Resumo:
Nas últimas três décadas, as lutas sociais e políticas bolivianas foram marcadas pelo protagonismo camponês e indígena. Suas organizações foram fundamentais, por exemplo, no enfrentamento ao ciclo neoliberal, que teve na Guerra do Gás, em 2003, um dos seus eventos centrais. A própria eleição presidencial de Evo Morales, em 2005, e o início da intitulada revolução democrática, cultural e indígena, expressou esse período de intensa liderança das organizações vinculadas a esses grupos. Em razão disso, as reflexões sobre os intelectuais indígenas ganharam projeção não apenas entre militantes sociais, mas nas universidades bolivianas e latino-americanas. A proposta deste artigo é refletir sobre as possíveis relações entre a eleição de Morales, primeiro presidente indígena da América do Sul, e as contribuições lançadas pelo intelectual quechuaymara Fausto Reinaga para os movimentos camponeses e indígenas bolivianos.
Palavras-chave:
Evo Morales (1959-); Fausto Reinaga (1906-1994); Intelectuais
Abstract:
In the last three decades, Bolivia's social and political struggles have been marked by peasant and indigenous protagonism. Their organizations have been fundamental, for example, in confronting the neoliberal cycle, which had the Gas War in 2003, as one of its central events. The presidential election of Evo Morales in 2005 and the start of the so-called democratic, cultural and indigenous revolution expressed this period of intense leadership by organizations linked to these groups. As a result, reflections on indigenous intellectuals have gained prominence not only among social activists, but also in Bolivian and Latin American universities. The purpose of this article is to reflect on the possible relationship between the election of Morales, South America's first indigenous president, and the contributions made by Quechuaymara intellectual Fausto Reinaga to Bolivia's peasant and indigenous movements.
Keywords:
Evo Morales (1959-); Fausto Reinaga (1906-1994); Intelectuais
Enlaces entre um intelectual quechuaymara e os movimentos indígenas na Bolívia
Em abril de 2015 foram lançadas as Obras completas de Fausto Reinaga, intelectual indígena do altiplano andino boliviano. O compêndio foi fruto de uma parceria entre a vice-presidência do Estado Plurinacional e Comunitário da Bolívia, representada então por Álvaro Garcia Linera, a cátedra de filosofia da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), o Instituto Internacional de Integración Andrés Bello e a Fundación Amauta Fausto Reinaga.
A ocasião foi impregnada por um sentido de reparação histórica, com um chamado às juventudes, para lerem e se apropriarem das formulações teóricas de um dos mais importantes ideólogos do indianismo.1 Sua obra inspirou movimentos sociais, sobretudo a partir das décadas de 1970 e 1980, ainda que seu trabalho tenha atravessado um período de ostracismo.2 Não por acaso, a retomada das suas formulações ocorre com a aposta em uma edição cuidadosa e a divulgação de todos os seus trabalhos publicados (e alguns textos inéditos) no contexto da intitulada revolução democrática, cultural e indígena do governo Evo Morales (2006-2019).
Fausto Reinaga nasceu em 1906 em um ayllu no norte do Departamento de Potosí e faleceu em La Paz, em 1994. Alfabetizou-se no castelhano aos 16 anos, graduou-se em direito e legou uma abundante produção intelectual na qual dialoga com dezenas de intelectuais e dirigentes políticos, bem como trata dos grandes acontecimentos que marcaram a vida política boliviana. Já Morales, autoidentificado como aymara, nasceu em uma vila no departamento de Oruro, em 1959. Tornou-se uma liderança sindical dos cocaleros de El Chapare, no departamento de Cochabamba, e é um dos fundadores do Movimiento al Socialismo - Instrumento Político de la Soberania de los Pueblos (MAS-IPSP). Foi presidente por três mandatos consecutivos, entre 2006 e 2019, ocasião na qual sofreu um golpe de Estado. Para os fins deste artigo, consideramos interessante refletir de que forma ambas as trajetórias, de Reinaga e de Morales, se cruzam na história da Bolívia.
Em primeiro lugar, é importante demarcar que são trajetórias não lineares. Elas conjugam distintas referências, temporalidades e historicidades. Ambos são intelectuais e constituem-se como sujeitos políticos, que caminham entre mundos, fruto da típica sociedade abigarrada, sugerida por René Zavaleta Mercado (1986), que revela o caráter múltiplo e plural da realidade social boliviana com seus diferentes ritmos e densidades. Trata-se de reconhecer que, se, por um lado, são homens que têm sua formação marcada por um repertório herdeiro do sistema colonial moderno ocidental, por outro, são constituídos e afetados também por valores e percepções de mundo que são fruto de (re)existências inscritas na longa duração, oriundas de matrizes ancestrais e milenares dos diversos povos que existiam e seguem presentes no território boliviano.
A relação entre a produção intelectual de Reinaga e a eleição de Morales tampouco é direta ou causal, mas se relaciona com o processo de rearticulação dos movimentos indígenas na Bolívia fruto, em grande medida, do impacto de obras do primeiro, como La Revolución India (1970). Esta última pode ser considerada uma contribuição paradigmática para uma tomada de posição dos indios3 bolivianos para falar de si e para si, vislumbrando um processo de transformação radical e de descolonização do Estado, a partir de seu protagonismo. No referido lançamento das Obras completas, o então vice-presidente, Garcia Linera (2015), abordou que o núcleo central do pensamento de Reinaga, e que pode ser aferido não só em sua obra mais conhecida, mas em todas as três mil páginas distribuídas nos dez tomos da coleção, é a premissa do “indio como sujecto político de la emancipación” (destaque nosso). É desse lugar que Reinaga funda uma corrente de pensamento, o indianismo, que, por sua vez, abre um novo capítulo na história intelectual do continente e, mais especificamente, dos movimentos sociais na Bolívia. Por isso, ainda segundo Garcia Linera, Reinaga pode ser considerado como um dos intelectuais mais poderosos e criativos surgidos no século XX, cujo trabalho dificilmente será superado.
Assim, ao analisar a história da Bolívia pela lente de Reinaga, situando-o historicamente em seu tempo, nos debates e nas disputas nas quais esteve envolvido, trazemos à reflexão, com particular ênfase, as suas contribuições tanto no que se refere às críticas direcionadas à Revolução Nacionalista de 1952, quanto ao seu giro ao indianismo. A partir disso, evidenciamos de que maneira seu pensamento reverbera no processo de rearticulação do movimento camponês indígena entre as décadas de 1970 e 1990, quando o histórico clientelismo legado pela própria Revolução de 1952, bem como o Pacto Militar-Camponês, são rompidos para uma tomada de posição mais autônoma e mais radical com relação ao Estado.
São processos plurais e diversos, mas que culminam em estratégias orientadas mais explicitamente para a tomada do poder e a descolonização das estruturas e instituições modernas a partir de um protagonismo indio. E o indio que acaba eleito é, pois, Evo Morales, um dos mais expressivos dirigentes sindicais advindos do ciclo de lutas políticas e sociais ocorrido na Bolívia entre o final da década de 1990 e o início do século XXI. Nesse sentido, é possível identificar relações entre a eleição de Morales e as contribuições lançadas pelo intelectual quechuaymara para os movimentos indígenas bolivianos algumas décadas antes.
