Resumos
Nos últimos trinta anos de desenvolvimento capitalista, ocorreram transformações significativas nas diversas instâncias do ser social, com destaque para o mundo do trabalho e da reprodução social. Desenvolve-se o toyotismo, ideologia orgânica da nova produção capitalista, 'momento predominante' da reestruturação produtiva do capital. Sob o toyotismo, tende a constituir-se, pelo menos como 'promessa frustrada' do capital, o que iremos denominar 'compressão psicocorporal'. Esta constitui-se como um elemento da nova disposição sócio-subjetiva instaurada pelo toyotismo que caracteriza uma nova experiência do corpo, tanto no processo de trabalho quanto no processo sócio-reprodutivo.
capitalismo; toyotismo; globalização
Many significant transformations in various instances of the social being took place over the past thirty years of capitalist development, especially in the sphere of labor and of social reproduction. That is the period when toyotism, the organic ideology of the new form of capitalist production and the most important moment in the productive reorganization of capitalism, was developed. Under the ideology of toyotism, something we will name 'mind-body compression' tends to take place (at least as capitalism's 'unkept promise'). This is a new element of the social and subjective arrangement instituted by toyotism that characterizes a new way of experiencing the body both in labor and social reproduction processes.
capitalism; toyotism; globalization
DEBATE DEBATE
Trabalho, corpo e subjetividade: toyotismo e formas de precariedade no capitalismo global
Labor, body and subjectivity: toyotism and forms of precarization in global capitalism
Giovanni Alves1
RESUMO
Nos últimos trinta anos de desenvolvimento capitalista, ocorreram transformações significativas nas diversas instâncias do ser social, com destaque para o mundo do trabalho e da reprodução social. Desenvolve-se o toyotismo, ideologia orgânica da nova produção capitalista, 'momento predominante' da reestruturação produtiva do capital. Sob o toyotismo, tende a constituir-se, pelo menos como 'promessa frustrada' do capital, o que iremos denominar 'compressão psicocorporal'. Esta constitui-se como um elemento da nova disposição sócio-subjetiva instaurada pelo toyotismo que caracteriza uma nova experiência do corpo, tanto no processo de trabalho quanto no processo sócio-reprodutivo.
Palavras chave: capitalismo; toyotismo; globalização.
ABSTRACT
Many significant transformations in various instances of the social being took place over the past thirty years of capitalist development, especially in the sphere of labor and of social reproduction. That is the period when toyotism, the organic ideology of the new form of capitalist production and the most important moment in the productive reorganization of capitalism, was developed. Under the ideology of toyotism, something we will name 'mind-body compression' tends to take place (at least as capitalism's 'unkept promise'). This is a new element of the social and subjective arrangement instituted by toyotism that characterizes a new way of experiencing the body both in labor and social reproduction processes.
Key words: capitalism; toyotism; globalization.
Introdução
O presente texto tem como objetivo apresentar algumas considerações sobre as mutações da implicação subjetiva nas instâncias do trabalho e da reprodução social sob as condições do capitalismo global e do desenvolvimento do regime de acumulação flexível, cujo momento predominante é o toyotismo. Nos últimos trinta anos de desenvolvimento capitalista, ocorreram transformações significativas nas diversas instâncias do ser social, com destaque para o mundo do trabalho e da reprodução social. É importante apreendermos as novas determinações do sócio-metabolismo do capital, buscando constatar as candentes contradições objetivas (e subjetivas) que emergem no período histórico da crise estrutural do capital. Mais do que nunca, exige-se uma imaginação sociológica capaz de nos permitir apreender não apenas as misérias do presente, mas as riquezas do possível (Gorz, 2004).
Neste ensaio, situaremos, num primeiro momento, o período histórico da mundialização do capital e suas transformações produtivas, com destaque para o desenvolvimento de um novo regime de acumulação flexível e seu momento predominante, o toyotismo. Consideramos que o toyotismo é a ideologia orgânica da produção capitalista, que tende a colocar novas determinações nas formas de ser da produção e reprodução social. O mundo do trabalho, com destaque para os seus pólos mais dinâmicos de acumulação de valor e de base técnica mais desenvolvida, tende a incorporar o espírito do toyotismo. Seu léxico penetra não apenas a indústria, mas os serviços e a própria administração pública. Por isso, é importante buscar apreender seus significados históricos e categoriais para explicarmos as mutações estruturais do capitalismo global.
É claro que o toyotismo coloca novas determinações para a produção do capital. Entretanto, tende a articular-se, muitas vezes, com dispositivos pretéritos da racionalização capitalista - no caso, o taylorismo-fordismo. Na verdade, como já salientamos, cabe a nós apreender "a descontinuidade no interior de uma continuidade plena" (Alves, 1999). O toyotismo é a expressão superior da racionalização capitalista nos loci mais dinâmicos da acumulação de valor, exigindo, na etapa desenvolvida do processo civilizatório, uma nova implicação subjetiva, que temos salientado como sendo a 'captura' da subjetividade do trabalho vivo pelo capital (Alves, 2000), de que trataremos mais adiante.
Além de apresentarmos o toyotismo e seu significado ontológico para a produção do capital, sugeriremos novos elementos para refletirmos sobre a subjetividade do 'trabalho vivo', salientando que, ao dizermos 'subjetividade', cabe distinguir, tão-somente em sentido heurístico, 'consciência', 'inconsciência' e 'pré-consciência' do sujeito.
Apresentaremos, a título de sugestão crítica, algumas hipóteses sobre a relação corpo-mente e sua nova dinâmica sob a acumulação flexível e a lógica sócio-reprodutiva do capitalismo global. Nossa hipótese de trabalho é que, sob o novo regime de acumulação flexível, tende a ocorrer - pelo menos como 'promessa frustrada' do capital - o que denominaremos 'compressão psicocorporal'. Um elemento da nova disposição sócio-subjetiva instaurada pelo toyotismo que caracteriza o novo modo de articulação corpo-mente, tanto no processo de trabalho quanto no processo sócio-reprodutivo.
