Resumo:
Procura-se analisar as motivações e principais aspectos tratados na “devassa de 1771”, investigação determinada pelo vice-rei marquês do Lavradio sobre a atuação de José Marcelino de Figueiredo durante a primeira fase do seu governo (1769-1771) na capitania subalterna do Rio Grande de São Pedro. Os assuntos investigados envolviam diversas acusações sobre as atitudes do governador, podendo ser resumidos em cinco tópicos principais: o embargo à entrada do comissário da Ordem Terceira de São Francisco; as queixas públicas que fazia contra o vice-rei; sua animosidade com o provedor da Fazenda Real; a prisão arbitrária do escrivão da Fazenda Real; e seu desacato aos “povos” e aos oficiais camarários. A devassa evidenciou que os conflitos jurisdicionais podem ser entendidos essencialmente como um “modo de governar” que expressava o pluralismo político e jurídico do Antigo Regime, não interferindo na centralidade régia.
Palavras-chave: Devassa; Conflitos jurisdicionais; Governadores ultramarinos
Abstract:
The aim is to analyze the motivations and main aspects covered in the “devassa de 1771”, an investigation determined by the Viceroy marquês do Lavradio into the actions of José Marcelino de Figueiredo during the first phase of his government (1769-1771) in the subordinate captaincy of Rio Grande de São Pedro. The issues investigated involved several accusations about the governor’s attitudes, which can be summarized into five main topics: the embargo on the entry of the commissioner of the Third Order of Saint Francis; the public complaints he made against the Viceroy; his animosity towards the Royal Treasurer; the arbitrary arrest of the Royal Treasury clerk; and his contempt for the “people” and municipal council officials. The investigation showed that jurisdictional conflicts can be understood essentially as a “way of governing” that expressed the political and legal pluralism of the Ancien Régime, without interfering with royal centrality.
Keywords: Judicial inquiry; Jurisdictional conflicts; Overseas governos
No final de 1771, o governador interino da capitania do Rio Grande de São Pedro, Antônio da Veiga de Andrade, enviava ao Rio de Janeiro uma minuciosa devassa que acabara de realizar a respeito do governo do seu antecessor, removido do cargo pelo vice-rei marquês do Lavradio. Sobre o governador afastado pesavam duras acusações, entre elas a insubordinação às ordens régias e a vexação dos “povos” que habitavam aquela remota fronteira. Diferentemente dos “juízos de residência”, eventualmente realizados ao final dos mandatos dos governadores ultramarinos,1 a devassa era um procedimento excepcional, realizado em casos extremos, quando havia ao menos alguma suspeita de práticas contrárias à justiça e ao bom governo. O governo de José Marcelino de Figueiredo foi considerado pelas autoridades superiores e pelos poderes locais como fomentador da desordem na capitania. Quais foram os motivos para a realização dessa devassa? O que foi que a investigação nos revelou sobre suas práticas de governo e os conflitos de jurisdição? Como a Coroa lidou com a situação, levando em conta a conjuntura delicada do Rio Grande de São Pedro, que estava em estado de beligerância com os vizinhos espanhóis?
Um governador subalterno
José Marcelino de Figueiredo tivera experiências militares que foram suficientemente abonadoras nos dois anos (1765-1767) em que serviu na capitania do Rio Grande de São Pedro - sob o comando do então governador José Custódio de Sá e Faria - para que fosse indicado como seu sucessor, alguns meses antes do início do governo do vice-rei marquês do Lavradio.2 O vice-rei conde de Azambuja expunha ao secretário de Estado Francisco Xavier de Furtado Mendonça as razões que levaram a essa escolha, dizendo que José Marcelino seria “o único oficial de Cavalaria de patente que aqui se acha, e além da honra com que procede, me parece não ser falto de prudência, porque do tempo em que esteve no Rio Grande ficou bem-quisto”.3 Conhecedor da situação existente na fronteira meridional, na primeira carta que dirigiu ao recém-nomeado governador, o vice-rei lhe alertava que ao tomar posse do governo do Rio Grande, “procurará conservar com os espanhóis toda a boa harmonia”. Ele deveria “conservar a província da mesma forma que se acha, sem consentir por pretexto nenhum que os espanhóis ocupem um só palmo de terra de que estamos de posse”.4 José Marcelino de Figueiredo teve uma recepção festiva preparada pelos membros do poder local, que prestigiou sua posse como novo governador em 23 de abril de 1769, tendo recebido o cargo das mãos do governador que saía, o coronel José Custódio de Sá e Faria.5
Os governos ultramarinos tinham diferentes pesos políticos, sendo que a existência de uma situação de guerra nos territórios a serem governados gerava um elemento distintivo na hierarquia política. Assim, “a existência de conflitos militares abertos reforçava a capacidade negocial do governante indicado e propiciavam atos de maior liberalidade da Coroa e, em geral, um abaixamento nas suas exigências usuais” (Cunha, Monteiro, 2005, p. 209). Parece-nos ter sido o caso de José Marcelino ao ser nomeado para a capitania do Rio Grande de São Pedro, levando em conta sua origem social relativamente modesta e a persistência da “guerra viva” na fronteira meridional da América portuguesa. Também deve ser levado em conta que ele governaria uma capitania subalterna, criada pouco tempo antes (em 1760) e subordinada ao Rio de Janeiro. Uma capitania que apresentava ambiguidade, a começar pela indefinição das jurisdições ocasionada pela condição fronteiriça, somada à desconfiança gerada pelos grupos de poder locais, o que complexificava a instalação do aparato administrativo. Isso ocorria ao mesmo tempo em que, sob um cenário de falência fiscal, a capitania tinha sua dependência agravada com relação ao Rio de Janeiro. No caso do Rio Grande de São Pedro, a competência de um governador concorria, a nível municipal, com a jurisdição exercida pelo Senado da Câmara - que cobria toda a capitania - assim como o território governado estava sujeito à jurisdição do ouvidor da comarca de Santa Catarina (Gama, 2023, p. 43 e 45).
Deve ser ressaltado que não havia autoridade judicial de instância superior residente na capitania, como juízes de fora ou ouvidores. A sede da Ouvidoria estava estabelecida desde 1749 na capitania de Santa Catarina, na vila do Desterro, o que evitava conflitos cotidianos, decorrentes da coexistência das autoridades na mesma localidade, mas não impedia atritos, especialmente por ocasião das esporádicas correições. Um dos embates mais graves aconteceu em 1768, quando o ouvidor Duarte de Almeida Sampaio teve sua viagem de correição pela região suspensa pelo vice-rei conde de Azambuja. A suspensão decorreu de uma articulação da Câmara local, juntamente com o provedor da Fazenda e o governador da capitania José Custódio de Sá e Faria (Kühn; Comissoli, 2013, p. 69; Lessa, 2021, p. 328). Completando a especificidade da capitania, tampouco ela dispunha de um bispado próprio, estando subordinada em termos eclesiásticos ao arcebispado do Rio de Janeiro até meados do século XIX. Assim, os embates dos governadores - e os de José Marcelino, em particular - se deram preferencialmente com os oficiais da Fazenda Real e com os representantes das elites locais, especialmente com alguns dos homens de negócio que dominavam a Câmara.