Para desenvolver o argumento, inicialmente, debruçamo-nos sobre algumas das obras de Reinaga, escritas ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970, para compreender as críticas que tece à Revolução Nacionalista de 1952 e o significado de seu giro à defesa da Revolução India. Em seguida, refletimos de que maneira muitas de suas premissas reverberam na rearticulação dos movimentos camponeses e indígenas no país. Por fim, analisamos as relações desse processo com a eleição de Evo Morales e as transformações decorrentes da chegada de um indígena, aymara e cocalero, à Presidência. Assim, nos debruçamos sobre a trajetória intelectual de Reinaga, refletindo acerca das suas contribuições para a questão indígena na Bolívia, conectando-as ao protagonismo político das suas organizações sociais a partir da década de 1980.
Fausto Reinaga, as críticas à Revolução de 1952 e o movimento camponês-indígena
Como vimos, Fausto Reinaga (1906-1994) é um intelectual autoidentificado como quechuaymara, oriundo de um ayllu da província de Macha, no departamento de Potosí, Bolívia, que se alfabetizou no castelhano aos 16 anos, formou-se em direito e publicou mais de trinta obras ao longo de sua vida.
Sua trajetória é bastante emblemática para compreendermos o processo de integração conflitiva que muitos desses intelectuais vivenciaram no contexto de uma sociedade moderna, nacional e colonial. Segundo a historiadora chilena Claudia Zapata Silva (2005), se, por um lado, intelectuais indígenas sempre existiram, por outro, a partir da segunda metade do século XX, observa-se com maior visibilidade a ruptura desses com os mediadores que falavam por eles e por seus povos. Isso acontece muito em função do ingresso de indígenas na “cidade letrada” (Rama, 2015), nas universidades, onde passam a dominar o idioma colonial e a escrita, o que permite que suas vozes ecoem mais alto e com maior protagonismo.
Em sua trajetória, Reinaga atuou não somente como um intelectual, mas também como um ator político desde uma tomada de posição que gradativamente partia de um lugar racialmente determinado. Em 1944 foi eleito deputado pelo nascente Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR),4 representando a província de Chantaya (departamento de Potosí), durante o governo de Gualberto Villarroel (1943-1946). A coalizão que apoiou Villarroel reuniu distintos grupos políticos, com aspirações diversas, desde setores simpáticos ao fascismo até a ala mais à esquerda do MNR, à qual Reinaga estava associado.5
Em abril de 1946, Reinaga foi enviado como representante do MNR em missão diplomática para o México. Nesse país, ele estudou a experiência da reforma agrária ocorrida em decorrência da Revolução de 1910. Ainda que guardasse algumas críticas com relação ao que se sucedeu nas terras de Emiliano Zapata, é bastante simbólico que tenha escolhido como título de um de seus trabalhos mais conhecidos fora da fase indianista, Tierra y libertad (1953). A insígnia da Revolução Mexicana vinha ainda acompanhada pelo subtítulo La Revolución Nacional y el indio. Trata-se de um compilado de dois artigos (e alguns anexos e apêndices) escritos já no calor da insurreição popular de 1952, que foram intitulados “Revolución; no reforma agraria” e “Ministerio de Indios; no, Ministerio de Asuntos Campesinos”. Essas formulações derivaram dos seus estudos com relação à problemática da terra e do indio no contexto de uma possível revolução nacionalista. O argumento, que desde então tornou-se determinante em suas formulações, refere-se à centralidade dos indígenas e do seu acesso a terras em qualquer processo revolucionário que ocorresse no país.
Sua reflexão é parte de um acúmulo teórico obtido a partir de sua trajetória de vida, mas em especial, de sua experiência junto ao governo de Villarroel, quando houve também a realização do Primer Congreso Indigenal, em maio de 1945, e as Concentrações de Kollana (outubro de 1945) e Viacha (julho de 1946). Sobre o Congreso, depois da revogação de uma lei que impedia os indígenas de marcharem nas principais praças públicas de La Paz, à convite do então presidente, chegaram à capital 1.200 delegados - com suas famílias -, dentre os quais estavam malkus, jilaqatas, caciques e alcaldes indios, representando comunidades de toda a Bolívia. Apesar de muitas lideranças não terem conseguido chegar à capital, o Congreso realizou-se de forma bastante representativa. Reinaga informou, na ocasião, que dentre os cinco mil indígenas presentes na capital, encontravam-se “chapacos, yamparáes, tapacarís, chayantas, sicasicas, italaquis, ayoayos, chulupis, cambas, chunchos”, além de quechuas e aymaras, “já não de joelhos, mas de pé, verticais” (Reinaga [1953], 2014b, p. 171). Na ocasião, Villarroel discursou em aymara e quechua, além do castelhano. Ele fez referência à tríade andina ama sua, ama lula, ama quella como referência para conduta moral e, por meio de um Decreto Supremo (DS 319), atendeu a algumas das reivindicações apresentadas, tais como a abolição do pongueaje e do mitaje (prestação de serviços não remunerada, devida pelas comunidades indígenas aos proprietários das terras e donos de minas) e de qualquer outro tipo de trabalho gratuito pessoal. Apesar do tom paternalista com o qual se buscava estender uma cidadania até então negada, tratou-se de uma aliança inédita na qual se buscava construir com os povos indígenas visando o atendimento de suas demandas por meio de ações estatais.
Essa aliança, forjada no seio do movimentismo em ascensão, tinha um princípio marcadamente classista e privilegiou o diálogo com uma nova geração de indígenas vinculados a organizações políticas partidárias e sindicais. Além disso, também ofereceu uma resposta à longa história de lutas dos “caciques apoderados” que marcou as primeiras décadas do século XX em defesa de suas comunidades e ayllus (Ticona Alejo, 2004, p. 4). Apesar de seus limites estruturais e por ter uma carga mais simbólica do que prática, o Congreso Indigenal foi um marco importante na história boliviana. Em 2018, por exemplo, em sua conta no Twitter, Evo Morales escreveu: “Como hoje, 1945, se realizou em La Paz o I Congreso Indigenal da Bolívia que determinou que os indígenas ‘sejam livres’ e não mais ‘burros de carga’”. Disse ainda que Villarroel era “imortal” por ter “decretado a abolição do pongueaje e do mitinaje” (Morales, 13 maio 2018).6
Após o congresso, em outubro de 1945, ocorreu a Concentração de Kollana e, em julho de 1946, uma nova concentração indígena em Viacha. Tais manifestações representaram importantes momentos de unidade e mobilização india. Em Viacha, Reinaga estimou que estavam reunidos de 40 a 45 mil indios de vários territórios do país. Em Kollana, em particular, houve o encontro com o então presidente Villarroel para que este se comprometesse em levar a cabo os encaminhamentos deliberados no Congreso, sob a insignia Tierra y libertad (Reinaga, [1953] 2014b, p. 178-181).