De certo modo, a suprema contradição sócio-histórica que se constitui sob a mundialização do capital, e que tende a agudizar os fenômenos de 'estranhamento', imprime a sua marca na subjetividade do trabalho vivo. Ela se distingue da forma dominante no sistema taylorista-fordista, que tendia a 'separar' corpo e mente. Como salientava Gramsci, com argúcia, sob o fordismo "o cérebro está livre para outras ocupações", enquanto o corpo é capturado pelas prescrições mecanizadas (Gramsci, 1984). Esta relação problemática entre corpo e mente é um dos elementos de crise do taylorismo-fordismo. Na verdade, sob a produção toyotista, corpo e mente 'tendem a ser' mobilizados pelo capital para se integrarem à produção do valor. A busca de uma nova implicação subjetiva na produção 'pós-fordista' supõe uma nova relação corpo-mente, o que significa não apenas uma nova disposição psico-cognitiva, mas uma nova postura corporal capaz de recompor a subjetividade do trabalho vivo nas condições da acumulação flexível.
Mais uma vez cabe salientar que estamos diante de uma 'implicação virtual', uma 'promessa' de emancipação inscrita no toyotismo (incluso nas instâncias sócio-reprodutivas) 'frustrada' pelo capital como sistema sócio-metabólico. Apesar disso, possui 'plena efetividade', pelo menos no plano da representação imaginária e simbólica dos sujeitos/agentes sociais. Isto significa que tal compressão psicocorporal, como sugeriremos neste ensaio, é tão problemática quanto a suposta cisão corpo-mente que caracterizou a implicação moderna do capital na produção de mercadorias. Na verdade, é mera expressão de uma contradição lancinante que dilacera a subjetividade do trabalho vivo na época da decadência histórica do capital (Mészáros, 2002).
O que é mundialização do capital
O que veio a ser denominado 'mundialização do capital' é o processo de desenvolvimento do capitalismo mundial sob a direção hegemônica do capital financeiro que se consolidou nos últimos vinte anos (Chesnais, 1995 e Alves, 2001). Qualquer análise dos processos societários que ocorrem em nossa época deve ser precedida de uma apreensão dialética da natureza desta fase histórica de desenvolvimento do capitalismo mundial. É só a partir da 'totalidade concreta' do novo momento de desenvolvimento do sistema sócio-metabólico do capital que podemos apreender o significado essencial dos mais diversos processos societários, principalmente aqueles ligados às instâncias da produção e reprodução social.
O capital, em seu processo de expansão global irrefreável e incontrolável, aparece, mais do que nunca, sob o capitalismo global do século XXI, como uma totalidade concreta em movimento sistêmico, permeada de contradições dilacerantes e marcada por algumas características essenciais, que apresentamos a seguir.
Primeiro, a dinâmica do capitalismo mundial está hoje sob a hegemonia do capital financeiro, capital especulativo-parasitário que tende a imprimir sua marca sob as demais frações do capital (o capital industrial e o capital comercial). O capital financeiro representa aquela fração de capitalistas que buscam valorizar o capital-dinheiro sem passar pela esfera da produção de mercadorias, permanecendo, deste modo, no interior do próprio mercado financeiro. O desprezo pelo investimento produtivo e a busca avassaladora de rentabilidade líquida e segura são os principais traços da natureza do capital financeiro. Ele floresce nos empreendimentos com papéis (ações, moedas e títulos públicos) que se disseminaram nos últimos vinte anos. A 'financeirização' da riqueza origina-se, em suas determinações essenciais, tanto da busca exacerbada de valorização de uma massa de capitais-dinheiro, contida em sua valorização real por uma crise estrutural de superprodução do capital, quanto da crise fiscal do Estado capitalista e sua busca desesperada de financiamento de seu déficit público (Alves, 2001).
Segundo, o capitalismo global tende a aparecer como o sistema de metabolismo social da 'produção destrutiva', isto é, ser a expressão mais desenvolvida da lei da queda tendencial da utilização dos valores de uso, do desperdício generalizado (Mészáros, 2002).
Terceiro, o capitalismo global tende a ser a expressão histórica da mais dilacerante contradição do sistema do metabolismo social do capital, ou seja, a contradição que o capital carrega irremediavelmente consigo, entre 'civilização' e 'barbárie', entre o desenvolvimento das forças produtivas sociais - enquanto "pressuposto negado" (mas efetivo) do processo civilizatório - e o desenvolvimento das relações sociais do capital e do capitalismo, postas como obstáculos à plena realização das possibilidades concretas de emancipação humano-genérica, pressupostas nos objetos de uso, produto do trabalho socializado e da técnica (Alves, 2001).
Finalmente, é importante salientar que, no bojo da 'globalização como mundialização do capital', se desenvolve um novo regime de acumulação flexível, e com ele um complexo de reestruturação produtiva cujo momento predominante é um 'novo modelo produtivo', o toyotismo (Alves, 1999 e 2000). A ideologia orgânica do toyotismo, que se desenvolve no interior de uma III Revolução Tecnológica e Científica que atinge a produção de mercadorias, tende a disseminar-se e a influenciar as novas determinações do mundo do trabalho. É disto que trataremos a seguir.
Crise capitalista, reestruturação produtiva e toyotismo
A partir da crise capitalista dos anos 1970, que atingiu os países industriais mais desenvolvidos, instaurou-se um novo regime de acumulação do capital, a acumulação flexível, que se disseminou pelo mundo capitalista nas décadas de 1980 e 1990 (Harvey, 1992). O novo regime de acumulação flexível tendeu a satisfazer as exigências do capitalismo mundial, sendo adequado às novas condições de concorrência e de valorização do capital e ao novo patamar da luta de classes na produção.
Foi o regime de acumulação flexível que constituiu um novo complexo de reestruturação produtiva cujo momento predominante passou a ser o toyotismo. Entre os múltiplos modelos produtivos disseminados a partir do modo de organização taylorista-fordista (modelos sueco, italiano e alemão), o modelo japonês conseguiu impor-se como o mais adequado àquela etapa de crise estrutural do capital.
É claro que, de início, o toyotismo foi identificado com o modelo japonês e com o sucesso da indústria manufatureira japonesa na concorrência internacional. Durante os anos 70 e 80, várias técnicas de gestão foram importadas do Japão. Mas, no decorrer da mundialização do capital, o sistema Toyota com sua filosofia produtivista tendeu a assumir um valor universal para o capital em processo. Desprendeu-se de seu particularismo nacional. O toyotismo passou a incorporar uma 'nova significação' para além das particularidades de sua gênese sócio-histórica (e cultural), vinculada ao capitalismo japonês.
