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Animismo no Chaco do século XVIII

Animism in the eighteenth century Chaco

Resumo:

O artigo busca demonstrar que, para além dos transtornos práticos e técnicos, o que realmente ocasionou adversidades na empresa apostólica entre os jesuítas e os índios do Chaco foi o distanciamento provocado pela ontologia do naturalismo moderno que, além de negar a possibilidade de os nativos não a compartilharem, ignorava a capacidade de possuírem seu próprio sistema de relações não cartesianas, dualistas e objetivistas. Contudo, isso não impediu que os próprios jesuítas registrassem traços do animismo em suas cartas. Ao tentar descrever o indígena como o mau resultado de uma vida infiel e não civilizada, relatando narrativas mitológicas e interpretações nativas sobre o mundo, produziram evidências de uma sociabilidade generalizada no Chaco.

Palavras-chave:
Chaco; Animismo; Século XVIII

Abstract:

The paper aims to show that, beyond practical and technical hardships, what really brought about adversities on the apostolic enterprise between Jesuits and Chaco’s indigenous was a detachment triggered by the ontology of modern naturalism, which not only denied the possibility of indigenous people not sharing it, but also ignored their ability to have their own system of non Cartesian, dualist, and objectivist relationships. Nevertheless, this did not impede the Jesuits themselves to register traces of animism in their letters. Whilst trying to depict the indigenous as the bad result of an infidel non civilised life trough mythological narratives and native interpretations of the world, they ended up producing evidence of a generalized sociability within the Chaco.

Keywords:
Chaco; Animism; Eighteenth Century

Mas talvez também eles, os animais, as plantas e todas as coisas, tenham um sentido e um valor per se, que o homem não pode entender, fechado como está naqueles sentidos que ele mesmo dá a uns e outros - os quais a natureza, por sua vez, frequentemente demonstra ignorar e não compreender

(Luigi Pirandello, Um, nenhum e cem mil).

É perceptível a mudança ocorrida na estrutura de argumentação nas cartas e nos relatos que os jesuítas em missão na Província Jesuítica do Paraguai e nas demais regiões da América produziram a partir do final do século XVII até o momento em que os membros da Ordem foram expulsos do território colonial espanhol em 1767. Os relatos e a fundamentação discursiva que “enfatizavam aparições, maravilhas naturais e a interpretação afetiva da experiência metafísica”, que foram a marca da produção textual dos jesuítas missionários desde os primeiros registros epistolares no final do século XVI, deram lugar às histórias civis e naturais “baseadas em uma fé recém-descoberta nos fatos científicos e na objetividade” (Huffine, 2005HUFFINE, Kristin. Raising Paraguay from decline: memory, ethnography, and natural history in the Eighteenth-Century accounts of the Jesuit fathers. In: MILLONES FIGUEROA, Luís; LEDEZMA, Domingo (Orgs.). El saber de los jesuitas, historias naturales y el Nuevo Mundo. Frankfurt: Vervuert; Madrid: Iberoamericana, 2005, p. 279-302., p. 282)1 1 Essa e as demais citações de textos em línguas estrangeiras têm tradução livre. - resultado da dedicação dos estudiosos jesuítas que, além do trabalho catequético, estavam atentos à produção intelectual iluminista europeia que chegava às bibliotecas dos colégios jesuíticos estabelecidos na América. E já nas primeiras décadas do século XVIII, essa mudança é percebida quando a presença de atividades demoníacas ou a ação punitiva divina diminuem enquanto elemento discursivo que buscava justificar atuações indígenas desvirtuadas dos preceitos catequéticos e passam a ser substituídas por uma escrita mais preocupada com descrições objetivistas e focadas em questões comportamentais.

Foi o que o padre Patricio Fernández fez ao argumentar que os índios eram muito supersticiosos, porque se inquietavam com “los sucesos futuros por creer firmemente que todas las cosas suceden bien o mal” - levando-os a preocupar-se com “las buenas o malas impresiones que influyen las estrellas”. Segundo o jesuíta, a curta compreensão que os índios possuíam a respeito do céu e dos astros fazia-os tomar presságios “de los cantos de los pájaros, de los animales y de los árboles y otros innumerables de este género” (Fernández, [1726] 1895FERNÁNDEZ, Patricio S.J. Relación historial de las misiones de indios chiquitos que en el Paraguay tienen los padres de la compañía de Jesús. Madrid: Librería de Victoriano Suárez, 2 vols, [1726] 1895., v. 1, p. 60). Ao definir os saberes que os indígenas possuíam dos astros como “puras fábulas y mentiras heredadas por tradición de padres a hijos” (Lozano, 1733LOZANO Pedro, S.J. Descripción chorographica de terreno ríos, arboles, y animales de las dilatadísimas provincias del Gran Chaco, Gualamba, y de los ritos y costumbres de las innumerables naciones de barbaros e infieles que le habitan. Córdoba: Colegio de Asunción, 1733., fl. 96), a interpretação jesuítica reduzia a forma como os nativos se relacionavam com o seu ambiente autóctone a fantasias e superstições de povos alienados e incapazes de compreender o mundo em que viviam - como se os índios só conseguissem extravasar seus desvarios em práticas e rituais descolados da realidade. Para os missionários, tudo não passava de uma grande ilusão, em que os nativos, enganados pela sua ignorância, acreditavam que poderiam envolver-se com o natural e o sobrenatural.

Por isso, quando os abipone realizavam sua “supersticiosa fiesta” comemorando “con clamores festivos y con alegres sonidos de flautas y cuernos de guerra” o reaparecimento das Plêiades no céu por acreditarem que eram “la imagen de su abuelo” (Dobrizhoffer, [1784] 1967-1970DOBRIZHOFFER, Martín S.J. Historia de los abipones. Resistencia: Universidad Nacional del Nordeste, 3 tomos, [1784] 1967-1970., t. 2, p. 76-77); ou quando os mocovi atribuíam que o grito da garça cinza “presagia la muerte [y] que pronto alguien de ellos debe morir” (Paucke, [1767] 2010PAUCKE Florián, S.J. Hacia allá y para acá. Santa Fe: Ministerio de Innovación y Cultura de la Provincia de Santa Fe, [1767] 2010., p. 347), os jesuítas evocavam o preceito fundamental do naturalismo: a unicidade da natureza. Ao considerar as ações indígenas como o resultado de práticas ilusórias ou movidas pela deturpação da realidade natural, os missionários se imbuíram da tarefa de instruir os índios por meio da doutrinação evangélica, para uma vida guiada pelos preceitos sagrados e dos ensinamentos formais, a fim de encaminhá-los à vida civilizada.

Mesmo que a humanidade enquanto condição natural não tenha sido negada aos nativos, o estado selvático sempre lhes foi imputado como atributo imanente do seu ser. Essa marca, impulsionada pelos princípios da lógica cartesiana de separação entre mente e corpo, representação e realidade, cultura e natureza, significado e coisa (Henare, Holbraad, Wastell, 2007HENARE, Amiria; HOLBRAAD, Martin; WASTELL, Sari(Orgs.). Thinking through things: theorising artefacts ethnographically. London: Routledge, 2007., p. 9), diz respeito diretamente à dualidade selvagem/civilizado, que, na situação de contato e convívio missionário, correspondia às distinções entre catequisados e não catequisados. Restaria aos padres conduzir os indígenas a uma vida cristã, em que o “civilizar para converter” pressupunha uma característica “inclusiva”, na medida em que o trabalho catequético “se configura enquanto transformação, ao mesmo tempo cultural e política, que faz emergir a relação peculiar entre vida política e ‘coisas da fé’” (Agnolin, 2015AGNOLIN, Adone. Os apóstolos da civilização - Religião natural e revelação entre os missionários da América: As bases da História das Religiões no surgimento da comparação histórica e etnográfica. PLURA Revista de Estudos de Religião, v. 6, n. 2, p. 140-171, 2015. Disponível em: <http://doi.org/10.18328/2179-0019/plura.v6n2p140-171>. Acesso em:18 jan. 2019.
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, p. 141-142). Com isso, buscava-se resgatar os índios de sua ignorância supersticiosa ensinando-lhes o funcionamento do mundo físico e natural.

A partir disso, discernem-se dois esquemas ontológicos2 2 Por esquemas ontológicos compreende-se os sistemas de inferências básicas a respeito dos tipos de seres que compõem o mundo do observador e de que maneira eles se relacionam entre si. A isso, Philippe Descola chamou de worlding, ou seja, o “processo de juntar o que é percebido em nosso ambiente”. Com isso, o autor tenta escapar da visão ocidentalizante de que ou existe uma realidade transcendental preexistente — a mãe natureza, por exemplo —, ou as várias versões culturais que podem ser dadas a ela — geradora do relativismo cultural (Descola, 2014, p. 272-273). Descola propõe, portanto, a existência de quatro esquemas ontológicos: o naturalismo, o animismo, o analogismo e o totemismo (Descola, 1996; 2014). que particularmente interessam aos estudos voltados ao contato e convívio entre grupos indígenas e missionários: o naturalismo, que corresponde à nossa própria ontologia, é a percepção da “coexistência de uma natureza unificadora e a multiplicidade de culturas”, em que as “entidades devem a sua existência e desenvolvimento a um princípio estranho ao acaso e aos efeitos da vontade humana” (Descola, 2014DESCOLA, Philippe. Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana, v. 4, n. 1, p. 23-45, 1998. Disponível em: <http://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100002>. Acesso em: 14 abr. 2014.
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, p. 276); e o animismo, em que “as pessoas atribuem subjetividade às plantas, aos animais e a outros elementos de seu ambiente físico e estabelecem com essas entidades todo tipo de relações pessoais de amizade, troca, sedução ou hostilidade” (p. 275).