Nos pouco mais de dois anos que compreendem a primeira fase do governo de José Marcelino (abril de 1769 a outubro de 1771), ele teve que enfrentar, em primeiro lugar, a situação de tensão fronteiriça existente entre as Coroas ibéricas, daí que as questões militares tivessem centralidade. Afinal, desde 1763 os espanhóis haviam conquistado a única vila e porto atlântico da capitania. A reorganização das tropas existentes, a criação de novas companhias e a ameaça castelhana estiveram no centro das atenções. Mas os governadores subalternos não tratavam apenas dos assuntos militares, pois seu exercício previa também a regulamentação da vida civil, dos aspectos administrativos que envolviam o provimento de determinados cargos ou ofícios, o que acabava levando a conflitos com as elites locais. O “mau gênio” do governador chegaria ao conhecimento do vice-rei marquês do Lavradio, que ordenaria seu retorno ao Rio de Janeiro e a abertura de uma devassa em 1771, conforme veremos.
Os conflitos jurisdicionais
No período moderno, dentro da ordem corporativa da monarquia portuguesa, “a iurisdictio era a competência para dizer com autoridade o direito”. No entanto, dizer o direito era mais do que resolver conflitos judiciais, ou simplesmente “fazer justiça”, na medida em que “a iurisdictio incluía todos os atos de governo” (Hespanha, 2016, p. 80). A iurisdictio era o próprio poder político, designado como a possibilidade de fazer leis e estatutos, constituir magistrados, arbitrar conflitos e emitir comandos. Por conta disso, a ação do governo deveria se pautar pela busca da manutenção da autonomia política-jurídica dos corpos sociais e o respeito às suas articulações naturais. Dessa perspectiva, “governar significava viabilizar a autonomia dos vários corpos políticos formadores do governo, garantindo o respeito a sua jurisdição” (Cosentino, 2010, p. 406). Especialmente importante para o governo das regiões ainda instáveis do ultramar (como era o caso da fronteira meridional) era a delegação de poderes reais, mesmo do poder de afastar o direito por meio de atos de graça ou por razões de suprema necessidade. Nos territórios coloniais, essa margem de discrição era importante, já que a “mobilidade” das matérias ultramarinas requeria flexibilidade de competências, de normas e de processos (Hespanha, 2016, p. 80-81).
No trabalho de Jean Frédéric Schaub sobre o governo do conde-duque de Olivares em Portugal no século XVII, os conflitos jurisdicionais são tratados como o exercício mesmo da política. Examinando os métodos de funcionamento das diferentes instituições espanholas que foram implantadas em Portugal durante a União Ibérica, Schaub tentou escapar ao apriorismo simplificador e extemporâneo da oposição ao domínio espanhol em termos nacionais. Os conflitos jurisdicionais foram considerados por ele como uma “chave de leitura” privilegiada para entender a dinâmica política das monarquias ibéricas da época moderna (Schaub, 2001, p. 216). Da mesma forma, os conflitos envolvendo governadores de capitanias, capitães-mores, provedores, ouvidores e Câmaras podem ser analisados a partir dessa perspectiva, na medida em que foram bastante frequentes, ocorrendo de norte a sul na América portuguesa.6 Antes de serem entendidos como uma disfuncionalidade, os conflitos por jurisdição expressavam muito bem o pluralismo político e jurídico do Antigo Regime e não interferiam na centralidade régia.7 Esses homens recebiam da Coroa, via regimentos, “delegação de autoridades e de poderes” que os tornavam representantes do poder real. Tal estratégia, ao contrário de aniquilar o poder real, tornava-o possível nas distantes paragens coloniais (Atallah, 2011, p. 30). No caso dos governadores coloniais, os conflitos giravam em torno de competências jurisdicionais, envolvendo o atrito direto com outras autoridades ou o acionamento do seu poder arbitrário (Curvelo, 2019, p. 428).
Consideramos ainda que os conflitos jurisdicionais devem ser compreendidos em conexão com as redes governativas que se constituíam nas regiões ultramarinas do Império português. Essas redes devem ser entendidas como “uma articulação estratégica de indivíduos no âmbito da administração”, que era o resultado, em grande parte, da combinação das trajetórias administrativas dos indivíduos conectados por meio da rede e das jurisdições estabelecidas pelos regimentos dos cargos que eles ocupavam. A formação dessas redes resultou de um conjunto de experiências e relações sociais (como as relações de parentesco e vínculos econômicos) que, de diversos modos, aproximavam e entrelaçavam determinados indivíduos que ocupavam cargos na administração portuguesa e compartilhavam experiências de vida em comum (Gouvêa, 2010, p. 179).
A devassa de 1771
Em meados de 1771, depois de ser informado sobre os supostos abusos de José Marcelino, o vice-rei Lavradio lhe escreveria dizendo: “vejo que V. Senhoria se não dá bem nesse país por ser tão contrário às suas moléstias”, informando que em breve estaria mandando seu sucessor.8 Já de sobreaviso, ele teve que esperar ainda dois meses para que o vice-rei lhe comunicasse sua substituição efetiva, determinando seu retorno urgente para o Rio de Janeiro. Desta vez o aviso veio com termos bastante contundentes: “Tenho também presente a falta de respeito com que me tem escrito por várias vezes, e que sou capaz de lhe mostrar que posso fazer com que os meus súditos me obedeçam como devem”.9
Em seu estudo sobre o governo do marquês do Lavradio, Alden afirmou que não existiriam fundamentos objetivos para a animosidade existente entre ambas as autoridades. Mas no julgamento do vice-rei, o comportamento despótico do governador era uma fonte de desassossego para as tropas e para a população do Continente, o que justificaria alguma forma de punição (Alden, 1968, p. 450-451). Lavradio acreditava que com a remoção de José Marcelino e a chegada do novo governador, Antônio da Veiga de Andrade, seria “restituída a obediência e respeito que se devem aos vice-reis do Estado”, para que “de nenhuma forma se deixe grassar o espírito de parcialidade e vingança”.10
Ao findar a primeira fase do governo de José Marcelino de Figueiredo em outubro de 1771, o vice-rei determinou a realização de uma investigação sobre seus procedimentos administrativos: “Essa devassa tirará com a maior execução, nomeando o oficial que melhor lhe parecer para escrever na mesma, e concluída que seja me remeterá logo”.11 A incumbência ficou a cargo do governador interino, Antônio da Veiga de Andrade, que procedeu aos inquéritos que foram realizados em Viamão e concluídos em 14 de novembro de 1771. Os assuntos investigados envolviam diversas acusações sobre as atitudes do governador José Marcelino, mas podem ser resumidos nos seguintes tópicos: o embargo à entrada do comissário da Ordem Terceira de São Francisco no Continente do Rio Grande; as queixas públicas que fazia contra o vice-rei marquês do Lavradio; sua animosidade com o provedor da Fazenda Real, Inácio Osório Vieira; a prisão arbitrária do escrivão da Fazenda Antônio José de Moura; seu desacato aos “povos” e aos oficiais da Câmara; e as supostas arrematações ilegais de couros e farinhas pertencentes à Fazenda Real. A devassa focava principalmente nos conflitos havidos entre o governador e os oficiais fazendários e camarários, embora também contemplasse as possíveis irregularidades cometidas com os bens reais e as atitudes “despóticas” de José Marcelino.