Cabe perguntar: por que o toyotismo pode ser considerado um 'valor universal' para a produção de mercadorias sob as condições da mundialização do capital?
Ora, em primeiro lugar, suas condições ontológicas originárias determinaram suas próprias possibilidades de universalização. É preciso salientar que o toyotismo é instaurado, originariamente, pela lógica do mercado restrito, surgindo sob a égide do capitalismo japonês dos anos 50, caracterizado por um mercado interno débil. Por isso, tornou-se adequado, em sua forma de ser, às condições do capitalismo mundial dos anos 80, caracterizado por uma crise de superprodução que coloca novas normas de concorrência. Foi o desenvolvimento (da crise) capitalista que constituiu, portanto, os novos padrões de gestão da produção de mercadorias, tal como o toyotismo, e não o contrário.
Em segundo lugar, a constituição do toyotismo tornou-se adequada à nova base técnica da produção capitalista, vinculada à III Revolução Industrial, que exige uma nova subjetividade da força de trabalho e do trabalho vivo, pelo menos dos operários e empregados centrais à produção de mercadorias (as novas tecnologias de base microeletrônica, em virtude de sua complexidade e alto custo, exigem uma nova disposição subjetiva do trabalho em cooperar com a produção). Ora, é o toyotismo que propiciará, com maior poder ideológico, no campo organizacional, os apelos à administração participativa, salientando o sindicalismo de participação e os CCQ (Círculos de Controle de Qualidade) - reconstituindo, para isso, a linha de montagem - e instaurando uma nova forma de gestão da força de trabalho.
O aspecto essencial do toyotismo é expressar através de seus dispositivos e protocolos organizacionais (e institucionais) a busca de uma nova hegemonia do capital na produção como condição política (e sócio-cultural) para a retomada da acumulação capitalista, uma hegemonia do capital voltada para realizar uma nova captura da subjetividade do trabalho pela lógica do capital. Ao invés de perenizar a crise da organização capitalista do trabalho, o toyotismo tende a instaurar tão-somente novas determinações da luta de classes na produção.
O valor universal do toyotismo como momento predominante do complexo de reestruturação produtiva, e como nova ofensiva do capital na produção, é instaurar, no plano da produção de mercadorias, uma 'nova hegemonia' do capital, articulando, de modo original, coerção capitalista e consentimento operário. De certo modo, o taylorismo-fordismo, sob as condições de racionalização propiciadas pelo desenvolvimento histórico no século XX, principalmente nos EUA, tornou-se, a partir dos anos 1920, o pioneiro nesta articulação entre coerção capitalista e consentimento operário. Com ele, procurou-se operar, de modo pleno, a subsunção real da subjetividade operária à lógica do capital, a articulação hábil da 'força' (destruição do sindicalismo de base territorial) com a 'persuasão' (altos salários, benefícios sociais diversos, propaganda ideológica e política habilíssima). Como diria Gramsci (1984), com o fordismo "a hegemonia vem da fábrica". De certo modo, o toyotismo dá continuidade à lógica de racionalização do trabalho na perspectiva da hegemonia do capital na produção.
Entretanto, no taylorismo e no fordismo, a integralização da subsunção da subjetividade operária à lógica do capital - a 'racionalização total' - ainda era meramente formal, ou "formal-material", como poderia dizer Fausto (1989), já que, como salientou Gramsci, na linha de montagem, as operações produtivas reduziam-se ao "aspecto físico maquinal" (Gramsci, 1984).
É nesse contexto do taylorismo-fordismo que ocorre a decomposição da figura humana, ou do sujeito (e da subjetividade) do trabalho, tendo em vista que, como salientamos, no interior da linha de produção de mercadorias o cérebro tende a separar-se do corpo, imerso nas prescrições tayloristas-fordistas. Um detalhe: o imaginário modernista do século XX contém tal idéia do 'corpo impossível', que expressa, de certo modo, a implicação subjetiva constitutiva da lógica taylorista-fordista (Moraes, 2002).
Assim, o fordismo ainda era, de certo modo, uma 'racionalização inconclusa', pois, apesar de instaurar uma sociedade racionalizada, não conseguiu incorporar as variáveis psicológicas do comportamento operário, que o toyotismo procura desenvolver através dos mecanismos de comprometimento operário que aprimoram o controle da dimensão subjetiva pelo capital.
Sob o fordismo, a hegemonia vinha da fábrica, entretanto não se sustentava apenas sobre ela. O próprio compromisso fordista implicava a constituição de um modo de desenvolvimento, de base keynesiana, capaz de sustentar tal racionalização inconclusa na produção do capital.
Se o fordismo não conseguiu incorporar à racionalidade capitalista na produção as variáveis psicológicas do comportamento operário, o toyotismo o fez com desenvoltura. A crise do fordismo-keynesianismo e a incapacidade de constituição de um novo 'modo de desenvolvimento' capitalista, na época da decadência histórica do capital, tenderam a colocar a necessidade de recompor a forma de subsunção real do trabalho ao capital. Parafraseando Gramsci (1984), poderíamos dizer que, com o toyotismo, não apenas a hegemonia vinha da fábrica, mas lá ficava, irremediavelmente. Se o fordismo conseguiu ampliar sua base hegemônica para além da fábrica, o mesmo não ocorre com o toyotismo (embora seus dispositivos ideológicos tenham se disseminado pelas instâncias sócio-reprodutivas).
Isto significa que o fordismo constituiu-se como modo de desenvolvimento não apenas devido a suas virtuosidades como dispositivo de organização do trabalho propriamente dito, mas também porque se articulou, num determinado contexto geopolítico e de luta de classes, com um modo de desenvolvimento de cariz keynesiano, capaz de garantir demanda efetiva para a produção de massa, num período de ascensão histórica do capital. Tais condições históricas não existem hoje para o toyotismo como organização do trabalho capitalista.
Por outro lado, a promessa do toyotismo de constituir a figura humana no interior da produção racionalizada de mercadorias é tão-somente virtual. É uma promessa frustrada e, portanto, problemática, de 'recomposição' corpo-mente, ápice da aguda racionalização do trabalho subsumido ao capital. É nesse contexto problemático do toyotismo que surgem as novas doenças da alma humana.
