coletivos tão permeados de relações de poder quanto de agentes manipuladores. Por isso, chamamos atenção para a agência de grupos negros, sujeitos e sujeitas interessados na inscrição de suas memórias no campo da museologia.

Nos espaços museológicos há códigos que, mesmo quando não estão explícitos ou sinalizados pelas diversas proibições, são sentidos por certo tensionamento nas relações e embotamento dos sentidos na relação com as artes e os objetos, gerando a internalização de determinadas regras de comportamento e interdições. Entretanto, o Museu do Carnaval de Tia Dodô trazia uma nova experiência sensitiva na medida em que alçava uma camada de subjetividade, que fazia com que houvesse uma distensão no nível psicológico a ponto de interrogarmos a própria existência e o tipo de relacionamento que temos com os objetos de apreciação nos museus.

Assim, o espectador era convidado a sair da sala de visitas, da contemplação e do distanciamento para ser atingido pela dimensão mais subjetiva evocada pela memória dos objetos. Desse modo: “O que é necessário é a identificação de um público histórico e cultural específico: um público que não apenas responda aos museus, mas que, ao contrário, seja criado, em parte, pelos museus e instituições correlatas” (Appadurai, Breckenridge, 2007APPADURAI, Arjan; BRECKENRIDJE, Carol A. Museus são bons para pensar: o patrimônio em cena na Índia. Trad. Cláudia M.P. Storino. MUSAS - Revista Brasileira de Museus e Museologia, n. 3, p. 10-26, 2007., p. 13).

Refletindo a circulação internacional de ideias inovadoras no campo da museologia, Brulon aponta os provocadores de novas interpretações sobre o papel social dos museus nas últimas décadas do século XX4 4 Pensadores como Mario Vázquez (México), John Kinard (Estados Unidos), Pablo Toucet (Níger), Stanislas Adotevi (Benin), Marta Arjona (Cuba), Waldisa Rússio (Brasil), além de personalidades brasileiras como Darcy Ribeiro e Paulo Freire. e o quanto essas novas experiências ensaiavam uma espécie de virada decolonial em âmbito global.

Tal virada decolonial foi o resultado de ao menos dois movimentos distintos e paralelos, que tinham início na prática museal para desenvolver formas específicas de pensar o museu na teoria. Enquanto se desenvolviam, na França, a partir do início dos anos 1970, os ecomuseus - museus em que os grupos sociais atuam em sua própria musealização - também nas ex-colônias se apresentavam, com menos visibilidade no contexto internacional, outras experiências inovadoras, de base popular e voltadas para comunidades às margens dos regimes patrimoniais oficiais, que visavam a ruptura, em âmbito local, com o modelo hegemônico de museu europeu (Brulon, 2020BRULON, Bruno. Descolonizar o pensamento museológico: reintegrando a matéria para re-pensar os museus. Anais do Museu Paulista (São Paulo). Nova Série, v. 28, p. 1-30, 2020., p. 17).

Com efeito, a ruptura ideológica e prática de não atualização da essência colonial museal permitiu o aparecimento de museologias experimentais locais. No Brasil, temos algumas iniciativas de espaços museológicos em favelas como podemos ver no morro do Pavão-Pavãozinho com o Museu de Favela (MUF), na favela da Maré com o Museu da Maré e os museus a céu aberto como o Maré a Céu Aberto, ou mesmo, o Museu Aberto no Morro da Providência, a primeira experiência museal nesse estilo em favelas cariocas.

Fundamentada em trabalho de campo e a partir de entrevistas com alguns moradores do morro da Providência,5 5 As entrevistas com moradores foram feitas em 2015, quando do retorno ao morro para fazer uma escuta pós-morte de Tia Dodô. vimos que o acionamento de memórias, usos e imagens do espaço produzidos pela população negra encontrou ressonância no Museu do Carnaval Tia Dodô. Com finalidade política estratégica, a existência daquele espaço de memória foi uma das maneiras encontradas pelo grupo subalternizado de negociar, no espaço da “revitalização” - território que se abria para a disputa de grupos e da especulação imobiliária - estilos de vida e sociabilidades pautados na valorização dos projetos dos sujeitos negros locais.

