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A educação em direitos humanos como suporte às políticas antimanicomiais: história e memória

Human rights education as a support for anti-asylum policies: history and memory

La educación en derechos humanos como soporte a la política antimanicomial: historia y memoria

Resumo

A política de saúde mental no Brasil se vê hoje ameaçada pelo retorno da lógica manicomial e isso constitui um risco aos usuários e familiares, pois o sujeito diagnosticado com transtorno mental deixa de usufruir plenos direitos. O objetivo deste ensaio é propor que o resgate da memória da barbárie manicomial seja parte fundamental de uma educação em direitos humanos; além disso, deveria estar presente na formação dos profissionais da área da saúde para fortalecer os movimentos sociais que dão legitimidade e força ao modelo antimanicomial. Parte-se de uma concepção crítica dos direitos humanos para argumentar que estes constituem a sedimentação histórica de lutas sociais em uma sociedade em conflito. A conclusão aponta que o usufruto do direito à saúde mental está intimamente relacionado à educação dos agentes de saúde, aos usuários e aos movimentos sociais.

Palavras-chave
educação em direitos humanos; luta antimanicomial; formação de agentes de saúde; saúde mental

Abstract

The mental health policy in Brazil is threatened by the return of asylum logic and this constitutes a risk to users and family members, as the subject diagnosed with mental disorder no longer enjoys full rights. The purpose of this essay is to propose that the rescue of the memory of asylum barbarism is a fundamental part of human rights education; in addition, it should be present in the training of health professionals to strengthen social movements that give legitimacy and strength to the anti-asylum model. It starts with a critical conception of human rights to argue that they constitute the historical sedimentation of social struggles in a society in conflict. The conclusion points out that the enjoyment of the right to mental health is closely related to the education of health agents, users and social movements.

Keywords
human rights education; anti-asylum fight; training of health agents; mental health

Resumen

La política de la salud mental en Brasil se ve hoy amenazada por el retorno de la lógica manicomial, lo que constituye un riesgo hacia los usuarios y sus familiares, pues el sujeto diagnosticado con trastorno mental deja de usufructuar plenos derechos. El objetivo de este ensayo es proponer que el rescate de la memoria de la barbarie manicomial sea parte fundamental de la educación en derechos humanos; además de eso, debería estar presente en la formación de los profesionales del área de la salud para fortalecer los movimientos sociales que le dan legitimidad y fuerza al modelo antimanicomial. Se parte de una concepción crítica de los derechos humanos para argumentar que ellos constituyen la sedimentación histórica de las luchas sociales en una sociedad en conflicto. La conclusión apunta que el usufructo del derecho a la salud mental está íntimamente relacionado a la educación de los agentes de salud, a los usuarios y a los movimientos sociales.

Palabras-clave
educación en derechos humanos; lucha antimanicomial; formación de agentes de salud; salud mental

Introdução

Este texto tem como objetivo resgatar a memória dos movimentos de reforma psiquiátrica, luta antimanicomial e dos movimentos sociais ligados aos direitos humanos em geral, destacando a necessidade da educação e do fomento a uma cultura de direitos humanos para que não se repitam episódios de barbárie manicomial e sejam respeitados os direitos de todos, incluindo as pessoas identificadas com transtornos mentais. As relações entre a reforma psiquiátrica e o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial serão destacadas para avaliar o movimento. Surgido em uma conjuntura em que se questionava a violação dos direitos humanos na Ditadura Civil Militar, o movimento ultrapassou os limites das reivindicações pontuais e possibilitou a construção de políticas de saúde mental – como hospitais-dia, centros de atenção psicossocial, centros de convivência e cultura, residências terapêuticas etc. Tais alternativas, ainda hoje, procuram superar o hospital psiquiátrico como forma de atenção ao sujeito que sofre de transtornos mentais, apesar das contradições, tais como manutenção de modelos de atenção manicomiais em detrimento aos modelos substitutivos. O reconhecimento da violência intrínseca ao modelo manicomial resultou em propostas de atenção psicossocial em uma perspectiva de humanização e de garantia dos direitos humanos e da cidadania, voltadas especialmente para uma parcela da população trabalhadora e pobre, sujeita a condições de vida precárias e a práticas violentas perpetradas contra ela nessas instituições.