O objetivo deste artigo é demonstrar que os grupos indígenas do Chaco do século XVIII compartilhavam a mesma ontologia animista enquanto forma de entender, se relacionar e estar no mundo. Para isto, serão analisados os registros produzidos pelos missionários que mantiveram contato direto com esses grupos e que, mesmo expressando uma visão naturalista dominante, compuseram um corpo documental que, intencionalmente ou não (Felippe; Paz, 2019FELIPPE, Guilherme Galhegos; PAZ, Carlos. Interseção de subjetividades: a presença indígena na escrita afetada dos jesuítas. História da Historiografia, v. 12, n. 30, p. 69-102, 2019. Disponível em: <http://doi.org/10.15848/hh.v12i30.1431>. Acesso em: 13 jun. 2019.
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), relata uma diversidade de temas a respeito do cotidiano dos índios, seus costumes, suas técnicas e, nas palavras dos autores, suas crenças. Contudo, devido à comum fragmentação desses registros, faz-se necessária a sua intersecção com informações obtidas e análises realizadas por meio da etnografia junto a grupos chaquenhos contemporâneos, possibilitando suprir as lacunas dos registros documentais e incentivar a busca por novos objetos e o refinamento das perguntas realizadas à fonte primária. Seguindo a sugestão de Peter Gow - mas me permitindo inverter a ordem dos fatores sem alterar a sua essência -, o “uso de métodos antropológicos na história não tem valor se tudo o que puder fazer é resolver as limitações dos métodos historiográficos recorrendo a um conhecimento antropológico já constituído” (Gow, 2001GOW, Peter. An Amazonian myth and its history. Oxford: Oxford University Press, 2001., p. 19).3 3 No original: “The use of historical methods in anthropology is of no value if all it can do is solve the limitations of ethnographic methods by recourse to an already constituted historical knowledge”. E o autor prossegue: “Uma antropologia que usa métodos históricos inevitavelmente está em busca de novos objetos, vagamente sentidos nos limites dos métodos etnográficos” (Gow, 2001, p. 19) — o que também vale, inversamente, para os historiadores.

Classificações taxonômicas

Em seu livro dedicado a história e descrição da fauna, flora e populações nativas do Chaco, o padre Pedro Lozano organiza sua narrativa de forma a poder tratar a respeito de cada grupo indígena que habitava a região. Ao descrever as características físicas, os costumes e as crenças dos Lule, população pertencente à família linguística lule-vilela, Lozano busca formas de demonstrar aos seus leitores a inaptidão e ignorância na qual viviam os índios, afirmando que eram hábeis apenas para “las cosas mecánicas”, pois “en lo racional parece anduvo escasa la naturaleza, pues son muy cortos en discurrir”. Assim, a fim de comprovar a inabilidade intelectual dos índios, o jesuíta recorreu ao seu idioma, que “tiene muchas palabras distintas para significar lo que en latín o castellano se dice en una” (Lozano, 1733LOZANO Pedro, S.J. Descripción chorographica de terreno ríos, arboles, y animales de las dilatadísimas provincias del Gran Chaco, Gualamba, y de los ritos y costumbres de las innumerables naciones de barbaros e infieles que le habitan. Córdoba: Colegio de Asunción, 1733., fl. 95).

Ao afirmar que algumas coisas tinham mais termos no idioma dos índios do que julgava ser necessário, Lozano comete dois equívocos. Além de acreditar que a variedade de palavras para a mesma coisa era um problema decorrente da incapacidade racional dos índios, o jesuíta julgou que as coisas só poderiam ter uma forma de apreensão: o objetivismo bidimensional de um “senso absoluto de um mundo-em-si”, em que a subjetividade só é possível enquanto uma “intuição dos predicados universais dos objetos” (Sahlins, [1995] 2001SAHLINS, Marshall. Como pensam os “nativos”. São Paulo: Edusp, [1995] 2001., p. 185).

A respeito do primeiro equívoco, os estudos de classificação etnobiológica já demonstram há algumas décadas que, nas “taxonomias folk”, os termos correspondentes aos táxons de categoria inicial, como os termos genéricos “planta” ou “animal”, são raros nos idiomas indígenas - ou mesmo ausentes (Berlin; Breedlove; Raven, 1973BERLIN, Brent; BREEDLOVE, Dennis E.; RAVEN, Peter H. General Principles of classification and nomenclature in folk biology. American Anthropologist, v. 75, n. 1, p. 214-242, 1973., p. 215; Forth, 2004FORTH, Gregory. The category of “animal” in Eastern Indonesia. Journal of Ethnobiology, v. 24, n. 1, p. 51-73, 2004., p. 52). Entre os toba contemporâneos, por exemplo, não existe um termo que “signifique estrictamente ‘animal’ equivalente al español y otras lenguas occidentales” - o que não significa a ausência de uma categoria (Medrano, 2016MEDRANO, Celeste; TOLA, Florencia. Cuando humanos y no-humanos componen el pasado. Ontohistoria en el Chaco. Avá, n. 29, p. 99-129, 2016., p. 389). Assim, a pluralidade de termos possíveis nos idiomas indígenas não recai nos mesmos conceitos generalizantes ocidentais. O que isso quer dizer é que, como na taxonomia moderna, as classificações tradicionais utilizam termos operatórios para sistematizar o seu sistema ordenatório - mas nunca predeterminados: “Os termos nunca têm significação intrínseca; sua significação é ‘de posição’, por um lado, função da história e do contexto cultural e, por outro, da estrutura do sistema em que são chamados a figurar” (Lévi-Strauss, [1962] 1989LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, [1962] 1989., p. 72). O que provavelmente confundiu o padre Lozano foi ter se deparado com índios que não tinham termos simétricos para as mesmas coisas que o jesuíta esperava existir. Ou seja, não era apenas um problema de tradução, em que as palavras animal ou planta, em espanhol, não pudessem traduzir seu correspondente da língua falada pelos lule, pelos toba ou pelos guaicuru: a questão é que não havia o seu correspondente, porque o conjunto de seres que compunham o que Lozano entendia como animais não era o mesmo conjunto de seres para os indígenas.

Assim, chega-se ao segundo equívoco: a classificação e os elementos internos ordenados por ela não são os mesmos conhecidos pelos missionários e pelos indígenas, porque tanto a organização da experiência, quanto o treinamento dos sentidos de cada uma das sociedades humanas seguem cânones sociais de relevância idiossincráticos (Sahlins, [1995] 2001SAHLINS, Marshall. The Western illusion of human nature. Chicago: Prickly Paradigm Press, 2008., p. 176). A forma de categorizar ou apreender os seres em grupos e classificações, portanto, segue determinadas características de seu ambiente e certas formas de engajamento prático com ele (Descola, 1996DESCOLA, Philippe. Constructing natures: symbolic ecology and social practice. In: DESCOLA, Philippe; PÁLSSON, Gísli(Orgs.). Nature and society: anthropological perspectives. Londres: Routledge , 1996, p. 82-102., p. 85), que difere de grupo para grupo, resultando em formas específicas de relacionamento com o meio. Nas línguas guaicuru e mataco-mataguaia (faladas por povos como os toba, os abipone, os mocovi, os mataco, os mataguaio e os mbayá, cujas presenças no contexto do contato e convívio com os missionários jesuítas remete ao início das missões no Chaco no século XVI), a classificação indígena não possui associações comparáveis à taxonomia ocidental - por isso “es posible que la categoría de ave sea implementada de diferente manera según distintas lógicas de asociación” (Ottalagano, 2007OTTALAGANO, Flavia V. Algunas referencias en torno al simbolismo de las aves en los registros etnohistóricos y etnográficos de guaycurúes y mataco-mataguayos. Arqueología Suramericana, v. 3, n. 2, p. 213-228, 2007., p. 217).

O próprio conceito de animal sofre um grande impacto diferencial quando comparamos as classificações moderna e tradicional, na medida em que os componentes que somam o conjunto do que se entende como pertencente à animalidade não correspondem aos mesmos critérios:4 4 O conceito de animalidade difundido e utilizado pela nossa sociedade tampouco oferece uma visão sem suas dualidades. A forma como tratamos os animais, entre considerá-los bestas irracionais dignas de proteção e a atribuição de toda gama de sentimentos humanos, gera uma contradição derivada, em grande parte, de nossa “propensão a alternar entre duas abordagens bem diferentes da definição de animalidade: como um domínio ou ‘reino’, incluindo humanos; e como estado ou condição, oposto à humanidade” (Ingold, [1988] 1994, p. 4). Essa inconsistência que ora coloca e ora retira os humanos do arcabouço conceitual de animalidade não parece existir em grande parte dos grupos indígenas, que, como os guajá, povo falante do tupi-guarani, compreendem a animalidade a partir de um vínculo extenso — e, por isso, abrangente —, pautado pela relação de predação, em que a “‘animalidade’ de um animal de criação, muito provavelmente, em nada se conecta à animalidade de um animal selvagem que será caçado” (Garcia, 2018, p. 192). Entre os chané e os chiriguano contemporâneos, animais de criação e pessoas ganham nomes invertidos, ou seja, assim como muitas pessoas levam nomes de animais — “Tapiti (liebre), Guampi (buitre), Ndivilly (grillo), Niéhti (mosquito), Cururu (sapo)” —, muitos animais de criação levam nome de gente — “un gato se llama ‘Arturo’, una chancha ‘Marcela’, un loro ‘Pedro’” —, mantendo a ordem de uma relação ontológica em que “la zoonimia de las personas se contrapesa con la antroponimia de los animales domésticos” (Villar, 2005, p. 496). “o universo nunca significa o bastante, e o pensamento sempre dispõe de um excedente de significações para a quantidade de objetos aos quais pode associá-las” (Lévi-Strauss, [1958] 2008LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, [1958] 2008., p. 199). Os critérios adotados para a formalização de um padrão classificatório (o que é animal, o que é planta, o que é mineral...) são tão imensuráveis quanto o são as propriedades e os atributos disponíveis no mundo enquanto elementos de referência para o estabelecimento de enumeração das relações. Isso faz com que o modo como os membros de um grupo “aprendem a experienciar a ação e o mundo da ação” seja “sempre uma questão de convenção” (Wagner, [1975] 2010WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify , [1975] 2010., p. 95).