Embora o auto de devassa não esteja completo, pois o documento que sobreviveu traz somente 16 das trinta testemunhas que foram interrogadas, ele permite que acessemos, ao menos parcialmente, as diversas redes de poder existentes na capitania.12 Os depoimentos dos homens de negócio, burocratas, militares e fazendeiros inquiridos nos desvelam aspectos fundamentais sobre os interesses políticos e econômicos assentados naquela parte da América portuguesa.13 No século XVIII, o termo devassa definia o “ato jurídico em que por testemunhas se toma informação de algum caso crime” (Bluteau, 1713 p. 188). Tratava-se, pois, de uma investigação preliminar, realizada para reunir informações sobre a existência e circunstâncias de algum crime, procurando determinar sua autoria. No caso de José Marcelino, abriu-se uma devassa especial, que já partia da suspeita de que um crime havia sido praticado. E não um crime qualquer, pois foram arroladas trinta testemunhas, número reservado para os casos considerados mais graves (Costa, Domingos, 2009, p. 9-10).
O primeiro assunto investigado na devassa não trata propriamente de um conflito jurisdicional, por isso é importante contextualizar a questão que envolveu o governador José Marcelino e os membros da Ordem Terceira de São Francisco de Viamão, associação religiosa perpassada por várias redes de sociabilidade e que congregava uma parte expressiva da elite do Rio Grande de São Pedro. As ordens terceiras gozavam de um estatuto mais elevado em relação às demais irmandades, principalmente pelos seus critérios rígidos de seleção, além do fato de serem vinculadas diretamente a uma ordem religiosa reputada, especialmente no caso dos franciscanos.14 A desavença foi originada de uma portaria assinada em 1770 pelo bispo do Rio de Janeiro, dom Antônio do Desterro, na qual o prelado suspendeu das suas funções o frei Francisco da Conceição, comissário da Ordem Terceira na comarca de Viamão, por desobediência ao seu superior, que havia mandado novo comissário (Kühn, 2010, p. 128-129). No começo de 1771, frei Francisco tentou retornar para a capitania, quando José Marcelino impediu sua entrada, mantendo-o detido na guarda do rio Tramandaí, alegando que ele continuava suspenso das suas funções.
Segundo vários depoentes, o governador teria dito que enquanto ele governasse não haveria de entrar na capitania aquele religioso. Porém, o mais grave seria o atrito decorrente dessa interdição, quando o procurador dos terceiros, o negociante Antônio Moreira da Cruz, solicitou que o governador reconsiderasse sua decisão. O governador respondeu ao pedido do procurador dizendo que “ele não era governador de simples despachos” e ultrajou o procurador “com palavras indecentes e a todos os terceiros”. Outra testemunha afirmou que “recolhendo a si a petição brotara em palavras desatentas e envolvendo nelas todo o povo”.15 Ao desatender a reivindicação dos terceiros, o governador inviabilizava a formação de alianças com um setor importante da elite local, formado pelos homens de negócio, que também eram oficiais camarários e tinham postos nas ordenanças. Importante registrar que o procurador dos terceiros, Antônio Moreira da Cruz, fazia parte do “bando dos cunhados”, uma facção política controlada por indivíduos pertencentes à elite mercantil local, com expressiva presença na Câmara.16
O termo “bando” vem sendo utilizado na historiografia de diferentes formas, que convergem para seu entendimento como uma parcialidade ou facção política. Um “bando” seria composto pelos indivíduos envolvidos na governança do bem comum cujos membros se viam ligados concomitantemente por interesses comuns, laços familiares e reciprocidades (Fragoso, 2003, p. 20). Seria uma organização de pessoas de diferentes estratos sociais, associadas principalmente por vínculos de parentesco e reciprocidade. Era uma organização vertical no interior da sociedade, englobando desde os escravizados até os chefes das melhores famílias da terra (Gil, 2007, p. 128). De fato, o princípio de uma jurisdição própria e espontânea aplicava-se a populações pequenas e isoladas no sertão, vivendo à sua maneira, e governadas segundo o seu próprio conjunto de normas, pelas famílias ou facções mais poderosas, denominadas bandos ou parcialidades (Hespanha, 2016, p. 91).
Confrontos com o vice-rei Lavradio
Durante a maior parte do seu governo, José Marcelino esteve subordinado ao vice-rei marquês do Lavradio, aristocrata e militar com extensa carreira a serviço da Coroa portuguesa.17 Deve ser lembrado que os vice-reis e governadores-gerais eram os representantes pessoais do monarca, pelo que lhes eram confiados os poderes do príncipe, tais como o poder de dispensar a lei ou de administrar a graça real, na forma de mercês, ofícios, tenças, ou ainda, perdões de crimes (Hespanha, 2010b, p. 61).