Contudo, Villarroel teve um fim trágico e violento em julho de 1946: foi linchado após uma invasão ao palácio presidencial e seu corpo desconfigurado foi pendurado em praça pública, junto a centenas de caciques. Para Reinaga ([1953], 2014b, p. 183), a Villarroel foi atribuída a responsabilidade por um massacre que ocorreu em Las Canchas (Potosí) e que resultou no “assassinato coletivo de indios” (destaque nosso), o que serviu para que perdesse uma parte de sua base social. Para Rivera Cusicanqui (2010, p. 123), a fúria popular que matou Villarroel expressou a “paranoia coletiva do assédio índio” e “da memória dos ciclos rebeldes de Túpac Katari e Zárate Willka” (destaque nosso). Sua morte foi celebrada como a “morte do pai dos indíos” (destaque nosso) e, com isso, inaugurou-se uma nova onda de perseguições e busca pelo extermínio da “indianada” e centenas de focos rebeldes (p. 183). No exílio, na Argentina, Reinaga tomou uma posição cada vez mais radical no sentido de disputar as bases do MNR, confrontando o que considerava ser a direita do movimento.
Naquele momento, o intelectual indígena publicou uma série de artigos nos jornais, nos quais questionou, por exemplo, a capacidade de Victor Paz Estenssoro de liderar uma possível revolução, que ele considerava iminente. Paz Estenssoro ganhara uma certa projeção internacional após a “contrarrevolução de 21 de julho de 1946” (Reinaga [1949], 2014a, p. 85). Reinaga se propunha, então, desnudar “o espírito do homem” (p. 85), uma vez que considerava que o então dirigente do MNR, escolhido pelo fundador do partido, Carlos Montenegro, para dar prosseguimento à Revolução Nacional, não estaria à altura do desafio. Tanto Montenegro, quanto Paz Estenssoro representariam “ideas pequeno burguesas”, com aspirações típicas das “classes médias”, distantes, portanto, das “massas indias” (p. 88-89; destaque nosso).
Para Reinaga, a alta cúpula do partido traiu Villarroel e se distanciou do caminho de aproximação com os povos indígenas. De fato, o MNR manteve isolado o campesinato indio e buscou aliança com a classe operária, principalmente os sindicalistas mineiros, protagonistas da insurreição popular nos anos seguintes (Zavaleta Mercado, 1998, p. 60-65). As críticas públicas realizadas por Reinaga à alta cúpula do MNR acabaram resultando em sua expulsão do partido. Todavia, isso não o impediu de seguir na batalha de ideias.
Em 1949, quando retornou clandestinamente à Bolívia do exílio, Reinaga passou a trabalhar junto com Hernan Siles Suazo, outro quadro importante do MNR - razão pela qual, inclusive, acabou preso. Apesar de não estar mais formalmente vinculado ao partido, ele seguiu como um militante em defesa da Revolução Nacional. Siles Suazo se tornou presidente interino no contexto da Revolução de 1952, permanecendo no cargo até Paz Estenssoro assumir a presidência. Entre 1949 e 1952, Reinaga publicou folhetos com tons críticos ao partido e a suas principais lideranças, de modo a chamar a atenção para a necessidade de implicar o projeto de revolução nacional na realidade india do país. Com a eclosão da Revolução, em 1952, ele transformou a sua casa em Villa Pabón, em Laz Paz, em uma “fábrica de bombas e arsenal revolucionário” (Reinaga apudCruz, 2013, p. 99-100). O “doutor”, como também era conhecido em sua zona, atuou como chefe do Comitê Revolucionário de Villa Pabón junto a uma base operária nos enfrentamentos com a polícia, ao redor do mirante Killi-Killi, em La Paz. Com a ascensão de Paz Estenssoro à liderança máxima da Revolução, retificou algumas posições publicamente (Reinaga apud Cruz, 2013, p. 99-100), investindo legitimidade no processo em curso.
Contudo, não abriu mão de marcar uma posição contundente com relação ao indio na Bolívia. O referido livro Tierra y libertad foi fruto desse esforço mais sistemático do intelectual quechuaymara de sustentar que o caminho da Revolução Nacional não poderia deixar de passar pela libertação dos indígenas e pelo acesso à terra. Por isso, não seria suficiente realizar uma “reforma agrária”, mas, sim, uma “revolución agrária” rompendo com a estrutura rosco-gamonal7 e colocando a riqueza da Bolívia à disposição e benefício do povo boliviano, cuja maioria absoluta seria india (Reinaga [1953], 2014b, p. 163-164). Do mesmo modo, sob o governo revolucionário, haveria de se constituir um “Ministerio de Indios” ao invés de um “Ministerio de Asuntos Campesinos” para impedir que essa realidade, atravessada por uma história milenar, fosse obliterada por um discurso orientado tão somente ao campesinato. No livro, Reinaga celebra a Revolução de Abril de 1952, que se insurgiu contra os massacres sobre os operários e indígenas e que havia derrotado o Exército Nacional. Outrossim, se, por um lado, reconhece que a classe proletária mineira e das fábricas abriu caminhos para a liberdade, com a Revolução de 1952, seria imprescindível que essa alcançasse as massas indias. Aqui sua identidade india já aparece em tom de orgulho:
a causa do indio é sagrada para mim, porque ela é minha própria causa. Por minha ascendência e nascimento: Tomás Catari e Macha, por minha carne e alma, por meu sangue e espírito, pelo sal de meus ossos e o vermelho de meus sonhos: sou tão indio, me sinto tão indio, a tal ponto que, para mim, não há outro tão profundamente indio... nesta terra e neste povo, de contorno e profundidade, de consistência e substância indias: Bolívia (Reinaga, [1953] 2014b, p. 161; destaques nossos).8
No mesmo texto, ele seguiu pautando o programa que deveria ser contemplado pelo nacionalismo revolucionário. Ele abordou, também, a importância da nacionalização das riquezas naturais bolivianas e de interseccionar a luta de classes à luta de raças. Naquela circunstância, Reinaga apostou que o processo revolucionário teria a missão de romper com as estruturas profundas de dominação do país, reconhecendo o protagonismo indio e toda a potência transformadora que esse carrega:
quatro séculos e meio de opressão e escravidão não se saldam nem se resolvem com uma “reforma” [...] A Revolução Agrária exige a extirpação do gamonalismo e a transformação do latifúndio em um sindicato agrário; sindicato sujeito às modalidades tradicionais, formais e substanciais da comunidade e do ayllu (Reinaga, [1953] 2014b, p. 201).9
Porém, apesar de ressaltar toda a história de protagonismo indígena e alguns dos aspectos relacionados às cosmopercepções andinas em relação à terra e à vida comunitária, ainda está subjacente em seu pensamento uma perspectiva de integração do indio ao Estado-Nação boliviano. A ruptura mais radical com esse pensamento e uma aposta na Revolución India e no indianismo, aconteceu após a frustração com os resultados do nacionalismo revolucionário sob a hegemonia do MNR.