Impressiona como os grupos negros subalternizados nas favelas foram capazes de aderir a projetos próprios com militância profunda, suficientes para criar regimes de visibilidade, ao passo que institucionalizam, mesmo nos territórios de exclusão e confinamento, espaços de transformação social. Com Tia Dodô, observamos como ela operou, por meio dos novos arranjos museológicos, as ideias de espaço, memória e patrimônio utilizando um duplo poder, interna e externamente à esfera de seu museu. Externamente quando, por exemplo, ela negocia com a prefeitura e a concessionária Porto Novo a intenção de transformar sua casa em museu, e, internamente, no que se refere à ampliação de seu poder de liderança perante a comunidade, seja da escola de samba, seja dos vizinhos e amigos do morro da Providência, na medida em que a edificação de seu museu amplia sua esfera de poder e visibilidade naquele território.

É a partir da sobreposição de imagens, a da mulher negra, porta-bandeira na escola de samba e dirigente de um espaço de memória, que ela consegue implodir o imaginário social, deslocando as gastas imagens a que foram confinadas mulheres negras do carnaval, produzindo assim novos repertórios imagéticos para a história social das mulheres. A edificação do Museu do Carnaval, contudo, nos remete a episódios dramáticos de sua vida. Ela teve incentivo da concessionária Porto Novo, dentro do projeto Porto Maravilha, que realizou diversas obras de reformas durante o projeto de “revitalização” da Zona Portuária, no mandato do prefeito Eduardo Paes (2009-2017).6 6 Inspirado no movimento de proporção global de gentrification, que consiste em um processo urbano que ocorre em bairros históricos, geralmente nas regiões centrais e portuárias, e que implica a gradual substituição de uma população de baixo poder aquisitivo pelos grupos economicamente mais abastados; a “revitalização” da região do porto do Rio de Janeiro adaptou esse modelo, e sua execução não se deu sem prejuízo da parte mais pobre e mais negra da região.

Ao mesmo tempo que sua casa entrava em obras para abrigar o museu, outras obras se iniciaram no morro da Providência. Foi naquela nuvem de poeira que Tia Dodô acabou contraindo pneumonia, ficando acamada durante dois meses em um hospital público no subúrbio do Rio. Ela, que não teve filhos e era viúva, foi ajudada por amigos e vizinhos e, já recuperada da doença, saiu do hospital e foi para um quarto de hotel no centro da cidade, uma vez que sua casa ainda estava em obras. Passados dois dias de sua entrada, agentes da Concessionária Porto Novo foram procurá-la a fim de assumir as despesas, e, naquela condição de hóspede forçada, ela foi criando um sistema de ideias e imagens que davam sentido à realidade dela naquele hotel, enquanto esperava o fim das obras para retornar a casa. Ali, ela projetou imagens do que sonhava ser seu museu, criou expectativas. Dois meses depois, ao chegar em casa, ela diz que foi surpreendida: “A realidade me deu uma rasteira”, conta ela, que relatou ter encontrado uma casa linda, reformada, móveis novos, alguns objetos expostos, outros encaixotados e concluiu: “Só faltou a minha mão”.

Vemos aqui o conflito de intencionalidades nos projetos de curadoria de espaços de museus que são pensados sem a participação ativa dos protagonistas da história. Na projeção de sua casa para abrigar um museu, bem como na escolha do que seria exposto, na classificação, catalogação, em todo o processo, estivemos diante do desafio da curadoria ativa. Os objetos do acervo de Tia Dodô, relacionados ao samba, foram motivos da apreciação de uma equipe de curadores, museólogos e outros atores institucionais que selecionaram, classificaram e nomearam os objetos.

Pensar na intervenção desse acervo é abrir uma discussão acerca de dispositivos de poder e de memória e logo de objetos, acervos e edificação de patrimônios implicando as intencionalidades dos sujeitos sociais. A seleção do que se quer preservar ou não, a forma como se dará a exibição de objetos e a monumentalização de uns em detrimento de outros, as manobras durante o tempo em que aquela memória está sendo acionada, interpretada, tudo isso parte de uma seleção que encobre argumentos de poder e autoridade.