Na verdade, o toyotismo não possui a pretensão de instaurar uma sociedade racionalizada, mas apenas uma fábrica racionalizada (o que abre um novo campo de contradições sócio-psicológicas). É a partir do processo de produção intrafabril (e na relação entre empresas) que ele procura reconstituir a hegemonia do capital, instaurando, de modo pleno, mas 'virtual', a subsunção real da subjetividade operária à lógica do capital.
Como destacamos acima, o toyotismo procura, mais do que nunca, reconstituir algo que era fundamental na manufatura: o "velho nexo psicofísico do trabalho profissional qualificado - a participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa do trabalho" (Gramsci, 1984). Entretanto, cabe salientar, estamos diante de um simulacro de inteligência humana ou de polivalência do trabalho.
Deste modo, o toyotismo restringe o nexo da hegemonia do capital à produção, recompondo, a partir daí, a articulação entre consentimento operário e controle do trabalho. É por isso que, mais do que nunca, salienta-se a centralidade estratégica de seus protocolos organizacionais (e institucionais). É apenas sobre eles que se articulam a hegemonia do capital na produção. Este é, com certeza, seu 'calcanhar de Aquiles', na medida em que, ao reduzir o nexo da hegemonia do capital apenas à esfera intrafabril (ou entre empresas), não o ampliando para além da cadeia produtiva central, para o corpo social total, o toyotismo permanece limitado em sua perspectiva política, principalmente se o compararmos ao arranjo fordista. Por isso, sob o toyotismo, agudiza-se uma contradição que é própria da sociedade do capital, ou seja, a contradição entre racionalidade intra-empresa e irracionalidade social.
Sob o toyotismo, a competição entre os operários e empregados é intrínseca à idéia de trabalho em equipe. Os supervisores e os líderes desempenham papéis centrais no trabalho em equipe (no caso do Japão, os líderes da equipe de trabalho - do team - são, ao mesmo tempo, avaliadores e representantes dos sindicatos). Permanece ainda, de certo modo, uma supervisão rígida, mas incorporada, 'integrada', vale salientar, à subjetividade contingente do trabalho. Em virtude do incentivo à competição entre os operários e empregados, cada um tende a tornar-se supervisor do outro. 'Somos todos chefes' é o lema do trabalho em equipe sob o toyotismo.
A Toyota trabalha com grupos de oito trabalhadores. Ainda que apenas um deles falhe, o grupo perde o aumento, portanto este último trabalhador garante a produtividade assumindo o papel que antes era da chefia. O mesmo tipo de controle é feito quanto ao absenteísmo (Watanabe, 1993).
Eis, portanto, o resultado da captura da subjetividade do trabalho vivo pela lógica do capital, que tende a tornar-se, no plano contingente, "mais consensual, mais envolvente, mais participativa: em verdade, mais manipulatória" (Watanabe, 1993, p.11). O que surge é um 'estranhamento pós-fordista' sob o toyotismo, que possui uma densidade manipulatória maior que em outros períodos do capitalismo monopolista. Não apenas o 'fazer' e o 'saber' operário são capturados pela lógica do capital, mas também sua disposição intelectual e afetiva é constituída para cooperar com a lógica da valorização do valor. O operário é encorajado a pensar 'pró-ativamente', a encontrar soluções antes que os problemas aconteçam (o que tende a incentivar, no plano sindical, por exemplo, estratégias neocorporativas de cariz propositivo). Cria-se, deste modo, um ambiente de desafio contínuo, onde o capital não dispensa, como fez o fordismo, o 'espírito' operário.
Aliás, não é que sob o fordismo o operário na linha de montagem convencional não pensasse. Pelo contrário, como salientou Gramsci, sob o fordismo
"(...) o operário continua 'infelizmente' homem e, inclusive (...) durante o trabalho, pensa demais ou, pelo menos, tem muito mais possibilidade de pensar, principalmente depois de ter superado a crise de adaptação. Ele não só pensa, mas o fato de que o trabalho não lhe dá satisfações imediatas, quando compreende que se pretende transformá-lo num gorila domesticado, pode levá-lo a um curso de pensamentos pouco conformistas" (Gramsci, 1984, p. 378).
Com certeza, Ford tinha consciência de que operários não eram 'gorilas domesticados'. Só que procurava resolver o dilema da organização capitalista através de iniciativas 'educativas' extrafábrica. E no limite, como destacamos acima, o fordismo tinha uma capacidade hegemônica que se vinculava às políticas sociais (e macroeconômicas) de cariz keynesiano capazes de gerar uma demanda efetiva para a produção em massa.
O toyotismo, pelo contrário, através da recomposição da linha produtiva, com seus vários protocolos organizacionais (e institucionais), procura capturar o pensamento do trabalho, integrando suas iniciativas afetivo-intelectuais nos objetivos da produção de mercadorias. É por isso que, por exemplo, a auto-ativação centrada na polivalência, um dos nexos contingentes do toyotismo, é uma iniciativa educativa do capital; é, entre outros, um mecanismo de integração (e controle) do trabalho na nova lógica do complexo produtor de mercadorias.
Se no fordismo tínhamos uma integração 'mecânica', no toyotismo temos uma integração 'orgânica', o que pressupõe um novo perfil de trabalhadores centrais (Ravelli, 1995). Mas o que é integração orgânica para o capital de certo modo é expressão de uma fragmentação sistêmica para o trabalho assalariado - em sua consciência contingente e em seus estatutos salariais. E mais ainda, é barbárie para a sociedade humana expressa através da lógica da produção destrutiva.
Apesar disso, o capital continua dependendo da destreza manual e da subjetividade do coletivo humano, como elementos determinantes do complexo de produção de mercadorias. Enquanto persistir a presença do trabalho vivo no interior da produção de mercadorias, o capital possuirá como atributo de si mesmo a necessidade persistente de instaurar mecanismos de integração (e controle) do trabalho, de administração de empresas, mantendo viva a 'tensão produtiva'. Além, é claro, de procurar dispersar os inelimináveis momentos de antagonismo (e contradição) entre as necessidades do capital e as necessidades do trabalho assalariado, intrínsecos à própria objetivação da relação social que instaurou o processo de valorização.