Aliás, sobre o desfecho da Revolução de 1952, houve frustrações por todos os lados. Mesmo com o exército derrotado e o poder militar estando nas mãos das organizações populares e sindicais, como a Confederación Operaria de Bolivia (COB), a opção por uma via de conciliação e de composição de um cogoverno junto ao MNR resultou em um gradual processo de burocratização, corrupção e clientelismo. Isso neutralizou o ímpeto transformador presente em muitas das propostas revolucionárias. Assim, se, por um lado, houve a nacionalização das minas, com a criação da Corporación Minera de Bolívia (COMIBOL); por outro, o que causou indignação entre muitos mineiros, verificou-se a indenização aos antigos proprietários e o governo não se comprometeu em avançar na construção de fábricas de fundição - demanda histórica dos seus sindicatos. Domitila Barrios de Chungara (1979, p. 62-63), liderança do Comitê das Amas de Casa, da Mina Siglo XX, do departamento de Potosí, lembra que
[a] nacionalização das minas serviu apenas para que elas passassem a outros donos e outros se enriquecessem. Ou seja, não mudou nada. Em 42 e em 49, o governo massacrou o povo da Siglo XX em apoio aos ‘barões do estanho’, que eram os donos das minas. Depois de haver custado tanto ao povo, a revolução de 52, da mesma maneira, ou talvez mais cruel, o governo realizou também dois massacres na Siglo XX, em 65 e em 67. Além do mais, quando nacionalizaram as minas, as máquinas já estavam velhas, o governo não tinha acessórios e então, tudo vai de mal a pior. E são sempre os mineiros, os que pagam.
Em outra passagem, bastante emblemática, Barrios de Chungara lamenta que, diante do “grande acontecimento” que foi a Revolução de 1952, o “povo, a classe operária, os camponeses, não estávamos preparados para tomar o poder”, isto é, “como não entendíamos nada de leis, como não sabíamos como se governa um país, entregamos o poder à pequena burguesia que dizia ser nossa amiga” e, mais adiante, afirma que “nós sempre fomos educados com a ideia de que somente aqueles que têm estudos, que vivem bem e que foram à universidade é que podem governar um país” (Barrios de Chungara, 1979, p. 59). A experiência frustrante foi determinante para a compreensão de que seria necessário que o povo se organizasse para “chegar ao poder” (p. 60). Para fazer uma revolução no futuro,
[o] governo terá que ser de nossa origem, terá que ser o operário, terá que ser o camponês. Só assim teremos a garantia de que nós estaremos no poder. Porque só aqueles que sabem perfurar uma pedra, só aqueles que sabem o que é trabalhar e ganhar o pão de cada dia com o suor de seu rosto, é que poderão fazer leis para controlar e proteger a felicidade da grande maioria que é explorada (Barrios de Chungara, 1979, p. 60).
Reinaga chega a uma conclusão similar, sobretudo ao refletir sobre a reforma agrária. Essa aconteceu devido à pressão popular. Apesar disso, a proposta final do governo revolucionário, aprovada em 2 de agosto de 1953, em Ucureña (Cochabamba), foi bastante moderada. Segundo Andrade (2007, p. 117-118):
seus objetivos básicos eram: conceder terra aos camponeses que possuíam pouca ou nenhuma pela expropriação dos latifúndios, repor as terras das comunidades usurpadas, assegurar a abolição da pongueaje, aumentar a produtividade, incrementando as ajudas técnicas, proteger recursos naturais e promover a imigração para o Oriente.
Porém, a lei estabeleceu uma série de salvaguardas e trâmites burocráticos que tornavam bastante difícil a execução dos processos de expropriação, favorecendo os grandes proprietários - os quais também seriam indenizados -, além de manter a centralidade da grande empresa agrícola na produtividade da terra boliviana. Embora a nova legislação apoiasse a pequena e média propriedade, desconsiderava a posse coletiva e comunal indígena (Andrade, 2007, p. 117-118).
Ticona Alejo (2004, p. 6-7) chega a conclusão semelhante ao afirmar que a lei limitou-se a garantir direitos já conquistados, sem se comprometer com as demandas mais específicas dos ayllus e comunidades. As terras foram distribuídas seguindo a lógica liberal (e ainda sem estar acompanhada de créditos ou de tecnificação da produção). Esse caráter contribuiu para a formação de um novo campesinato e para o processo de colonização do oriente boliviano. Em relação a este último, o autor ressalta a lógica colonial reproduzida sobre as terras baixas, consideradas territórios “selvagens” e de “organização primitiva” (Bolívia, 1953, art. 129).
Ao invés de considerar aspectos relacionados ao território ou à organização típica dos ayllus e comunidades andinas, o governo preferiu investir em um processo massivo de sindicalização, adequando os camponeses à nova realidade boliviana. Desse modo, a Revolução pariu uma estrutura paternalista e clientelista, ligada ao MNR, que tensionava o processo revolucionário no sentido de construção de uma cidadania liberal que ignorava a condição étnica e racial do indígena, bem como a estrutura comunitária da terra. A nova receita do sindicato camponês continha um “processo civilizador” orientado em uma perspectiva de integracionismo do indio à nação moderna, emergente por meio da massificação de escolas rurais, da castelhanização e da homogeneização cultural, considerados símbolos para o progresso. Garcia Linera (2010) chama de “aniquilamento linguístico e organizativo”, os esforços de converter os indígenas em cidadãos individualizados, em camponeses. Zavaleta Mercado (1998, p. 82-83) ressalta como essa estratégia foi importante para o governo contrabalançar a força radical que vinha do movimento operário, isto é, para estruturar as novas relações de poder era indispensável dialogar com a “massa india” que sempre esteve excluída, porém, esvaziando seu conteúdo étnico-racial.
Após 1958, tem início um período de maior polarização ideológica e fragmentação do movimento camponês-indígena, com o aumento das tensões entre setores mais burocratizados, que orbitavam em torno dos dirigentes do MNR, e setores mais radicalizados, próximos da COB. Na década de 1960, como destacaram Salazar de la Torre (2013) e Rocha (2022), as disputas em torno dos projetos políticos advindos da Revolução de 1952 acentuaram-se e os agrupamentos mais à direita, apoiados pelo bloco empresarial-militar, derrubaram o governo nacionalista do MNR, então encabeçado por Paz Estenssoro.
O golpe de Estado, liderado pelo general René Barrientos, em novembro de 1964, levou a Bolívia a mais uma experiência ditatorial e ao controle definitivo sobre o movimento camponês, em decorrência da ascendência militar no Pacto Militar-Camponês. Este último tinha por objetivo substituir a articulação sindicato-partido-Estado estabelecido durante a Revolução Nacionalista por uma relação direta com os camponeses, ancorada na reconstrução do Exército (Plano de Ação Cívica) e no personalismo carismático do próprio Barrientos, configurando-se, assim, um Estado Paternalista financiado pelos investimentos externos, em especial estadunidenses.
Para Reinaga, a ditadura Barrientos tornou ainda mais imperativo que a construção de uma via alternativa de transformação social ocorresse com o protagonismo indio. Gustavo Cruz (2013, p. 170) destacou um pequeno artigo de Reinaga escrito na ocasião de uma viagem que realizou a Cuzco e Machu Pichu, no Peru, em 1960, no qual aparece, de forma pioneira e com maior precisão, o desafio histórico planteado por uma Revolución India na Bolívia. É quando se percebe “um distanciamento a respeito da linguagem e análise classista e uma maior ênfase na questão racial” (Cruz, 2013). Reinaga considera decisiva sua passagem pela “capital de sua ‘raça índia incaísta’”, sendo definida como uma “experiência mística-política”, incomparável com qualquer coisa que tenha vivido, inclusive com sua ida a URSS, em 1957, quando esteve mais próximo dos comunistas (Cruz, 2013; destaques no original).