Não vamos analisar os episódios destacados detalhadamente, mas procurar articulá-los em um sentido histórico, traçando um possível caminho que contribua como registro documental e resgate de importantes memórias das quase quatro décadas dessa luta. O objetivo desse resgate é apontar alguns impasses que poderiam ser equacionados por meio de estratégias de educação em direitos humanos, consideradas essenciais durante a formação tanto dos profissionais de saúde como dos usuários e familiares. Essa defesa não coincide com uma visão romântica da história, como progresso linear da humanidade; a visão crítica parte do reconhecimento de que a vitória histórica contra o nazismo e o fascismo na Segunda Guerra Mundial não resultou na superação da barbárie. Ela permaneceu de várias formas e uma das mais conspícuas é justamente o manicômio.

Luta Antimanicomial e Direitos Humanos

Partimos do pressuposto, em acordo com Gallardo (2014)GALLARDO, Helio. Teoria crítica: matriz e possibilidade de direitos humanos. São Paulo: Ed. Unesp, 2014., de que os direitos humanos devem ser vistos como resultado de lutas históricas de movimentos sociais que conseguiram, por sua força e organização, consolidar declarações, tratados, pactos e leis que estabeleceram direitos para populações discriminadas e que sofreram as mais diversas formas de violência. Também é importante pontuar que, nessa perspectiva, a existência de leis, tratados etc. não garante o respeito e a promoção dos direitos humanos, ou seja, embora consubstanciem conquistas em lutas sociais, as normas legais dependem da correlação de forças políticas para se efetivarem. Finalmente, também é crucial considerar que a perspectiva crítica sobre direitos humanos considera que o grande problema da persistência da barbárie deve ser compreendido tendo-se por origem as condições materiais objetivas; a subjetividade reflete e medeia essas condições materiais e isso tanto ressalta a importância dos processos educativos, para evitar que a barbárie persista (Adorno, 2002ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.), como implica procurar compreender o transtorno mental por suas mediações sociais.

Os questionamentos aos hospitais psiquiátricos surgem na Europa pós Segunda Guerra no clima de euforia com a derrota do nazifascismo e do chamado ‘eixo do mal’ em uma perspectiva de desenvolvimento e garantia de melhores condições de vida e de relações democráticas entre os homens. Dão sustentação a essa perspectiva no campo dos Direitos Humanos a fundação da Organização das Nações Unidas, em 24 de outubro de 1945, em São Francisco, nos Estados Unidos da América (EUA), com o objetivo de evitar outro conflito daquela proporção. Do mesmo modo, em 1948, é elaborada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Trindade, 2002TRINDADE, José D. L. História social dos direitos humanos. São Paulo: Petrópolis, 2002.). A declaração de 1948 reflete a reconfiguração do conflito global sob a forma da chamada ‘Guerra Fria’, expressando, imanentemente, a divisão do mundo em dois blocos. De um lado, a maior parte dos direitos que a declaração de 1948 afirma são políticos e civis, base da organização política das sociedades liberais (Trindade, 2002TRINDADE, José D. L. História social dos direitos humanos. São Paulo: Petrópolis, 2002.). De outro lado, apresenta uma sistematização da chamada segunda geração de direitos humanos, os direitos sociais (Silva, 2005SILVA, Virgílio A. A evolução dos direitos fundamentais. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, Fortaleza, v. 6, n. 1, p. 541-558, 2005.), e abre um campo para vários movimentos sociais que passam a orientar suas ações numa luta por reconhecimento de suas diferenças e peculiaridades: lutas feministas, anticoloniais, antirracistas e também no campo da saúde mental, questionando a racionalidade dominante e sua identidade com a ‘saúde’ mental.

Sumarizando a recorrente discussão na literatura sobre Direitos Humanos a respeito de suas ‘gerações’, Gallardo (2014)GALLARDO, Helio. Teoria crítica: matriz e possibilidade de direitos humanos. São Paulo: Ed. Unesp, 2014. identifica a primeira geração como o conjunto de direitos que constituem capacidades individuais que o Estado deve reconhecer e proteger, e que emergiram como consequência da ação da sociedade civil emergente no âmbito das revoluções burguesas nos séculos XVII e XVIII. A segunda geração de direitos humanos é identificada aos direitos econômicos, sociais e culturais, que o Estado deve promover e que emergiram das lutas dos trabalhadores organizados em sindicatos e cooperativas e da luta de pessoas escravizadas mundo afora. Junto à emergência dessa segunda geração de direitos, passa a ser fundamental olhar para o lugar concreto ocupado pelos indivíduos e grupos que são privados de direitos. Nas palavras de Gallardo:

