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Dom Antonio de Noronha e o Plano secreto para o Cuieté1 1 Agradeço a Daniel Carvalho de Paula, mestrando em História Social na Universidade de São Paulo, por ter gentilmente digitado minha transcrição manuscrita dos documentos aqui publicados.

Resumos

Depositado na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, o Livro Segundo das Cartas que o Ilmo. e Exmo. Sr. D. Antonio de Noronha Capitão General da Capitania de Minas Gerais escreveu durante o seu governo que teve princípio em 28 de maio de 1776 constitui um notável conjunto de documentos acerca não só do governo das Minas Gerais, mas também de importantes autoridades administrativas do período. Nesse códice, estão contidos o Plano secreto para a nova conquista do Cuieté e as cartas para o Marquês de Angeja e para o ministro Martinho de Mello e Castro, que ora se publicam. Escritos pelo próprio governador D. Antônio de Noronha, os documentos trazem instruções e medidas a serem tomadas em relação à região do Cuieté, no sertão mineiro, e refletem sobre temas decisivos no contexto da colonização da América portuguesa, tais como o exercício do poder por parte das autoridades metropolitanas, a especificidade da população colonial, o povoamento de áreas fronteiriças e a expansão da administração e da burocracia.

governo colonial; sertão; fronteira; colonização


Filed in the Manuscript Division of the National Library, the work Livro Segundo das Cartas que o Ilmo. e Exmo. Sr. D. Antonio de Noronha Capitão General da Capitania de Minas Gerais escreveu durante o seu governo que teve princípio em 28 de maio de 1776 (Second Book of the Letters that His Illustrious Excellency Mr. D. Antonio de Noronha, Captain General of the Captaincy of Minas Gerais, wrote during his government that began on May 28, 1776) is a remarkable set of documents not only about the government of Minas Gerais, but also about important administrative authorities of that period. This Codex includes the Plano secreto para a nova conquista do Cuieté (Secret plan for the new conquest of the Cuieté) and the letters to the Marquis of Angeja and the minister Martinho de Mello e Castro, which are herein published. Written by the governor D. Antonio de Noronha himself, the documents show instructions and measures to be taken regarding the Cuieté region, in the sertão (hinterland) of Minas Gerais, and reflect on critical issues in the context of the colonization of Portuguese America, such as the exercise of power by part of the metropolitan authorities, the specificity of the colonial population, the settlement of border areas, and the expansion of government and bureaucracy.

colonial government; hinterland; border; colonization


Depositada en la División de Manuscritos de la Biblioteca Nacional, la obra Livro Segundo das Cartas que o Ilmo. e Exmo. Sr. D. Antonio de Noronha Capitão General da Capitania de Minas Gerais escreveu durante o seu governo que teve princípio em 28 de maio de 1776 (Segundo Libro de las cartas que el Ilmo. y Excmo. Sr. D. Antonio de Noronha Capitán General de la Capitanía de Minas Gerais escribió durante su gobierno que empezó a 28 de mayo 1776) es una notable colección de documentos no sólo acerca del gobierno de Minas Gerais, sino también de las importantes autoridades administrativas del período. En este códice, figuran el Plano secreto para a nova conquista do Cuieté (Plan secreto para la nueva conquista del Cuieté) y las cartas al marqués de Angeja y al ministro Martinho de Mello e Castro, que publicamos ahora. Escritos por el propio gobernador D. Antonio de Noronha, los documentos contienen instrucciones y acciones que deben tomarse con respecto a la región de Cuieté, en el interior de Minas, y reflexionan sobre cuestiones fundamentales en el contexto de la colonización de la América portuguesa, como el ejercicio del poder por las autoridades metropolitanas, la especificidad de la población colonial, la población de las zonas fronterizas y la expansión del gobierno y de la burocracia.

governo colonial; sertão; fronteira; colonização


Déposé dans la division de manuscrits à la Bibliothèque Nationale, le Seconde livre des lettres ecrits par D. Antonio de Noronha, le capitaine-major de la capitainerie de Minas Gerais pendant son gouvernement, commençant à 28 de maio de 1776 est une série de documents notable sur le gouvernement de Minas Gerais, mais aussi des autorités administratives de la période considérée. Dans ce códex, sont contenus le Le plan secret à la conquête du Cuieté et les lettres au Marquis d'Angeja et au ministre Martinho de Mello e Castro ici publiées. Ecrits par le gouverneur D. Antônio de Noronha, ces documents sont relatifs a les instructions et les mesures à prendre selon le Cuieté, au sauvage de Minas Gerais, et font réfléchir sur sujets décisifs dans le contexte de la colonisation l'Amérique portugaise tels que l'exercice du pouvoir par les autorités métropolitaines, la spécificité de la population coloniale, le peuplement des zones frontalières et l'expansion de l'administration et la bureaucratie.

gouvernement colonial; sauvage; frontière; colonisation


O encontro com o Plano secreto para a nova conquista do Cuieté

Nos verões de 1989 e 1990, passados 10 anos do término da pesquisa e redação de Desclassificados do Ouro, dissertação de mestrado publicada como livro em 1982, voltei a trabalhar sobre Minas Gerais. Após um tempo ocupada com outros assuntos e outros acervos documentais - religiosidade popular, processos da Inquisição -, regressava ao tema e às fontes por meio das quais adquirira a prática necessária à atividade de historiadora, mas em acervo que não frequentara até então: a Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O projeto inicial era escrever um livro sobre a vida cotidiana naquela capitania, ideia que nunca se realizou. Mas a pesquisa sobre Minas prosseguiu ao longo dos anos e se transformou em artigos - alguns reunidos na obra Norma e Conflito, publicado em 1999 - e partes de dois livros: O Sol e a Sombra, lançado em 2006, e Cláudio Manuel da Costa, em 2011. O historiador, muitas vezes - quase sempre, talvez... - atira no que vê e acerta no que não vê.

Foi num desses verões remotos que encontrei na Biblioteca Nacional o Plano secreto para a nova conquista do Cuieté, bem como as cartas para o Marquês de Angeja e para o ministro Martinho de Mello e Castro, que agora apresento. Além do interesse dos documentos, sobre os quais me deterei a seguir, acredito que a publicação é oportuna porque o Códice no qual se encontram e que, no final da década de 1980, apresentava bom estado de conservação, esteve por muito tempo fora de consulta. Hoje, apesar de acessível em meio digital, apresenta-se danificado, sendo os fólios mais atingidos, por ironia do destino, os que compreendem os documentos em questão.2 2 Registro aqui meu agradecimento a Monica Rizzo, Diretora do Centro de Referência e Documentação da Biblioteca Nacional, por ter possibilitado a mim o acesso à cópia digital do Códice.