Portanto, além de a classificação moderna não poder ser um parâmetro para a compreensão da forma como os demais grupos humanos acomodam os seres do ambiente envolvente no seu campo de relação, os critérios utilizados pela taxonomia de Lineu são próprios de um sistema baseado em uma lógica de predicados - “uma realidade material, intrinsecamente sem sentido, mas essencialmente cognoscível” (Hornborg, 2006HORNBORG, Alf. Animism, fetishism, and objectivism as strategies for knowing (or not knowing) the world. Ethnos, v. 71, n. 1, p. 21-32, 2006. Disponível em: <http://doi.org/10.1080/00141840600603129>. Acesso em: 27 fev. 2019.
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, p. 27) -, enquanto as classificações da maioria dos povos tradicionais têm como base uma lógica de relações (Descola, 1996, p. 92) - “desenvolvendo as habilidades de estar no mundo com as outras coisas” (Bird-David, 1999BIRD-DAVID, Nurit. “Animism” revisited: personhood, environment, and relational epistemology. Current Anthropology, v. 40(Supplement), p. 67-91, 1999. Disponível em: <http://doi.org/10.1086/200061>. Acesso em:7 jan. 2019.
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, p. 77-78). Para esses, “a diferença entre as espécies não é, para começar, anatômica ou fisiológica, mas comportamental ou etológica (o que distingue as espécies é muito mais seu etograma - o que comem, onde habitam, se vivem em grupo ou não etc. - do que sua morfologia)” (Viveiros de Castro, 2013VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Algumas reflexões sobre a noção de espécies. Biozoo, v. 10, n. 1, 2013. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/3snkY8 >. Acesso em: 9 jan. 2018.
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).

Anterior à forma de classificação taxonômica ou organização onomástica das coisas, portanto, estão as propriedades sensíveis disponíveis no ambiente (cor, cheiro, textura, forma), que fornecem informações exploradas e coletadas por meio de um processo ativo que Tim Ingold - através de sua leitura de James Gibson - identifica como percepção, ou seja, um modo de ação direto e prático sobre o que o ambiente proporciona ao observador engajado, sendo que

a informação potencialmente disponível para um agente é inesgotável: não há limite para o que pode ser percebido. Ao longo da vida, podemos continuar a ver coisas novas em um mundo de outra maneira permanente, não construindo os mesmos dados sensoriais de acordo com novos esquemas conceituais, mas com uma sensibilização ou “sintonia fina” do sistema perceptivo com novos tipos de informação. Percepções novas surgem de atos criativos de descoberta, não da imaginação, e as informações nas quais elas são baseadas estão disponíveis para qualquer um que esteja em sintonia para buscá-las (Ingold, 2000INGOLD, Tim. The Perception of the Environment: Essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000., p. 166).

Por isso, é quase impossível prever em que termos os elementos disponíveis no ambiente podem ser associados dentro das variações perceptivas e relacionais de um grupo humano. Assim, por exemplo, o costume que as índias payaguá tinham de recorrer ao chocalho da cauda de cascavel para ajudar as grávidas em partos complicados, quando a parturiente “está en el trance y se la oye suspirar, o sus dolores duran demasiado tiempo”, sacudindo-o “violentamente sobre la cabeza durante un instante; después la dejan, pero recomienzan si lo creen necessário” (Azara, [1809] 1998AZARA, Félix de. Viajes por la América Meridional. Tomo II. Buenos Aires: El Elefante Blanco, [1809] 1998., p. 71), pode parecer fruto de crendice se tal prática for analisada a partir dos parâmetros do racionalismo e empirismo empreendidos e difundidos pelo Iluminismo. A associação improvável e, aparentemente, infundada em preceitos lógicos de causa e efeito baseava-se na qualidade medicinal que o guizo da cascavel possui e que alguns missionários haviam constatado. O padre Martín Dobrizhoffer, missionário entre os abipone, registrou que o chocalho da cascavel, reduzido a pó, é um ótimo remédio que “se lo coloca en los dientes doloridos y los cura desapareciendo por su propia virtud toda sensación de dolor” (Dobrizhoffer, [1784] 1967-1970DOBRIZHOFFER, Martín S.J. Historia de los abipones. Resistencia: Universidad Nacional del Nordeste, 3 tomos, [1784] 1967-1970., t. 2, p. 257), bem como Florián Paucke, jesuíta entre os mocovi, que foi informado que o mesmo pó era usado “contra las convulsiones o calambres del corazón” (Paucke, [1767] 2010PAUCKE Florián, S.J. Hacia allá y para acá. Santa Fe: Ministerio de Innovación y Cultura de la Provincia de Santa Fe, [1767] 2010., p. 705). O barulho que o guizo faz quando é batido com força remete ao som do material sendo triturado: sua potencialidade medicinal é acionada de forma auditiva, auxiliando a parturiente, cuja ingestão de algumas substâncias poderia afetar a gestação ou nascimento do feto.5 5 As interdições alimentares praticadas pelos índios e registradas pelos missionários também revelam associações não convencionais para o esquema classificatório moderno que eram acionadas em função de alguma restrição realizada sob regime temporário, como o período menstrual, a gravidez ou o pós-parto — como é o caso dos índios abipone que deixavam de comer peixe após o nascimento de seu filho a fim de evitar que o recém-nascido ou a mãe adoecessem (Lozano, 1733, fl. 91-92). A mesma precaução alimentar, porém, entre os toba contemporâneos, ajuda a entender a restrição entre os abipone: a “associação metonímica entre o esperma e a medula do peixe, pela cor e pela consistência, é a fonte de uma série de expressões relativas a um aumento da quantidade de esperma devido à ingestão do peixe” (Tola, 2007, p. 508).

As associações possíveis de serem realizadas com os elementos dispostos no ambiente e coletados a partir de “uma base de comunicação em convenções compartilhadas” entre os membros de um coletivo (Wagner, [1975] 2010WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify , [1975] 2010., p. 76) são infinitas na mesma medida que são imprevisíveis as categorias classificatórias que um grupo humano pode estabelecer. Consequência disso é que a distinção entre as classificações moderna e tradicionais pode ser resumida a partir do protagonismo que os humanos ocupam na disposição dos seres - e, inclusive, no que concerne à definição de limites entre seres vivos e não vivos, ou seja, o que é animado e o que é inanimado no ambiente envolvente (Ingold, [1988] 1994INGOLD, Tim. Introduction. In: What is an animal? Londres: Routledge , [1988] 1994, p. 1-16., p. 1-2).

Animismo: os outros do outro

Muito antes de Charles Darwin publicar A origem das espécies, em 1859, contrapondo as teorias transformacionais que acreditavam haver um desenvolvimento interno e em vida nos indivíduos, levando estas mudanças a produzirem a evolução (Levis; Lewontin, [1985] 2009LEVIS, Richard; LEWONTIN, Richard. The dialectical biologist. Delhi: Aakar Books [1985] 2009., p. 86), muito das ideias que formariam o darwinismo biológico já circulavam nos meios intelectuais europeus, principalmente pelos estudos de Pierre-Louis Moreau de Maupertuis na década de 1750 (Ramos, 2016RAMOS, Maurício de Carvalho. Maupertuis e o pensamento evolutivo na época das luzes. Kronos, v. 2, n. 2, p. 134-154, 2016.) - cujos avanços em relação à hereditariedade como vínculo estabelecido por meio da reprodução sexuada certamente alcançaram as bibliotecas jesuíticas na América, como fica evidente na produção do padre jesuíta José Sánchez Labrador.

Sánchez Labrador, que atuou entre os índios mbayá no Chaco na segunda metade do século XVIII, dedicou parte de seus escritos a refutar os argumentos sobre a inferioridade da natureza americana, principalmente no que dizia respeito à teoria do determinismo climático.6 6 A polêmica da natureza da América se deu em torno de um conjunto de teorias que buscavam demonstrar a inferioridade e degenerescência da fauna, da flora e dos nativos americanos comparando-os com a natureza europeia. O embate ocorreu entre os naturalistas europeus (como o conde de Buffon, Cornelius de Pauw, William Robertson e Guillaume Raynal), preocupados em produzir um conjunto teórico para uma História Natural global, cuja ênfase era a demonstração da superioridade da natureza europeia (Bernand, 2009; Lage, 2015); e os defensores da análise empírica sobre a natureza da América, principalmente representados por religiosos que viveram no continente (como Francesco Saverio Clavigero, Salvatore Gilij e Juan Ignacio Molina), expedicionários que viajaram por regiões da América (como Antoine-Joseph Pernety e Zacharie de Pazzi de Bonneville), e alguns padres que atuaram na Província Jesuítica do Paraguai, como José Jolís, José Sánchez Labrador e Martín Dobrizhoffer (Huffine, 2005; Justo, 2011). Segundo autores como o conde de Buffon (Georges-Louis Leclerc), a pele escura de africanos e americanos devia-se ao fato de estas populações estarem expostas geograficamente a um maior contato com a luz solar nos trópicos do que as populações europeias. Demonstrando aproximação com as discussões recentes a respeito da biologia evolutiva, Sánchez Labrador argumentou que, embora “a luz solar e a nutrição contribuíssem para a cor da pele, era principalmente a matéria física transmitida de pais para filhos mais importante para a pigmentação”, definindo “os pais de uma pessoa como agentes específicos na determinação das origens raciais” (Huffine, 2005HUFFINE, Kristin. Raising Paraguay from decline: memory, ethnography, and natural history in the Eighteenth-Century accounts of the Jesuit fathers. In: MILLONES FIGUEROA, Luís; LEDEZMA, Domingo (Orgs.). El saber de los jesuitas, historias naturales y el Nuevo Mundo. Frankfurt: Vervuert; Madrid: Iberoamericana, 2005, p. 279-302., p. 292).

Por mais que a lógica empreendida pelo padre Sánchez Labrador ainda estivesse longe do que viria a se tornar o cerne da teoria da evolução das espécies de Darwin, a premissa fundamental era a mesma: a “metáfora da adaptação”, que diz respeito à ideia de que os “organismos se adaptam a um mundo externo em mutação que apresenta problemas que os organismos resolvem através da evolução”, ou seja, o “organismo e seu ambiente têm existências e propriedades separadas” (Levis; Lewontin, 1985LEVIS, Richard; LEWONTIN, Richard. The dialectical biologist. Delhi: Aakar Books [1985] 2009., p. 3-4). Dessa forma, o ambiente é um espaço de mudanças autônomas, com suas leis próprias, e os organismos respondem a essas mudanças por meio do processo de seleção natural, estabelecendo uma relação predeterminada entre o ambiente posto e os seres responsivos.