Após o seu retorno para a Bolívia, em 1962, Reinaga participou da fundação, nas ruínas de Tiahuanaco, do Partido de Indios Aymaras y Keswas (PIAK), depois rebatizado, em 1966, de Partido Indio Boliviano (PIB). Embora a agremiação jamais tenha alcançado expressividade eleitoral, Reinaga seguiu publicando seus folhetos, livros e manifestos, apresentando demandas ao governo, quando possível, como foi o caso do breve governo do general Juan José Torres do MNR, em 1971. La Revolución India foi publicado em 1970 e encontrou maior eco às suas provocações junto à Confederación Nacional de Trabajadores Campesinos de Bolivia (CNTCB) e não tanto entre os mineiros. Segundo Cruz (2013), Torres chegou, inclusive, a acenar para um giro à Revolución India em Potosí, em um congresso da CNTCB, antes de ser derrubado pelo general Hugo Banzer (1971-1978).
Em aspectos gerais, em La Revolución India (1970), bem como em outros textos da fase indianista de Reinaga, tais como El manifiesto del Partido Indio de Bolívia (1970) e Tesis india (1971), estão presentes a defesa de uma revolução que parta do protagonismo indio e se oriente, gradativamente, para a tomada do poder, com o objetivo de libertar a república do cholaje blanco mestizo, e de romper com as cadeias de opressão, escravidão e exploração do indio. Para vislumbrar o futuro, há toda uma investidura na reescrita da história do país, conferindo ênfase ao protagonismo e às insurgências indígena-populares, bem como em uma exaltação ética e moral do passado da cultura andina, especialmente inka, que serve de referência cultural, filosófica, histórica e política.
Com suas reflexões, Reinaga deseja romper explicitamente com o indigenismo ao rejeitar qualquer perspectiva assimilacionista presente mesmo nas teses mais generosas dirigidas ao indio, pois, nessas, ainda subentende-se a sua integração à sociedade seja por intermédio de um movimento revolucionário ocidental, seja de um projeto nacional. Para o autor, a indianidade é uma ideologia viva, um ideal de um povo, de um continente e se encontra em marcha por sua libertação (Reinaga [1970], 2014c, p. 78).
Ante a constatação da existência de “duas Bolívias” - a do cholaje blanco mestizo, de inspiração europeia, e a do indio, herdeira do Kollasuyu -, Reinaga defende que a luta pela libertação camponesa e indígena se configura não apenas como uma expressão da luta de classes, mas, sobretudo, como uma guerra de raças, uma vez que a opressão que recai sobre o indio vai além de uma questão classista. Para ele, seja a “democracia ianque” ou o “comunismo soviético-chinês-cubano” (Reinaga, [1970] 2014c, p. 170), nenhuma delas compreende a dimensão racial e radical subjacente nessa divisão das “duas Bolívias” que, por sua vez, não será resolvida por meio da democracia liberal ou da revolução proletária, mas, sim, por meio da “luta racial” (p. 108).
Com a nova ditadura, inaugurada, em 1971, por Hugo Banzer, Reinaga foi perseguido, a sua casa foi invadida e a sua biblioteca, assim como vários bens materiais, foram confiscados. Ele foi preso, mas sua saúde debilitada acabou levando-o à liberdade. Sua sobrinha e fiel secretária, Hilda Reinaga, também foi perseguida por vários meses. A experiência sob a ditadura Banzer foi de profunda violência e foi responsável por dissolver o Pacto Militar-Camponês, representando um ponto de inflexão para os movimentos sociais bolivianos.
Como parte de um processo de rearticulação das lutas frente a todas as violências, perseguições, desaparecimentos, assassinatos e exílios vivenciados no período, a partir do final da década de 1970, começam a surgir novas organizações populares, algumas mais investidas de um recorte étnico-racial, tais como a Federação Camponesa Tupac Katari (FCTK), a Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), o Movimento Revolucionário Tupac Katari (MRTK) e o Movimento Índio Tupac Katari (MITKA). É dessa gesta, portanto, que emergem novas lideranças comprometidas com um horizonte apontado mais diretamente para a descolonização do Estado sob o protagonismo indio.
A reorganização do movimento indígena e camponês nas décadas de 1970 e 1990
Ao final da década de 1970, a Bolívia foi palco de um novo ciclo de lutas camponesas e indígenas contrárias à ditadura de Hugo Banzer (1971-1978). Como parte desse processo, mas, também, expressando a reação daqueles grupos contra o Estado nacionalista e a tutela militar sob as suas organizações, estabelecidas após Revolução de 1952, ocorreu a emergência do katarismo, umas das principais expressões políticas das lutas ocorridas naquela década. Como afirmou Zvampa (2022, p. 126), esse movimento foi fundamental para a politização dos camponeses e indígenas, assim como para o seu protagonismo socio-político nas décadas seguintes. Tais aspectos foram essenciais para o desenvolvimento da revisão da história boliviana e para a transposição da autoimagem da Bolívia de um país mestiço, e com suposta união cultural, para uma nação multicultural, plurilinguística e heterogênea.
A formação da CSUTCB reverberou uma das vertentes do katarismo, a sindical.10 Sua criação decorreu dos elementos conjunturais acima citados e evidenciou os impactos do Manifesto de Tiahuanaco, lançado em 30 de julho de 1973 (Manifiesto..., 1973). O seu surgimento também materializou a ruptura com o Pacto Militar-Camponês e com as próprias organizações sociais tributárias da Revolução de 1952. O Manifesto de Tiahuanaco, em particular, impulsionou debates acerca do atendimento dos múltiplos pleitos dos camponeses e indígenas, pois exprimiu o descontentamento desses grupos com a perpetuação da exclusão social, política e econômica. Argumenta que as heranças da colonização, marginalizantes desses setores subalternos, não foram alteradas durante o período republicano, mesmo após a Revolução de 1952, apesar de algumas conquistas, como a reforma agrária e o voto universal (Manifesto de Tiahuanaco, 1973, p. 50-51). O manifesto teve considerável influência entre intelectuais bolivianos, ativistas sociais e distintos grupos da sociedade civil. A fundação da CSUTCB demonstrou a demanda pela existência de uma entidade que liderasse as lutas direcionadas à contemplação das reivindicações culturais, étnicas, econômicas, políticas e sociais dos camponeses e indígenas.
Para seus formuladores, os pleitos desses setores não encontraram ressonância em organizações sindicais marxistas ou nas estruturas mestiças e coloniais reproduzidas pelo Estado nacionalista estabelecido após 1952. Como afirmou Andrade (2007, p. 16), o katarismo foi fundamental para a denúncia da “exploração econômica e política dos povos indígenas, o genocídio cultural e a discriminação que os privava de toda a vida pública”. Pesquisadores do tema, como Escárzaga (2002), Garcia Linera (2007) e Rivera Cusicanqui (2010), destacaram alguns dos eixos analíticos sobre o Manifesto de Tiahuanaco, examinados acima, mas também o próprio significado do movimento katarista, e da própria formação da CSUTCB, para o impulso do indianismo e das lutas políticas e sociais dos camponeses e indígenas a partir da década de 1980.