Intitulado Livro Segundo das Cartas que o Ilmo. e Exmo. Sr. D. Antonio de Noronha Capitão General da Capitania de Minas Gerais escreveu durante o seu governo que teve princípio em 28 de maio de 1776, o Códice constitui um conjunto importantíssimo de documentos sobre a administração de Minas e sobre o governo do vice-rei Marquês do Lavradio,3 3 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, 2,2,24, Livro Segundo das Cartas que o Ilmo. e Exmo. Sr. D. Antonio de Noronha Capitão general da Capitania de Minas Gerais escreveu durante o seu governo que teve princípio em 28 de maio de 1776 [correspondência de D. Antonio de Noronha]. não contando, até onde sei, com cópias no Arquivo Público Mineiro ou no Arquivo Nacional, malgrado a complementaridade existente com relação à correspondência que integra alguns dos códices ali depositados.4 4 Para o Arquivo Nacional, ver Códice 67, vol. 5 e vol. 6; Códice 69, vol. 2, para correspondência referente, sobretudo, ao episódio da chamada "Inconfidência do Curvelo". Para o Arquivo Público Mineiro, ver Seção Colonial, códices 204 ("Registro de patentes, ordens e circulares do Governador - 1773-1777"); 207 ("Registro de cartas, ordens e circulares do Governador a autoridades da Capitania e respectivas respostas - 1775-1776"); 212 ("Troca de cartas entre o governador de Minas e o Vice-Rei e, também, a outros governadores do Brasil"). O conteúdo do Livro Segundo é composto, na quase totalidade, por cartas de Dom Antonio de Noronha a autoridades administrativas de seu tempo, ou seja, constituem parte de sua correspondência ativa, devendo, no caso de um estudo aprofundado sobre o governo desse administrador, ser confrontados com a correspondência passiva, dispersa por vários arquivos brasileiros e portugueses. Com base no título do Códice, deduz-se que existe, ou existiu, um Livro Primeiro da correspondência ativa, com as cartas anteriores a maio de 1776, mas até o momento não o encontrei em lugar nenhum.

O conjunto de documentos que integram o Livro Segundo é excepcional. Primeiro, em virtude da qualidade das cartas de Dom Antonio, que escrevia muito bem apesar de ser militar de carreira e não funcionário ou letrado, o governo das Minas constituindo o único desvio de rota numa vida dedicada ao comandos de fortalezas e regimentos, inclusive na "Guerra Fantástica", ou Campanha do Rossilhão (1793-1795). Segundo, pelo leque de temas abordados, que propiciam uma reflexão lúcida e bem articulada sobre o exercício do poder nas Minas. Poucos, aliás, tiveram ideias tão claras e bem fundadas sobre o governo daquela capitania, em particular, e sobre a administração das colônias, em geral, o que me levou a sugerir que D. Antonio pensava sob a perspectiva de um "sistema de governo".5 5 Laura de Mello e Souza, "Os limites da dádiva: Dom Antonio de Noronha", In: ______, O Sol e a sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 350-402.

O historiador, muitas vezes - quase sempre, talvez... - atira no que vê e acerta no que não vê

Entre os temas mais presentes na correspondência, está o da especificidade da população colonial, que o leva a "teorizar", numa extraordinária missiva a Lavradio, sobre a questão da "utilidade dos vadios". Ler essa carta, datada de 19 de novembro de 1776, foi uma das grandes alegrias que tive ao longo dos muitos anos de pesquisa arquivística, pois me permitiu provar que as considerações do desembargador Teixeira Coelho nas Instruções para o Governo da Capitania de Minas Gerais foram, palavra por palavra, emprestadas de uma das passagens da carta.6 6 BNRJ, DMs, 2,2,24, fls. 52-53 (para a referência aos vadios). Para a relação entre Teixeira Coelho e as concepções de D. Antonio de Noronha, ver Laura de Mello e Souza, op cit., p. 350-402. Ódio de todas as nações civilizadas, os vadios podiam ser úteis nas Minas, onde imperava o trabalho escravo na mineração e muitas atividades ficavam relegadas a segundo plano. A situação específica impunha a flexibilização das disposições gerais: as leis que vinham de Lisboa, saídas da cabeça de homens que nunca tinham pisado em solo americano, nem sempre podiam ser cumpridas à risca. Com sensibilidade, D. Antonio se dava conta de que as situações particulares deviam ser consideradas quando se visava ao estabelecimento de disposições gerais e, no caso do governo, de normas.

O sertão do Cuieté

Outro tema recorrente nesse conjunto documental é o do sertão do Cuieté, seu povoamento e seu presídio.

O Cuieté - palavra que, em língua indígena, designava vasilha ou cabaça -7 7 Joaquim Ribeiro Costa, Toponímia de Minas Gerais, Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado, 1970, p. 215. situava-se a leste da capitania de Minas Gerais, junto ao rio Doce, em terras cortadas por vários riozinhos e córregos. Tudo indica ser a mesma região também conhecida por Casa da Casca, famosa pela abundância de ouro - mais fictícia que efetiva -, pela densa cobertura vegetal e pelos índios bravos.8 8 Para a localização do Cuieté, ver, entre outros, José Joaquim da Rocha, Geografia histórica da Capitania de Minas Gerais. Estudo crítico de Maria Efigênia Lage de Resende, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1995, p. 78 et seq. (Coleção Mineiriana). Tratei pela primeira vez do Cuieté em Desclassificados do ouro - a pobreza mineira no século XVIII, 4. ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2004 [1982], p. 111-114. Voltei ao assunto em "Frontière géographique et frontière sociale à Minas Gerais dans la seconde moitié du XVIIIe siècle", In: Kátia de Queirós Mattoso; Idelette Muzart Fonseca dos Santos; Denis Rolland (eds.), Naissance du Brésil Moderne: 1500-1808, Paris, Presses de l'Université de Paris-Sorbonne, 1998, p. 273-288. Frequentada desde o século XVII, ainda nos primeiros tempos da mineração, quando os paulistas ali procuravam antes o "negro da terra" do que o "louro metal", o Cuieté povoou o horizonte mítico de desbravadores e governantes por décadas, talvez por um século.9 9 "Interditado o Sabarabuçu à preia de índios, por ato de Fernão Dias Pais, as bandeiras passam ostensivamente a frequentar o Sertão do Cuieté, ou da Casa da Casca, isto é, a bacia do Rio Doce. Faziam incursões clandestinas à bacia do Rio das Velhas (Sabarabuçu) que, numa confusão intencional, denominam de Sertão do Caeté, pretendendo situá-lo (para os não iniciados) também na bacia do Rio Doce, quando o Caeté realmente se acha no Rio das Velhas, como o Cuieté no Rio Doce. Para coonestar a preia, paulistas e taubateanos simulam a busca de ouro e metais preciosos, sobretudo quando os azares da sorte os obrigam a procurar socorro em capitanias outras, onde o auxílio, por ordem régia, só era garantido no segundo caso". Raimundo José da Cunha Matos, Corografia histórica da Província de Minas Gerais, 1837, vol. 1, Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1981, p. 77. Distante dos centros administrativos e povoado por índios não aculturados, o Cuieté resistiu a sucessivos empenhos de exploração, à distância e ao gentio bravo - duas faces da mesma moeda -, constituindo o obstáculo principal a qualquer sucesso.