As ideias que viriam a compor a teoria da evolução das espécies de Darwin em meados do século XIX, e cujas inspirações empíricas já circulavam entre os missionários em atuação na América no século XVIII, inclusive no Chaco, não só mantinham a equação cartesiana fundamentada nas dualidades que podem ser resumidas pela distinção entre natureza e cultura, como estabeleciam que os organismos eram objetos em um cenário em que as variações surgem como consequência de forças internas que são autônomas e alienadas do organismo como um todo, fazendo das mutações movimentos aleatórios (Levis; Lewontin, 1985WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify , [1975] 2010., p. 87). Mas a etnografia produzida sobre populações indígenas tem demonstrado ao longo das últimas décadas que a divisão cartesiana não faz sentido para a maioria dos povos. A relação com os seres parece se dar em um nível muito mais relacional, em que os ecossistemas não são meros fluxos de energia e matéria, mas “fluxos de signos” tão comunicativos quanto o meio social humano do qual os europeus modernos os baniram - colocando a comunicação humana como apenas um subconjunto da comunicação que ocorre dentro da comunidade total de seres vivos (Hornborg, 2006HORNBORG, Alf. Animism, fetishism, and objectivism as strategies for knowing (or not knowing) the world. Ethnos, v. 71, n. 1, p. 21-32, 2006. Disponível em: <http://doi.org/10.1080/00141840600603129>. Acesso em: 27 fev. 2019.
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, p. 25-26).

Ao invés de negar a “universalidade de um acervo de dispositivos mentais de domínio específico para a cognição de um conjunto restrito de fenômenos físicos (gravidade, tangibilidade, visibilidade, etc.)” (Descola, 1996DESCOLA, Philippe. Constructing natures: symbolic ecology and social practice. In: DESCOLA, Philippe; PÁLSSON, Gísli(Orgs.). Nature and society: anthropological perspectives. Londres: Routledge , 1996, p. 82-102., p. 99, n. 1), o animismo ignora as dualidades cartesianas que transformam o ambiente envolvente em um palco de objetos a serem medidos, pesados e avaliados como algo do mundo, mas à parte do observador, sancionando uma concepção não materialista, não exclusivista e mais rica em subjetividades possíveis com os seres e entidades que compõem a realidade. O animismo opera, assim, por meio de uma forma de conhecimento em que se “desenvolvem as habilidades de estar no mundo com as outras coisas”, implicando “dividualizar”7 7 Inspirada no conceito de divíduo de Marilyn Strathern, Nurit Bird-David propõe que as populações que compartilham o pensamento animista não compreendem as pessoas como entidades separadas, mas como divíduos com os quais se relacionam. Dito de outra forma, em vez de eu ter a consciência do outro “em si mesmo” ou da relação com ele “em si”, tenho consciência da “relação com meu interlocutor quando me envolvo com ele, atento ao que ele faz em relação ao que eu faço, a como ele fala e me escuta enquanto eu falo e ouço, o que acontece simultaneamente e mutuamente para mim, para ele, para nós” (Bird-David, 1999, p. 72, destaques no original). Em um grupo humano em que os outros são divíduos, e não indivisíveis, as pessoas são na relação — e por isso transcendem sua dividualidade: a pessoa “é o locus de vários outros eus com os quais ele ou ela está unido nas relações mútuas de ser; mesmo porque, pelo mesmo motivo, o eu de qualquer pessoa é mais ou menos amplamente distribuído entre outros” (Sahlins, 2008, p. 48). o ambiente em vez de “dicotomizá-lo”: ao contrário de penso, logo existo, seria relaciono, logo existo (Bird-David, 1999BIRD-DAVID, Nurit. “Animism” revisited: personhood, environment, and relational epistemology. Current Anthropology, v. 40(Supplement), p. 67-91, 1999. Disponível em: <http://doi.org/10.1086/200061>. Acesso em:7 jan. 2019.
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, p. 77-78).

Estas relações se dão justamente porque há uma generalização de subjetividades que ocupam oposição e status social e não estão restritas às pessoas. Os relatos produzidos pelos jesuítas revelam que, entre os índios do Chaco, havia uma considerável variedade de seres, entidades e astros que ocupavam um lugar social nas relações entre si e com os índios. Longe de ser apenas alegorias que representavam um etnocentrismo refletindo-se no mundo, essas subjetividades eram posições socialmente constituídas e ontologicamente personificadas: os índios eram os outros dos modernos, não porque se estimava que fossem outra categoria de humanos; mas “precisamente porque eles tinham outro ‘outros’” (Viveiros de Castro, 1999VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Comments to Bird-David, “Animism” revisited. Current Anthropology, v. 40 (Supplement), 1999, p. 79-80. Disponível em: <Disponível em: http://doi.org/10.1086/200061 >. Acesso em: 8 jan. 2019.
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, p. 80)

Os mocovi contavam que o sol era uma mulher e a lua, um homem (Guevara, [1764] 1836GUEVARA, Pedro. Historia del Paraguay, Río de la Plata y Tucumán. In: DE ANGELIS, Pedro (Org.). Colección de obras y documentos relativos a la historia antigua y moderna de las Provincias del Río de la Plata, tomo 2. Buenos Aires: Imprenta del Estado, [1764] 1836., p. 34) - e quando diziam isso, estavam apresentando estes astros como seres viventes: o sol e a lua eram humanos, do sexo feminino e masculino, no corpo de sol e de lua. Ainda que essa descrição colabore para a compreensão de que eles compartilham a “humanidade enquanto condição” (Descola, 1998DESCOLA, Philippe. Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana, v. 4, n. 1, p. 23-45, 1998. Disponível em: <http://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100002>. Acesso em: 14 abr. 2014.
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, p. 28), ela estará incompleta se não levarmos em consideração que o animismo diz respeito à capacidade que muitos animais, plantas, seres e entidades em geral têm de relacionar-se entre si e com as pessoas. O animismo é a constatação, por parte dos índios, de que a vida é a capacidade interativa recíproca, que pode estar onde menos se espera. Assim, os seres e as coisas são animados não porque têm vida, mas porque se relacionam intencionalmente.

O que ocorre entre os índios do Chaco é que alguns seres, astros celestes, fenômenos meteorológicos e astronômicos e entidades diversas são dotados de uma condição particular, cuja atuação expressiva pode ser apreendida em situações particulares. Como ressaltou Irving Hallowell, em seu estudo clássico sobre os ojíbua dos Grandes Lagos na América do Norte, o animismo não é a crença “de que eles atribuem dogmaticamente almas vivas a objetos inanimados”, mas um “‘conjunto’ cognitivo culturalmente constituído”, na medida em que não envolve uma teoria formulada conscientemente sobre a natureza dos objetos. Dito de outra forma, eles “reconhecem, a priori, potencialidades para a animação em certas classes de objetos sob certas circunstâncias” (Hallowell, [1960] 2002HALLOWELL, A. Irving. Ojibwa ontology, behavior, and world view. In: HARVEY, Graham(Org.). Readings in indigenous religions. Londres: Continuum, [1960] 2002, p. 18-49, p. 24).

No Chaco, as situações de adoecimento de uma pessoa ou de uma enfermidade que atingia um número maior de vítimas eram compreendidas como circunstâncias específicas, provocadas por uma entidade chamada Ayaquá, que habitava os montes e, com seu arco, “a quien quiere, y en donde o en la parte que quiere le asesta y dispara la flecha y esta es la que dicen causa el dolor, la enfermedad y la muerte” (Lozano, 1733LOZANO Pedro, S.J. Descripción chorographica de terreno ríos, arboles, y animales de las dilatadísimas provincias del Gran Chaco, Gualamba, y de los ritos y costumbres de las innumerables naciones de barbaros e infieles que le habitan. Córdoba: Colegio de Asunción, 1733., fl. 97; cf. Guevara, [1764] 1836HALLOWELL, A. Irving. Ojibwa ontology, behavior, and world view. In: HARVEY, Graham(Org.). Readings in indigenous religions. Londres: Continuum, [1960] 2002, p. 18-49, p. 29, cujo relato é uma replicação da descrição feita por Pedro Lozano). Na presença desse perigo, os lule isolavam os doentes a fim de protegê-los da entidade maléfica e, em uma situação muito semelhante à relação entre um caçador e sua presa, fugiam “por miedo de que se les pegue el contagio y se van huyendo no por vía recta, sino siempre por oblicua, porque dicen que así no les podrá seguir la peste cansada de los matorrales y revueltas” (Lozano, 1733LOZANO Pedro, S.J. Descripción chorographica de terreno ríos, arboles, y animales de las dilatadísimas provincias del Gran Chaco, Gualamba, y de los ritos y costumbres de las innumerables naciones de barbaros e infieles que le habitan. Córdoba: Colegio de Asunción, 1733., fl. 100), ou procuravam esconder-se em “profundos escondrijos, pues creían que al emplear esta táctica eludirían la peste” (Dobrizhoffer, [1784] 1967-1970DOBRIZHOFFER, Martín S.J. Historia de los abipones. Resistencia: Universidad Nacional del Nordeste, 3 tomos, [1784] 1967-1970., t. 2, p. 235).

Apesar das “fisicalidades diferentes”, diversos animais, plantas, entidades, astros e outros seres compartilham de “essências internas idênticas [que] estão alojadas em diferentes tipos de corpos”, levando-os a possuir “características sociais: vivem em aldeias, obedecem a regras de parentesco e códigos éticos, envolvem-se em atividades rituais e trocam bens” (Descola, 2014DESCOLA, Philippe. Modes of being and forms of predication. Hau: Journal of Ethnographic Theory, v. 4, n. 1, p. 271-280, 2014. Disponível em: <http://doi.org/10.14318/hau4.1.012>. Acesso em: 13 jan. 2019.
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, p. 275). Nesta miríade de subjetividades, há mais perspectivas do que se pode imaginar - havendo, inclusive, o perigo de um índio deparar-se com um ser que é “visto primeiramente como um mero animal ou uma pessoa” até revelar-se “como um espírito ou um morto”, resultando em um encontro letal para o interlocutor, que, subjugado, passa para o lado dele, “transformando-se em um ser da mesma espécie que o locutor: morto, espírito ou animal” (Viveiros de Castro, [1996] 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify , [1996] 2002, p. 345-399., p. 397, destaque no original).8 8 O fato de que, para os índios, “não há pontos de vista sobre as coisas: as coisas e os seres é que são pontos de vista” (Viveiros de Castro, [1996] 2002, p. 385), coloca o perspectivismo não como sinônimo do animismo, mas como seu “corolário etnoepistemológico [...] cujo tecido se encontra nos mitos e cujo formulador por excelência é o xamã” (Calavia Sáez, 2004, p. 231).