Sublinhamos que o katarismo foi um dos muitos exemplos da materialização teórica das provocações filosóficas e de atribuição de um sentido político às organizações sociais que partiram de uma perspectiva analítica crítica da condição indígena na Bolívia. Seus formuladores promoveram a etnização ou racialização da política e voltaram-se para sua plena libertação como sujeitos políticos que agem de forma autônoma para a alteração das excludentes estruturas econômica, cultural, política e social bolivianas. Como destacou García Linera (2007, p. 6), o indianismo katarista opôs-se ao marxismo e ao cristianismo, pois ambos foram considerados componentes ideológicos da dominação colonial contemporânea na Bolívia. No caso do marxismo, seus partidos foram acusados de não problematizarem a temática nacional indígena, considerando-a um retrocesso em relação à “modernidade” e por os inferiorizarem na luta social em relação aos operários e suas organizações.
Além de questionar o pacto modernizante construído após a Revolução de 1952, sob a influência das formulações de Reinaga, os kataristas formularam uma identidade coletiva quéchua-aymara que reivindicava as demandas culturais, econômicas, políticas e sociais dos camponeses e indígenas. Tais elementos foram fundamentais não apenas para a atuação da CSUTCB, mas para a reorganização dos movimentos sociais durante as décadas de 1980 e 1990 e para as lutas políticas e sociais ocorridas nas últimas quatro décadas na Bolívia.
Além da CSUTCB, outras entidades também assumiram um forte protagonismo, como a Federación Especial de Trabajadores Campesinos del Trópico Cochabambino (FETCTC), a Confederación Indígena del Oriente Boliviano (CIDOB) e as diversas Federaciones de Juntas Vecinales (FEJUVE) espalhadas pelo país, em especial a localizada em El Alto. Essas agremiações apresentaram heterogêneas reivindicações e assumiram a liderança das mobilizações sociais transcorridas durante a década de 1990 (Cabezas, 2007, p. 197-198).
Dentre as organizações sociais supracitadas, além da CSUTCB, ressaltamos a FETCTC. Surgida em 1986, essa organização unificou distintos sindicatos cocaleiros e, sob a liderança de Evo Morales, assumiu o protagonismo na condução das lutas entre 1986 e 2005. Como afirmou Urquidi (2007, p. 171-176), o sindicato cocaleiro conjugou a resistência às políticas de erradicação da produção de coca às críticas ao neoliberalismo, assumindo um discurso social que possibilitou a incorporação das reivindicações culturais, econômicas, políticas e sociais de distintos segmentos rurais e urbanos, a defesa do anti-imperialismo e da autodeterminação nacional, consubstanciada na transformação da folha de coca em símbolo da resistência do país.
Concomitantemente à reestruturação dos movimentos sociais e à intensificação da repressão aos produtores de coca, as gestões de Paz Estenssoro (1985-1989), em seu terceiro mandato, Jaime Paz Zamora (1989-1993), Gonzalo Sánchez de Lozada (1993-1997 e 2002-2003) e Hugo Banzer (1997-2001), ao guiarem-se pelos paradigmas neoliberais, geraram impactos socioeconômicos que auxiliam a compreensão do ciclo insurrecional iniciado no ano 2000, com a Guerra da Água.
Dentre as consequências das medidas liberalizantes daqueles governos, destacamos as seguintes: baixo crescimento econômico, concentrado em setores intensivos do capital e não em mão de obra; ampliação da informalidade no mercado de trabalho; frágeis políticas redistributivas de renda; aumento da pobreza e das desigualdades sociais; e corte nos gastos públicos para pagamento da dívida externa (Molero Simarro; Paz Antolín, 2013, p. 171; Cabezas, 2007, p. 193).
Como observamos ao longo deste artigo, o interesse recente adquirido pelas reflexões de Reinaga decorreu das suas formulações indianistas que, como demonstramos, influenciaram na coordenação das organizações camponesas e indígenas durante as décadas de 1980 e 1990. O protagonismo das suas entidades na história política boliviana nas duas primeiras décadas do século XXI refletiu esse movimento.
A eleição de Evo Morales, em 2005, denotou uma fase da história boliviana em que os camponeses e indígenas assumiram a luta política como um objetivo central. As guerras da Água e do Gás (2003), evidenciaram isso. As transformações culturais, políticas e sociais impulsionadas pelo seu governo asseveraram a relevância da construção de um projeto de poder para esses grupos, que, como salientaram os autores mobilizados neste artigo, visam torná-los protagonistas de sua história e reverter cinco séculos de espoliação e subalternização.11
Considerações finais
Reinaga morreu em 1994 contrariado com um “muro de silêncio” que teria sido construído contra ele. Em seu último texto publicado, Pensamiento indio (Reinaga, [1991] 2014d), escrito aos 85 anos, o intelectual quechuaymara retoma o indio como um categoria central da qual surge uma proposição de sociedade que poderá salvar não somente os indígenas bolivianos, mas toda a humanidade.
Frustrado com o fato da Revolución India não ter acontecido e com a inexpressividade eleitoral dos partidos e organizações de caráter indianista, o autor havia se voltado cada vez mais para a disputa das consciências com um tom mais filosófico e existencialista. Não se identificou com as organizações indianistas e kataristas, embora Felipe Quispe Huanca, por exemplo, tenha manifestado em diversas ocasiões a importância de seu pensamento para a luta do povo indio, especialmente aymara, na Bolívia.
Segundo Cruz (2013, p. 319-320), “fue Quispe, con La Revolución India entre sus manos, uno de los que lideró el sindicalismo campesino y enfrentó con mayor vigor y radicalidad al neoliberalismo”. A Frente Indio Amáutico del Tawantinsuyo (FIAT), chegou a propor sua candidatura à presidência da República em 1985 e 1989, porém não conseguiu formalizar sua inscrição na Corte Eleitoral da Bolívia.
Outrossim, quando analisamos o governo Evo Morales e a importância que o discurso sobre o Bem Viver ganhou no contexto de edificação de um Estado Plurinacional e Comunitário, é difícil não considerar um legado deixado pelo indianista décadas antes. No lançamento das Obras completas, Garcia Linera (2015), mais uma vez, lembra o conteúdo radical da ruptura epistemológica proporcionada pelo intelectual quechuaymara que, ao sair em defesa do “homem como terra que pensa” e do indio como portador de um projeto de sociedade situado em sua própria experiência comunitária, antecipa muitas das questões com as quais o então governo lidou.
A defesa do Bem Viver, em particular, ganhou uma projeção global a partir das intervenções de Morales e seus embaixadores. Ela sustenta-se, justamente, na prerrogativa sociobiocêntrica de pensar o ser humano inscrito em uma totalidade ao invés de em um centro (antropocentrismo) - e, por conseguinte, sujeito de dominação, controle e poder sobre a natureza e todos aqueles considerados outros (mulheres, povos racializados etc). A radicalidade da proposição do “homem como terra pensante” e da construção de um “Tribunal Indio Mundial” para fiscalizar e coibir as ações predatórias contra a Natureza ganha novos contornos ao interpretá-las à luz de tantas iniciativas levadas a cabo pelo Governo Morales, tais como a campanha pela assinatura da Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, a realização da Conferência dos Povos do Mundo sobre as Alterações Climáticas (Cochabamba, 2010) e a defesa do Tribunal de Justiça Climática.