‘humanidade’, na expressão dos ‘direitos humanos’, deve levar em conta o lugar sócio-histórico dos grupos, nações e indivíduos, isto é, que sempre se é humano de uma maneira particularizada, e não numa forma universal/abstrata como se poderia deduzir da primeira proposta de direitos. (Gallardo, 2014GALLARDO, Helio. Teoria crítica: matriz e possibilidade de direitos humanos. São Paulo: Ed. Unesp, 2014., p. 50, grifos no original)

As lutas contra o colonialismo e as diversas formas de exploração neocoloniais geraram a terceira geração de direitos humanos, também chamados direitos dos povos, nacionalidades e etnias, abrangendo desde movimentos feministas, negros, de povos indígenas etc. até as lutas antimanicomiais, de gênero e pela inclusão educacional (Gallardo, 2014GALLARDO, Helio. Teoria crítica: matriz e possibilidade de direitos humanos. São Paulo: Ed. Unesp, 2014.). No cerne dessas lutas, encontram-se as ideias de que as diferenças são legítimas e de que há a necessidade de transferir poder, de ‘empoderar’ os discriminados, de modo que eles se tornem protagonistas de sua própria libertação. Essas lutas contribuíram para que a humanidade fosse concebida como um conceito aberto, cujos significados se estabelecem com base em relações de reconhecimento e de não reconhecimento, exigindo estas últimas uma contínua luta pela distribuição de poder e por mudanças culturais e materiais que produzam o reconhecimento do outro como plenamente humano, portanto, capaz de usufruir plenamente seus direitos.

A quarta e quinta gerações de direitos correspondem aos movimentos ecológicos que chamam a atenção à responsabilidade das gerações atuais pela preservação do ambiente para as gerações futuras e à preocupação com os usos das tecnologias de ponta que têm potencial para manipular a genética, em especial a humana. É importante destacar, nesse breve resumo das gerações de direitos humanos, que sempre há uma situação sócio-histórica concreta por detrás de toda discussão sobre os conceitos de humanos e de direitos. Ressalta-se que o desconhecimento sobre essa relação torna a discussão sobre o tema por demais abstrata, talvez inútil, se o que queremos é gerar empoderamento para grupos excluídos, como é o caso das pessoas que são diagnosticadas com transtornos mentais e seus familiares. Ademais, embora o estudo da história possa levar ao reconhecimento de que os direitos não caem do céu, mas se consubstanciam a partir da luta dos oprimidos, ele não garante por si mesmo a legitimidade desses direitos. A história é também lugar de constantes releituras e reinterpretações e mesmo a catástrofe ocorrida em Auschwitz, sendo lembrada, pode ser neutralizada pela ação da indústria cultural, como argumenta Claussen (2012)CLAUSSEN, Detlev. A banalização do mal: sobre Auschwitz, a religião do cotidiano e a teoria social. Viso: Cadernos de Estética Aplicada, Niterói RJ, v. 6, n. 12, jul./dez. 2012, p. 44-60..

A divulgação dos horrores dos campos de concentração, para utilizar um exemplo conspícuo, teve um efeito dúbio: de um lado, impactaram diretamente na relação estabelecida com os grandes hospitais psiquiátricos europeus em sua precariedade e violência contra os internos, pois esta era muito próxima do que aconteceu nos campos de extermínio (Basaglia, 1985BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Rio de Janeiro: GRAAL, 1985.); de outro, a memória da barbárie foi, e ainda é, filtrada pela transformação dos campos de concentração em destino turístico, pela substituição do horror indescritível por palavras como ‘Holocausto’, cujo sentido é desconhecido da maioria das pessoas (Claussen, 2012CLAUSSEN, Detlev. A banalização do mal: sobre Auschwitz, a religião do cotidiano e a teoria social. Viso: Cadernos de Estética Aplicada, Niterói RJ, v. 6, n. 12, jul./dez. 2012, p. 44-60.). Finalmente, segundo Adorno (2001)ADORNO, Theodor W. Problems of moral philosophy. Stanford: Stanford University Press, 2001., Auschwitz não é um mero lugar de nome alemão na Polônia, mas a expressão máxima da dialética entre razão técnica e a regressão bárbara e, nesse sentido, segue se repetindo sempre que o conhecimento é utilizado para produzir as mais variadas formas de violência, discriminação, exploração e morte. Além disso, ainda segundo Adorno (2001)ADORNO, Theodor W. Problems of moral philosophy. Stanford: Stanford University Press, 2001., Auschwitz, ao lado da bomba atômica, é um ponto de clivagem histórico porque assinala o horror inominável que a humanidade precisa elaborar para poder se tornar verdadeiramente humana. Não é preciso ser muito observador para constatar que essa elaboração do passado de barbárie ainda não está em pauta; pelo contrário, vemos apelos sistemáticos à violência e à violação de direitos de várias populações e grupos vulneráveis.