Com pouco menos de dois anos no cargo, dom Luís de Almeida constatava que “a desconsolação em que vive esse povo [do Rio Grande] pelo mau método do coronel José Marcelino, ficará acabada com a chegada do novo governador”. Lembrava que “este homem como sempre foi mau súdito, era impossível que fosse nunca bom superior”. Lavradio julgava a nomeação de José Marcelino um equívoco do seu antecessor, por ele ter dado “provas de não ser de um caráter próprio para semelhante emprego”.18 O vice-rei descreveria ao secretário Martinho de Melo e Castro os motivos que lhe levaram a remover o governador José Marcelino:
Conservando-se no sistema de que ele despoticamente é que podia governar aquela Província, sem sujeição alguma ao vice-rei do Estado, a quem só devia dar conta das resoluções que tivesse tomado sobre o seu Governo. Representaram-me as Câmaras e os povos por diferentes vezes as opressões que continuamente estavam experimentando, vivendo todos já em uma tal intriga, que tudo naquela Província era desordem.19
Um dos pontos investigados na devassa foram justamente as “queixas públicas” que ele fazia contra o vice-rei marquês do Lavradio. Várias testemunhas afirmaram ter ouvido ele dizer que “o senhor marquês governava no Rio de Janeiro e ele este Continente”. Outras testemunhas acrescentaram que dizia que “quem o tinha feito a ele governador, tinha feito ao marquês vice-rei”, observando ainda que ele se queixava de que Lavradio não “dava solução às suas propostas”, sendo que o coronel José Custódio de Sá e Faria supostamente “concorria para isso”. Mais ainda, José Marcelino seria “malvisto” pelo vice-rei “por razões que tivera com um criado seu”.20
Um importante homem de negócio acrescentou detalhes significativos, confirmando que “por várias vezes lhe lera o dito governador várias cartas de serviço do Senhor vice-rei, queixando-se de que não dava solução às suas propostas”. Afirmou ainda que lhe ouvira dizer “que estava de acordo de seguir o método de governo do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco, e outras mais que não cuidavam se empenhar no serviço e só sim em divertimentos e nos aumentos de suas pessoas, o único fim porque eram mandados”.21 Nesse ponto, José Marcelino fazia duras imputações aos seus colegas das capitanias principais. Por suposto, quando se referia aos “aumentos de suas pessoas”, não pensava apenas no possível acrescentamento social que o exercício desses postos podiam trazer, mas também nas vantagens pessoais, inclusive de caráter pecuniário. Porém, recorde-se que enriquecer durante o exercício do cargo não era, por si só, um delito. Todavia, os governadores deveriam se manter dentro dos limites da licitude, buscando um “equilíbrio entre o enriquecimento lícito e o respeito ao patrimônio régio, para que não fossem atingidos os interesses da Coroa” (Romeiro, 2017, p. 190).
Assim, os embates com o vice-rei foram frequentes, pois o governador José Marcelino, apesar de formalmente subordinado ao marquês do Lavradio, agia por conta própria muitas vezes, descumprindo ordens vindas do Rio de Janeiro e governando de forma “despótica”, inviabilizando a autonomia dos corpos políticos formadores do governo e desrespeitando a sua jurisdição.
As contendas com os oficiais da Fazenda
A Provedoria da Fazenda Real foi criada em 1748, inicialmente instalada na vila de Rio Grande e transferida posteriormente para Viamão, em função da “invasão espanhola” de 1763 (Miranda, 2000, p. 91). No período que estamos tratando, toda a estrutura da Provedoria não teria mais do que uma dezena de oficiais, sob o comando do provedor da Fazenda Real, o capitão Inácio Osório Vieira, provido no cargo em 1765 pelo governador José Custódio de Sá e Faria (Arpini, 2015, p. 46). A fazenda constituía um domínio bem caracterizado da administração real periférica, não apenas pela especificidade do seu objeto, mas também porque os laços de dependência em relação à Coroa eram mais efetivos, sendo aqui os cargos configurados como comissões reais (Hespanha, 1986, p. 294).
Inácio Osório era um homem controverso, supostamente líder de uma “parcialidade” e conhecido por ter um “séquito” de militares e paisanos sob suas ordens, muito embora também tivesse fama de zeloso e de ter “limpeza de mãos”.22 Os enfrentamentos entre José Marcelino e Inácio Osório tiveram origem na necessidade de recursos financeiros para despesas da administração da capitania, o que fez com que o governador obrigasse o provedor a lhe dar os recursos provenientes dos rendimentos da arrematação da fazenda da Cidreira.23 Esses recursos deveriam ter sido remetidos para o Rio de Janeiro, mas foram tomados compulsoriamente pelo governador, que determinou por meio de uma portaria que o provedor da Fazenda Real dispusesse o dinheiro. O montante deveria ser utilizado para pagamento dos trabalhos realizados na nova fragata de Sua Majestade e o restante enviado para as fronteiras do Continente “para ali se despender diariamente por estarem ameaçadas dos espanhóis”. O governador justificava a medida, “visto não haver outro dinheiro na terra que se possa tomar, nem ter chegado da capital”.24
No mesmo dia, o provedor deixou registrado um veemente protesto, pois tinha “forçosa dúvida na distribuição do dinheiro de que trata a Portaria”, já que uma ordem do Tribunal da Junta determinava que os recursos deveriam ser enviados aos cofres do erário no Rio de Janeiro. Resoluto, afirmava que “não consinto, nem devo se distribua o dito dinheiro por esta Provedoria”. Pedia que ele obedecesse ao disposto pelo Tribunal, porém José Marcelino não se dobrou e visou legitimar sua decisão com base em um dos dispositivos do seu regimento. Em réplica ao provedor, explicou que ele deveria cumprir a portaria, “como a necessidade é tão urgente e neste caso me faculta o Regimento dos Governadores deste Continente no capítulo dezessete, poder por providência alterar algumas ordens de Sua Majestade, vendo que é assim necessário e conveniente ao Real Serviço”.25 José Marcelino aproveitou para informar que tinha “ordem para tomar cada um mês, quinze mil cruzados para pagamentos e despesas desta Provedoria, faltando a remessa deles a qual falta há mais de um ano”. 26 Esses recursos eram obtidos mediante os empréstimos feitos pelos homens de negócio, que adiantavam ao governo dinheiro para pagamento das tropas. Mesmo que essas contribuições não fossem forçadas, essa medida ia de encontro à “ordem moral da Fazenda”, pois as regras de ouro da gestão financeira eram as mesmas que presidiam todas as demais atividades de governo, ou seja, a justiça. Daí que “qualquer intromissão do rei no patrimônio dos vassalos deveria ser excepcional” (Hespanha, 2010a, p. 186).