É claro que as contrapartidas do capital, sob o toyotismo, no interior da fábrica central, são de natureza histórica. Existe um vínculo ineliminável entre o toyotismo e a luta de classes. A série de contrapartidas do toyotismo destinadas à captura da subjetividade operária, capazes de permitir o pleno desenvolvimento dos nexos contingentes do toyotismo, pode assumir diversas particularidades sócio-históricas (e culturais). Ocorreram mutações significativas nesse sentido. Na verdade, essas contrapartidas se alteram, acompanhando o desenvolvimento do capitalismo (e da própria luta de classes). É o que podemos constatar hoje, por exemplo, com a debilitação relativa de algumas condições sócio-institucionais que garantiram, no passado, sob o período de crescimento do capitalismo japonês, a moldura do toyotismo original, ainda bastante vinculado a um tipo de fordismo-keynesianismo. Diante da crise do capitalismo no Japão, nos anos 1990, no bojo da crise estrutural do capital, os 'mercados internos' das empresas, o emprego vitalício e o salário por antiguidade, por exemplo, estão sendo revistos pelas corporações transnacionais sediadas no Japão.
A generalização universal do toyotismo, sob a forma da lean production (produção enxuta), implica adequá-lo, em suas contrapartidas para o trabalho assalariado, às novas realidades sócio-históricas da concorrência capitalista mundial. Diante da debilitação estrutural do mundo do trabalho, a partir dos anos 1980, em decorrência da lógica da modernização capitalista, as contrapartidas sociais clássicas do toyotismo tenderam a ser precarizadas, revistas (ou abolidas) pelo capital, com suas condições institucionais originárias (tal como se constituíram no seu país capitalista de origem, o Japão) sendo negadas em virtude de seu próprio desenvolvimento mundial.
Na verdade, o que tende a predominar é meramente o estímulo individual através da concessão de bônus salariais, debilitando alguns protocolos institucionais clássicos, como o emprego vitalício. A emulação pelo medo, diante de um precário mundo do trabalho, coloca o toyotismo no limite de suas promessas espectrais frustradas pela natureza da crise estrutural do capital.
Toyotismo, captura da subjetividade e compressão psicocorporal
O nexo essencial da lógica da produção toyotista é a captura da subjetividade do trabalho vivo. Como salientamos, busca-se constituir um novo tipo de subsunção do trabalho vivo à lógica do capital, que implica um tipo de envolvimento da força de trabalho (e do trabalho vivo) qualitativamente novo em relação à implicação subjetiva pretérita - a do taylorismo-fordismo. Não é que não houvesse a busca pela captura da subjetividade nas formas de produção capitalista sob a lógica taylorista-fordista clássica; ela ocorria, mas assumia uma dimensão de incompletude visceral.
Como destacamos, a hegemonia do fordismo nascia na fábrica, mas não se sustentava nela. A captura da subjetividade efetivava-se na esfera do consumo, com a constituição do compromisso fordista, que garantia, ao contingente organizado de trabalhadores assalariados, a indexação dos salários reais à produtividade do trabalho. Deste modo, garantia o acesso do trabalhador ao mercado de consumo e sua imersão no fetichismo da mercadoria.
Tal compromisso fordista só se sustentava na época de ascensão histórica do capital, por conta de condições geopolíticas e macroeconômicas favoráveis. Com a crise do capital a partir de meados da década de 1970, a captura da subjetividade nos moldes fordistas perde sua efetividade histórica. O crescimento dos salários reais nos pólos mais dinâmicos da acumulação do capital sofre uma queda significativa. A perspectiva reformista é atingida em seu núcleo ideológico. É obrigada a reconstituir-se em sua programática política (o que ocorre a partir de meados da década de 1980).
Enfim, a captura da subjetividade do trabalho vivo no toyotismo articulará dispositivos de envolvimento na produção, capazes de lidar com a crise do taylorismo-fordismo (operários e empregados não se dispõem mais a 'ganhar a vida, perdendo-a'). Deste modo, busca-se ir além do taylorismo, desconstruindo a linha de montagem, instituindo work teams, eliminando chefias intermediárias e apelando para a introjeção de nexos de colaboração. O investimento na subjetividade propriamente dita do trabalho vivo é mais decisiva, pois é na produção que o toyotismo buscará sustentar-se. A emulação do operário e do empregado assumirá formas regressivas com o apelo sub-reptício à 'psicologia do medo'.
Um precário mundo do trabalho, somado a uma ofensiva do capital na produção, criará as bases subjetivo-materiais do novo consentimento do toyotismo. Se num primeiro momento o toyotismo que surge no Japão baseia-se em contrapartidas salariais, ainda impregnado de perspectivas fordistas, logo se baseará na emulação pelo medo. No plano social, a perspectiva de consumo se constrange, tendo em vista a incapacidade do toyotismo constituir-se como modo de desenvolvimento e impulsionar uma demanda efetiva.
Enfim, o nexo objetivo que sustenta a captura da subjetividade no toyotismo não é a demanda efetiva, como ocorria no fordismo, mas sim a manipulação através da ideologia pós-fordista (a desconstrução da lógica taylorista) e a emulação através do medo da 'desefetivação' incisiva (o que assume caráter perverso em sociedades mercantis complexas, quando as redes de solidariedade perdem espaço social e desconstrói-se o Welfare State).
Ao salientarmos que o toyotismo possui como nexo essencial a captura da subjetividade, cabe tornar claro o que consideramos 'subjetividade', tendo em vista que, numa perspectiva dialético-materialista, subjetividade e objetividade são determinações reflexivas. Não podemos hipostasiar a subjetividade, desvinculando-a das condições objetivas de produção da vida social (o que nos levaria a cair no 'psicologismo'). Além disso, é importante ressaltar a dimensão problemática da subjetividade na ordem sócio-metabólica do capital.
Fordismo e toyotismo são meras formas organizacionais do capitalismo da grande indústria, a forma social do capital no interior da qual desenvolveram-se suas contradições objetivas como modo de produção social. O toyotismo não vai além do capitalismo da grande indústria, apesar de conter em si mesmo a 'promessa da pós-grande indústria'. Mas, na medida em que é parte da lógica do capital, tende a frustrar irremediavelmente tal promessa sócio-histórica.
Devido à crise estrutural do capital, o toyotismo, em sua busca sedenta por hegemonia, tende a promover um agudo investimento na captura da subjetividade, aprofundando os nexos fetichistas e 'estranhados' do capital. Na verdade, é um elo significativo desta aguda manipulação social do capitalismo em sua fase de crise estrutural. Atinge o modo de trabalho que se expande para o tempo de vida. Nunca trabalho e vida se aproximaram tanto quanto no capitalismo da grande indústria sob o fordismo. Como verificaremos adiante, nesta nova implicação subjetiva o corpo parece ser a última fronteira de subversão do capital.