Mesmo assim, homens que eram simultaneamente colonos e sertanistas se arriscaram naquelas paragens, procurando se assentar como fazendeiros. A tradição local atribui os primeiros esforços dessa natureza, empreendidos por volta de 1740, ao Capitão Pedro de Camargos e sua família, e as evidências indicam que muitos desbravadores tentaram experiências análogas, arcando com as despesas e quase nunca obtendo sucesso.10 10 A história do Cuieté é extensivamente tratada ao longo do belo livro de Hal Langfur e em quase todos os capítulos, pelo que seria exaustivo referir aqui todas as passagens referentes ao assunto. Para os primórdios, ver, sobretudo, o cap. 2, "Ordered space, disorderly peoples", In: Hal Langfur, The forbidden lands: colonial identity, frontier violence, and the persistence of Brazil's eastern Indians, 1750-1830, Stanford, Stanford University Press, 2006, p. 68 et seq. Outros passaram a maior parte da vida servindo a sucessivos governadores, como foi o caso do guarda-mor Antonio Lopes dos Santos, do capitão José Leme da Silva e do capitão José Gonçalves Vieira; nem por isso, tiveram sorte diferente, como indicam os minguados inventários que deixaram.11 11 Arquivo Público Mineiro, Secretaria de Governo, caixa 10 - doc. 21; caixa 20 - doc. 04. Museu do Ouro, Casa de Borba Gato, Cartório do Segundo Ofício. 1. (52)5 - Inventário dos bens que ficaram por falecimento de Antonio Lopes dos Santos casado que foi com Felipa Maria do Espírito Santo, moradora esta na Freguesia da Piranga e aquele falecido no Arraial de Santa Luzia sem testamento em 15 de abril de 1805. / Órfãos/ Escrivão Lima. Arquivo Público Mineiro, Seção Colonial, cód. 229, fl. 20-v; Arquivo Público Mineiro, Seção Colonial, cx. 20, doc. 29; Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício, cód. 84, auto 1795 - Inventário do Capitão José Leme da Silva. Arquivo Público Mineiro, Secretaria de Governo, cx. 20, doc. 04 e doc. 16. Para estes últimos, o sertão podia ser um meio de vida, mas constituía-se, sobretudo, em fonte de honrarias, reconhecimento e promoção social: não intencionavam estabelecer-se nas paragens que ajudavam a incorporar à égide governamental, mantendo as famílias e os haveres nas imediações de suas vilas de origem. Já os primeiros entravam para os matos em busca de terras para se estabelecer.

O Cuieté povoou o horizonte mítico de desbravadores e governantes por décadas, talvez por um século

O Cuieté, bem como outras "terras proibidas" da porção oriental da capitania, integrava um sertão tributário da câmara de Mariana.12 12 Cláudia Damasceno Fonseca, Arraiais e Vilas D'El Rei - espaço e poder nas Minas setecentistas, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2011, p. 279-282. Para as "terras proibidas" do leste de Minas, ver Hal Lagfur, The forbidden lands: colonial identity, frontier violence, and the persistence of Brazil's eastern Indians, 1750-1830, Stanford, Stanford University Press, 2006. Boa parte dos sertanistas que, ao longo dos anos, rumaram para aquela parte procedia da cidade mineira, das vilas e dos arraiais adjacentes. Na época, cada comarca tinha o "seu sertão", espaço onde os moradores dela se exercitavam em feitos de serviço à Coroa ou de aventura pessoal. O sertão, para os homens de São João ou São José del-Rei, na comarca do Rio das Velhas, eram os cerrados do alto São Francisco, as Picadas de Goiás, como então se chamavam; podiam ser também as escarpas da Mantiqueira, sobretudo para os que viviam em Venda Nova ou na Borda do Campo. Para os potentados de Sabará, sertão era o médio São Francisco, a zona de Paracatu, Barra do Rio das Velhas e São Romão. As florestas cortadas pelo rio Doce, mais ao sul, eram, pois, o sertão da comarca de Ouro Preto, onde ficava Mariana, apresentando, contudo, conexões com a comarca do Rio das Velhas, atraindo alguns de seus homens. Era ali que se localizava o lendário Cuieté, mas também Abre Campo e Arrepiados. A Mata do Peçanha, mais acima, era sertão para os habitantes do Serro e do Tijuco, este já na Demarcação Diamantina.13 13 Cf. mapas de José Joaquim da Rocha, Geografia histórica da Capitania de Minas Gerais. Estudo crítico de Maria Efigênia Lage de Resende, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1995, anexos. (Coleção Mineiriana); José Ferreira Carrato, Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais, São Paulo, Companhia Editora Nacional; EdUSP, 1968, mapa em anexo, elaborado pelo autor. Waldemar de Almeida Barbosa, Dicionário histórico-geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, [s.n.], 1971; Joaquim Ribeiro Costa, Toponímia de Minas Gerais, Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado, 1970.

No período que seguiu à morte de Gomes Freire de Andrada (1763), quando se tentou o reerguimento econômico da capitania, sucessivos governadores se empenharam na abertura de novas frentes, empurrando as fronteiras da atividade mineradora em vários sentidos: para os lados de Paracatu, para os de Minas Novas, para os do Desemboque, para os do Rio Doce... Luís Diogo Lobo da Silva, José Luís de Meneses Castelo Branco e Noronha - o conde de Valadares - e D. Antonio de Noronha foram os que mais se destacaram nessa empreitada, e o Cuieté esteve no centro de suas preocupações.

O Cuieté foi também conhecido como "Conquista", termo corrente para designar regiões onde "uma população preexistente (índios ou quilombolas) resistia ao avanço da colonização". Quem melhor esclareceu o assunto foi Cláudia Damasceno Fonseca em livro já clássico, justificando o uso da expressão com o fato de o Cuieté ter sido, de fato, conquistado e reconquistado vezes sem conta, sempre na esperança de que o gentio feroz, como os imbarés da margem direita do rio Doce, desse trégua na guerra sem quartel que faziam ao estabelecimento de arraiais na região.14 14 Cláudia Damasceno Fonseca, Arraiais e Vilas D'El Rei - espaço e poder nas Minas setecentistas, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2011, p. 76-77. A citação entre aspas é da autora, p. 76 Na segunda metade do século XVIII, para tentar segurar os índios por meio da conversão e facilitar o avanço colonizador, criou-se uma paróquia no Cuieté, como, aliás, em várias outras regiões periféricas da capitania.15 15 Ibidem, p. 124. Já existia então um presídio ali, e variadas estratégias haviam sido adotadas a fim de neutralizar a hostilidade indígena.16 16 Ibidem, p. 125-126. Para um estudo meticuloso dos enfrentamentos entre índios e colonizadores, ver Maria Leônia Chaves de Resende, Gentios brasílicos - índios colonos em Minas Gerais setecentistas, Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.