Vale a pena assinalar que, no pós-guerra, começaram a ser produzidos, em escala industrial, potentes psicofármacos, que favoreceram tratamentos extra-hospitalares, menos onerosos para o Estado que a manutenção dos hospitais psiquiátricos. O Conselho de Desenvolvimento Médico da Grã-Bretanha apontava que o investimento em ações de saúde mental sustentadas por psicofármacos é uma proposta rentável do ponto de vista econômico e contribui para evitar os desajustes que acompanham a industrialização (Amarante, 1995AMARANTE, Paulo (org.). Loucos pela vida. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995.). Os mais diversos aspectos de articulação entre máximo desenvolvimento técnico e aplicações sociais voltadas para a dominação e a exploração de populações vulneráveis toma várias formas, mas, em muitos casos, se repete aquilo que é representado pelos campos de extermínio: a negação do outro como humano. Nesse sentido, o resgate da memória não é uma mera narrativa que se contrapõe às concepções da história como progresso, mas um confronto direto com a rememoração do que foi e segue sendo bárbaro na organização da sociedade.

Várias propostas de reforma dos hospitais psiquiátricos partiram justamente desse confronto. Com uma perspectiva de crítica e de denúncia dos hospitais psiquiátricos, podemos tomar como exemplos de propostas alternativas ao tratamento hospitalar: a Psiquiatria de Setor de Lucien Bonnafé, em 1945, que buscava uma transformação das condições asilares do pós-guerra; a Comunidade Terapêutica de Maxwell Jones, em 1959, desenvolvida em um hospital psiquiátrico, baseada nos trabalhos de Sullivan, Meninger, Bion e Reichman; a Psicoterapia Institucional de François Tosquelles no hospital de Saint Alban, uma experiência de transformação do espaço asilar buscando sua superação como espaço de segregação; a Psiquiatria Preventiva de Caplan, na década de 1960, organizada em Prevenção Primária, Prevenção Secundária e Prevenção Terciária, entre outras iniciativas (Amarante, 1995AMARANTE, Paulo (org.). Loucos pela vida. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995.). O novo nessas experiências foi a introdução da Prevenção Primária, ou seja: “aquelas destinadas a reduzir (não curar), em uma comunidade, os transtornos mentais, promovendo a ‘sanidade mental’ dos grupos sociais.” (Amarante, 1995AMARANTE, Paulo (org.). Loucos pela vida. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995., p. 40). Essas propostas tinham em comum a transformação do espaço asilar, resgatando os direitos dos internos.

A Antipsiquiatria de Ronald Laing, David Cooper e Aaron Esterson nasce junto à grande corrente de contestação cultural e política dos anos 1960 e tem como ponto estratégico várias críticas ao objeto, às teorias e aos métodos da Psiquiatria e Psicopatologia, proporcionando uma profunda revolução nesse campo. Seus principais autores insistiram na ideia de que as concepções ‘científicas’ da loucura e seus recursos de tratamento eram invariavelmente violentas e seriam apenas eufemismos da alienação política, econômica e cultural da sociedade moderna (Amarante, 1995AMARANTE, Paulo (org.). Loucos pela vida. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995.; Cooper, 1989COOPER, David. Psiquiatria e anti-psiquiatria. São Paulo: Perspectiva, 1989.). Essa proposta alinha-se a questionamentos políticos anticoloniais, críticos da racionalidade dominante alienada e a movimentos sociais que viriam a consolidar a terceira geração de direitos humanos, das minorias e dos povos dominados. Outros pensadores apresentam questionamentos duros e elucidativos sobre a loucura, tais como Tomas Szasz (1980)SZASZ, Thomas S. Ideologia e doença mental. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980. que identifica a doença mental como ideologia e mito e Michel Foucault (1991)FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1991. a desconstrói com a sua obra “História da loucura na idade clássica”.