O medo de ter um desfortunado encontro com algum ser que se apresenta como um animal ou uma outra pessoa, mas que na verdade é o espírito de um morto ou uma entidade maléfica era uma inquietação entre os índios do Chaco. Ao partirem da concepção de que o mundo é povoado por seres que ocupam um lugar subjetivo na relação ambiental e que há uma “troca permanente das aparências gerada por esses deslocamentos de perspectiva” (Descola, 1998DESCOLA, Philippe. Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana, v. 4, n. 1, p. 23-45, 1998. Disponível em: <http://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100002>. Acesso em: 14 abr. 2014.
https://doi.org/10.1590/S0104-9313199800...
, p. 28), os mbayá assumiam o temor “de que las almas de los buenos ya muertos entren en sus cuerpos [y] de que las de los malos y malhechores pasan a los cuerpos de las fieras” (Jolís, [1789] 1972, p. 315). E caso alguém fosse acometido por esse malogro, a vítima deveria ficar sob os cuidados de um xamã, que sentenciava: “El alma de aquel animal ha entrado en tu cuerpo para vengar la injuria y te atormenta; éste es el origen del dolor que sientes” - e logo começava a colocar em prática os meios curativos. Depois de chupar algumas vezes a área afetada, entonava cantos e agitava as mãos para que o espírito daquele animal “abandone el cuerpo del enfermo” (Dobrizhoffer, [1784] 1967-1970DOBRIZHOFFER, Martín S.J. Historia de los abipones. Resistencia: Universidad Nacional del Nordeste, 3 tomos, [1784] 1967-1970., t. 2, p. 260-261).

Neste universo predatório, em que os “limites do sistema são definidos, em um extremo, pelos predadores supremos, que atacam todos os seres vivos, mas não são presas de ninguém; e, no outro extremo, plantas comestíveis que, em relação às outras formas de vida no sistema, são apenas alimentos”, a maioria das formas de vida, incluindo os seres humanos, ocupam o nível trófico intermediário, sendo ao mesmo tempo presas e predadores (Århem, 1996ÅRHEM, Kaj. The cosmic food web: human-nature relatedness in the Northwest Amazon. In: DESCOLA, Philippe; PÁLSSON, Gísli(Orgs.). Nature and society: anthropological perspectives. Londres: Routledge, 1996, p. 185-204., p. 189). Por isso, o medo que os índios tinham da ação do Ayaquá é explicado pela sua condição de espírito predador, que os colocava na posição de presa sem muitas chances de escapar. Assim, como um macaco na mata que está na mira de um experiente caçador munido de seu arco e flecha, os indígenas sabiam que seriam presas fáceis se não tomassem alguma providência, sendo que os únicos que possuíam alguma capacidade para proteger ou curar as vítimas do Ayaquá eram os xamãs, “porque dicen han hablado con el Ayaquá, que los que no han tenido la dicha de hablarle o verle no tienen tal ciencia” (Lozano, 1733LOZANO Pedro, S.J. Descripción chorographica de terreno ríos, arboles, y animales de las dilatadísimas provincias del Gran Chaco, Gualamba, y de los ritos y costumbres de las innumerables naciones de barbaros e infieles que le habitan. Córdoba: Colegio de Asunción, 1733., fl. 97). Capacitados para atender esse tipo de demanda, os xamãs conseguiam

cruzar deliberadamente as barreiras corporais entre as espécies e adotar a perspectiva de subjetividades alo-específicas, de modo a administrar as relações entre estas e os humanos. Vendo os seres não-humanos como estes se veem (como humanos), os xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no diálogo transespecífico; sobretudo, eles são capazes de voltar para contar a história, algo que os leigos dificilmente podem fazer (Viveiros de Castro, [1996] 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify , [1996] 2002, p. 345-399., p. 358).

Segundo o padre José Sánchez Labrador, uma das tarefas do Nigienigi, o xamã guaicuru, era comunicar-se com o Latenigi: entidade que foi traduzida pelo jesuíta ora como Diabo (Sánchez Labrador [1770] 1910SÁNCHEZ LABRADOR, José S. J El Paraguay católico. Buenos Aires: Imprenta de Coni Hermanos, 2tomos, [1770] 1910., t. 2, p. 35), ora como fantasma (t. 1, p. 191), ou “como gallo y de distintas apariencias” (t. 2, p. 54), concluindo que “les atribuyen diversas figuras, y una es la de tigres” (t. 2, p. 72). O Latenigi era um espírito a quem o xamã recorria em casos específicos, como os de surtos de doença na aldeia. Assim que uma pessoa adoecia, o Nigienigi se isolava em uma cabana em que ninguém mais podia entrar e, munido de seus “instrumentos de su arte, seguro de su ciencia, empieza a cantar en voz alta: hace de cuando en cuando sus pausas, y da a entender que se eleva, o transporta”. Neste transe, o xamã viaja até o lugar onde estão os mortos e lá, em diálogo com o Latenigi, diz que “ha venido a buscar el alma de tal y tal enfermo, que se ha huído del cuerpo, y quiere restituirla a su morada y dueño”. Restituída, o xamã retorna com a alma do doente - o que nem sempre é uma tarefa fácil, pois “divertida el alma, o más medrosa, se retira a las selvas, y no a los cementerios” (Sánchez Labrador, [1770] 1910SÁNCHEZ LABRADOR, José S. J El Paraguay católico. Buenos Aires: Imprenta de Coni Hermanos, 2tomos, [1770] 1910., t. 2, p. 35-36, destaque meu).

Em outro relato, o jesuíta narra uma viagem que fez com outros dez guaicuru e um de seus xamãs por um local conhecido por ser “infestado de voraces tigres”. Durante o pôr do sol, o xamã se separou dos demais e ficou por cerca de uma hora desaparecido até retornar informando que havia falado com o seu Latenigi, que era um “tigre feroz para otros, pero para él manso”. Da conversa que teve, o xamã retornou com a recomendação de que ninguém se afastasse de sua tenda durante a noite, “so pena de ser despedazado de algún tigre y que esto se lo había amenazado su oráculo” (Sánchez Labrador, [1770] 1910SÁNCHEZ LABRADOR, José S. J El Paraguay católico. Buenos Aires: Imprenta de Coni Hermanos, 2tomos, [1770] 1910., t. 1, p. 191).

O Latenigi dos guaicuru, bem como o Ayaquá dos lule, parecem ser tipos da entidade que os índios categorizam como donos ou mestres de espécies de animais, de plantas, dos espíritos ou mesmo de certos objetos. São geralmente identificados como seres protetores de uma espécie, “sendo responsáveis por seu bem-estar, reprodução, mobilidade” - indo além da noção de representação: “o chefe-mestre é a forma pela qual um coletivo se constitui enquanto imagem; é a forma de apresentação de uma singularidade para outros” (Fausto, 2008FAUSTO, Carlos. Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, v. 14, n. 2, p. 329-366, 2008. Disponível em: <http://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003>. Acesso em: 12 nov. 2008.
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, p. 333, 334, destaque no original). Portanto, como foi registrado pelos missionários do século XVIII, a forma com a qual estes donos apareciam para os xamãs diz respeito, antes, à espécie e ao domínio pelos quais eram responsáveis e deveriam intervir nas mediações com os feiticeiros. Assim, o dono das pestes, que adoecia suas vítimas com flechadas, aparecia aos xamãs sob a forma de um guerreiro munido de arco e flechas; o dono dos espíritos aparecia sob a forma de um fantasma; e o dono das onças, sob a forma de uma onça.

Se o animismo é a compreensão de que a realidade é formada por uma pluralidade de pontos de vista projetados por subjetividades socialmente atuantes no mundo, então a realidade para a qual os índios projetam o seu ponto de vista é um composto de fronteiras separando domínios que, mesmo sendo autônomos, compõem setores interligados pelas relações estabelecidas entre si. Portanto, toda ação que envolve a produção econômica gera uma intervenção em um espaço cujo domínio é de outrem: “para plantar, caçar, pescar é preciso adentrar nos espaços alheios, quase sempre com intenções predatórias” (Fausto, 2008CALAVIA SÁEZ, Oscar. Moinhos de vento e varas de queixadas: o perspectivismo e a economia do pensamento. Mana, v. 10, n. 2, p. 227-256, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://doi.org/10.1590/S0104-93132004000200001 >. Acesso em: 22 jun. 2014.
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, p. 340). Em outras palavras, a mata, os rios e lagoas, as montanhas, e também as colmeias, a germinação das sementes, a ação do fogo nos alimentos, as onças, as capivaras, os peixes eram uma série de domínios e seres controlados por donos ou mestres que impunham suas regras de controle, tais como “normas de pesca, de extracción melífera y explotación maderera” (López, 1998LÓPEZ, José Luis. Los dueños de ámbitos en la narrativa chaco-santiagueña. Mitológicas, v. 13, p. 51-58, 1998., p. 56). A presença desses donos era tão difundida entre os índios, que até mesmo um “relojito de ruedas con campanilla de horas” provocava as mais variadas teorias sobre “la causa de sus movimentos”, incluindo a mais óbvia para eles: a de que “era una cosa viva que se aparece a sus médicos, y llaman Latenigi, y que el reloj era el Latenigi” (Sánchez Labrador, [1770] 1910SÁNCHEZ LABRADOR, José S. J El Paraguay católico. Buenos Aires: Imprenta de Coni Hermanos, 2tomos, [1770] 1910., t. 1, p. 250).