Na devassa, as testemunhas referiram-se quase todas às disputas havidas entre o governador José Marcelino e o provedor da Fazenda, Inácio Osório Vieira. Diversos depoentes afirmaram que José Marcelino obrigara por portaria que [Inácio Osório] lhe desse os recursos provenientes do sequestro da fazenda da Cidreira”. Diante da impugnação feita pelo provedor, o governador o detivera em sua casa, “dizendo com vozes alteradas que o havia de prender, não como Provedor, mas como louco”. A altercação foi confirmada pelo escrivão da Câmara, que disse que “violentamente [o] obrigou a efetuar a despesa, querendo prender ao Provedor por louco por ir contra suas ordens”. Outra testemunha declarou que do episódio “resultara haver entre os dois grandes razões”. 27
A devassa também investigou a prisão arbitrária do escrivão da Fazenda Antônio José de Moura. Ele havia sido provido no seu cargo pelo antecessor de José Marcelino, o coronel José Custódio de Sá e Faria. Moura fazia parte da facção política do ex-governador, que tinha entre seus principais cabeças Rafael Pinto Bandeira, militar e estancieiro, filho dos primeiros conquistadores do Rio Grande de São Pedro.28 Antes de se recolher à prisão no Rio de Janeiro, Antônio José de Moura fez registrar um salvo-conduto na Provedoria, que, na verdade era uma tentativa de defesa prévia. Afirmava que servia com “zelo e limpeza de mãos”, quando “lhe maquinaram algumas pessoas suas inimigas o crime de haver desencaminhado alguns gêneros da Real Fazenda”. Queria poder sair de Viamão para o Rio de Janeiro, sem passar pelas “violências e injustos procedimentos” que ali tinha sofrido.29
A correspondência de Lavradio com José Marcelino não deixa dúvidas que o vice-rei não concordava nem um pouco com o encaminhamento do caso: “Vejo o que me diz a respeito do escrivão da Fazenda Real desse Continente e não me parece justo o procedimento”. A prisão somente deveria ter ocorrido “depois de se achar pronunciado na devassa e com culpa formada”. Lavradio reclamou que não aparecia em parte alguma a devassa que fora feita pelo governador, ordenando que o provedor Inácio Osório Vieira enviasse um “traslado autêntico” com a maior brevidade que fosse possível. Meses depois, o vice-rei acusou o recebimento da cópia da devassa, lembrando a José Marcelino que “só a mim competia tomar conhecimento dela”. Crítico da autonomia do seu subordinado, lhe advertiu dizendo “foram errados os projetos que tem formado nesta parte, assim também como o tem feito os outros muitos, que todos lhe podem agora servir de exemplo, por deixar de repetir alguns excessos”.30
O tema da prisão de Antônio José de Moura voltaria à tona na devassa de 1771. Quase todas as testemunhas confirmam que Moura fora preso, apesar de ter um despacho do vice-rei “para poder passar livre ao Rio de Janeiro”. Foi recolhido ao corpo da guarda em Viamão, onde dormiu uma noite. No dia seguinte, foi escoltado até o rio Tramandaí, “até fora das guardas deste Continente”. Uma das testemunhas trouxe uma informação nova, ao afirmar que “queria o mandar deitar fora das guardas acompanhado de soldado, por não querer que passasse nesta Capela pela fugida que tinha feito do corpo da guarda”.31 A referência a uma suposta fuga do escrivão pode indicar uma facilitação por conta da inserção de Moura em redes de poder ainda atuantes na capitania. Assim, a detenção do escrivão deve ser entendida no âmbito da rede governativa da qual ele fazia parte, sendo conhecido seu vínculo com José Custódio de Sá e Faria.
Quanto ao provedor da Fazenda Real, existiu de fato uma intromissão na sua jurisdição, na medida em que o governador José Marcelino se baseava no “regimento dos governadores” que lhe facultava alterar disposições régias. Isso trouxe incômodos no seu relacionamento com Inácio Osório Vieira, pois os recursos eram administrados pelo provedor, que tinha ordens de remetê-los para o Rio de Janeiro. Ao passar por cima dessas ordens, o governador abria uma frente de conflito com uma das principais autoridades residentes naquela fronteira. Mas a Provedoria não seria a única instituição na qual José Marcelino buscaria intervir, também os “homens bons” sentiriam o peso da sua autoridade.
Poderes locais: a conflituosa relação com os oficiais da Câmara
Os depoentes da devassa deram especial atenção ao desacato praticado contra os “povos” e a Câmara. Eles foram praticamente unânimes quanto ao tratamento indecoroso que José Marcelino dispensava aos representantes do poder local. Uma das testemunhas afirmou que ele tratava os povos com “aspereza e desabrimento” e lhes fazia “algumas violências”.32 Importante lembrar que como totalidade política, o “povo” na sociedade de Antigo Regime estava associado à ideia de justiça e à relação com o monarca. O conceito de povo e de povos deve ser entendido no âmbito de um pacto político: dos vassalos era esperada a defesa da soberania portuguesa nos territórios e do rei era esperado que agisse com justiça, o que significava respeitar os direitos das diversas partes que compunham a sociedade, especialmente os “povos” representados nas câmaras (Pereira, 2010, p. 102-103).
Uma peculiaridade das elites sul-rio-grandenses do período colonial residia no fato de que elas se dividiam de acordo com os nichos de atuação, possibilitando uma coexistência praticamente sem concorrência. O “bando” dos Pinto Bandeira se ocupava em preencher as tropas de primeira e segunda linhas, agrupando em torno da liderança de Rafael Pinto Bandeira, que provinha de uma família que gozava de antiguidade na terra. Manuel Bento da Rocha e seus cunhados eram, por sua vez, migrantes de primeira geração, que participavam com bastante frequência da Câmara e praticamente monopolizaram o oficialato de ordenanças (Comissoli, Gil, 2012, p. 257-258).
Os governadores não tinham, a princípio, nenhuma ingerência sobre a nomeação dos oficiais de ordenanças, que eram geralmente indicados pelas Câmaras locais. O que não quer dizer que eles não acompanhassem de perto o processo de indicação e escolha desses postos de prestígio. Um bom exemplo foi o caso das propostas para o posto de sargento-mor, o segundo cargo na hierarquia das ordenanças, que foi objeto de especial atenção do governador, pois ele não concordava com nenhum dos três nomes escolhidos pelos oficiais camarários. Cabe observar que os três nomes sugeridos eram membros destacados da elite local, homens de negócio inseridos nas principais facções políticas ou parcialidades e relacionados de alguma forma ao ex-governador José Custódio. 33
Voltando ao conteúdo da devassa, os depoimentos são reveladores a respeito da relação turbulenta do governador com os oficiais camarários. Uma testemunha disse que José Marcelino “os maltratava com palavras e injustas prisões”. Além disso, “escrevia cartas à Câmara despóticas”, dizendo “em conversações que os Camaristas eram uns bêbados e que este povo se compunha de ladrões”. 34 Os conflitos de jurisdição apareciam de forma explícita nos depoimentos, pois outro depoente afirmou que “era voz corrente que violentamente tirara dinheiros dos diferentes juízos e homens de negócio para despesas do Continente”. Disse ainda que os camaristas se queixavam do tratamento indecoroso que recebiam, “usurpando-lhe as jurisdições”. Como exemplo dessas atitudes, lembrava que ele ordenou que o vereador mais velho da Câmara acompanhasse 12 presos até a vila de Laguna.35 Outro depoente afirmou que “por várias vezes escrevera à Câmara cartas pouco decorosas ao corpo do Senado, ordenando nelas cumprissem suas ordens, pois tinha jurisdição sobre eles na forma da sua patente”. De fato, constava na sua carta-patente que “todos os oficiais de Guerra, Justiça e Fazenda” lhe deviam obediência e deveriam cumprir suas ordens. Ele gozaria “de todas as honras, jurisdições e mando de que gozaram os mais governadores do dito Continente e só com subordinação do Governo desta capital”.36
Nos depoimentos do grupo mercantil, aparecem as mais detalhadas acusações, justamente porque muitos dos homens de negócio também compunham o poder camarário. Um deles assegurou que “a Câmara se queixava amargamente de que [José Marcelino] tratava com palavras indecorosas” aos oficiais. Ele tentava mandar “despótico sobre o corpo da Câmara”, sendo “bastantemente desabrido, descompondo por vezes algumas partes”. Mais ainda, teria os forçado “para que condescendessem com a sua vontade na entrega de uns dinheiros pertencentes a terceiros, postos em juízos e em depósitos”. Outro poderoso negociante, que servia de juiz ordinário em 1771, arrolou várias queixas: o governador era áspero e violento no seu trato e disposições; soltava presos feitos pela justiça ordinária; obrigou a Câmara a dar o dinheiro para a construção do passo do Vigário; além de ameaçar os camaristas com correntes e prisões.37 Em resumo, o governador agiria de forma “despótica” em relação aos oficiais camarários, além de obrigá-los a realizar contribuições financeiras para obras públicas e pagamentos das tropas, ferindo mais uma vez a “ordem moral da Fazenda”.