Apesar dessa conjuntura de críticas e questionamentos, o modelo de hospital psiquiátrico seguiu predominante, o que levou à proposta da Psiquiatria Democrática Italiana, capitaneada por Franco Basaglia que intensifica e realiza o processo crítico sobre a natureza da instituição psiquiátrica e a inviabilidade de uma mera reorganização técnica, humanizadora, administrativa ou política (Amarante, 1995AMARANTE, Paulo (org.). Loucos pela vida. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995.; Basaglia, 1985BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Rio de Janeiro: GRAAL, 1985.). Realiza um empreendimento de demolição do aparato manicomial e propõe a extinção dos tratamentos violentos, a destruição de muros e constituição de novos espaços e formas de lidar com a loucura. Não buscava a suspensão dos cuidados, mas uma nova forma de entender, tratar e lidar com a loucura, substituindo os hospitais psiquiátricos por Centros de Saúde Mental, em áreas demarcadas em um determinado território, abrangendo uma população de 20 a 40 mil habitantes, e funcionamento de 24 horas por dia (Amarante, 1995AMARANTE, Paulo (org.). Loucos pela vida. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995.; Basaglia, 1985BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Rio de Janeiro: GRAAL, 1985.).

Esses questionamentos, propostas e debates conceituais vão ganhar força no Brasil dos anos 1970 em diante, em uma conjuntura com imenso teor contestatório e uma conjunção de forças políticas mobilizadas para combater um inimigo notório e brutal: a Ditadura Civil-Militar imposta pelo Golpe de 1964. Constitui-se a luta antimanicomial, portanto, num momento ímpar da história das lutas populares no país e da organização de instituições públicas sob a forma de processos mais democráticos (Paulin e Turato, 2004PAULIN, Luiz F.; TURATO, Egberto R. Antecedentes da reforma psiquiátrica no brasil: as contradições dos anos 1970. Rio de Janeiro: História, Ciências, Saúde: Manguinhos, v. 11, n. 2, maio/ago. 2004. DOI: 10.1590/S0104-59702004000200002.
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).

Essa efervescência política e social fortaleceu-se com eventos tais como a vitória do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) nas eleições de 1974, partido que congregava toda a oposição oficial à Ditadura e os protestos contra o assassinato do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho nas dependências do órgão de repressão política (DOI-CODI). Além desses, eclodiram as greves de trabalhadores, principalmente no chamado ABC paulista, a luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, a reconstrução da União Nacional dos Estudantes, para citar alguns episódios que eclodiram no país e desmascararam toda a violência do regime (Paulin e Turato, 2004PAULIN, Luiz F.; TURATO, Egberto R. Antecedentes da reforma psiquiátrica no brasil: as contradições dos anos 1970. Rio de Janeiro: História, Ciências, Saúde: Manguinhos, v. 11, n. 2, maio/ago. 2004. DOI: 10.1590/S0104-59702004000200002.
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).

Nesse mesmo período, uma nova concepção de saúde emergia, com o surgimento dos movimentos da Reforma Sanitária, de Renovação Médica (REME), a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), em 1976, os ecos da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde promovida pela Organização Mundial de Saúde em Alma-Ata, no Cazaquistão, em 1978. Uma atenção maior foi dada à complexidade do fenômeno saúde-doença, à sua multideterminação biopsicossocial e às discussões sobre as equipes multidisciplinares em saúde (Paulin e Turato, 2004PAULIN, Luiz F.; TURATO, Egberto R. Antecedentes da reforma psiquiátrica no brasil: as contradições dos anos 1970. Rio de Janeiro: História, Ciências, Saúde: Manguinhos, v. 11, n. 2, maio/ago. 2004. DOI: 10.1590/S0104-59702004000200002.
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). Por sua vez, nas periferias das grandes cidades, são criados os Conselhos Populares de Saúde, que reivindicam a presença e o cumprimento da função do Estado e culminam com a realização da VIII Conferência Nacional de Saúde em 1986 em que se aprova o Sistema Único de Saúde (SUS) (Chioro e Scaff, 2006CHIORO, Arthur; SCAFF, Alfredo J. M. Saúde e cidadania: a implantação do Sistema Único de Saúde. Disponível em: http://www.consaúde.com.br/dowloads/saúde.doc. Acesso em: 3 maio 2006.
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). Nessa conjuntura, surge o Movimento de Reforma Psiquiátrica, bem como o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), originado do que se denominou de ‘Crise da DINSAM – Divisão Nacional de Saúde Mental’, cuja greve, em 1978, causou a demissão de cerca de 260 estagiários e profissionais. Denunciava-se tanto os maus tratos na Colônia Juliano Moreira, no Hospital Pinel e Pedro II como a privatização acelerada dos leitos, configurando-se em uma verdadeira ‘Indústria da Loucura’ (Amarante, 1995AMARANTE, Paulo (org.). Loucos pela vida. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995.).