Na medida em que o naturalismo moderno assume a “universalidade de uma noção de ‘natureza’ qualificada como um domínio ontológico que seria concebido em todos os lugares como tendo os mesmos limites discretos e como sendo ativado pelas mesmas leis” (Descola, 1996DESCOLA, Philippe. Constructing natures: symbolic ecology and social practice. In: DESCOLA, Philippe; PÁLSSON, Gísli(Orgs.). Nature and society: anthropological perspectives. Londres: Routledge , 1996, p. 82-102., p. 99, n. 1), os jesuítas, imbuídos dessa lógica, identificavam as noções indígenas sobre os seres e ambiente envolvente como crença de povos que, “por más evidentes razones que se les quieran traer para persuadirles lo contrario, se quedan siempre muy fijos en su error” (Lozano, 1733LOZANO Pedro, S.J. Descripción chorographica de terreno ríos, arboles, y animales de las dilatadísimas provincias del Gran Chaco, Gualamba, y de los ritos y costumbres de las innumerables naciones de barbaros e infieles que le habitan. Córdoba: Colegio de Asunción, 1733., fl. 97) - principalmente quando dizia respeito às narrativas envolvendo a perspectiva anímica de animais, plantas e entidades ou o poder de comunicação dos xamãs com espíritos. Essas histórias que os índios contavam sobre astros que eram gente ou aparições na forma de onça eram tratadas pelos jesuítas como ideias antigas e já superadas: “no dejan duda de que ellos creían en el error de Pitágoras de la transmigración de las almas” (Jolís, [1789] 1972JOLÍS, José S.J. Ensayo sobre la historia natural del Gran Chaco. Resistencia: UNNE/Facultad de Humanidades-Instituto de Historia, [1789] 1972., p. 315).9 9 A teoria da transmigração da alma de Pitágoras (c. 570-c. 495 a.C.) afirmava que 1) “a alma é imortal; 2) que transmigra em outras espécies de seres vivos; 3) que, periodicamente, o que já aconteceu uma vez volta a acontecer, e nada é absolutamente novo; e 4) que todos os seres animados devem ser considerados como do mesmo gênero” (Cornelli, 2011, p. 109). Tal constatação acabava invalidando qualquer possibilidade de ver como reais as variações do ambiente sociologicamente relacional que os índios do Chaco deixaram claro existir, como os diversos exemplos encontrados na documentação produzida pelos missionários em que os índios relatavam situações de conflitos de ordem cósmica - e origem mitológica (Felippe, 2014FELIPPE, Guilherme Galhegos. A cosmologia construída de fora: A relação com o outro como forma de produção social entre os grupos chaquenhos no século XVIII. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.) - que aparentavam ocorrer muito distantes do alcance dos índios, mas que eram concebidas por eles “como parte do mesmo conjunto de problemas” que enfrentavam cotidianamente e que se refere à noção de cosmopolítica: “processo de pensamento sistemático sobre as formas de gerenciar as relações de poder assimétricas e [constituídas] no eixo de suas elaborações cosmológicas” (López; Altman, 2017LÓPEZ, Alejandro Martín; ALTMAN, Agustina. The Chaco skies. A socio-cultural history of power relations. Religion and Society: Advances in Research, v. 8, p. 62-78, 2017. Disponível em: <http://doi.org/10.3167/arrs.2017.080104>. Acesso em: 23 jan. 2019.
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, p. 72).10 10 Cosmopolítica foi um conceito desenvolvido, especialmente, por Isabelle Stengers e Bruno Latour, cujo objetivo era superar a ideia de “cosmos, ou mundo, como uma tradição particular pode concebê-los”, incorporando “múltiplos e divergentes mundos e as articulações com as quais poderiam eventualmente estar aptos” (Stengers, 2005, p. 995). Isso quer dizer que cosmopolítica não diz respeito apenas à ampliação de agentes não humanos às categorias humanas, mas à sua atuação intencional e criativa em contextos de sociabilidade. Ao mesmo tempo que o conceito de cosmopolítica não deixa limitar o “número de entidades que podem negociar em volta da mesma mesa”, ele não é a simples enunciação de uma infinidade descontrolada de agentes pelo mundo: “A presença do cosmos nas cosmopolíticas resiste à tendência da política em conceber as trocas em um círculo exclusivamente humano. A presença do político nas cosmopolíticas resiste à tendência do cosmos em conceber uma lista finita de entidades que devem ser levadas em consideração. O cosmos previne o encerramento prematuro do político, assim como o político em relação ao cosmos” (Latour, [2004] 2018, p. 432).

Por isso, para os índios, fenômenos como eclipses ou tempestades mereciam tanta atenção quanto negociações estabelecidas com os missionários ou os tratados assinados com autoridades coloniais, justamente por serem situações que interferiam e diziam respeito diretamente à vida política de um cosmos que inclui “diversas nociones de política como a los diversos actores implicados en ella” (Medrano; Tola, 2016MEDRANO, Celeste. Los no-animales y la categoría “animal”. Definiendo la zoosociocosmología entre los toba (qom) del los Chaco argentino. Mana, v. 22, n. 2, p. 369-402, 2016. Disponível em: <http://doi.org/10.1590/1678-49442016v22n2p369>. Acesso em: 14 jul. 2017.
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, p. 101). Assim, certos fenômenos climáticos e astronômicos eram associados à atuação direta de seres e entidades que, em vez de comporem um panteão de divindades sagradas, formavam o conjunto de atores com capacidades sociais iguais às dos índios, porque compartilhavam as mesmas disposições e comportamentos humanos, tais como “consciência, alma, capacidade de comunicação, mortalidade, capacidade de crescer, conduta social, código moral, etc.” (Descola, 1996DESCOLA, Philippe. Constructing natures: symbolic ecology and social practice. In: DESCOLA, Philippe; PÁLSSON, Gísli(Orgs.). Nature and society: anthropological perspectives. Londres: Routledge , 1996, p. 82-102., p. 82).

Disto resulta que cada evento - um eclipse lunar, uma tempestade, a chuva11 11 Mesmo algo aparentemente tão banal e corriqueiro como a chuva era repleto de vida para os lule, que a chamavam de “epucué: a las gotas de agua los ojos de este Epucué y unos gusanitos, que después de los aguaceros suelen aparecer sobre el haz de la tierra, dicen que son los piojos del Epucué” (Lozano, 1733, fl. 96). ou mesmo a aparição de um espírito na floresta e o ataque de uma onça -, na verdade, é “uma ação, uma expressão de estados ou predicados intencionais de algum agente” (Viveiros de Castro, [1996] 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify , [1996] 2002, p. 345-399., p. 359, destaque no original) - pois, “‘Humano’ é o nome de uma relação e não de uma substância” (Viveiros de Castro, [2009] 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac Naify , [2009] 2015., p. 47 n. 12).

Os eclipses, por exemplo, eram eventos vivos, em que seres se confrontavam em lutas ao mesmo tempo cósmicas e terrenas, no tempo presente, mas remetidas a um tempo mitológico. Segundo os lule, tanto o eclipse lunar como o solar são embates destes astros com outros seres, como é o caso do ataque que “un pájaro grande” faz ao sol, matando-o por um tempo (Lozano, 1733LOZANO Pedro, S.J. Descripción chorographica de terreno ríos, arboles, y animales de las dilatadísimas provincias del Gran Chaco, Gualamba, y de los ritos y costumbres de las innumerables naciones de barbaros e infieles que le habitan. Córdoba: Colegio de Asunción, 1733., fl. 96) - ou, nas palavras do padre Guevara, é o demônio tentando comer o sol, restando aos índios suplicarem: “déjala; compadécete de nuestra compañera, no nos la comas” (Guevara, [1764] 1836, p. 34, destaques no original). E é justamente por ser um embate que remete ao mito, este “ponto de fuga universal do perspectivismo [que] fala de um estado do ser onde os corpos e os nomes, as almas e as ações, o eu e o outro se interpenetram, mergulhados em um mesmo meio pré-subjetivo e pré-objetivo” (Viveiros de Castro, [1996] 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify , [1996] 2002, p. 345-399., p. 355), que permite aos índios o conhecimento necessário para interferir em determinados fenômenos. Entende-se, portanto, que os mocovi, quando contaram sobre a vez em que o céu caiu e, “con puntas de palos lo sublevaron y repusieron en sus ejes” (Guevara, [1764] 1836GUEVARA, Pedro. Historia del Paraguay, Río de la Plata y Tucumán. In: DE ANGELIS, Pedro (Org.). Colección de obras y documentos relativos a la historia antigua y moderna de las Provincias del Río de la Plata, tomo 2. Buenos Aires: Imprenta del Estado, [1764] 1836., p. 34), não estavam confundindo mito e história, mas atualizando uma façanha mítica por meio da sua narração, fornecendo, assim, “uma reserva de ideias alternativas, interpretações e cursos de ação com potencial de aplicação no presente” (Hugh-Jones, 1988HUGH-JONES, Stephen. The gun and the bow. myths of white men and Indians. L’Homme, tome 28, n. 106/107, p. 138-155, 1988. Disponível em : <http://doi.org/10.3406/hom.1988.368974>. Acesso em: 09 set. 2014.
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, p. 151):

Os mitos formam o polo temporalmente mais distante de um eixo que tem narrativas de experiência pessoal como seu polo temporalmente mais próximo. Todo o resto deve, necessariamente, estar localizado em algum lugar entre eles (Gow, 2001GOW, Peter. An Amazonian myth and its history. Oxford: Oxford University Press, 2001., p. 288)

Diferente da “temporalização” estabelecida pela história natural moderna, cuja “noção de história é entendida classicamente como uma sucessão de eventos irreversíveis e está ligada à experiência humana”, excluindo, assim, a natureza e restringindo-a à ordem estática de ciclos imutáveis que escapam à história (Ramos, 2016RAMOS, Maurício de Carvalho. Maupertuis e o pensamento evolutivo na época das luzes. Kronos, v. 2, n. 2, p. 134-154, 2016., p. 147), os índios percebiam no ambiente envolvente uma sucessão de eventos que absolutamente nada tinham do estático da natureza dos modernos - e era a recorrência ao mito que possibilitava a aproximação à dinamicidade desse ambiente repleto de vida.