Poder e argumento de autoridade traduzem a noção de discurso e os limites impostos estruturalmente pela estrutura colonialista. Os saberes produzidos pelos indivíduos de grupos historicamente marginalizados são lugares de potência, de construção e reconfiguração do mundo por outros olhares. Nesse conflito de intencionalidades, vemos que, a partir do momento em que o “museu-narrativa” dela passa pela reforma, ele sofre uma intervenção que não chega a desmobilizá-lo e que, muito pelo contrário, aponta caminhos para processos de descolonização a partir das instituições museológicas. Entretanto, os espaços de museus podem e devem ser construídos com curadoria ativa e horizontal, no sentido de serem pensados de dentro da historicidade das pessoas e dos sujeitos envolvidos, e isso faz com que se opere uma mudança na cultura institucional dos próprios espaços.

O museu ficou aberto durante quase um ano, tempo em que ela ficou em casa após a saída do hospital e antes de morrer, em 2015. Na ocasião de sua morte, aos 95 anos, sua casa foi pilhada, seu acervo foi desmontado por força dos desejos individuais de pessoas próximas que levaram objetos da história do carnaval: livros, discos, documentos, roupas, uma série de objetos. No relato de uma das pessoas que levou pertences dela há uma pista interessante. Ela nos diz: “Aqueles objetos ali vão se acabar”, apontando para falta de interesses, planejamento e continuidade daquele espaço de memória.

As pessoas responsáveis pela retirada dos objetos não a entendem como saque, pois viram nessa atitude uma maneira de preservação daquele universo. Nesse episódio, mais do que o aspecto social do compartilhamento dos objetos, nos chama atenção tanto a falta de interesse público na preservação das fontes materiais de quando o acervo é samba, quanto a falta de organização da comunidade do samba em entender a importância da preservação daquela memória e o reconhecimento de um trabalho de anos empreendido por Tia Dodô. Inscrito na retórica das perdas, temos, no desmonte daquele espaço, um episódio trágico em que todas as partes envolvidas perderam.

Desmonte do museu e caminhos para transpor a retórica da perda

No Brasil, a história das instituições e de suas ideologias, como nos aponta Bosi (2010BOSI, Alfredo. “Prefácio”. Diário do hospício e o Cemitério dos vivos. Org. MASSI, Augusto; MOURA, Murilo Marcondes de. São Paulo: CosacNaify, 2010.), subestimou as experiências individuais e coletivas do povo negro. Bosi faz contundente crítica ao analisar a insistência colonial na história dos negros fadados ao encarceramento, seja em presídios, seja em manicômios, sendo este último objeto privilegiado em sua reflexão ao acompanhar a trajetória do escritor abolicionista Lima Barreto e as condições estruturais do racismo que o levaram ao alcoolismo e, logo, à reclusão em um hospício, derivando daí uma das suas grandes obras, o Diário do hospício, de 1920.

Pensar as condições para a produção da cultura material do povo negro no Brasil é chamar atenção para os discursos e dispositivos que as instituições ditas oficiais produzem a fim de aprisionar sujeitos negros em determinados lugares. Temos uma cultura institucional produzida no âmbito de oligarquias locais que, desinteressada na partilha do comum, vive projetando “cortinas de fumaça”, quando, por exemplo, impulsiona uma incipiente promoção de políticas públicas de ação afirmativa que tem mais como objetivo encobrir a sua própria dominação enquanto grupo estabelecido sobre os outros e sobre tudo aquilo que deveria ser um bem, realmente, comum.

Se pensarmos as instituições de memória, nos deparamos com outra face tão cruel quanto aquela denunciada por Bosi, pois foi partindo da tríade ciência, antropologia e colonialismo que sujeitos negros começam a entrar nos espaços de memória. A serviço da apreciação científica que, sob o pretexto da civilização e progresso de suas nações, cunhou no seu cerne o racismo científico e a marca indelével de que os sujeitos negros objetificados, o “diferente”, o “exótico” e o “selvagem”, serviriam como experimento para a ciência.