Vários eventos, congressos e simpósios na área de saúde mental, além de filmes e programas na televisão aberta, também denunciavam e debatiam as questões da violação dos direitos humanos nos hospitais psiquiátricos. O III Congresso Mineiro de Psiquiatria em Belo Horizonte, Minas Gerais (1979), contou com a participação de Robert Castel e do psiquiatra Franco Basaglia, representante do Movimento de Psiquiatria Democrática e autor, na Itália, da lei n. 180, que extinguia o hospital psiquiátrico e propunha formas substitutivas de atenção aos portadores de transtornos mentais. O filme do cineasta brasileiro Helvécio Ratton, “Em nome da Razão”, sobre o Hospital-Colônia de Barbacena, Minas Gerais, possibilitou que ele fosse comparado a um verdadeiro ‘campo de concentração’ e, dada a sua repercussão, foi objeto de um programa de televisão chamado Globo Repórter, em um dos maiores canais brasileiros com sinal aberto, que encampava a denúncia sobre a ‘Indústria da Loucura’ (Gradella Júnior, 2012GRADELLA JUNIOR, Osvaldo. O nascimento do capitalismo e a internação dos excluídos. IHU On-line: Revista do Instituto Humanitas Unisinos, Rio Grande do Sul, n. 391, Ano 12, p. 16-20, 2012.).

Depoimentos de trabalhadores também contribuíram para denunciar a violência dessas instituições. O desrespeito total aos direitos humanos era a tônica dessas instituições, tal como relatado por um ex-funcionário do Hospital Psiquiátrico do Juqueri:

uma vez só, teve uma paciente que tava totalmente transtornada, então ela ficava dia e noite gritando, gritando e cantando, e ela cantava até música religiosa, o tempo todo (pausa) até chamaram como ela tinha problema clínico, ela não podia ir para a Psiquiatria. Então chamaram uma pessoa pra fazer eletrochoque. Fizeram eletrochoque, nesse dia fiquei besta (pausa); fizeram eletrochoque nela que saía sangue assim da boca dela, os dentes dela moeu (sic), era violento, e fizeram uma duas ou três vezes no mesmo dia e disse que era pra acalmar espírito dela, foi mais ou menos três ou quatro no dia. (Sakaguchi e Marcolan, 2016SAKAGUCHI, Douglas S.; MARCOLAN, João F. A história desvelada no Juquery: assistência psiquiátrica intra-muros na ditadura cívico-militar. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 29, n. 4, p. 476-481, 2016. DOI: 10.1590/1982-0194201600065.
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, p.478)

Os questionamentos da violência perpetrada pela Psiquiatria criticada por Laing, Cooper e Esterson é reafirmada nesse relato do ex-funcionário do Hospital Psiquiátrico do Juqueri: “a tortura era lá embaixo, na Psiquiatria. Na Psiquiatria tinha tortura, era a coisa mais fácil (pausa) era normal falar lá teve isso, teve aquilo.” (Sakaguchi e Marcolan, 2016SAKAGUCHI, Douglas S.; MARCOLAN, João F. A história desvelada no Juquery: assistência psiquiátrica intra-muros na ditadura cívico-militar. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 29, n. 4, p. 476-481, 2016. DOI: 10.1590/1982-0194201600065.
https://doi.org/10.1590/1982-01942016000...
, p. 479). Mesmo que não tenham sido os funcionários de outras áreas os agentes diretos da violência, elas eram conhecidas, permitidas e indicadas pela instituição: “era ordem dos diretores - desce a porrada primeiro.” (Sakaguchi e Marcolan, 2016SAKAGUCHI, Douglas S.; MARCOLAN, João F. A história desvelada no Juquery: assistência psiquiátrica intra-muros na ditadura cívico-militar. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 29, n. 4, p. 476-481, 2016. DOI: 10.1590/1982-0194201600065.
https://doi.org/10.1590/1982-01942016000...
, p. 479).