Os documentos

Apesar de não trazer data, o Plano foi certamente escrito por D. Antonio de Noronha em 1779. No Códice, é seguido por duas cartas do governador dirigidas aos ministros Marquês de Angeja e Martinho de Mello e Castro em outubro daquele ano, ambas versando sobre as medidas tomadas com relação ao Cuieté; entre elas, a inspeção feita pessoalmente por D. Antonio, que para lá viajara em setembro. Datas e assunto reforçam, pois, a convicção quanto ao ano da elaboração do Plano.

O Plano secreto para a nova conquista do Cuieté surge num momento de refundação: tanto as ações individuais quanto as encetadas sob a égide dos governadores haviam soçobrado ante os ataques de índio e a distância dos povoados, encarecendo o transporte que, ainda por cima, fazia-se pelo difícil rio Doce e ribeirões adjacentes. D. Antonio abriu novo caminho terrestre e arcou com suas custas: pelo menos foi o que alardeou.17 17 Hal Langfur, The forbidden lands: colonial identity, frontier violence, and the persistence of Brazil's eastern Indians, 1750-1830, Stanford, Stanford University Press, 2006, p. 75. Facilitando o acesso à região, havia que impor as normas. O Plano é um exemplo de como a máquina burocrática procurava se estender até paragens remotas, o espírito pragmático e racional crescendo por sobre as construções míticas que ainda perduravam e que, como se sabe, demoram muito a desaparecer: na carta ao Marquês de Angeja, D. Antonio reputa os quilates do metal encontrado como de "excelente qualidade", deslumbra-se com a abundância de rios, córregos e ribeirões, acrescentando serem os matos "da melhor qualidade para planta" e concluindo: "enfim eu acho que se deve chamar a todo aquele território, o Tesouro do Cuieté, em lugar de Nova Conquista". Arroubos tardios de edenização, como diria Sérgio Buarque de Holanda.

O Plano mostra ainda que, mesmo com as tradições de mando, os governadores julgavam por bem invocá-las a cada momento, a reiteração funcionando como reforço. A imposição das normas comportava flexibilizações, como indiquei em estudos anteriores: um dos exemplos mais significativos é adotar para o Cuieté - e para todas as frentes de povoamento fronteiriças - os procedimentos correntes nas situações de degredo.18 18 Sobre as necessidades da contemporização no governo colonial, ver Laura de Mello e Souza, "Nas redes do poder", In: Desclassificados do ouro - a pobreza mineira no século XVIII, 4. ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2004 [1982], p. 131-202. Ver, ainda, Laura de Mello e Souza, "Os limites da dádiva: Dom Antonio de Noronha", In: ______, O Sol e a sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, passim. Em Desclassificados do ouro, emprestei do historiador português Costa Lobo a ideia das colônias modernas como "ergástulos de delinquentes" (Laura de Mello e Souza, op cit. Da mesma forma que as colônias da Época Moderna, que funcionaram como "ergástulos de delinquentes", nos primeiros momentos do Cuieté, era preciso fechar os olhos para criminosos e infratores, caso contrário, a região não se povoaria. Toleravam-se os malfeitores, impedia-se o acesso dos oficiais de justiça, mas não se abria mão de cobrar o tributo sobre o ouro minerado: a parte "corrompida" da sociedade se igualava, na obrigatoriedade do imposto, àquela "sã".

O Plano deixa claro que matos cerrados e índios bravos podiam servir aos interesses da Coroa em terra de dimensões continentais

Por fim, o Plano deixa claro que matos cerrados e índios bravos podiam servir aos interesses da Coroa em terra de dimensões continentais. Da mesma forma que a densa cobertura vegetal, Botocudos e outros grupos belicosos funcionavam como barreira e impediam o extravio do ouro. O difícil equilíbrio era mantê-los vivos e, ao mesmo tempo, impedir que destruíssem roças e assentamentos de colonos. A existência de milícias, por sua vez, foi tentativa que nunca funcionou efetivamente, fosse pela extensão do território e pela vegetação densa que o revestia, fosse porque, com frequência, os colonos não agiam conforme o esperado, cobiçando as terras nas quais viviam os gentios e avançando sobre elas.

Trazendo ao público uma amostra desse notável Códice - um dos conjuntos documentais mais apaixonantes que li ao longo de minha atividade de historiadora -, deixo o estudo aprofundado dos documentos a cargo dos leitores e estudiosos interessados. Note-se que, em ambas as cartas, D. Antonio diz ter escrito uma "digressão" ou "descrição" da jornada feita ao Cuieté naquela mesma ocasião, o segundo semestre de 1779. Não a encontrei, mas outros podem ter sorte melhor, e fica aqui o desafio para que a procurem.

Tenho por hábito transcrever um grande número de documentos, boa parte dos quais não chegarão a ser utilizados na pesquisa. Se o Plano e as duas cartas o foram, em mais de uma ocasião, não havia, contudo, o intuito de publicá-los, pelo que peço desculpas aos especialistas e aos historiadores mais ortodoxos e afeitos às normas: os documentos que aqui publico não obedeceram aos padrões da transcrição erudita, tendo sido modernizados e virgulados de modo a facilitar a leitura. O pecado talvez mereça perdão, ou pelo menos pena leve, quando confrontado a fato bem mais grave: o péssimo estado a que ficaram reduzidos os documentos, após 24 verões. Minhas transcrições heterodoxas pelo menos conservaram o conteúdo do Planoe das cartas de D. Antonio de Noronha.


Mappa da Comarca de Vila Rica. No extremo leste da comarca de Ouro Preto (comarca por vezes designada Vila Rica), situava-se o sertão do Cuieté (Mappa da Comarca de Vila Rica, José Joaquim da Rocha, 1778. 39 x 68,3 cm. Manuscrito e aquarela. AHEX - Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro. Fotografia: Júnia Furtado).

Transcrição Documental

"Plano secreto para a nova conquista do Cuieté

§1º - A nova povoação do Cuieté deve ser edificada entre os dois braços que formam o Rio do mesmo nome, na parte que for mais conveniente, ficando encostada a um dos ditos braços para utilidade da navegação.