A categoria subjetividade é problemática, pois pressupõe o 'sujeito autônomo', constituído a partir do processo histórico da modernidade capitalista. Mas o sujeito autônomo é uma ficção burguesa. É provavelmente a principal promessa civilizatória frustrada pelo capital. O que significa que estamos diante de um processo histórico-dialético intrinsecamente contraditório: o capitalismo em seu devir histórico, como sistema social produtor de mercadorias, constituiu (e, ao mesmo tempo, desconstituiu) o sujeito humano autônomo. Ao mesmo tempo em que criou as bases materiais para o pleno desenvolvimento da individuação social, o capital limitou e obliterou esse mesmo desenvolvimento humano-genérico. É um processo histórico cumulativo de restrições e constrangimentos sistêmicos que Marx (1987) procurou traduzir na categoria 'subsunção' do trabalho ao capital. Portanto, subjetividade e estranhamento são determinações reflexivas inelimináveis no mundo do capital.
Mesmo em seu estatuto precário, a subjetividade como instância da atividade prático-sensível do sujeito humano é constituída, em si, tanto pela 'personalidade' quanto pela 'corporalidade viva'. Estas são dimensões inalienáveis do sujeito, cuja separação é meramente heurística. O estranhamento e, portanto, a desefetivação intrínseca à lógica do trabalho capitalista tendem a atingir as duas dimensões da subjetividade. O impacto na instância psíquica é evidente. No tocante à corporalidade viva, à dimensão do corpo, essa desefetivação assume certas representações particulares, como veremos a seguir.
Na medida em que o toyotismo altera a implicação subjetiva do fordismo, tal alteração tem repercussões na instância do corpo (como parte constitutiva da subjetividade). Desse modo, podemos dizer que o toyotismo tende a constituir uma nova forma de organizar o tráfico corpo-mente. Como salientamos, o taylorismo-fordismo criou uma rigidez na disposição corpo-mente que o toyotismo tende a 'flexibilizar'. Aliás, é obrigado a flexibilizar para poder constituir a nova forma de subsunção do trabalho vivo ao capital, que é intrínseca ao novo modo de organização da produção de mercadorias.
Portanto, eis nossa tese principal: o toyotismo tende a constituir um tipo de compressão psicocorporal, similar à compressão espaço-tempo constatada por David Harvey em sua Condição pós-moderna, de 1992, e que diz respeito ao novo regime de acumulação flexível. Na verdade, a compressão psicocorporal é um elemento da experiência da condição pós-moderna, a experiência do corpo, instaurada pelo desenvolvimento de um novo regime de acumulação capitalista.
É claro que as múltiplas mudanças nas experiências do espaço e do tempo, tratadas por David Harvey no capítulo "A compressão do tempo-espaço e a condição pós-moderna", não poderiam deixar de ter desdobramentos nas experiências do corpo, tendo em vista que ele, o corpo, é elemento ineliminável do sujeito e, portanto, da subjetividade. Como diria Foucault (1994), desde o surgimento da modernidade do capital, o corpo tornou-se objeto de "práticas subjetivadoras" da "sociedade disciplinar".
As transformações estruturais na dinâmica capitalista a partir de sua crise estrutural alteram as práticas subjetivadoras da sociedade do capital. É através dessas práticas que o sujeito pode pensar-se enquanto sujeito. É por meio delas, ao constituir sua relação com o trabalho, que o ser humano se transforma em sujeito 'de si para si' (técnicas de si). Como Foucault observa, não existem apenas técnicas de produção, de comunicação ou de poder, mas existem também técnicas para voltar-se para si, as "tecnologias do eu" (Foucault, 1994).
Nessa nova etapa do desenvolvimento capitalista, por conta da instauração do novo regime de acumulação do capital, do desenvolvimento do toyotismo, alteram-se as tecnologias do eu. Destacamos, nesse caso, a alteração da experiência do corpo, dimensão crucial do próprio self. Diz Foucault:
"A relação entre a manipulação de objetos e a dominação aparece claramente em O Capital de Karl Marx, onde cada técnica de produção exige uma modificação da conduta individual, exige não só aptidões, mas também atitudes" (Foucault, 1994, p. 785).
Ora, na etapa da acumulação flexível, surge uma nova atitude problemática do sujeito para consigo mesmo através da relação com seu próprio corpo. É parte da experiência de novas subjetividades complexas problemáticas. Altera-se o tráfico corpo-mente, com o toyotismo tendendo a dissolver a antiga atitude disciplinar que o corpo apresentava no modo de organização taylorista-fordista. Na verdade, o corpo não se emancipa da disciplina do capital, mas constitui-se uma nova relação psicocorporal, que busca preservar um componente essencial das sociedades do capital, sejam elas modernas ou pós-modernas: um corpo útil, produtivo e submisso.
A compressão psicocorporal pode ser constatada, por exemplo, nas experiências de 'ginástica laboral', onde a postura corporal (e, portanto, subjetiva) do trabalhador tende a tornar-se indispensável para a obtenção da produtividade sob as condições da nova técnica flexível e da intensificação e exploração do trabalho, como é próprio do toyotismo. O novo regime de acumulação flexível impõe o novo tráfico corpo-mente apenas como 'meio' de combate do estresse que atinge o trabalhador assalariado da superexploração toyotizada e não como 'fim' de emancipação do corpo-sujeito da disciplina do capital.
É o que observa, por exemplo, uma das entusiastas da ginástica laboral:
"A prática de exercícios físicos, realizada coletivamente, durante a jornada de trabalho, prescrito de acordo com a função exercida pelo trabalhador, tem como finalidade a prevenção de doenças ocupacionais, promovendo o bem-estar individual por intermédio da consciência corporal: conhecer, respeitar, amar e estimular o seu próprio corpo" (Lima, 2004, p. 53).