Com isso, não queremos ignorar as inúmeras contradições enfrentadas pela gestão de Morales, sobretudo no que se refere à sua política doméstica ainda fortemente ancorada em um neoextrativismo, em certa medida antitético aos ideais que o ex-presidente e seus embaixadores defendiam nos fóruns internacionais. Ainda que Morales tenha cumprido um importante papel ao conferir maior visibilidade ao Bem Viver e à reivindicação dos Direitos da Mãe Terra, esses acabaram associados, no país, à taxas de crescimento, distribuição da riqueza, investimentos públicos, obras, programas sociais, ampliação dos direitos sociais que trouxeram novos desafios para uma ruptura mais radical com esse legado moderno ocidental colonial.
Segundo Pablo Solón (2019, p. 36), “Bem Viver, sumak kawsay e suma qamaña se transformaram em termos simbólicos de reconhecimento dos povos andinos, mais do que em pontos de inflexão para o desenvolvimento capitalista, que seguiu vigente sob os auspícios de uma ‘economia plural’”. Para Rivera Cusicanqui (2018), tornaram-se palavras mágicas esvaziadas de um sentido material e com forte tendência folclorizante e fetichizante da experiência india.
À despeito de tais elementos, cremos na relevância de sublinhar as conexões entre Evo Morales, a revolução democrática, cultural e indígena e as reflexões de Reinaga, sobretudo em um momento em que a história indígena ganha a devida relevância e reconhecimento nos centros educacionais brasileiros, nos níveis superior e básico, em razão da lei n. 11.645, de março de 2008, em nossa estrutura macro-política, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, em 2023, e até na elitista Academia Brasileira de Letras (ABL), com a posse do indígena Ailton Krenak, em abril de 2024. Acreditamos que o conhecimento da obra de Fausto Reinaga e das suas conexões com as organizações sociais indígenas torna-se fundamental para aqueles que pesquisam e ministram aulas sobre a história do tempo presente latino-americana.
Referências
- ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A Revolução Boliviana São Paulo: Editora Unesp, 2007.
- ANDRADE, Everaldo de Oliveira. Planificação econômica e estratégias de desenvolvimento durante os governos do MAS na Bolívia (2006-2019). Estudos Ibero-Americanos, v. 50, p. 1-20, 2024.
- BARRIOS DE CHUNGARA, Domitila. Se me deixam falar: entrevista a Moema Viezzer São Paulo: Simbolo, 1979.
-
BOLÍVIA. Ley de Reforma Agraria Decreto ley n. 3464, de 2 de agosto de 1953. Disponível em: Disponível em: http://www.gacetaoficialdebolivia.gob.bo/normas/descargarPdf/53437 Acesso em: 14 abr. 2024.
» http://www.gacetaoficialdebolivia.gob.bo/normas/descargarPdf/53437 - CABEZAS, Marta. Caracterización del “ciclo rebelde” 2000-2005. In: LÓPEZ, Jesús Espasandín; TURRIÓN, Pablo Iglesias (orgs.). Bolivia en movimiento: acción colectiva y poder político Madri: El Viejo Topo, 2007.
- CRUZ, Gustavo R. Los senderos de Fausto Reinaga: filosofía de un pensamiento indio La Paz: Plural Editores; CIDES-UMSA, 2013.
- CUSICANQUI, Silvia Rivera. Un mundo ch’ixi es posible: ensayos desde un presente en crisis Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.
-
ESCÁRZAGA, Fabíola. 2002. Movimientos etno-campesinos en Bolivia (1985-2001). Araucaria, v. 4, n. 8. Disponível em: Disponível em: https://revistascientificas.us.es/index.php/araucaria/article/view/992 Acesso: 26 fev. 2025.
» https://revistascientificas.us.es/index.php/araucaria/article/view/992 - GARCÍA LINERA, Álvaro. El desencuentro de dos razones revolucionarias: indianismo y marxismo. Revista Donataria, n. 2, , p. 5-10, mar.-abr. 2005.
- GARCÍA LINERA, Álvaro. A potência plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia São Paulo: Boitempo, 2010.
-
GARCÍA LINERA, Álvaro. Presentación de las ‘Obras completas’ de Fausto Reinaga 2015. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VE_aGRClUug Acesso em: 15 abr. 2024.
» https://www.youtube.com/watch?v=VE_aGRClUug - GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo. Sociedad plural, colonialismo interno y desarrollo. América Latina: Revista del Centro Latinoamericano de Investigaciones en Ciencias Sociales, v. 6, n. 3, p. 15-32, 1963.
- MARTÍNEZ, Edgars; PÉREZ, Olga; BAHAMONDES, Miguel. La cuestión étnico-nacional y los movimientos indígenas desde la perspectiva de la antropología marxista. Antropologías del Sur, v. 9, n. 18, p. 61-87, 2022.
-
MANIFIESTO de Tiahuanaco. 1973. Disponível em: Disponível em: https://www.nacionmulticultural.unam.mx/movimientosindigenas/docs/19.pdf Acesso em: 17 abr. 2024.
» https://www.nacionmulticultural.unam.mx/movimientosindigenas/docs/19.pdf - MOLERO SIMARRO, Ricardo; PAZ ANTOLÍN, Maria José. Entre la recuperación de la soberanía y la reprodución de los modelos productivo y distributivo: las políticas del MAS en Bolívia, 2006-2011. In: GARCIA, Luís Buendía et al. ¿Alternativas al neoliberalismo en América Latina? Madrid: Fondo de Cultura Económica, 2013. p. 170-172.
-
MORALES, Evo. I Congreso Indigenal de Bolivia. In: In: https://twitter.com/evoespueblo/status/112874882 4103661569 13 maio 2018. Acesso em: 15 abr. 2024.
» https://twitter.com/evoespueblo/status/112874882 4103661569 - RAMA, Angel. A cidade das letras São Paulo: Boitempo, 2015.
- REINAGA, Fausto. Victor Paz Estenssoro [1949]. In: REINAGA, Fausto. Obras completas La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolivia, 2014a. t. I, v. I, p. 77-120.
- REINAGA, Fausto. Tierra y libertad [1953]. In: REINAGA, Fausto. Obras completas La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolivia, 2014b. t. I, v. I, p. 152-249.
- REINAGA, Fausto. La Revolución India [1970]. In: REINAGA, Fausto. Obras completas La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolivia, 2014c. t. II, v. V, p. 16-336.
- REINAGA, Fausto. El pensamiento indio [1991]. In: REINAGA, Fausto. Obras completas La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolivia, 2014d. t. III, v. IX, p. 200-220.
- REINAGA GORDILLO, Hilda. Mi llegada a la casa del amauta La Paz: La Mirada Salvaje, 2021.
- RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Oprimidos pero no vencidos: luchas del campesinado aymara y qhechwa, 1900-1980 La Paz: Mirada Salvaje, 2010.
- ROCHA, Joallan Cardim. 1952-2022: 70 anos da Revolução Boliviana. Rebela, v. 12, n. 1, p. 1-24, 2022.
- SALAZAR DE LA TORRE, Cecilia. Los mineros de ayer, los indígenas de hoy: la agenda nacionalista en Bolivia y el dilema de la diferencia. In: Hegemonía cultural y políticas de la diferencia Buenos Aires: CLACSO, 2013. p. 47-64.
- SÓLON, Pablo. Bem Viver. In: SÓLON, Pablo. Alternativas sistêmicas: Bem Viver, decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da Mãe Terra e desglobalização São Paulo: Elefante, 2019. p. 19-63.