§2º - Na dita nova Povoação deve haver um Regente com soldo proporcionado, que não seja menos de vinte e cinco mil réis por mês. O dito Regente deve ser um homem capaz de se fazer respeitar, e que tenha a prudência, instrução, e talentos [fl. 230] necessarios para a boa inteligência, e execução das ordens e para conter os novos povoadores em sossego, e união recíproca.

§3º - Deve haver mais um escrivão, e um tesoureiro para que tenha forma a receita e despesa da Real Fazenda daquela [sic] Conquista, e se evitem as desordens passadas: a estes oficiais se devem dar os ordenados competentes, exemplares para a exemplar ação, e livros rubricados; porém este método durará somente até que a conquista esteja povoada, e cheia de habitantes que a defendam sem despesa da Real Fazenda.

§4º - Deve haver na Conquista uma esquadra de pedestres, destinada à segurança e defesa dela, e da dita esquadra se destacarão as guardas que forem necessárias para que os Mineiros e Roceiros não sejam invadidos pelos Índios: O resto da esquadra deve trabalhar em uma roça pertencente a Sua Majestade, onde haverá um feitor que a administre, e dos frutos dela se darão as rações competentes aos soldados, e às mais pessoas a quem eu o ordenar.

§5º - Como a Conquista se não pode adiantar, nem florescer enquanto os novos habitantes dela forem vexados pelas Justiças com execuções de dívidas, e com acusações de crimes leves, e o maior número de povoadores, há de ser necessariamente de homens culpados, e oprimidos com dívidas, como sucedeu sempre em todas as Colônias novas, é preciso uma grande vigilância nesta matéria, não se concedendo passaportes para a Conquista aos Oficiais de Justiça, nem se lhes negando, se não por um meio indireto, [fl. 230v] qual é o de se lhes não deferir as petições que fizerem a este respeito: Isto mesmo praticou o ExmºGomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela, pelo que pertence às povoações de Antonio Dias abaixo, e descoberto, do Peçanha, onde não entravam Oficiais de Justiça; mas nunca se deixou de arrecadar nelas a Real Fazenda, e por este meio se formaram aquelas duas povoações, que a não ser assim, ainda hoje haviam de ser matos incultos: Mas esta providência será interina e durará somente até que a Conquista se estabeleça, e se povoe.

§6º - Para a boa execução desta providência, e para outros fins úteis, se estabelecerá uma guarda de soldados pagos, e pedestres na Ponte do Rio Doce, a qual não deixará entrar para a Conquista pessoa alguma de qualquer qualidade que for sem passaporte meu, ou das pessoas a quem eu der comissão para que passem; e da mesma sorte não deverá sair pessoa alguma para fora da Conquista sem passaporte do Regente, nem ouro em pó sem guia.

§7º - Para que a falta dos Oficiais de Justiça na Conquista não seja prejudicial ao Povo, se declararão no título do Regente os meios de evitar este dano.

§8º - Para que cesse o receio dos extravios, que se poderão fazer pela Capitania do Espírito Santo, se deve advertir o seguinte: Que pelos matos é impraticável o extraviar-se o ouro, atendendo à qualidade deles, à distância, e a que os Índios bravos, que habitam os ditos matos, impossibilitam por aquela parte a criminosa pretensão dos extraviadores: Só resta guardar e fixar a navegação do Rio Doce para que se não façam os extravios por ele em canoas.

§9º - O meio mais proporcionado para este fim é o estabelecer-se uma guarda de soldados pagos, [fl. 231] e de Pedestres abaixo da barra do Rio Grande, na Ilha da Esperança, ou na paragem que for mais conveniente para fixar [?] a navegação do Rio Doce para baixo da guarda, e proibir a comunicação dos moradores da Conquista com os da Capitania do Espírito Santo.

§10º - No caso que sem embargo desta providência os moradores da Capitania do Espírito Santo se arrojem a penetrar até a Conquista, ou pelo dito Rio Doce, ou por terra, serão presos à minha ordem para serem punidos como extraviadores, e como transgressores do Alvará de que se há de fazer menção no §11º, praticando-se o mesmo procedimento com os moradores da Conquista que passarem pelo sobredito Rio, ou por terra à dita capitania do Espírito Santo.

§11º - Não se poderão abrir novos caminhos ou picadas para a Conquista, e se procederá contra os que os abrirem na forma do Alvará de 27 de outubro de 1733, e da ordem de 9 de abril de 1745, e aviso de 22 de janeiro de 1756.

§12º - Todo o ouro que se tirar nas lavras da Conquista, deve sair para fora dela fechado, e lavrado com guia do Regente em direitura à Intendência de Vila Rica, assim como se observará com o ouro de Paracatu, e as pessoas a quem pertencer o levarão em direitura à dita Intendência: e para se saber se o levam, e serem castigados se o não praticarem assim, me mandará o Regente de três em três meses uma relação exata do ouro, que deste modo se tirar para fora da Conquista; e o mesmo praticará o Comandante da guarda do Rio Doce, para que conferindo-se as ditas Relações com as que se devem fazer na referida [fl. 231v] Intendência, o ouro que nela se apresentar lavrado vindo da Conquista [?] se possa averiguar se ele se extraviou, ou se saiu para fora dela por outro caminho que não seja da passagem do rio Doce: Deste modo se evitam os extravios, e se observa melhor a proibição dos caminhos novos; e além disso pode fazer-se um [ilegível] certo do quanto importa o Quinto do ouro da referida conquista, para que calculando-se também as despesas que Sua Majestade faz por causa dela, se possa saber se a sua conservação é útil aos reais e públicos interesses.

§13º - Como não é justo, que a nova Conquista seja um escandaloso asilo [?] de malfeitores, e devedores; e devendo a minha proteção a favor dos novos habitantes ser regulada pela justiça e dirigida somente ao público interesse, ordeno o seguinte:

§14 - Pelo que respeita aos malfeitores que se refugiarem na Conquista, me farão as partes queixosas as suas petições, para que averiguando Eu a qualidade dos delitos dos refugiados, ou os mande entregar à Justiça, sendo os mesmos delitos muito escandalosos, e prejudiciais à conservação da sociedade, ou os castigue arbitrariamente, fazendo ressarcir os prejuízos de terceiros.

§15 - E pelo que respeita os devedores, serão eles constrangidos por mim, a requerimento dos credores para que vão pagando a parte das dívidas que for possível conforme o ouro que anualmente tirar cada um deles, e isto com tal regularidade que nunca os devedores fiquem sem o ouro necessário para continuarem os seus serviços minerais, de cuja conservação e aumento está pendente [fl. 232] a felicidade da Conquista, do Estado, e do Reino.

§16º - Na repartição das terras para a extração do ouro se tirará uma data para Sua Majestade; pois ainda que a Conquista não é descoberto novo porque nela se trabalha há muitos anos, e nela têm havido Guardas Mores, contudo deve-se tirar a dita data para ressarcir a Real Fazenda de parte das despesas que tem feito para fazer habitável a mesma conquista.