A transcrição de um trecho da reportagem "Empresa adota ginástica contra o stress", publicada no jornal A Notícia, de Joinville (SC), em novembro de 2000, apresenta um relato típico do que ocorre nos locais de trabalho nos últimos dez anos de toyotismo sistêmico no Brasil. Relata-se uma experiência de adoção da ginástica laboral na Lepper, empresa têxtil da cidade. Diz a reportagem:
"A quebra da rotina em busca da saúde do corpo e da mente. Nos primeiros dez minutos de expediente da Lepper, o chão de fábrica se transforma num local de aquecimento para o trabalho. No lugar de máquinas funcionando a todo o vapor, ao som da sirene, a cena é outra. Homens e mulheres completam uma série de exercícios indicados pelos monitores. A ginástica laboral na empresa têxtil de Joinville é apenas um exemplo da preocupação que toma conta dos gestores de recursos humanos das indústrias da cidade para proporcionar maior qualidade de vida ao funcionário, garantir maior produtividade" (Rigotti, 2000).
A seguir, a reportagem procurou apresentar os benefícios da ginástica laboral para alguns operários e empregados da Lepper, que afirmaram ter passado a sofrer menos com doenças ocupacionais e com o estresse. Para a empresa, a suposta saúde dos operários significou um menor índice de absenteísmo, diminuindo o índice de licenciados em decorrência de tal doença. Na verdade, a saúde do trabalho visa incrementar a lógica do produtivismo do capital:
"A funcionária Célia Catarina Miglioli, 35 anos, acompanhou todo o processo de implantação da ginástica na fábrica, desde de abril de 1997. Ela trabalha na Lepper há 10 anos e sentiu a diferença de rendimento. 'Antes eu tinha muita dor nas costas. Com os exercícios eu consigo relaxar, me sinto melhor e consigo produzir mais', garante" (Rigotti, 2000, grifos nossos).
Noutra passagem, observa-se:
"Para a funcionária Joice Maria Vestena, 25, que trabalha na empresa há oito meses, os benefícios da ginástica podem ser sentidos ainda nos primeiros dias. 'A ginástica ajuda a relaxar e esquecer os problemas lá fora', relata" (Rigotti, 2000, grifos nossos).
Para que a ginástica laboral seja implementada na empresa, e alcance o objetivo almejado, é necessária a colaboração ativa de operários e empregados. Exige-se um consentimento do trabalho à nova implicação psicocorporal instaurada pelo capital. No caso desta empresa têxtil, o envolvimento dos trabalhadores com a nova lógica de organização psicocorporal na produção do capital parece ter sido bem sucedido como relata a reportagem:
"A novidade foi tão bem aceita pelo quadro de funcionários da área de confecção, formado principalmente por mulheres, que Célia e suas companheiras fazem questão de praticar os exercícios em casa. A empresa já está interessada em ampliar o programa, atualmente desenvolvido pelo Sesi, e levar a ginástica para os outros setores" (Rigotti, 2000).
E prossegue :
"Conforme o técnico de segurança do trabalho Flávio José de Souza, 50% dos 771 funcionários da Lepper fazem aquecimento, alongamento e relaxamento todos os dias antes do expediente. 'Numa pesquisa feita no final de 1999, a ginástica teve 94% de aprovação entre os funcionários. Mais de 20% deles também fazem os exercícios em casa', afirma" (Rigotti, 2000, grifos nossos).
Embora seja legítimo o objetivo de reduzir as doenças ocupacionais, o que se oculta é a intensificação e a superexploração do trabalho sob o regime de produção toyotista. Preserva-se um corpo útil, disciplinado e submisso - não apenas no local de trabalho, mas também em casa (a lógica do capital invade o espaço doméstico).
O toyotismo caracteriza-se pela superexploração da força de trabalho e do trabalho vivo. Mais do que nunca, sob o capitalismo global o salário real não tende a acompanhar a produtividade do trabalho. É possível até ocorrer um incremento do salário real, mas o arrocho do 'salário relativo' tende a ser um traço constitutivo do novo regime de acumulação flexível, do qual o toyotismo é o momento predominante.
Por outro lado, no tocante à dimensão sócio-reprodutiva, a compressão psicocorporal pode ser constatada, cum grano salis, por exemplo, na proliferação do 'culto ao corpo' ou na transgressão do imaginário do corpo como território indevassável (tatuagens e piercings não deixam de ser sintomas de um devassamento do corpo numa experiência psicocorporal problemática, como a do toyotismo).
A estética do modernismo tendia a separar corpo e mente. É o que Eliane Robert Moraes caracterizou como sendo o "corpo impossível" (Moraes, 2002). É curioso que, no plano estético, o romance fantástico Frankenstein, de Mary Shelley (1815) parece nos sugerir que a reconstituição do corpo nas condições do capitalismo industrial do século XIX, da grande indústria de base técnica rígida, tenderia apenas a produzir monstros, tão inflexíveis quanto autômatos desconjuntados. Enfim, o corpo impossível da estética modernista pressupunha um tipo de tráfico psicocorporal particular, que o fordismo-taylorismo traduziu, em sua tipicidade, como a separação corpo e cérebro.
Por outro lado, a estética do pós-modernismo tende a fundir corpo e mente através do homem pós-orgânico. O corpo é refundado através das técnicas digitais e de virtualização (Sibilia, 2002). Desse modo, a crise do fordismo é também a crise de uma experiência do corpo útil, produtivo e submisso. É a crise de uma prática subjetivadora que precisava ser reconstituída, segundo a lógica da acumulação flexível.
Mas a reconstituição psicocorporal do toyotismo é problemática, cabe ressaltar. Se ela tende a fundir corpo e mente, ao flexibilizar o corpo rígido, tornando-o maleável para a nova subsunção do trabalho ao capital, ela não o emancipa, nem poderia. De fato, o toyotismo, como salientamos, possui elementos de continuidade com o taylorismo e o fordismo que impedem/subvertem essa nova disposição e organização pressuposta pelo novo modo de subsunção, que exige a base técnico-civilizatória que o toyotismo procura representar, sem consegui-lo, pois contém a perversão da utopia do trabalho.
Isto significa que as implicações toyotistas, tanto no campo da produção quanto no campo da reprodução social, são meros 'espectros' sociais', isto é, 'promessas frustradas', sempre repostas como pressuposto negado deste sistema produtor de mercadorias. A compressão psicocorporal, ou o reencontro do corpo com o cérebro, o gesto físico 'flexível' (ou melhor, espontâneo), a negação da cisão da subjetividade, são promessas frustradas do toyotismo. Entretanto, não deixam de ser elementos plenamente efetivos no plano da representação imaginária (o que é mais visível na instância sócio-reprodutiva através dos sonhos contingenciais do corpo emancipado). Na verdade, estamos diante de uma aguda contradição objetiva própria do capitalismo em sua etapa de crise estrutural.