Temos na história casos de pessoas negras que tiveram o destino incerto pós-morte, com seus corpos escrutinados, estudados e partes expostas como peças de museus, como foram os casos da sul-africana Sarah Baartman7 7 Nascida em 1789 na África do Sul, Sarah Baartman, foi uma mulher bosquímana que, aos 21 anos, devido a sua acentuada bunda, foi levada para exibições circenses em Londres, despertando interesse da ala médica. Em seguida foi levada para Paris servindo a outros propósitos que vão desde a exploração sexual à apreciação científica. Após sua morte, seus órgãos genitais ficaram expostos no Museu do Homem, em Paris, e, somente muitos anos depois, após um longo processo, seus restos mortais foram devolvidos ao seu país de origem e lá receberam um enterro digno. e do nigeriano Angelo Soliman.8 8 Angelo Soliman (1721-1796), nascido na Nigéria, foi criado na Europa depois de ter sido comprado por uma família austríaca. Mesmo tendo sido criado na realeza, recebido educação na corte austríaca, iniciado na maçonaria e tendo levado vida aristocrática, depois de sua morte, em 1796, seu corpo foi para a Escola de Medicina da Universidade de Viena para estudo científico e logo depois foi mumificado e exposto ao lado de animais empalhados. Após um incêndio nesse museu, foi feita uma cópia em gesso de seu crânio que atualmente está exposta no Museu Rollet, na Áustria. Sujeitos negros no Brasil também tiveram seus crânios estudados, são os casos das lideranças revolucionárias da Guerra de Canudos (1897-1898), assim como alguns sujeitos indígenas no final do século XIX.

A produção de uma arquitetura do medo a partir da estética do país escravocrata refletiu uma reativação imaginária do eterno medo do sujeito negro e de tudo que evoque seu universo. É nesse contexto que surgiram, por exemplo, as primeiras apreensões de objetos das religiões de matriz africana, que, sob a tríade controle, punição e apreensão, recaíram, sobremaneira, nos limites de organização da cultura material do povo negro. Contudo, as facetas dessa herança colonial têm sido debatidas, e projetos políticos estão sendo elaborados pelos agentes políticos interessados. É o caso, por exemplo, da campanha articulada pelo movimento civil e religioso, Liberte Nosso Sagrado,9 9 Nos anos de 1960 e 1970, algumas lideranças religiosas começaram a se movimentar a fim de pedir a liberação das peças apreendidas pela polícia em um movimento de repatriação, no sentido de voltar à “pátria de origem”, isto é, às nações que compõem os terreiros. Com as negativas da Polícia Civil, o dialogo só foi retomado nos anos 2000, com um novo movimento mais engajado na campanha Liberte Nosso Sagrado, que somente agora, em 2020, conquista sua primeira vitória com a transposição das peças. que há anos busca reaver objetos dos cultos de matriz africana aprendidos pela polícia desde a época da corte e que acaba de conquistar uma vitória com a transposição do acervo religioso que estava no Museu da Polícia Civil para o Museu da República, no Rio de Janeiro.

Avançando para nosso objeto de análise, nos perguntamos sobre o Museu do Carnaval de Tia Dodô. Quais órgãos públicos ou privados iriam cuidar daquela memória? Como o grupo representado naquele acervo teria condições de cuidar e preservar aquele espaço?

De que serve reconstruir e preservar casarios e palácios se os homens, ou os seus remanescentes, que os construíram ou que perto deles vivem não têm o mínimo de cidadania e de direitos? Ou ainda, se determinados patrimônios permanecem sob o controle de oligarquias locais, onde uma noção de ‘bem comum’, no fundo, mal disfarça a dominação de um grupo sobre aquilo que deveria ser um bem de todos? Por outro lado, se as referências culturais materiais de grupos étnicos, emigrantes e grupos urbanos não forem garantidas, de que serve apenas registrar modos e ofícios, se o background material (barro, terra, palha, aves, flores, madeiras, água) não for preservado? (Filho, Silveira, 2005LIMA FILHO, Manuel Ferreira; SILVEIRA, Flávio Leonel Abreu da. Por uma antropologia do objeto documental: entre a ‘alma nas coisas’ e a coisificação do objeto. Revista Horizontes Antropológicos (Porto Alegre). v. 11, n. 23, p. 37-50, 2005., p. 5).

Todo esse complexo engatilha o que Kilomba chama de responsabilização como caminho para criar novas configurações de poder e de conhecimento, pois: “Só quando se reconfiguram as estruturas de poder é que as muitas identidades marginalizadas podem também, finalmente, reconfigurar a noção de conhecimento” (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p.13). Porém, a individualização e a falta de estratégia no desmonte do Museu do Carnaval de Tia Dodô acabou retirando a força da representação desse coletivo.