§17 - Ao depois de se tirar a data para Sua Majestade, escolherá o Coronel João da Silva Tavares as terras que quiser conforme a sua fábrica, visto ter feito um grande serviço a Sua Majestade e aos Povos, na abertura do novo caminho, em que teve uma constância, e um trabalho incrível, porque expôs a sua vida a um continuado risco no decurso de dois anos, desamparando a sua casa e fábrica numerosa que possui sem prêmio algum. Ao depois se darão ao Regente as terras racionáveis [?] que ele escolher; ao depois se darão àquelas pessoas que fizeram sem lucro, algum serviço útil à Conquista: E ultimamente entrará o Povo: Todas estas providências são fundadas na razão, e no Bando do Governador D. Lourenço de Almeida de 11 de outubro de 1721.

§18 - Todas as repartições de terras minerais serão feitas por dois Guardas Mores, que Eu escolher, um dos quais será o Coronel João da Silva Tavares, não só pela razão de estar muito instruído nas dependências desta natureza, e ter dado provas da sua prudência e verdade; mas porque é preciso que se lhe remunerem os serviços que tem feito a Sua Majestade no tempo dos meus [fl. 232v] predecessores, e o que fez no tempo do meu Governo, que vão declarados no §17. E todas as dúvidas que se moverem nestas repartições serão determinadas por mim, na forma que for mais conveniente aos Povos, e ao estabelecimento da nova Conquista, sem embargo do Regimento que além de ser incompleto, e impraticável em muitas partes sem prejuízo dos mineiros, não pode ter uma escrupulosa observância na nova Conquista, e isto mesmo praticou em diversas contendas minerais o Governador D. Lourenço de Almeida pelos bandos de 26 de setembro de 1721 e de 11 de novembro do mesmo ano, de 14 de Junho de 1722, de 22 de Março de 1728, e de 2 de Outubro do mesmo ano, e o mesmo fez o Conde das Galveias pelo bando de 9 de Maio de 1734.

§19 - Em todas as cartas de datas de terras minerais se porá a cláusula, de quem [sic] as pessoas a quem se concederem as principiarão a lavrar dentro do tempo que o Regimento declara, e que quando o não façam se concederão a quem as pedir, como devolutas, sem dependência de litação [?], ou sentença, bastando para se impor esta pena, o simples fato da inspeção ocular, e exame feito pelo Guarda Mor, e seu Escrivão, de que se fará um Termo, e nas mesmas cartas se declarará, que os mineiros a quem se concedem as datas as aceitarão debaixo da dita condição, e que renunciam todo o direito que lhes possa competir, para pretenderem a exclusão da dita pena; E o Guarda Mor logo declarará a re[fl. 233]ferida condição nos despachos do estilo, que der para as comissões, e posses.

§20 - Todos os serviços minerais devem ser feitos de baixo para cima, para que se não encham os corgos de desmontes, e fique mais dificultosa a extração do ouro, como tem sucedido no Ribeirão do Carmo, rio das Velhas, e outros.

§21 - Em todo o novo caminho do Cuieté, se darão sesmarias de um, e outro lado, e para que estas se multipliquem, e fique o dito Caminho mais povoado, terão na frente menor extensão, e maior para os fundos. No caso que as pessoas a quem se concederem as não cultivem logo, se darão as outras, porque sendo elas povoadas fica o caminho livre dos assaltos dos Índios, e evita Sua Majestade a despesa que há de fazer na conservação do mesmo Caminho, e guarda dele.

§22 - Para a comodidade dos viandantes é preciso que na repartição das sesmarias se deixe alguma porção de terras devolutas, na paragem que for mais conveniente para o pasto das Bestas.

§23 - Não se concederão sesmarias na margem oriental do Rio Grande, para que se não cortem por aquela parte os matos que dividem esta capitania da do Espírito Santo, e que servem de defesa aos extravios, nem também se concederão sesmarias, além das do novo Caminho, mais do que as necessárias; porque o único [fl. 233v] fim do estabelecimento da Conquista é a extração do ouro; e não pode ser conveniente que se multipliquem as terras de planta, e que nelas se empreguem os escravos que podem ocupar-se no exercício de minerar.

§24 - Nunca se permitirão na Conquista engenhos de cana, e somente serão permitidos os Engenhos de Farinha, Mandioca e Pilões.

§25 - No caso que tenha efeito o descobrimento das esmeraldas e de outras pedras preciosas, exceto diamantes, se repartirão as terras da mesma forma que se repartem as datas de ouro. E como das pedras preciosas, é devido o quinto a Sua Majestade, se cobrará este por meio de capitação nos escravos de que se servirem os mineiros na extração das ditas pedras, a qual capitação será regulada pela abundância, e qualidade das mesmas pedras, de forma que por um arbítrio prudente se seguem a Sua Majestade os vinte por cento do seu Real Quinto.

§26 - Para se evitarem contendas sobre os limites das Comarcas do Serro, Sabará, Rio das Mortes, e desta Vila, farei eu a divisão interina e Provisional que me parecer mais útil aos Reais interesses, e mais conveniente à utilidade dos Povos, a qual divisão se observará até resolução de Sua Majestade."

(Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, códice 2,2,24 - Fls. 229v-233v - s.d. - após documento de 8 de setembro de 1779).

"Para o Sr. Marquês de Angeja, dando-lhe parte da viagem, e estabelecimento da Conquista do Cuité, em que foram 3 as cópias atrás redigidas, e a Relação dos toques, dos ouros das amostras dos Rios em que se fez as provas.

Ilmº e Exmº Sr. Não que me devo dispensar de por na presença de V. Exa os meus pequenos serviços, visto o ter eu conseguido a abertura da Estrada da nova Conquista do Cuieté, cuja mereceu tanto cuidado aos meus Exmos predecessores, o Conde de Bobadela, Luís Diogo Lobo da Silva, e Conde de Valadares. O exemplo destes me animou a continuar as suas primeiras ideias, pondo em prática logo que tomei posse deste Governo a abertura do novo Caminho, ficando o dito Arraial do Cuieté comunicável por terra, e os moradores livres do trabalho da navegação do Rio Doce, tão penosa que por causa das cachoeiras se não podia fazer esta viagem em menos de vinte dias no tempo da seca, e um mês e mais no das águas, ficando agora reduzida de seis a sete dias.

No dia 12 de setembro próximo passado entrei para aquela nova Conquista acompanhado do Coronel João da Silva Tavares, sujeito a quem eu tinha encarregado a abertura da nova Estrada, e agora novamente o incumbi da regência da mesma Conquista, como V. Exa verá dos papéis inclusos, que constam das providências que se deram, digo que se devem dar segundo o Estado do País, e as circunstâncias que pede um estabelecimento novo, e feito este no centro do gentio mais feroz que tem esta Capitania.