A título de ilustração desta hipótese, em que vinculamos modo de produção, forma de organização do trabalho e dinâmica psicocorporal, podemos utilizar alguns filmes que sugerem que a dominação do capital e a resistência/conformação do trabalho vivo se desdobra na instância corporal. O corpo, como instância ineliminável da subjetividade do trabalho vivo, é hoje, mais do que nunca, um campo de batalha. É possível apreender, por exemplo, a rigidez corporal psíquica no andar mecânico dos operários em "Metropolis", de Fritz Lang (1926), e nos gestos monótonos e repetitivos de Carlitos em "Tempos modernos" (1936). São filmes clássicos que expressam a disciplina taylorista-fordista que atinge a corporalidade viva (se bem que, ao ter o surto nervoso, Carlitos baila na linha de produção, sugerindo que deseja subverter a disciplina psicocorporal imposta pela linha/posto de trabalho taylorista-fordista).
Por outro lado, em filmes como "Flash dance", de Adryan Lyne (1983), e, mais tarde, "Ou tudo ou nada", de Peter Cattaneo (1997), narrativas da época da crise do taylorismo-fordismo e do toyotismo sistêmico, as personalidades problemáticas, buscando adaptar-se e lidar com a aguda contradição que atinge a subjetividade toyotista, tendem a flexibilizar a disposição corpo-mente (o que só ocorre no plano sócio-reprodutivo). Nessas personalidades, a insurgência da nova relação corpo-mente, que permanece no plano contingente, se expressa através da dança (o mesmo bailar de Carlitos em "Tempos modernos") que tende a subverter, pelo menos no plano sócio-reprodutivo - este é o ponto - a disciplina rígida corpo-mente que o capital instaurou.
Mas, como salientamos, tal compressão psicocorporal nessas narrativas fílmicas só se manifesta na instância sócio-reprodutiva. Isto é, em "Flash dance" não se pode bailar na fábrica, mas apenas fora dela, onde a personagem principal busca realizar seus sonhos através da utopia ideológica do sucesso profissional. Em "Ou tudo ou nada", não existe fábrica para os personagens centrais, ex-operários desempregados, vítimas das políticas neoliberais de Thatcher. O filme trata do drama do desemprego, com sua dinâmica inerte que impõe, por si, um tipo de disciplina psicocorporal tão rígida quanto a disciplina fordista. O bailar (e inclusive o despir-se), a exposição do corpo, sugerindo um 'ethos dessublimativo', é uma forma de subverter a disciplina e realizar ou sugerir o 'sonho' prometido pelo suposto pós-fordismo, o sonho do corpo emancipado. Entretanto, nesse caso, os trabalhadores desempregados continuam imersos na mera unilateralidade, pois, tão-somente no plano sócio-reprodutivo, os corpos bailam. De fato, a 'vida desefetivada' impede-os de expressar o gesto psicocorporal pleno e emancipado.
Tanto em "Flash dance" quanto em "Ou tudo ou nada", estamos diante do simulacro da dança como 'dessublimação' reprimida. Enfim, os personagens continuam sem perspectivas de trabalho e de vida (a jovem operária de "Flash dance" está imersa nas utopias ideológicas do casamento e do sucesso profissional). Entretanto, o que tais narrativas de crise do taylorismo-fordismo nos mostram são meras disposições contingentes que não conseguem ir além da lógica social do capital sob o modo organizacional do toyotismo. Assim, os obstáculos decisivos para a realização da compressão psicocorporal, promessa frustrada capaz de reconstituir o sujeito produtivo, produtor emancipado, são as perversões próprias do modo de organização capitalista do trabalho toyotista e do sócio-metabolismo da barbárie do capital.
Destacaríamos, em primeiro lugar, a intensificação do ritmo de trabalho e da racionalização do trabalho estranhado sob o toyotismo, o que caracteriza sua continuidade em relação ao taylorismo-fordismo. Sob as novas bases técnicas, ocorre o que já destacamos como sendo a superexploração do trabalho. Ora, sob o toyotismo, a 'politecnia' se converte em 'polivalência', que se expressa através da intensificação das rotinas de trabalho. No local de trabalho toyotizado, o sofrimento tende a alargar-se, deslocando-se para a mente e imprimindo seu estigma no corpo (deste modo, a compressão psicocorporal se converte em compressão/esmagamento do corpo pela mente/cérebro, negação da efetividade humano-genérica, alienação/estranhamento em alto grau). Prolifera o surto de estresse, lesão por esforço repetitivo (LER) e novas doenças psicossomáticas. A suposta promessa pós-fordista explicita sua 'farsa' e sua 'ironia'. O toyotismo, até mais que o fordismo, possui uma contradição aguda que busca se desenvolver numa determinada forma de tráfico corpo-mente.
Em segundo lugar, além da intensificação do trabalho e do sofrimento psíquico, o toyotismo contém elementos de 'dessocialização', decorrente do contexto histórico e de desenvolvimento que ele tende a expressar no tocante ao movimento do capital. Ele é parte da barbárie social que representa o modo de produção do capitalismo nessa etapa de seu desenvolvimento (o desemprego e a precarização do estatuto salarial são exemplos desta dessocialização). Em mais um elo contraditório, a dessocialização tende a comprometer o novo tipo de disposição/subsunção corpo-mente que o toyotismo tenta instaurar. Por isso, a flexibilidade tende a aparecer como dilaceração e autoflagelação inconsciente do corpo. Ela é constatada, por exemplo, através do imaginário sócio-reprodutivo das novas gerações de força de trabalho, das representações do corpo transgredido, dos piercings e tatuagens que cativam os jovens, expressão do corpo ocupado, tentativa de dar novas significações a uma corporalidade impossível.
Na verdade, os novos dispositivos do toyotismo, que se constituem na instância da produção e se disseminam pela dimensão sócio-reprodutiva, tendem a ser subvertidos por seu velho compromisso com a lógica do capital (que é a lógica do trabalho estranhado), que traz a desefetivação do sujeito (e, portanto, da subjetividade ou da personalidade/corpo), principalmente na época da crise estrutural do capital.
Nota
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
31 Out 2012 -
Data do Fascículo
Set 2005