Na prática, os eventos naturais, como os eclipses, as tempestades ou a aparição de determinadas constelações no céu noturno tinham uma importante influência nas vidas dos índios, porque, ainda que não fossem situações descoladas da sua realidade, eram contextos extraordinários em que o mundo ordinário e intuitivo do cotidiano era suspenso e substituído por outro, o mitológico - ou, como Carlos Fausto denomina, ocorria o “‘efeito de colchete’: aquilo que era o background passa a foreground - o mundo transformacional, condição primeira do cosmos, se reatualiza e o mundo do cotidiano recolhe-se ao segundo plano”. Um eclipse, por exemplo, era um “macro-fenômeno que coloca entre colchetes o dia a dia, instaurando um outro espaço-tempo em que as fronteiras entre os seres tornam-se permeáveis e as espécies naturais passam umas nas outras” (Fausto, 2012FAUSTO, Carlos. Sangue de lua: reflexões sobre espíritos e eclipses. Journal de la Société des Américanistes, v. 98, n. 1, p. 63-80, 2012. Disponível em: <http://doi.org/10.4000/jsa.12143>. Acesso em: 15 fev. 2018.
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, p. 69, destaques no original). Eventos assim igualavam-se àqueles em que o xamã viajava para o mundo dos mortos ou encontrava-se com o espírito-dono de uma espécie para debater a relação - porém, em uma escala diferente. Nesses casos, apenas o xamã tinha a oportunidade de acessar estes planos transformacionais e contemplar a “condição primeira do cosmos” - em que a onça lhe aparecia como pessoa ou a alma do defunto lhe pregava uma peça e corria para a mata. Já eventos como os eclipses ou as tempestades englobavam mais espectadores, cuja afetação direta obrigava-os a posicionar-se e intervir nessas ocasiões.

Os missionários que conviveram com os índios no Chaco tiveram a oportunidade de presenciar este tipo de situação sociocosmológica, em que um eclipse adquiria, na perspectiva dos nativos, a importância de um evento de integração coletiva e interação com os não humanos. Enfatizando o caráter bélico dos eclipses, os indígenas descreviam-nos aos jesuítas como uma batalha em que os astros eram “despedazados por los perros, a los que creen salidos del aire”, enquanto os índios, ao invés de apenas assistir, tomam o seu lado nesse confronto e “arrojan al cielo, vociferando, una granizada de flechas” (Dobrizhoffer, [1784] 1967-1970DOBRIZHOFFER, Martín S.J. Historia de los abipones. Resistencia: Universidad Nacional del Nordeste, 3 tomos, [1784] 1967-1970., t. 2, p. 90). A cor avermelhada da lua durante o fenômeno era o resultado dos ataques que as feras provocavam ao astro, que “la muerden hasta que la hacen derramar sangre de todo el cuerpo”, o que levava os índios a sair “con grandes gritos y aspavientos disparando al aire una gran tempestad de flechas para defenderla” em uma verdadeira guerra que só terminava com o fim do eclipse (Fernández, [1726] 1895FERNÁNDEZ, Patricio S.J. Relación historial de las misiones de indios chiquitos que en el Paraguay tienen los padres de la compañía de Jesús. Madrid: Librería de Victoriano Suárez, 2 vols, [1726] 1895., v. 1, p. 59).

O mesmo comportamento de enfrentamento é registrado durante tempestades, quando os índios saíam “animosos a provocar la tempestad, y a los demonios que juzgan venir en ella”. Em um ímpeto de total investimento belicoso, “prosiguen ellos armados contra la tempestad, hasta que se desvanecen las nubes, quedando ellos en la vana persuasión de que los diablos, temerosos de sus armas, huyen a sepultarse en los abismos” (Guevara, [1764] 1836, p. 23). Um relato semelhante foi registrado pelo cosmógrafo Cosme Bueno que, ao descrever o Chaco e seus habitantes, afirma que durante um temporal os índios “salen de sus esteras o toldos armados de macanas, dando terribles gritos, llenos de furor y rabia a pelear con la tempestad” (Bueno, 1775BUENO, Cosme. Descripción del Gran Chaco por D. Cosme Bueno. 1775. Archivo del Museo Naval (Madri), caja 0114, ms. 123, doc. 1., fl. 4v).

Estes eventos ontomitológicos, que reatualizavam “um contexto primordial anterior à separação sujeito-objeto” em “condições de possibilidade para uma interação subjetiva” (Fausto, 2012FAUSTO, Carlos. Sangue de lua: reflexões sobre espíritos e eclipses. Journal de la Société des Américanistes, v. 98, n. 1, p. 63-80, 2012. Disponível em: <http://doi.org/10.4000/jsa.12143>. Acesso em: 15 fev. 2018.
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, p. 73), estabeleciam uma forma de relação que o objetivismo cartesiano do naturalismo não conseguia comportar em seu modelo de uma natureza ao mesmo tempo cíclica e inerte, em que “plantas, animais, cores, parentesco e doenças de pele são de certa forma coisas ‘reais’ e autoevidentes, e não modos de falar sobre coisas” (Wagner, [1975] 2010WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify , [1975] 2010., p. 222). Pois é justamente isso que grande parte dos eventos, dos seres, das entidades, das manifestações predatórias e dos encontros inesperados na mata são para os índios: enunciações de um mundo repleto de vida reflexiva e comunicativa, em que um espírito não fala para o xamã - eles conversam, porque conversar é perceber o que cada um faz quando age em relação ao outro, depreendendo simultaneamente as mudanças em si e no outro: “espera-se a resposta e o responder, desenvolvendo em responsividade mútua e, além disso, possivelmente em responsabilidade recíproca” (Bird-David, 1999BIRD-DAVID, Nurit. “Animism” revisited: personhood, environment, and relational epistemology. Current Anthropology, v. 40(Supplement), p. 67-91, 1999. Disponível em: <http://doi.org/10.1086/200061>. Acesso em:7 jan. 2019.
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, p. 77).

Considerações finais

Ao contrário do naturalismo convencional, que assume diferenças fundamentais entre pessoas e animais a fim de explorar a natureza de suas conexões, o animismo assume “conexões comuns entre pessoas, animais e outras entidades enquanto explora a natureza de suas diferenças” (Scott, 1996SCOTT, Colin. Science for the West, myth for the rest? The case of James Bay Cree knowledge construction. In: NADER, Laura(Org.). Naked science: anthropological inquiry into boundaries, power, and knowledge. Londres: Routledge , 1996, p. 69-86., p. 72) - na medida em que as pessoas e os demais entes do ambiente indígena são parte da mesma extensão social, mas possuem perspectivas particulares que remodelam as relações.

O animismo não é uma categoria cultural, no sentido de ser uma visão de mundo, como se os indígenas pudessem desaprender a ser animistas para adquirir uma nova coleção de práticas aplicáveis no mundo. O que os indícios registrados na documentação colonial apoiados por material etnográfico contemporâneo apontam é que o animismo não é uma representação deslocada do mundo natural, nem uma artificialidade de mentes ocupadas em fantasiar a realidade. Diferente do naturalismo e sua busca por “reduzir a ‘intencionalidade ambiente’ a zero a fim de atingir uma representação absolutamente objetiva do mundo”, o animismo “toma a decisão oposta: o conhecimento verdadeiro visa à revelação de um máximo de intencionalidade” (Viveiros de Castro, [1996] 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify , [1996] 2002, p. 345-399., p. 359) por via da constatação de que não se está sozinho em um ambiente atravessado por pontos de vista autoconscientes. Esse é o aspecto inicial para se entender como a realidade dos índios estava ontologicamente posta e epistemologicamente assimilável.

Ainda que não pregasse a subjetividade generalizada entre todos os seres e coisas, o animismo no Chaco - bem como em outras regiões do planeta12 12 Para uma compilação de estudos sobre o animismo em sua acepção contemporânea, distante da estabelecida por Edward Tylor e que contempla exemplos de casos que vão além da macrorregião amazônica, como o Canadá, a Sibéria, a Melanésia, as Filipinas, Burkina Faso e Mali, ver Harvey (2013). - era a constante confrontação dos índios com o mínimo que poderiam ter de uma presunção solipsista de que possuíam a visão privilegiada sobre o mundo. Os eventos articulados pelos outros seres e entidades possibilitavam a real dinâmica do ambiente: a existência dessas subjetividades se dava na relação, fazendo com que a sociabilidade não seja uma explicação para o animismo, mas justamente o que precisa ser explicado (Descola, 2014DESCOLA, Philippe. Modes of being and forms of predication. Hau: Journal of Ethnographic Theory, v. 4, n. 1, p. 271-280, 2014. Disponível em: <http://doi.org/10.14318/hau4.1.012>. Acesso em: 13 jan. 2019.
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, p. 278).

Se partirmos das mesmas noções das quais estavam imbuídos os missionários e acreditarmos que somente podemos personificar outras entidades “como, quando e porque nos socializamos com elas”, em um movimento contrário ao que os indígenas praticavam ao personificar primeiro para então socializar (Bird-David, 1999BIRD-DAVID, Nurit. “Animism” revisited: personhood, environment, and relational epistemology. Current Anthropology, v. 40(Supplement), p. 67-91, 1999. Disponível em: <http://doi.org/10.1086/200061>. Acesso em:7 jan. 2019.
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, p. 78), ignoraremos a possibilidade de os índios narrarem a sua própria história a partir de seus próprios termos, que de longe seguem a sucessão cronologicamente ordenada de acontecimentos objetivos com a qual estamos acostumados. A vida social, bem como a história, para esses povos, não pode ignorar a multiplicidade de subjetividades presentes no ambiente, cada qual influenciando e sendo influenciada pela presença agentiva que possuem. Ignorar isso é inviabilizar o animismo como uma forma de viver autônoma dos desígnios de um modelo cartesiano que teima em restringir ao invés de ampliar.

