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1962: um ano com vozes e corpos múltiplos em espaços argelinos

1962: a year of multiple voices and bodies in Algerian spaces

Resenha de RAHAL, Malika. . Algérie 1962: une histoire populaire . Paris: La Découverte, 2022.

Resumo:

Em 2022, a Argélia comemorou seus 60 anos de independência após uma longa e violenta colonização francesa iniciada em 1830. Malika Rahal vem preencher uma lacuna na historiografia sobre a guerra colonial na Argélia. Ela se debruça sobre narrativas mais íntimas das trajetórias individuais e do povo como corpo coletivo, sobre as experiências pouco conhecidas dos campos de concentração, dos refugiados, a busca pelos desaparecidos e as comemorações pela independência. A pesquisadora propõe abordagens com temas sensíveis para entender como 1962 é um ano revelador das problemáticas vividas pela população em um país no devir. A pesquisa se baseia no cotidiano em tempos tumultuosos e com base em rico corpus visual e sonoro que nos leva a olhar para os múltiplos acontecimentos do longo 62 argelino repleto de camadas e significados. O livro é dividido em 22 capítulos e quatro temáticas: Violências, Corpos, Espaços e Tempos.

Palavras-chave:
Memórias; Independência; Argélia

Abstract:

In 2022, Algeria celebrated its 60th anniversary of independence after a long and violent French colonisation that began in 1830. Malika Rahal fills a gap in the historiography of the colonial war in Algeria. She focuses on the more intimate narratives of individual trajectories and of the people as a collective body, on the little-known experiences of the concentration camps, the refugees, the search for the disappeared and the independence celebrations. The researcher proposes approaches with sensitive themes to understand how 1962 is a year that reveals the problems experienced by the population in a country in the process of becoming. The research is based on everyday life in tumultuous times and on a rich visual and sound corpus that leads us to look at the multiple events of the long Algerian 62, full of layers and meanings. The book is divided into 22 chapters and four themes: Violence, Bodies, Spaces and Times.

Keywords:
Memories; Independence; Algeria

Camponeses, militantes, estudantes, donas de casa, harkis,1 1 Nome dado aos soldados da Argélia que foram obrigados, ou escolheram, combater ao lado dos franceses nas diversas guerras que a França travou com seus vizinhos europeus. Uma das problemáticas relacionadas aos harkis é sua participação na guerra colonial contra a Argélia (seu país de origem). soldados da Frente de Libertação Nacional (FLN), comerciantes, crianças, famílias de diversos bairros, refugiados na Tunísia e em Marrocos, pieds noirs,2 2 Nome dado aos franceses nascidos na Argélia a partir da sua colonização. entre outros, depõem e ativam suas lembranças em torno da temática das violências nessa primeira parte do livro, e reconstituem suas narrativas ao longo dos meses do ano analisado.3 3 Em 19 de março de 1962. Os acordos de Evian e o cessar-fogo. Início de julho (referendo de autodeterminação, transferência de soberania); 20 e 25 de setembro (criação das instituições através das eleições da Assembleia Nacional e proclamação da República Popular Argelina). É um ano de transição, no qual as marcas da violência colonial são visíveis. As violências são perpetradas e praticadas em uma espécie de continuidade de um tempo pós-colonial. Argelinos e franceses da Argélia narram suas diferentes vivências sobre violências e veiculam rumores variados porque relacionados a medos de realidades distintas. Do lado argelino, por exemplo, os habitantes das grandes cidades estão preocupados com os corpos feridos dos seus familiares e procuram saber para onde esses são levados para serem tratados.4 4 Há hospitais argelinos e hospitais franceses e discriminação por parte de médicos franceses em tratar os corpos argelinos. Sobre as violências sofridas, a historiadora nos traz vários pontos de vista. Os jovens combatentes do ALN5 5 Exército de Libertação Nacional, braço armado da FLN. expressam seus receios. A situação crítica em Oran e arredores mostra como os bombardeios e tiros continuam e o cessar-fogo oficial não interrompe a onda de ataques com tiros e bombas. Um dos objetivos do livro é encontrar vozes que ouvimos raramente: além das citadas anteriormente, encontramos testemunhos de estudantes, famílias de militantes que ativam suas lembranças para ajudar a historiadora a reconstruir os meses transformadores de 1962 antes e depois da declaração da independência da Argélia. Uma guerra psicológica foi também perpetrada pelos membros da OAS (Organisation Armée Secrète), o exército secreto da França, com tiros, bombas, gritos, que era emocionalmente difícil de suportar, porque gerava medos constantes e angústias. Os habitantes de diversas cidades da Argélia não sabiam ao certo quem eram os detentores do poder político, entre disputas e alianças feitas entre as principais autoridades políticas do momento, a OAS, o FLN e o Movimento Nacional Argelino (MNA). Como lembra a autora, é difícil saber “quem é quem” em momentos de transição violenta.