Nessa altura, quando a devassa era concluída, José Marcelino já não era mais o primeiro mandatário no Rio Grande de São Pedro, tendo assumido o governador interino, tenente-coronel Antônio da Veiga de Andrade.38 Apesar da interinidade, o seu substituto era homem bem conhecido das elites locais. Lavradio o considerava um “oficial bastantemente inteligente, muito prudente, e de quem o conde de Bobadela fez bastante conceito”. Também conhecia muito bem o território que iria governar, sendo “sempre muito bem aceito e respeitado naquele Continente”.39 Ele ficaria no poder interinamente durante cerca de um ano e meio. Porém, o desassossego do marquês do Lavradio com o governo da capitania meridional não acabaria com essa mudança, pois o vice-rei logo ficaria consternado com as notícias sobre as supostas irregularidades praticadas pelo governador interino.40
Considerações finais
Levando em conta a narrativa detalhada da devassa, que conclusões efetivamente podem ser extraídas? Como entender os constantes conflitos que envolveram o governador José Marcelino com outras autoridades? Por um lado, temos que considerar que os conflitos jurisdicionais podem ser entendidos essencialmente como um “modo de governar” característico do Antigo Regime, no qual haveria um balanço permanente e instável entre os poderes locais, regionais e as agências centrais da Coroa, que competiam entre si, mas permitiam a tutela real sobre o sistema (Bethencourt, 2007, p. 199). Mas ainda assim os administradores coloniais tentavam estabelecer redes governativas que lhes conferissem alguma estabilidade política, ainda mais em contextos de guerra, como era o caso da capitania sulina no período em questão.
Apesar do seu “despotismo”, José Marcelino não chegou a ser efetivamente punido pela Coroa, a não ser pela suspensão temporária no cargo. Advertido pelo vice-rei, permaneceu algum tempo no Rio de Janeiro, mas foi enviado de volta para a capitania fronteiriça, reassumindo suas funções em 1773. Embora Lavradio tenha ordenado a realização da devassa ao governador interino Antônio da Veiga Andrade, cabe observar que ele apenas colheu os depoimentos que foram enviados ao Rio de Janeiro. Quase metade das testemunhas arroladas fizeram parte da Câmara, o que evidencia a força dos poderes locais no levantamento das acusações que comprometiam o governador. O desfecho verificado pela pesquisa evidenciou como o próprio pluralismo jurídico de certo modo modulou os conflitos descritos pela fonte. Isso porque o direito consuetudinário e as práticas jurídicas locais utilizadas pelas comunidades e reforçadas pelas elites locais, formavam um ordenamento jurídico cotidiano e eficaz (Hespanha, 2016, p. 91). Em outras palavras, os direitos dos “povos” expressavam, de alguma forma, a prevalência dos usos locais como fonte de autoridade, que vinha sendo vilipendiada pelo governador.
Também caberia apontar as dificuldades de José Marcelino em estabelecer um governo estável nos primeiros dois anos da sua administração (1769-1771), em parte por conta da manutenção nos cargos de alguns indivíduos que eram peças-chave da rede governativa comandada pelo ex-governador José Custódio. Nessa rede, o “bando dos cunhados” se conectava ao “bando” dos Pinto Bandeira. Dessa rede fariam parte o provedor da Fazenda, Inácio Osório Vieira, os escrivães da Fazenda Antônio José de Moura e Domingos da Lima Veiga, o governador interino Antônio da Veiga de Andrade, além de membros da elite local, como o próprio Rafael Pinto Bandeira e Antônio Pinto Carneiro, e alguns oficiais da Câmara, como o capitão Manuel Bento da Rocha. Esses indivíduos mantinham diversos tipos de relações entre si, desde laços de compadrio até vínculos de negócios, mas também tinham - em sua maioria - um passado comum em termos de experiências pessoais compartilhadas, sendo que muitos deles se conheciam desde a passagem de Gomes Freire de Andrade pelo Sul, no contexto das demarcações do Tratado de Madri durante a década de 1750.
Por fim, o exame desses conflitos contribui para a compreensão das transformações ocorridas na governação do Rio Grande de São Pedro setecentista. O sucessor de José Marcelino no cargo foi o brigadeiro Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara (1780-1801), que tinha um estilo de governar bastante distinto. Durante o seu governo, os conflitos com os poderes locais diminuem bastante de intensidade, embora não desapareçam por completo. A partir de então, o estilo de governo combativo de José Marcelino de Figueiredo seria substituído por uma política mais sutil de administração baseada na “dissimulação” e contemporização de interesses (Gil, 2007, p. 75-76). Uma nova conjuntura se abria para o Rio Grande de São Pedro, que de uma região periférica e deficitária se tornava uma das zonas de crescente interesse político e econômico para o Império português na América durante a virada do século XVIII para o século XIX.
Agradecimentos aos avaliadores Marcello Loureiro e Tiago Luís Gil por seus pareceres para este artigo.
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1
A residência era um mecanismo de fiscalização da conduta dos funcionários e ministros régios, previsto na legislação portuguesa. Realizada no final do mandato, era o equivalente a uma investigação baseada no depoimento de testemunhas, que eram perguntadas sobre os diversos aspectos de atuação do sindicado em questão (Romeiro, 2017, p. 218-219).
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2
José Marcelino de Figueiredo era o codinome de Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda (1735-1814), natural de Bragança (Portugal). Militar de carreira, estava lotado no Regimento dos Voluntários Reais do Faro em 1764, quando matou um oficial britânico, sendo por conta disso enviado em segredo ao Rio de Janeiro. No ano seguinte (1765), com a patente de coronel, seria nomeado comandante da fronteira do Rio Grande, subordinado ao governador José Custódio de Sá e Faria. Governou a capitania do Rio Grande de São Pedro por cerca de uma década, entre 1769-1771 e 1773-1780 (Barreto, 1973, p. 519-520).
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3
Arquivo Nacional (AN, Rio de Janeiro). Fundo Vice-reinado. Cód. 69, v. 1, fl. 36v-38v. Carta do vice-rei conde de Azambuja ao secretário Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Rio de Janeiro, 9 de março de 1769. Todas as transcrições da documentação manuscrita foram atualizadas em termos de ortografia e gramática.