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  • WAGNER, Roy. A invenção da cultura São Paulo: Cosac Naify , [1975] 2010.
  • 1
    Essa e as demais citações de textos em línguas estrangeiras têm tradução livre.
  • 2
    Por esquemas ontológicos compreende-se os sistemas de inferências básicas a respeito dos tipos de seres que compõem o mundo do observador e de que maneira eles se relacionam entre si. A isso, Philippe Descola chamou de worlding, ou seja, o “processo de juntar o que é percebido em nosso ambiente”. Com isso, o autor tenta escapar da visão ocidentalizante de que ou existe uma realidade transcendental preexistente — a mãe natureza, por exemplo —, ou as várias versões culturais que podem ser dadas a ela — geradora do relativismo cultural (Descola, 2014, p. 272-273). Descola propõe, portanto, a existência de quatro esquemas ontológicos: o naturalismo, o animismo, o analogismo e o totemismo (Descola, 1996; 2014).
  • 3
    No original: “The use of historical methods in anthropology is of no value if all it can do is solve the limitations of ethnographic methods by recourse to an already constituted historical knowledge”. E o autor prossegue: “Uma antropologia que usa métodos históricos inevitavelmente está em busca de novos objetos, vagamente sentidos nos limites dos métodos etnográficos” (Gow, 2001, p. 19) — o que também vale, inversamente, para os historiadores.
  • 4
    O conceito de animalidade difundido e utilizado pela nossa sociedade tampouco oferece uma visão sem suas dualidades. A forma como tratamos os animais, entre considerá-los bestas irracionais dignas de proteção e a atribuição de toda gama de sentimentos humanos, gera uma contradição derivada, em grande parte, de nossa “propensão a alternar entre duas abordagens bem diferentes da definição de animalidade: como um domínio ou ‘reino’, incluindo humanos; e como estado ou condição, oposto à humanidade” (Ingold, [1988] 1994, p. 4). Essa inconsistência que ora coloca e ora retira os humanos do arcabouço conceitual de animalidade não parece existir em grande parte dos grupos indígenas, que, como os guajá, povo falante do tupi-guarani, compreendem a animalidade a partir de um vínculo extenso — e, por isso, abrangente —, pautado pela relação de predação, em que a “‘animalidade’ de um animal de criação, muito provavelmente, em nada se conecta à animalidade de um animal selvagem que será caçado” (Garcia, 2018GARCIA, Uirá. Macacos também choram, ou esboço para um conceito ameríndio de espécie. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, p. 179-204, 2018. Disponível em: <http://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p179-204>. Acesso em: 18 fev. 2019.
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X....
    , p. 192). Entre os chané e os chiriguano contemporâneos, animais de criação e pessoas ganham nomes invertidos, ou seja, assim como muitas pessoas levam nomes de animais — “Tapiti (liebre), Guampi (buitre), Ndivilly (grillo), Niéhti (mosquito), Cururu (sapo)” —, muitos animais de criação levam nome de gente — “un gato se llama ‘Arturo’, una chancha ‘Marcela’, un loro ‘Pedro’” —, mantendo a ordem de uma relação ontológica em que “la zoonimia de las personas se contrapesa con la antroponimia de los animales domésticos” (Villar, 2005VILLAR, Diego. Indios, blancos y perros. Anthropos, v. 100, n. 2, p. 495-506, 2005., p. 496).
  • 5
    As interdições alimentares praticadas pelos índios e registradas pelos missionários também revelam associações não convencionais para o esquema classificatório moderno que eram acionadas em função de alguma restrição realizada sob regime temporário, como o período menstrual, a gravidez ou o pós-parto — como é o caso dos índios abipone que deixavam de comer peixe após o nascimento de seu filho a fim de evitar que o recém-nascido ou a mãe adoecessem (Lozano, 1733, fl. 91-92). A mesma precaução alimentar, porém, entre os toba contemporâneos, ajuda a entender a restrição entre os abipone: a “associação metonímica entre o esperma e a medula do peixe, pela cor e pela consistência, é a fonte de uma série de expressões relativas a um aumento da quantidade de esperma devido à ingestão do peixe” (Tola, 2007TOLA, Florencia. “Eu não estou só(mente) em meu corpo”. A pessoa e o corpo entre os toba qom do Chaco argentino.Mana, v. 13, n. 2, p. 499-519, 2007. Disponível em: <http://doi.org/10.1590/S0104-93132007000200008>. Acesso em:15 mar. 2015.
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313200700...
    , p. 508).
  • 6
    A polêmica da natureza da América se deu em torno de um conjunto de teorias que buscavam demonstrar a inferioridade e degenerescência da fauna, da flora e dos nativos americanos comparando-os com a natureza europeia. O embate ocorreu entre os naturalistas europeus (como o conde de Buffon, Cornelius de Pauw, William Robertson e Guillaume Raynal), preocupados em produzir um conjunto teórico para uma História Natural global, cuja ênfase era a demonstração da superioridade da natureza europeia (Bernand, 2009BERNAND, Carmen. La marginación de Hispanoamérica por la historia universal europea (siglos XVIII-XIX). Revista Co-herencia, v. 6, n. 11, p. 107-122, 2009.; Lage, 2015LAGE, Julian zur. An armchair scholar’s world: Cornelius de Pauw and the global discourse of historiography in the late Enlightenment. Global Histories, v. 1, n. 1, p. 79-92, 2015. Disponível em: <Disponível em: http://doi.org/10.17169/GHSJ.2015.37 >. Acesso em: 11 jan. 2019.
    http://doi.org/10.17169/GHSJ.2015.37...
    ); e os defensores da análise empírica sobre a natureza da América, principalmente representados por religiosos que viveram no continente (como Francesco Saverio Clavigero, Salvatore Gilij e Juan Ignacio Molina), expedicionários que viajaram por regiões da América (como Antoine-Joseph Pernety e Zacharie de Pazzi de Bonneville), e alguns padres que atuaram na Província Jesuítica do Paraguai, como José Jolís, José Sánchez Labrador e Martín Dobrizhoffer (Huffine, 2005; Justo, 2011JUSTO, María de la Soledad. Paraguay y los debates jesuíticos sobre la inferioridad de la naturaleza americana. In: WILDE, Guillermo(Ed.). Saberes de la conversión: jesuitas, indígenas e imperios coloniales en las fronteras de la cristiandad. Buenos Aires: SB, 2011, p. 155-174.).
  • 7
    Inspirada no conceito de divíduo de Marilyn Strathern, Nurit Bird-David propõe que as populações que compartilham o pensamento animista não compreendem as pessoas como entidades separadas, mas como divíduos com os quais se relacionam. Dito de outra forma, em vez de eu ter a consciência do outro “em si mesmo” ou da relação com ele “em si”, tenho consciência da “relação com meu interlocutor quando me envolvo com ele, atento ao que ele faz em relação ao que eu faço, a como ele fala e me escuta enquanto eu falo e ouço, o que acontece simultaneamente e mutuamente para mim, para ele, para nós” (Bird-David, 1999, p. 72, destaques no original). Em um grupo humano em que os outros são divíduos, e não indivisíveis, as pessoas são na relação — e por isso transcendem sua dividualidade: a pessoa “é o locus de vários outros eus com os quais ele ou ela está unido nas relações mútuas de ser; mesmo porque, pelo mesmo motivo, o eu de qualquer pessoa é mais ou menos amplamente distribuído entre outros” (Sahlins, 2008, p. 48).
  • 8
    O fato de que, para os índios, “não há pontos de vista sobre as coisas: as coisas e os seres é que são pontos de vista” (Viveiros de Castro, [1996] 2002, p. 385), coloca o perspectivismo não como sinônimo do animismo, mas como seu “corolário etnoepistemológico [...] cujo tecido se encontra nos mitos e cujo formulador por excelência é o xamã” (Calavia Sáez, 2004, p. 231).
  • 9
    A teoria da transmigração da alma de Pitágoras (c. 570-c. 495 a.C.) afirmava que 1) “a alma é imortal; 2) que transmigra em outras espécies de seres vivos; 3) que, periodicamente, o que já aconteceu uma vez volta a acontecer, e nada é absolutamente novo; e 4) que todos os seres animados devem ser considerados como do mesmo gênero” (Cornelli, 2011CORNELLI, Gabriele. O pitagorismo como categoria historiográfica. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos; Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. Disponível em: <http://doi.org/10.14195/978-989-8281-96-8>. Acesso em: 10 jan. 2019.
    https://doi.org/10.14195/978-989-8281-96...
    , p. 109).
  • 10
    Cosmopolítica foi um conceito desenvolvido, especialmente, por Isabelle Stengers e Bruno Latour, cujo objetivo era superar a ideia de “cosmos, ou mundo, como uma tradição particular pode concebê-los”, incorporando “múltiplos e divergentes mundos e as articulações com as quais poderiam eventualmente estar aptos” (Stengers, 2005STENGERS, Isabelle. The cosmopolitical proposal. In: LATOUR, Bruno; WEIBEL, Peter (Eds.). Making things public: atmospheres of democracy. Cambridge: MIT Press, 2005, p. 994-1003., p. 995). Isso quer dizer que cosmopolítica não diz respeito apenas à ampliação de agentes não humanos às categorias humanas, mas à sua atuação intencional e criativa em contextos de sociabilidade. Ao mesmo tempo que o conceito de cosmopolítica não deixa limitar o “número de entidades que podem negociar em volta da mesma mesa”, ele não é a simples enunciação de uma infinidade descontrolada de agentes pelo mundo: “A presença do cosmos nas cosmopolíticas resiste à tendência da política em conceber as trocas em um círculo exclusivamente humano. A presença do político nas cosmopolíticas resiste à tendência do cosmos em conceber uma lista finita de entidades que devem ser levadas em consideração. O cosmos previne o encerramento prematuro do político, assim como o político em relação ao cosmos” (Latour, [2004] 2018LATOUR, Bruno. Qual cosmos, quais cosmopolíticas? Comentário sobre as propostas de paz de Ulrich Beck. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, p. 427-441, [2004] 2018. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p427-421>. Acesso em: 19 jan. 2019.
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X....
    , p. 432).
  • 11
    Mesmo algo aparentemente tão banal e corriqueiro como a chuva era repleto de vida para os lule, que a chamavam de “epucué: a las gotas de agua los ojos de este Epucué y unos gusanitos, que después de los aguaceros suelen aparecer sobre el haz de la tierra, dicen que son los piojos del Epucué” (Lozano, 1733, fl. 96).
  • 12
    Para uma compilação de estudos sobre o animismo em sua acepção contemporânea, distante da estabelecida por Edward Tylor e que contempla exemplos de casos que vão além da macrorregião amazônica, como o Canadá, a Sibéria, a Melanésia, as Filipinas, Burkina Faso e Mali, ver Harvey (2013)HARVEY, Graham(Org.). The Handbook of Contemporary Animism. Londres: Routledge, 2013..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2019
  • Aceito
    01 Mar 2020
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