Daniela Arbex, em entrevista para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, relata que o hospital psiquiátrico de Barbacena, fundado em 1903, funcionou até 1980 com média de cinco mortes por dia, chegando a 16 mortes diárias em períodos de maior lotação. Estima-se que houve, aproximadamente, 60 mil pessoas mortas no período relatado. Seu depoimento aponta, também, que os arquivos do Museu da Loucura tinham um livro com registro de vendas de corpos e partes de corpos para faculdades de medicina (Arbex, 2013ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.; 2015ARBEX, Daniela. Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. Ditadura e Saúde Mental. Tomo I, Parte II, 2015. Disponível em: http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-ii-cap8.html. Acesso em: 22 jan. 2020.
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).

O espaço dos hospitais psiquiátricos nesse período, e também na Ditadura Vargas (1937-1945), servia como guarida para o exercício de violências contra aqueles que se insurgiam contra o governo. Sakaguchi e Marcolan (2016SAKAGUCHI, Douglas S.; MARCOLAN, João F. A história desvelada no Juquery: assistência psiquiátrica intra-muros na ditadura cívico-militar. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 29, n. 4, p. 476-481, 2016. DOI: 10.1590/1982-0194201600065.
https://doi.org/10.1590/1982-01942016000...
, p. 480), em seu artigo, relatam que os entrevistados tiveram contato com essa prática. Embora dissimulada, “era facilmente percebida, pois os encarcerados no hospício vinham sem identificação, eram trazidos pela polícia, vinham do Manicômio Judiciário para algum tratamento clínico. Relataram os maus-tratos recebidos e as marcas deixadas”.

Nessa mesma obra, o relato de um ex-funcionário do Hospital Psiquiátrico do Juqueri nos mostra essa dimensão:

E4: vinha sem nome, polícia trazia, de repente no dia seguinte tava morto (…) hemorragia interna, era o diagnóstico que os médicos davam de causa morte, é. Não existia investigação, morreu, acabou. Já vi entrar corpos com marca lá, já vi (pausa) muitos não tinham marca, muitos vinham tudo machucado, traumatizado, com batida no supercílio, cabeça (pausa) machucado (…) A gente imaginava que era preso político, porque não tinha (pausa) porque a polícia trazia, não saía vivo, não existia vivo. (…) uma coisa que me chamou atenção foi que quando eles eram internados, eles não tinham identificação, não tinha nome, eles tinham um número, ignorado número tal. Sempre era assim, então toda vez que vinha um ignorado número tal, eu falava ‘esse aí deve ser preso político’, pensava, eu não falava, pensava (pausa) porque a gente não podia nem falar. (Sakaguchi e Marcolan, 2016SAKAGUCHI, Douglas S.; MARCOLAN, João F. A história desvelada no Juquery: assistência psiquiátrica intra-muros na ditadura cívico-militar. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 29, n. 4, p. 476-481, 2016. DOI: 10.1590/1982-0194201600065.
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, p. 480)

Outro ex-funcionário relata que:

já peguei preso político, dá até medo de contar. Ah, o cara passava fome lá dentro, ele tinha banho uma vez por dia, às vezes não tomava banho (pausa silenciosa) negava pasta de dente para ele escovar os dentes. Ficava separado, num lugar que tinha os mais perigosos. Eu não vou nem contar se ele saía vivo, saía tudo (pausa) daqui; eu não vou mais contar (voz acelerada) os caras estuprava, barbarizava, (sic) o cara saía de lá com medo, o cara não saía a mesma pessoa, entrava ‘dum’ jeito e saía de outro (voz acelerada) e faziam de propósito com os presos políticos. Tinha bastante preso político (…). Eles apanhavam muito ou morria aí ou ficava aí. (Sakaguchi e Marcolan, 2016SAKAGUCHI, Douglas S.; MARCOLAN, João F. A história desvelada no Juquery: assistência psiquiátrica intra-muros na ditadura cívico-militar. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 29, n. 4, p. 476-481, 2016. DOI: 10.1590/1982-0194201600065.
https://doi.org/10.1590/1982-01942016000...
, p.480)