Na segunda parte, estruturada em seis capítulos, a historiadora nos propõe uma análise sensível dos acontecimentos através da temática dos corpos. Ao longo do ano, os corpos se deslocam, são feridos, desaparecem, recebem transfusão de sangue, são marcados pela guerra, mas também aprendem a se reencontrar, a voltar para sua casa, a existir e conviver novamente com suas famílias. São afetados de forma diferente se moram em áreas rurais ou nas cidades. Os corpos são roubados ou confiados aos hospitais locais. Os corpos mortos são contados quando encontrados. Os corpos vivem a transição política, a efervescência das marchas e das comemorações, as transgressões, os novos usos dos espaços que eram coloniais e passam a ser nacionais. São corpos individuais e coletivos. O corpo coletivo é o corpo nacional, constituído por autoridades diferentes (quadros do novo governo, soldados, professores) e reflete as tensões políticas, as discórdias da esperada coesão. Por fim, o corpo coletivo é o povo, um elemento de “empoderamento”6 6 Tradução pessoal dada à palavra em francês utilizada pela autora, empuissancement. que se move em espaços coloniais segregados e os transforma, se apropria e reconfigura o espaço geográfico e social argelino. O retorno dos corpos dos refugiados é analisado como uma geopolítica da volta/dos retornados com apoio dos organismos internacionais. A historiadora traz no seu estudo, com olhar original, a participação de ONGs locais e nacionais nessa logística da volta. A autora estuda ainda a questão dos campos de agrupamentos, criados pelo Exército francês, onde se moveram e moraram os corpos argelinos e de onde se deslocarão quando os campos forem desmantelados no início do ano.

Vários campos são reintegrados no espaço urbano das cidades, outros bairros são abandonados pelas populações. Na terceira parte do livro, o êxodo rural maciço é analisado como fenômeno marcante desse período, que transforma rapidamente a definição das cidades argelinas. Uma revolução urbana se opera, com incentivo do governo argelino e a apropriação dos bens imobiliários coloniais deixados para trás por famílias de europeus.7 7 A historiadora mantém o uso de categorias criadas no tempo colonial. Os “franceses muçulmanos” são os sujeitos colonizados, os “europeus” são os franceses da metrópole. Se tornar argelino era incerto para todos que se encontravam nos meandros identitários. O código sobre a nacionalidade será votado em março de 1963. Os espaços são ressignificados (com a nova nomeação das ruas por exemplo). As divisões coloniais persistem ainda em 1962 entre os argelinos que integram suas novas habitações em antigos bairros coloniais. Os espaços minados8 8 Em 2019, uma criança morreu por causa de uma mina, somando-se a outras 7.499 vítimas que morreram, após a independência, em espaços minados. O Exército francês teria colocado em solo argelino, na época da guerra, cerca de 11 milhões de minas. constituem espaços perigosos, simbolizam espacialmente um momento histórico. As fazendas coloniais, nas áreas rurais, são transformadas em projetos de atividades econômicas de autogestão. Os argelinos redescobrem paisagens e espaços de terras espoliadas. A volta a essas terras constitui uma peregrinação às terras dos seus ancestrais. Retomar as terras, ocupar os espaços que lhes pertencem é um indício desse momento que virá, uma restauração do tempo argelino e o avesso da ocupação colonial.

O tempo e a espera são provavelmente a experiência coletiva mais compartilhada entre argelinos e franceses e diversas populações da Argélia no momento da independência. Rahal acompanha algumas trajetórias e os tempos subjetivos do ano e mostra como os corpos são atrelados aos tempos. A autora analisa como o fim da guerra é uma demora sem fim que provoca múltiplas temporalidades e transformações, deslocamentos, em suma, que dá um dinamismo próprio aos episódios históricos do ano. Na quarta parte, sobre a temática dos tempos, a pesquisadora compartilha conosco, entre outros, esses tempos subjetivos, a herança do tempo colonial, o tempo da espera e das tensões, o tempo das comemorações que antecipam a proclamação da independência. O ano não é recortado de forma cronológica em meses ou semanas. Um dos feitos da historiadora foi reconstruir o ano a partir dos tempos múltiplos vividos pelas pessoas entrevistadas. Os tempos de 1962 parecem durar mais de 12 meses. A história reconstituída é fragmentada, porém, significativa de um tempo que já se foi mas que marcou profundamente toda uma geração. A espera atravessa o livro “Argélia 1962, uma história popular”. É um tempo comum (à espera dos novos acontecimentos, novas decisões políticas e governamentais...) vivido de forma individual e compartilhado pelos atores da guerra, civis e soldados, mulheres, crianças, homens, colonos e colonizados, indivíduos ou grupos, por argelinos e franceses. Esses tempos do cotidiano são utilizados como elementos de observação e permitem, por exemplo, levantar aspectos menos conhecidos de 1962, como a dimensão revolucionária de um cotidiano popular.