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4
AN (Rio de Janeiro). Fundo Vice-reinado. Cód. 70, v. 4, fl. 53v-54v. Carta do vice-rei conde de Azambuja ao governador José Marcelino de Figueiredo. Rio de Janeiro, 15 mar. 1769.
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5
Termo de Vereança (Viamão, 23 abr. 1769). Boletim Municipal, ano III, n. 9, set.-dez. 1941, p. 485. José Custódio de Sá e Faria (1710-1792) chegou ao Rio de Janeiro em 1751, nomeado sargento-mor engenheiro da expedição de demarcação de limites do Tratado de Madri, destacando-se pelo seu trabalho como cartógrafo. Graças ao conhecimento que adquiriu sobre o território sulino, foi nomeado na década seguinte governador do Rio Grande de São Pedro, entre 1764-1769 (Barreto, 1973, p. 486-487).
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Em Pernambuco, na segunda metade do século XVII, ocorreu uma crescente interferência na jurisdição das capitanias do Norte, principalmente no aspecto militar. Desde então encontramos conflitos de jurisdição e de poder entre os governadores e os capitães-mores das capitanias do Rio Grande e Paraíba (Acioli, 1997). No interior da própria capitania também eclodiram conflitos entre os poderes locais e os oficiais régios, chegando ao paroxismo da prisão do governador Jerônimo de Mendonça Furtado em 1666 (Mello, 1995). Na Paraíba setecentista, o governador Jerônimo de Mello e Castro sofreu uma tentativa de assassinato, encomendada pela família Bandeira de Mello, proprietários do ofício de escrivão da Fazenda (Chaves Jr., 2015). Da mesma forma, no Centro-Sul durante o século XVIII: na capitania de Minas Gerais ocorreram sérios conflitos entre o governador dom Lourenço de Almeida e o ouvidor da comarca do Rio das Velhas (Atallah, 2011). Em São Paulo, os governadores Morgado de Mateus e Martim Lobo de Saldanha, eram acusados de invadir jurisdições dos provedores, ouvidores e das Câmaras (Bellotto, 2007; Leite, 2018). Na parte meridional da América portuguesa, os conflitos jurisdicionais dos governadores de Santa Catarina se deram com autoridades de capitanias vizinhas (provedores e governadores) que avançavam sobre supostos direitos tributários ou territoriais que estariam sendo usurpados (Silva, 2013).
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7
O “pluralismo jurídico” existente na monarquia corporativa portuguesa refere-se a uma situação em que “a lei estatutária era limitada e constituída pela doutrina jurídica europeia (ius commune) e por usos locais e práticas judiciais” (Hespanha, 2010, p. 46).
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8
Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Fundo Marquês do Lavradio. Microfilme 024-97, Notação 2.67. Carta do vice-rei marquês do Lavradio para o governador José Marcelino de Figueiredo. Rio de Janeiro, 9 jun. de 1771.
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9
Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Fundo Marquês do Lavradio. Microfilme 024-97, Notação 2.73-74. Carta do vice-rei marquês do Lavradio para o governador José Marcelino de Figueiredo. Rio de Janeiro, 14 ago. 1771.
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10
Carta de amizade ao sargento-mor Francisco José da Rocha. Rio de Janeiro, 9 set. 1771. Cartas do Rio de Janeiro (1769-1776): Marquês do Lavradio. Rio de Janeiro: Instituto Estadual do Livro, 1978, p. 82.
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11
AN (Rio de Janeiro). Fundo Marquês do Lavradio. Microfilme 024-97, Notação 2.75. Carta do vice-rei marquês do Lavradio para o governador Antônio da Veiga Andrade. Rio de Janeiro, 27 ago. 1771.
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12
Da nossa amostra parcial, composta por 16 testemunhas, seis depoentes disseram viver do “seu negócio”. Outros cinco declararam seus ofícios na administração colonial, constando ainda três militares e dois indivíduos que declararam viver de “suas fazendas”.
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13
AN (Rio de Janeiro). Fundo Vice-reinado, caixa 749, pct. 3. Auto de Devassa, ano de 1771.
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14
Tradicionalmente se considera que “a profissão nas ordens terceiras era sinônimo de status e privilégios das classes dominantes. Ser admitido numa ordem terceira significava pertencer à elite social” (Boschi, 1986, p. 162).
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15
Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Fundo Vice-reinado, caixa 749, pct. 3. Auto de Devassa, ano de 1771. Depoimentos de Luís Antônio da Costa Viana, escrivão dos órfãos e do capitão Manuel Bento da Rocha, homem de negócio.
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O “bando dos cunhados” faz referência a uma facção política atuante na capitania do Rio Grande de São Pedro principalmente nas décadas de 1760 e 1770, formada por homens de negócio e oficiais camarários. Este “bando” possuía uma estrutura nuclear bastante sólida, constituída por Manuel Bento da Rocha, Manuel Fernandes Vieira, Mateus Inácio da Silveira, Antônio Moreira da Cruz, Domingos Gomes Ribeiro e os irmãos Francisco Pires Casado e José Francisco da Silveira Casado (Comissoli, 2008, p. 100).
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Dom Luís de Almeida, o segundo marquês de Lavradio, nasceu nos arredores de Lisboa em 1729, filho primogênito de dom Antônio de Almeida, que foi governador de Angola. Dom Luís seguiu a carreira militar, foi comandante do regimento de Cascais, sendo nomeado governador da Bahia, antes do seu provimento como vice-rei do Brasil. O conde de Azambuja passou o cargo ao seu sucessor, o marquês de Lavradio, em 4 de novembro de 1769. Ficou no cargo até 1779, retornando a Portugal, onde faleceu em 1790 (Alden, 1968, p. 4-6, 29, 477-478).
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Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). Divisão de Reservados. PSS, cx. 3. Cartas de ofício do marquês do Lavradio, 1768-1774. Carta de ofício do vice-rei marquês do Lavradio para o sargento-mor Francisco José da Rocha. Rio de Janeiro, 14 set. 1771.
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BNP. Divisão de Reservados. PSS, cx. 3. Cartas de ofício do marquês do Lavradio, 1768-1774. Carta de ofício do vice-rei marquês do Lavradio para o secretário de Estado Martinho de Mello e Castro. Rio de Janeiro, 4 nov. 1771. Lavradio informava ainda que “faço tenção logo que for chegado de o ter preso alguns dias pela falta de execução de minhas ordens, e o pouco respeito com que deixava de as executar e de receber as minhas advertências”.
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20
AN (Rio de Janeiro). Vice-reinado, caixa 749, pct. 3. Auto de Devassa, ano de 1771. Depoimentos de José Bernardo de Meireles, fiel da Fazenda Real, João Pereira Chaves, fazendeiro e José Martins Baião, homem de negócio.