Eu espero que Sua Majestade haja de o aprovar, e que mereçam também o favor de V. Exa os meus projetos.

Também remeto a V. Exa uma digressão da minha jornada, e pode V. Exa crer, que aquela Conquista será quem levante os Mineiros da decadência em que se acham pelos seus empenhos, que nesta Capitania se não acha hoje um só único que possa tentar um serviço dificultoso.

Também [fl. 234v] ponho na presença de V. Exa uma relação dos quilates que chegaram a tocar as amostras do ouro dos Rios em que mandei fazer as provas, para que V. Exa veja a sua excelente qualidade: Eu nunca esperei encontrar um país tão cortado de rios, córregos e ribeirões tão abundantes, como são os que compreende em si a nova Conquista do Cuieté: Os matos são dos de melhor qualidade para planta; e enfim eu acho que se deve chamar a todo aquele território, o Tesouro do Cuieté, em lugar de Nova Conquista: O meu sucessor vem achar a porta dele aberta, e por meio deste meu pequeno serviço, fará utilizar os povos desta capitania, e o reais interesse de Sua Majestade, no serviço de quem me desejo empregar até os últimos instantes da minha vida.

É sem dúvida que me não seria possível finalizar esta importante obra sem fazer alguma despesa da Real Fazenda como a V. Exa será constante pelo Real Erário, sem embargo dos povos terem contribuído com a porção que consta da Cópia inclusa. Deus Guarde a V. Exa. Vila Rica, 18/10/1779."

(Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, códice 2,2,24 - fls. 234v).

"Para o Sr. Martinho de Mello e Castro, sobre o mesmo que a destina, a quem se mandaram as amostras de ouro

Logo que tomei posse deste Governo examinei a força de cada um dos Mineiros de que se compõe esta Capitania; o número de sua escravatura, e a riqueza de cada uma das lavras pertencentes aos mesmos mineiros, aos quais encontrei empenhadíssimos, cujo motivo lhes embaraçava o poderem tentar serviços de maior dificuldade, e por esta razão é que este país se acha em uma total decadência, não porque ele deixe de conservar ainda em si riquíssimos tesouros, [fl. 235] debaixo da terra, mas sim pelas razões acima referidas, as quais não posso eu providenciar senão pelo meio de fomentar novos descobertos, a fim de tirar estes miseráveis homens da indigência em que se acham, para que recuperando as suas forças, possam não só livrar-se do empenho em que vivem, mas por meio dos mesmos descobertos aumentarem as Reais rendas, e poderem intentar os serviços mais dificultosos quando se acabarem de extinguir os mais fáceis, e não ficarem parados os outros aonde o ouro conhecidamente se está vendo sem se poder extrair por falta de meios.

Estes motivos, e outros da mesma natureza me animaram a intentar o projeto, que em outro tempo quiseram por em prática os meus predecessores, o Conde de Bobadela, Luís Diogo Lobo da Silva, e Conde de Valadares, cujos se cansaram a encaminhar suas ideias para a Conquista do Cuieté pelas notícias que havia nesta Capitania por tradição, de que a sobredita Conquista era cortada de imensos rios, córregos, e ribeirões todos riquíssimos, dos quais não havia outro nenhum conhecimento senão pelas suas Barras; porém talvez que a falta que os meus Predecessores experimentaram de um bom prático que abrisse uma nova estrada até a Conquista, para mandar examinar os sobreditos Rios, Córregos e Ribeirões nas suas cabeceiras, os quais se acham ocultos naquele vastíssimo sertão, fosse o motivo que fizesse frustrar os seus desejos, ficando até então ainda de nenhum conhecimento a riqueza que se acha oculta naquela nova Conquista.

Estas notícias, e outras de que me informei me obrigaram a seguir o mesmo método, pondo em prática todas as providências que me ocorreram, para que de uma vez se concluísse esta importantíssima obra tão útil aos Povoadores desta Capitania, como aos Reais Cofres de Sua Majestade.

Finalmente concluiu-se o caminho em que Eu dei conta a V. Exaem carta de 12 de outubro de 75 e 7 de setembro de 76; e no dia [fl. 235v] doze de setembro próximo passado entrei para a nova Conquista junto com o Coronel João da Silva Tavares a quem tinha incumbido a fatura da nova Estrada; atravessei com o mesmo Coronel aquele vasto sertão, no qual ele me fez ver na extensão de todo o caminho a riqueza que aquela nova Conquista guardava em si, cuja embaraçava o gentio a extração dela.

Esta nova estrada além de descobrir novas Minas, vai juntamente evitar a grande viagem que antigamente se fazia para o mesmo Cuieté, embarcando-se tudo o que era preciso para sustento daquele Arraial no distrito de Antonio Dias abaixo, sendo obrigados os condutores a transportar-se pelo rio Doce passando as Canoas e as cargas às costas, por causa das imensas cachoeiras que os obrigava a este trabalho, sendo o principal o tirarem-se da nova Estrada as utilidades que ponho na presença de V. Exa.

Em carta de 7 de Janeiro de [17]77 dizia Eu a V. Exa lhe havia de remeter as providências que eu houvesse de dar para o bom regime daquela Conquista; o que agora faço e espero que todas elas mereçam a Real aprovação de Sua Majestade.

Também remeto a V. Exa uma descrição da jornada que fiz para aquela Conquista; e das circunstâncias do caminho, e do que nele encontrei; assim como as amostras do ouro dos Rios e Corgos em que se fizeram as provas, constando da relação inclusa os quilates a que chegaram.

V. Exa não ignora, que os projetos desta natureza se não podem nunca por em prática sem alguma despesa da Real Fazenda, sem embargo da contribuição que os povos fizeram sem a menor violência, e para que a V. Exa conste o método de que usei para a sobredita contribuição; remeto a V. Exa a cópia da carta que dirigi aos dois Capitães Mores, e junta a Resposta dos mesmos, com as somas do que remeteram à Real Fazenda. Deus Guarde a V. Exa. Vila Rica, 18/10/1779."

(Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, códice 2,2,24 - fls. 234v-235v).