Jornais e programas de rádio, referências de filmes, músicas e canções alimentam os tempos narrativos e mitológicos, porque 1962 é o passado reconstruído mas relembrado no tempo presente. Os manifestantes do Hirak,9 9 Em argelino al-Ḥirāk, remete à ideia de “movimento” popular que se iniciou em 2019. Muitos cidadãos protestaram contra a candidatura de Abdelaziz Boutlefika à presidência da República, tendo ele sido então obrigado a renunciar. O hirak aconteceu de forma recorrente até 2021 sob forma de protestos pacíficos por parte de grupos sociais independentemente de seus partidos de filiação. no início de 2019, referem-se a 1962 como um ano revolucionário em que as terras foram recuperadas e as honras lavadas com o fim da história colonial. As experiências argelinas pouco conhecidas de 1962 são a possibilidade de rever nossa forma de pensar e nos relacionar com o passado, o presente e o futuro. Como se esse ano tivesse sido também a fronteira entre o passado conturbado pelo regime colonial e a entrada cheia de esperanças no futuro. Sem dúvida, 1962 se tornou mais visível na sua dimensão revolucionária, desenhada pelas populações argelinas e captada pelo olhar atento e sensível de Malika RahalRAHAL, Malika. Algérie 1962: une histoire populaire. Paris: La Découverte, 2022.. No entanto, ainda precisamos descobrir mais esses rostos populares que Rahal nos apresentou. A autora menciona mas não aprofunda a questão de gênero e o papel preponderante das mulheres argelinas durante a guerra.

Referências

  • MOKHTEFI, Elaine. Alger, capitale de la révolution. De Fanon aux black Panthers en France Paris: La Fabrique, 2019.
  • RAHAL, Malika. Algérie 1962: une histoire populaire Paris: La Découverte, 2022.
  • ROCHEBRUNE, Renaud; STORA, Benjamin. La guerre d’Algérie vue par les Algériens, tome II: De la bataille d’Alger à l’indépendance Paris: Collection Folio Histoire(n.286), 2019.
  • STORA, Benjamin. Histoire de la guerre d’Algérie (1954-1962) Paris: La Découverte , 2004
  • 1
    Nome dado aos soldados da Argélia que foram obrigados, ou escolheram, combater ao lado dos franceses nas diversas guerras que a França travou com seus vizinhos europeus. Uma das problemáticas relacionadas aos harkis é sua participação na guerra colonial contra a Argélia (seu país de origem).
  • 2
    Nome dado aos franceses nascidos na Argélia a partir da sua colonização.
  • 3
    Em 19 de março de 1962. Os acordos de Evian e o cessar-fogo. Início de julho (referendo de autodeterminação, transferência de soberania); 20 e 25 de setembro (criação das instituições através das eleições da Assembleia Nacional e proclamação da República Popular Argelina).
  • 4
    Há hospitais argelinos e hospitais franceses e discriminação por parte de médicos franceses em tratar os corpos argelinos.
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    Exército de Libertação Nacional, braço armado da FLN.
  • 6
    Tradução pessoal dada à palavra em francês utilizada pela autora, empuissancement.
  • 7
    A historiadora mantém o uso de categorias criadas no tempo colonial. Os “franceses muçulmanos” são os sujeitos colonizados, os “europeus” são os franceses da metrópole. Se tornar argelino era incerto para todos que se encontravam nos meandros identitários. O código sobre a nacionalidade será votado em março de 1963.
  • 8
    Em 2019, uma criança morreu por causa de uma mina, somando-se a outras 7.499 vítimas que morreram, após a independência, em espaços minados. O Exército francês teria colocado em solo argelino, na época da guerra, cerca de 11 milhões de minas.
  • 9
    Em argelino al-Ḥirāk, remete à ideia de “movimento” popular que se iniciou em 2019. Muitos cidadãos protestaram contra a candidatura de Abdelaziz Boutlefika à presidência da República, tendo ele sido então obrigado a renunciar. O hirak aconteceu de forma recorrente até 2021 sob forma de protestos pacíficos por parte de grupos sociais independentemente de seus partidos de filiação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2023
  • Aceito
    12 Jul 2023
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