Os objetos materiais dos museus ganham em força de representação e de discursividade quando colocados em conjunto. Dispersos e fragmentados, eles perdem poder enquanto acervo, assim como, retirados daquele espaço, perdem em referência museal, e o próprio território do morro da Providência perde em referências identitárias da cultura negra. Episódio agravado com o movimento religioso neopentecostal nas favelas cariocas, que vem tentando desassociar a relação do samba e carnaval com os morros e favelas.10 10 Vale ressaltar que o crescimento do movimento neopentecostal nas camadas mais pobres no Brasil tem afetado o universo do samba e do carnaval de maneira visceral. O impacto no número de pessoas que se desvinculam das escolas de samba, por exemplo, tem refletido a preconização do movimento na difusão das imagens que demonizam as religiões de matriz africana e, por conseguinte, o carnaval. A ala das baianas, marca do carnaval carioca e que guarda relação intrínseca com as religiões de matriz africana, tem ficado mais jovem e se masculinizado, devido ao fato de as velhas baianas, recém-convertidas, largarem o ofício. Sobre impacto do movimento neopentecostal na cultura ver Birman, Crespo, Novaes (1997); Duarte, Heilborn, Lins de Barros, Peixoto (2006).

Na retórica das perdas, perdemos para nós mesmos ao deixarmos de cuidar de dois patrimônios ao mesmo tempo, o acervo documental produzido pela porta-bandeira e a representação da própria Tia Dodô, enquanto griô do samba, que, na produção de um espaço de memória, acabou deslocando as imagens que são disseminadas das mulheres negras no carnaval, conseguindo (re)fundar novos repertórios imagéticos para a história social das mulheres e do samba.

Considerações finais

Roubos, espoliações, pilhagens contemporâneas, esquecimentos estratégicos, ainda fazem parte desses deslocamentos forçados de saberes, mas a tomada de consciência cada vez maior dessa situação e a emergência de forças que emanam no pós-colonial têm proliferado em movimentos insurgentes. No campo da cultura material, restituição, repatriação e retorno dos objetos materiais para suas culturas e lugares de origem são ações que fazem parte de um movimento que vem somar-se a outros na escala global em um momento propício para transcender a retórica da perda e criar estratégias no estímulo à descolonização.

Se o colonialismo abrangeu as várias dimensões da vida humana, o processo de descolonização não é uma mera questão territorial ou política - passa pelas dimensões da descolonização dos corpos, do olhar, do poder, do saber e do ser. E neste movimento deve haver uma mudança visceral na relação que se tem construído com objetos materiais da cultura negra: mudanças no nível da cultura das instituições, da cultura material e da própria produção da memória.

Repertórios de restituição, repatriação e deslocamentos são um passo, mas não são suficientes para deslocar significantes enraizados na desumanização de sujeitos negros. É necessário aprofundar os sentidos e significados que conhecimentos e saberes pilhados da experiência negra na diáspora têm representado para os diversos povos e civilizações do mundo, no momento em que se restituam possibilidades de produção da memória e de conhecimento de mundo dos sujeitos negros invisibilizados.

Com Tia Dodô, investimos força para visibilizar o trabalho de mulheres negras, mas sua morte, por vezes, representa a morte simbólica e física de seu acervo, retirando força de seu trabalho, trajetória e mesmo de sua existência, e a perda maior nesses acontecimentos é, certamente, da própria memória social. Objetos perdem sua função disjuntiva na medida em que sua valoração se dá quando postos em conjunto. Com o fechamento de espaços de memória, tanto na interface institucional quanto no próprio nível de produção da memória, perde toda uma sociedade, pois um vetor para o desenvolvimento de qualquer país é justamente a produção de memórias e saberes a partir de sua historicidade. Enfim, há uma perda sepulcral, mas estamos apontando caminhos para transcender a retórica da perda. Se o colonialismo é uma ferida aberta, há urgência em engendrar processos de descolonização, o desfazer desse sistema que encarcera mentes e projetos políticos.