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21
AN (Rio de Janeiro). Vice-reinado, caixa 749, pct. 3. Auto de Devassa, ano de 1771. Depoimento do capitão Manuel Bento da Rocha, homem de negócio.
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Inácio Osório Vieira (c. 1721-1801) era natural de Lamego, Portugal, tendo chegado ao Brasil em meados do século XVIII. Em 1761, tornou-se escrivão da Câmara da vila de Rio Grande, tendo comprado o cargo por trinta mil réis. Nesse período, foi acusado de irregularidades no exercício do cargo pelo ouvidor de Santa Catarina. Era considerado o “cabeça” de uma “parcialidade”, que também teria entre seus membros o juiz de órfãos Domingos de Lima Veiga e o governador José Custódio de Sá e Faria. Sobre ele pesava a acusação de apropriação indevida da quantia de três mil cruzados que teria sido tomada do cofre dos órfãos. Com a tomada espanhola da vila do Rio Grande em 1763, veio para Viamão, onde foi agraciado com o posto de capitão de ordenanças e tornou-se provedor da Fazenda em 1765, cargo que exerceria por mais de trinta anos (Arpini, 2015, p. 44-50).
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23
A estância ou fazenda da Cidreira foi confiscada por conta de dívidas pela Fazenda Real, que a arrendava para particulares. Ela pertencia originalmente ao capitão Manuel Pereira Franco, homem de negócio e almoxarife na Colônia do Sacramento entre 1748 e 1762.
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24
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Registro Geral da Real Fazenda. Códice F1243, fl. 237-238v. Portaria sobre dispêndio do rendimento da fazenda da Cidreira. Viamão, 12 fev. 1771.
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25
AHRS. Códice F1243, fl. 167-173. O “Regimento dos Governadores” (1764) de fato reconhecia tal prerrogativa: “Tudo o que V.S. ordenar ao Provedor da Real Fazenda ele o deve cumprir; porém se alguma das mesmas ordens encontrarem as de S.M., ele lhe deve representar a justa dúvida que tiver, e V.S. poderá mandar que sem embargo dela execute a sua: isto se entende no caso de V.S. lhe parecer que o que tem mandado é conveniente e importante ao serviço de S.M”.
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26
O marquês do Lavradio ficou muito insatisfeito com os acontecimentos e questionou severamente a retenção de fundos realizada por José Marcelino: “Qual é a ordem minha, que tem para todos os meses tomar neste Continente a referida quantia de 15 mil cruzados para os pagamentos e despesas desta Provedoria? AN (Rio de Janeiro). Fundo Marquês do Lavradio. Microfilme 024-97, Notação 2.68-69. Carta do vice-rei marquês do Lavradio para o governador José Marcelino de Figueiredo. Rio de Janeiro, 17 jun.1771.
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27
Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Vice-reinado, caixa 749, pct. 3. Auto de devassa, ano de 1771. Depoimentos de Miguel Luís da Fonseca, homem de negócio, Domingos Martins Pereira, escrivão da Câmara e Domingos Martins de Almeida, tenente-coronel de ordenanças.
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28
O ex-governador José Custódio de Sá e Faria tinha ligações com o “bando” ou parcialidade encabeçado pelo militar e estancieiro Rafael Pinto Bandeira, membro destacado da elite local. Para detalhes sobre a formação desse “bando” e as formas de cooptação de seus componentes, ver Gil (2007, p. 129-141).
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29
AHRS. Registro Geral da Real Fazenda. Códice F1243, fl. 227v-228. Viamão, 27 de agosto de 1770.
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30
AN (Rio de Janeiro). Fundo Marquês do Lavradio, Notação 2 (Correspondência do vice-rei com governadores): 2.13, 2.39-40 e 2.60-61. Respectivamente, cartas de 10 mar. 1770, 19 nov. 1770 e 7 abr. 1771.
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31
AN (Rio de Janeiro). Vice-reinado, caixa 749, pct. 3. Auto de devassa, ano de 1771. Depoimento de Antônio Pinto Carneiro, capitão de Dragões.
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32
AN (Rio de Janeiro). Vice-reinado, caixa 749, pct. 3. Auto de devassa, ano de 1771. Depoimento de João Martins dos Santos, homem de negócio.
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33
Boletim Municipal. Ano III, n. 9, p. 498-499. Termo de vereança e proposta de sargento-mor. Viamão, 2 fev. 1770. Os indicados eram o escrivão Domingos da Lima Veiga e os capitães Francisco Pires Casado e Bernardo José Pereira.
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34
AN (Rio de Janeiro). Vice-reinado, caixa 749, pct. 3. Auto de devassa, ano de 1771. Depoimento de Domingos Martins de Almeida, tenente-coronel das ordenanças.
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35
AN (Rio de Janeiro). Vice-reinado, caixa 749, pct. 3. Auto de devassa, ano de 1771. Depoimento de João Pereira Chaves, fazendeiro. Naquele ano, o vereador mais velho era José Francisco da Silveira Casado, membro do “bando dos cunhados”.
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AN (Rio de Janeiro). Vice-reinado, caixa 749, pct. 3. Auto de devassa, ano de 1771. Depoimento de Domingos Martins Pereira, escrivão da Câmara. AHRS. Códice F1243, fl. 189-190v. Patente de nomeação do governador José Marcelino de Figueiredo. Rio de Janeiro, 9 mar. 1769.
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AN (Rio de Janeiro). Vice-reinado, caixa 749, pct. 3. Auto de devassa, ano de 1771. Depoimentos dos homens de negócio Mateus Inácio da Silveira, Miguel Luís da Fonseca e Manuel Bento da Rocha.
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Em 26 de outubro de 1771, Veiga Andrade tomou posse do governo do Rio Grande de São Pedro, governando até 5 de abril de 1773, quando entregou o poder novamente a José Marcelino de Figueiredo.
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Biblioteca Nacional de Portugal. Divisão de Reservados, PSS, cx. 3. Ofício do vice-rei marquês do Lavradio para o secretário de Estado Martinho de Melo e Castro, informando da nomeação de Antônio da Veiga de Andrade para o governo do Continente do Rio Grande. Rio de Janeiro, 4 nov. 1771.
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Segundo o sargento-mor Francisco José da Rocha, informante do vice-rei marquês do Lavradio, o governador Veiga Andrade estaria metido com contrabando, além de dar cobertura às atividades ilícitas de uma facção da elite local, comandada por Rafael Pinto Bandeira (Alden, 1968, p. 120-125).
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A pesquisa que deu origem a este artigo fez parte do projeto Governadores da fronteira: Colônia do Sacramento e Rio Grande de São Pedro (1680-1808), que teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs). Agradeço aos pareceristas pelas sugestões que foram incorporadas na versão final.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
05 Mar 2024 -
Aceito
22 Maio 2024