  • 1
    Agradeço a Daniel Carvalho de Paula, mestrando em História Social na Universidade de São Paulo, por ter gentilmente digitado minha transcrição manuscrita dos documentos aqui publicados.
  • 2
    Registro aqui meu agradecimento a Monica Rizzo, Diretora do Centro de Referência e Documentação da Biblioteca Nacional, por ter possibilitado a mim o acesso à cópia digital do Códice.
  • 3
    Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, 2,2,24, Livro Segundo das Cartas que o Ilmo. e Exmo. Sr. D. Antonio de Noronha Capitão general da Capitania de Minas Gerais escreveu durante o seu governo que teve princípio em 28 de maio de 1776 [correspondência de D. Antonio de Noronha].
  • 4
    Para o Arquivo Nacional, ver Códice 67, vol. 5 e vol. 6; Códice 69, vol. 2, para correspondência referente, sobretudo, ao episódio da chamada "Inconfidência do Curvelo". Para o Arquivo Público Mineiro, ver Seção Colonial, códices 204 ("Registro de patentes, ordens e circulares do Governador - 1773-1777"); 207 ("Registro de cartas, ordens e circulares do Governador a autoridades da Capitania e respectivas respostas - 1775-1776"); 212 ("Troca de cartas entre o governador de Minas e o Vice-Rei e, também, a outros governadores do Brasil").
  • 5
    Laura de Mello e Souza, "Os limites da dádiva: Dom Antonio de Noronha", In: ______, O Sol e a sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 350-402.
  • 6
    BNRJ, DMs, 2,2,24, fls. 52-53 (para a referência aos vadios). Para a relação entre Teixeira Coelho e as concepções de D. Antonio de Noronha, ver Laura de Mello e Souza, op cit., p. 350-402.
  • 7
    Joaquim Ribeiro Costa, Toponímia de Minas Gerais, Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado, 1970, p. 215.
  • 8
    Para a localização do Cuieté, ver, entre outros, José Joaquim da Rocha, Geografia histórica da Capitania de Minas Gerais. Estudo crítico de Maria Efigênia Lage de Resende, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1995, p. 78 et seq. (Coleção Mineiriana). Tratei pela primeira vez do Cuieté em Desclassificados do ouro - a pobreza mineira no século XVIII, 4. ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2004 [1982], p. 111-114. Voltei ao assunto em "Frontière géographique et frontière sociale à Minas Gerais dans la seconde moitié du XVIIIe siècle", In: Kátia de Queirós Mattoso; Idelette Muzart Fonseca dos Santos; Denis Rolland (eds.), Naissance du Brésil Moderne: 1500-1808, Paris, Presses de l'Université de Paris-Sorbonne, 1998, p. 273-288.
  • 9
    "Interditado o Sabarabuçu à preia de índios, por ato de Fernão Dias Pais, as bandeiras passam ostensivamente a frequentar o Sertão do Cuieté, ou da Casa da Casca, isto é, a bacia do Rio Doce. Faziam incursões clandestinas à bacia do Rio das Velhas (Sabarabuçu) que, numa confusão intencional, denominam de Sertão do Caeté, pretendendo situá-lo (para os não iniciados) também na bacia do Rio Doce, quando o Caeté realmente se acha no Rio das Velhas, como o Cuieté no Rio Doce. Para coonestar a preia, paulistas e taubateanos simulam a busca de ouro e metais preciosos, sobretudo quando os azares da sorte os obrigam a procurar socorro em capitanias outras, onde o auxílio, por ordem régia, só era garantido no segundo caso". Raimundo José da Cunha Matos, Corografia histórica da Província de Minas Gerais, 1837, vol. 1, Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1981, p. 77.
  • 10
    A história do Cuieté é extensivamente tratada ao longo do belo livro de Hal Langfur e em quase todos os capítulos, pelo que seria exaustivo referir aqui todas as passagens referentes ao assunto. Para os primórdios, ver, sobretudo, o cap. 2, "Ordered space, disorderly peoples", In: Hal Langfur, The forbidden lands: colonial identity, frontier violence, and the persistence of Brazil's eastern Indians, 1750-1830, Stanford, Stanford University Press, 2006, p. 68 et seq.
  • 11
    Arquivo Público Mineiro, Secretaria de Governo, caixa 10 - doc. 21; caixa 20 - doc. 04. Museu do Ouro, Casa de Borba Gato, Cartório do Segundo Ofício. 1. (52)5 - Inventário dos bens que ficaram por falecimento de Antonio Lopes dos Santos casado que foi com Felipa Maria do Espírito Santo, moradora esta na Freguesia da Piranga e aquele falecido no Arraial de Santa Luzia sem testamento em 15 de abril de 1805. / Órfãos/ Escrivão Lima. Arquivo Público Mineiro, Seção Colonial, cód. 229, fl. 20-v; Arquivo Público Mineiro, Seção Colonial, cx. 20, doc. 29; Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício, cód. 84, auto 1795 - Inventário do Capitão José Leme da Silva. Arquivo Público Mineiro, Secretaria de Governo, cx. 20, doc. 04 e doc. 16.
  • 12
    Cláudia Damasceno Fonseca, Arraiais e Vilas D'El Rei - espaço e poder nas Minas setecentistas, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2011, p. 279-282. Para as "terras proibidas" do leste de Minas, ver Hal Lagfur, The forbidden lands: colonial identity, frontier violence, and the persistence of Brazil's eastern Indians, 1750-1830, Stanford, Stanford University Press, 2006.
  • 13
    Cf. mapas de José Joaquim da Rocha, Geografia histórica da Capitania de Minas Gerais. Estudo crítico de Maria Efigênia Lage de Resende, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1995, anexos. (Coleção Mineiriana); José Ferreira Carrato, Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais, São Paulo, Companhia Editora Nacional; EdUSP, 1968, mapa em anexo, elaborado pelo autor. Waldemar de Almeida Barbosa, Dicionário histórico-geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, [s.n.], 1971; Joaquim Ribeiro Costa, Toponímia de Minas Gerais, Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado, 1970.
  • 14
    Cláudia Damasceno Fonseca, Arraiais e Vilas D'El Rei - espaço e poder nas Minas setecentistas, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2011, p. 76-77. A citação entre aspas é da autora, p. 76
  • 15
    Ibidem, p. 124.
  • 16
    Ibidem, p. 125-126. Para um estudo meticuloso dos enfrentamentos entre índios e colonizadores, ver Maria Leônia Chaves de Resende, Gentios brasílicos - índios colonos em Minas Gerais setecentistas, Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.
  • 17
    Hal Langfur, The forbidden lands: colonial identity, frontier violence, and the persistence of Brazil's eastern Indians, 1750-1830, Stanford, Stanford University Press, 2006, p. 75.
  • 18
    Sobre as necessidades da contemporização no governo colonial, ver Laura de Mello e Souza, "Nas redes do poder", In: Desclassificados do ouro - a pobreza mineira no século XVIII, 4. ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2004 [1982], p. 131-202. Ver, ainda, Laura de Mello e Souza, "Os limites da dádiva: Dom Antonio de Noronha", In: ______, O Sol e a sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, passim. Em Desclassificados do ouro, emprestei do historiador português Costa Lobo a ideia das colônias modernas como "ergástulos de delinquentes" (Laura de Mello e Souza, op cit.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2014

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2014
  • Aceito
    09 Abr 2013
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