O museu de Tia Dodô tinha em seu bojo uma proposição descolonizadora através da preservação da cultura material dos sujeitos negros do samba, mas os processos que levaram ao seu desmonte encobrem uma atmosfera muito violenta e desesperadora em relação à colonização. O desinteresse na manutenção daquele espaço aponta para uma faceta muito cara à descolonização dos espaços, que é o racismo institucional. Entretanto, no atual momento histórico, a ferida colonial está exposta e a emergência de antídotos alternativos está implodindo o campo dos saberes e da prática política. Está decretada a falência de um centro de saber, o que tem acionado ainda mais dispositivos em que sujeitos e sujeitas nas margens passam a produzir regimes de visibilidade em todas as camadas, incluindo as instituições de memória.

As chamadas periferias do capitalismo mundial fazem escancarar as feridas abertas nas experiências traumáticas da escravidão, repressão e desumanização dos sujeitos negros. Contudo, é urgente o desmonte das bases tidas como “universais”, e, nesses deslocamentos, se busca (re)fundar universais, nos rastros da atualização de memórias que foram interditadas na história, trazendo à consciência saberes e fazeres que foram jogados para o nível da inconsciência. Nesse reposicionamento, os grupos antes invisibilizados estão dizendo: nós somos visíveis, nós vamos participar e vamos começar dando um enterro digno às estruturas coloniais.