- TICONA ALEJO, Esteban. La Revolución Boliviana de 1952 y los pueblos indígenas. Temas Sociales, n. 25, p. 1-14, 2004.
- URQUIDI, Vivian. Movimento cocaleiro da Bolívia São Paulo: Hucitec, 2007.
- ZAPATA SILVA, Claudia. Origen y función de los intelectuales indígenas. Cuadernos Interculturales, v. 3, n. 4, p. 65-87, 2005.
- ZAVALETA MERCADO, René. El poder dual: problemas de la teoria del Estado en América Latina La Paz: Los Amigos del Libro, 1986.
- ZAVALETA MERCADO, René. 50 años de história La Paz: Los Amigos del Libro , 1998.
- ZVAMPA, Maristella. Debates latinoamericanos: indianismo, desenvolvimento, dependência e populismo São Paulo: Elefante, 2022.
-
1
As análises indianistas de Reinaga inserem-se nas lutas anticoloniais e foram formuladas com o objetivo de desconstruir o pensamento ocidental eeuurocentrado e suas influências na sociedade boliviana a partir de um protagonismo indio. Elas conectam-se ao plano político e ao impulso dos indígenas bolivianos como ativos sujeitos políticos. De acordo com Garcia Linera (2007, p. 6), sua obra objetivou a construção de uma identidade india que se diferencia da “outra” Bolívia, mestiça e colonial, e da esquerda classista e operária, que possuía fortes vínculos com o projeto modernizante do Estado nacionalista tributário da Revolução de 1952.
-
2
Em seus últimos textos, Reinaga fala sobre um muro de silêncio que foi construído contra o seu pensamento. Apesar da multiplicação de organizações kataristas e indianistas entre os anos 1970 e 1990, Reinaga manteve-se distante da maioria dessas entidades. Depois de sua morte, em 1994, Hilda Reinaga, sua sobrinha e secretária, estruturou a Fundação Fausto Reinaga, que preserva os seus escritos, publicando-os, além de realizar cursos sobre o seu pensamento pelo país (Reinaga Gordillo, 2021).
-
3
Usaremos aqui a expressão indio em coerência com a proposta do autor, apesar de reconhecermos que, nas distintas trajetórias dos conceitos, tal expressão assumiu uma conotação estereotipada e racista. No Brasil, por exemplo, ela foi rejeitada pelos movimentos indígenas. Porém, Reinaga reivindica essa expressão de forma deliberada para distinguir a sua obra das contribuições dos autores indigenistas (muitas dos quais utilizam da expressão “indígena” como alternativa ao indio devido ao seu sentido depreciativo) e para dizer que sua atuação como sujeito político dialoga com essa fabricação muito específica do colonialismo. Ou seja, o indio foi uma categoria criada pelos espanhóis, mas que, nesse momento, é subvertida para se tornar uma identidade que converge a luta dos distintos povos acometidos pelos efeitos do colonialismo que segue vigente no território americano mesmo após o fim da colonização (González Casanova, 1963).
-
4
O MNR foi fundado em 1942 por Carlos Montenegro, como uma resposta às consequências da derrota da Bolívia na Guerra do Chaco (1932-1935) e pelas profundas contradições geradas pela estrutura oligárquica que se assenhorou do Estado Nacional. O movimientismo trazia como uma de suas principais premissas a proposta de modernização do Estado Nacional, bem como a busca por uma maior soberania nacional sobre suas riquezas e a economia.
-
5
O Partido Obrero Revolucionario/POR e a Federación Sindical de Trabajadores Mineros de Bolivia/FSTMB estavam à margem dessa coligação. Em 1946, inclusive, lançaram as Teses de Pulacayo, de orientação trotskista, vislumbrando uma revolução proletária e socialista para a Bolívia. Já o Partido de la Isquierda Revolucionaria/PIR, vinculado à III Internacional, somou-se à Frente Antifascista em oposição a Villarroel, por considerar o regime fascista e que acabou tornando-se instrumento das oligarquias, conforme sugere Zavaleta Mercado (1998, p. 57).
-
6
Nessa e nas demais citações de textos publicados em outros idiomas, a tradução foi feita pelos autores.
-
7
La Rosca representa a Grande Mineração, cuja exploração estava concentrada em torno de três grandes famílias de proprietários, a de Simón Patiño, de Mauricio Hochschild e de Carlos Víctor Aramayo. Apesar de não atuarem diretamente no governo, detinham o poder político e econômico entre o início do século XX e a Revolução de 1952. Já o gamonalismo se refere aos latifundiários, especuladores de terra e toda classe de intermediários que expropriam terras comunitárias indígenas e exploram sua mão de obra em benefício próprio.
-
8
No original: “la causa del indio es sagrada para mí, porque ella es mi propia causa. Por mi ascendencia y cuna: Tomás Catari y Macha, por mi carne y alma, por mi sangre y espíritu, por la sal de mis huesos y lo rojo de mis sueños: soy tan indio, me siento tan indio, a tal punto que, para mí, no hay otro tan hondamente indio… en esta tierra y en este pueblo, de contorno y fondo, de consistencia y sustancia indias: Bolivia”.
-
9
No original: “cuatro siglos y medio de opresión y esclavitud no se salda ni se resuelve con una ‘reforma’ [...] La Revolución Agrária, exige la extirpación del gamonal y la transformación del latifundio en un sindicato agrario; sindicato, sujeto a las modalidades tradicionales, formales y sustanciales de la comunidad y el ayllu”.
-
10
Como destacaram Escárzaga (2002) e Zvampa (2022), além da CSUTCB, presenciamos o surgimento de dois partidos que catalisaram as lutas kataristas: (i) o Movimento Revolucionário Tupac Katari (MRTK), que tinha uma posição classista vinculada ao sindicalismo mineiro e que, por isso, defendia a aliança com os setores da esquerda boliviana; e (ii) e o Movimento Índio Tupac Katari (MITKA), que sustentava a autodeterminação dos povos indígenas, algo que levou à adoção de uma linha política contrária a alianças com a esquerda e a defesa da criação de um partido político que expressasse as heterogêneas pautas dos camponeses e indígenas. O MRTK adotou uma maior institucionalização nas estruturas estatais devido à análise preconizadora de que a ampliação da participação indígena em esferas do governo potencializaria o atendimento das suas demandas. Entre seus membros mais ilustres identificamos Genaro Flores, presidente da CSUTCB entre 1979-1987, e Victor Hugo Cárdenas, vice-presidente do país na primeira gestão de Gonzalo Sanchez de Lozada (1993-1997). Já o MITKA denotou uma linha programática mais inflexível. O partido salientou a impossibilidade de união entre os representantes de uma Bolívia branca e mestiça, historicamente incapaz de atender as reivindicações autóctones, e as frações indígenas organizadas. A agremiação teve um braço armado, liderado por Felipe Quispe, Raquel Gutiérrez e Álvaro Garcia Linera, vice-presidente de Evo Morales entre 2006-2009. Foi constituída também uma corrente acadêmica, encabeçada por Silvia Rivera Cusicanqui e Xavier Albó. Sobretudo no MITKA, observamos uma forte influência das reflexões de Reinaga.
- 11
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Maio 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
01 Maio 2024 -
Aceito
22 Jul 2024