Referências

  • APPADURAI, Arjan; BRECKENRIDJE, Carol A. Museus são bons para pensar: o patrimônio em cena na Índia. Trad. Cláudia M.P. Storino. MUSAS - Revista Brasileira de Museus e Museologia, n. 3, p. 10-26, 2007.
  • BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986. (Obras escolhidas, v. 1).
  • BIRMAN, Patrícia; CRESPO, Samira; NOVAES, Regina (Org.). O mal à brasileira Rio de Janeiro: EdUerj, 1997.
  • BOSI, Alfredo. “Prefácio”. Diário do hospício e o Cemitério dos vivos Org. MASSI, Augusto; MOURA, Murilo Marcondes de. São Paulo: CosacNaify, 2010.
  • BRULON, Bruno. Descolonizar o pensamento museológico: reintegrando a matéria para re-pensar os museus. Anais do Museu Paulista (São Paulo). Nova Série, v. 28, p. 1-30, 2020.
  • DUARTE, Luiz Fernando Dias; HEILBORN, Maria Luiza; LINS DE BARROS, Myriam; PEIXOTO, Clarice (Orgs.). Família e religião Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006.
  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder Rio de Janeiro: Graal, 1979.
  • GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência Trad. Cid Knipel Moreira. 2 ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora 34/Ucam, 2012.
  • GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios Rio de Janeiro: Iphan, 2007.
  • hooks, bell. Talking back: thinking feminist, talking black Boston: South End Press, 1989.
  • KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
  • LIMA FILHO, Manuel Ferreira; SILVEIRA, Flávio Leonel Abreu da. Por uma antropologia do objeto documental: entre a ‘alma nas coisas’ e a coisificação do objeto. Revista Horizontes Antropológicos (Porto Alegre). v. 11, n. 23, p. 37-50, 2005.
  • MENESES, Maria Paula. Os sentidos da descolonização: uma análise a partir de Moçambique. OPSIS(Goiânia). v. 16, n. 1, p. 26-44, 2016. Disponível em: file:///C:/Users/PHILCO/Downloads/Os_sentidos_da_descolonizacao_uma_analise_a_partir%20(3).pdf. Acesso em: 13 out. 2020
  • RAMOSE, Mogobe. Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana. Revista Ensaios Filosóficos (Rio de Janeiro). v. 4, n. 4, p. 6-25, 2011. Disponível em:Disponível em:http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo4/RAMOSE_MB.pdf Acesso em:21/10/2020
    » http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo4/RAMOSE_MB.pdf
  • RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimentalorg.; Ed. 34, 2005.
  • 1
    Favelas, morros ou, no português angolano, musseques, são aglomerados urbanos densamente povoados por uma população mais pobre das cidades, marcados pelo estigma da violência, da precariedade e do abandono do poder público.
  • 2
    Todas as falas, imagens e representações de Tia Dodô neste trabalho foram retiradas de entrevistas realizadas por mim no ano de 2012.
  • 3
    O morro da Providência começa a ser amplamente habitado no final do século XIX, após a demolição dos espaços de cortiços e ao fim da Guerra de Canudos (1896-1897) com o desembarque dos ex-combatentes no Porto do Rio. Seu principal acesso é pela ladeira do Barroso, abrigando alguns pontos históricos: a Capela das Almas, datada de 1860; a igreja de Nossa Senhora da Penha e o Oratório, do início do século XX, na praça do antigo Cruzeiro; as escadarias da ladeira do Barroso e uma capelinha, construída por negros escravizados, antes mesmo de sua ampla habitação.
  • 4
    Pensadores como Mario Vázquez (México), John Kinard (Estados Unidos), Pablo Toucet (Níger), Stanislas Adotevi (Benin), Marta Arjona (Cuba), Waldisa Rússio (Brasil), além de personalidades brasileiras como Darcy Ribeiro e Paulo Freire.
  • 5
    As entrevistas com moradores foram feitas em 2015, quando do retorno ao morro para fazer uma escuta pós-morte de Tia Dodô.
  • 6
    Inspirado no movimento de proporção global de gentrification, que consiste em um processo urbano que ocorre em bairros históricos, geralmente nas regiões centrais e portuárias, e que implica a gradual substituição de uma população de baixo poder aquisitivo pelos grupos economicamente mais abastados; a “revitalização” da região do porto do Rio de Janeiro adaptou esse modelo, e sua execução não se deu sem prejuízo da parte mais pobre e mais negra da região.
  • 7
    Nascida em 1789 na África do Sul, Sarah Baartman, foi uma mulher bosquímana que, aos 21 anos, devido a sua acentuada bunda, foi levada para exibições circenses em Londres, despertando interesse da ala médica. Em seguida foi levada para Paris servindo a outros propósitos que vão desde a exploração sexual à apreciação científica. Após sua morte, seus órgãos genitais ficaram expostos no Museu do Homem, em Paris, e, somente muitos anos depois, após um longo processo, seus restos mortais foram devolvidos ao seu país de origem e lá receberam um enterro digno.
  • 8
    Angelo Soliman (1721-1796), nascido na Nigéria, foi criado na Europa depois de ter sido comprado por uma família austríaca. Mesmo tendo sido criado na realeza, recebido educação na corte austríaca, iniciado na maçonaria e tendo levado vida aristocrática, depois de sua morte, em 1796, seu corpo foi para a Escola de Medicina da Universidade de Viena para estudo científico e logo depois foi mumificado e exposto ao lado de animais empalhados. Após um incêndio nesse museu, foi feita uma cópia em gesso de seu crânio que atualmente está exposta no Museu Rollet, na Áustria.
  • 9
    Nos anos de 1960 e 1970, algumas lideranças religiosas começaram a se movimentar a fim de pedir a liberação das peças apreendidas pela polícia em um movimento de repatriação, no sentido de voltar à “pátria de origem”, isto é, às nações que compõem os terreiros. Com as negativas da Polícia Civil, o dialogo só foi retomado nos anos 2000, com um novo movimento mais engajado na campanha Liberte Nosso Sagrado, que somente agora, em 2020, conquista sua primeira vitória com a transposição das peças.
  • 10
    Vale ressaltar que o crescimento do movimento neopentecostal nas camadas mais pobres no Brasil tem afetado o universo do samba e do carnaval de maneira visceral. O impacto no número de pessoas que se desvinculam das escolas de samba, por exemplo, tem refletido a preconização do movimento na difusão das imagens que demonizam as religiões de matriz africana e, por conseguinte, o carnaval. A ala das baianas, marca do carnaval carioca e que guarda relação intrínseca com as religiões de matriz africana, tem ficado mais jovem e se masculinizado, devido ao fato de as velhas baianas, recém-convertidas, largarem o ofício. Sobre impacto do movimento neopentecostal na cultura ver Birman, Crespo, Novaes (1997); Duarte, Heilborn, Lins de Barros, Peixoto (2006).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2020
  • Aceito
    10 Nov 2021
EdUFF - Editora da UFF Instituto de História/Universidade Federal Fluminense, Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, sala 503, 24210-201, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, tel:(21)2629-2920, (21)2629-2920 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: tempouff2013@gmail.com