Esses relatos corroboram que: “Como braço do Estado, o hospício e manicômio passaram a internar pessoas que ameaçavam a ordem instaurada, alçados a aparelhos repressores para auxílio da ditadura.” (Sakaguchi e Marcolan, 2016SAKAGUCHI, Douglas S.; MARCOLAN, João F. A história desvelada no Juquery: assistência psiquiátrica intra-muros na ditadura cívico-militar. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 29, n. 4, p. 476-481, 2016. DOI: 10.1590/1982-0194201600065.
https://doi.org/10.1590/1982-01942016000...
, p.480). Não eram somente perseguidos políticos os submetidos a essas violências. Esses eventos expõem a situação calamitosa dos hospitais psiquiátricos que já se denunciava na Europa pós Segunda Guerra Mundial, ou seja, que eles eram uma verdadeira câmara de horrores, nos quais, além de não se realizarem práticas curativas e reabilitadoras dos sujeitos acometidos por transtornos mentais, eram mantidos encarcerados todos aqueles que destoavam do pensamento conservador da elite: os homossexuais, os imigrantes, as mulheres, os militantes políticos.

Nos hospitais psiquiátricos brasileiros, esses mesmos grupos foram vítimas de violências, abusos e violações de direitos, principalmente após o golpe militar de 1964. Assim, configura-se um quadro de violências contra os seres humanos que reproduzem o que ocorreu na Shoah1 1 A palavra hebraica Shoah significa desastre ou desabamento e tem aparecido em vários textos juntamente com a palavra de origem grega ‘Catástrofe’ no lugar de ‘Holocausto’ para referir o evento traumático de Auschwitz. Com isso, espera-se manter a tensão entre a possibilidade de representar o traumático e sua qualidade indizível, que escapa à possibilidade de representação. Para uma discussão aprofundada dessa questão, que tem amplas repercussões para a educação, ver o livro “Catástrofe e Representação” (Nestrovski e Seligmann-Silva, 2000). na Alemanha, na II Guerra Mundial. Torturas, atitudes violentas dos funcionários, excesso de medicação, mortes provocadas, cemitérios clandestinos eram ações que faziam parte do cotidiano dessas instituições, tal como relatado por Austregésilo Carrano Bueno (Vasconcelos et al., 2006VASCONCELOS, Eduardo M. et al. (org.) Reinventando a vida: narrativas de recuperação e convivência com o transtorno mental. Rio de Janeiro: EncantArte; São Paulo: Hucitec, 2006., p. 29).

Em 1998 nós denunciamos através de um movimento do campo da saúde mental e através de um deputado estadual de um estado do país, trinta mil covas clandestinas dentro de um hospital psiquiátrico, covas que tinham esqueletos de crianças, de mulheres e de adultos, sendo quatro a cinco esqueletos por cova. Denunciamos também o famoso ‘chá da meia-noite’ que era dado dentro dessas instituições nos anos 70 e 80 até o começo da década de 90, que correspondia a um chazinho com veneno para aquele paciente abandonado pela família.

Esse e outros relatos de violência sofridos por usuários nos hospitais psiquiátricos e os processos de recuperação dos entrevistados compõem o livro Reinventando a Vida (Vasconcelos et al., 2006VASCONCELOS, Eduardo M. et al. (org.) Reinventando a vida: narrativas de recuperação e convivência com o transtorno mental. Rio de Janeiro: EncantArte; São Paulo: Hucitec, 2006.).

A relação entre a lógica manicomial e a violência coloca a luta antimanicomial como umas das principais bandeiras na defesa dos direitos humanos, em sintonia com todos os outros movimentos que levantavam a bandeira da democracia e do respeito aos direitos humanos contra a ditadura militar. Além disso, destaca que a questão manicomial é um dos temas mais caros a uma educação para que Auschwitz não se repita (Adorno, 2002ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.).

Essa radicalidade, ou seja, a proposta de uma sociedade sem manicômios, é um dos elementos principais para a realização do II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, na cidade de Bauru, Estado de São Paulo, em 1987, e se expressa na Carta de Bauru que, dada sua importância histórica, é citada integralmente a seguir. A ideia a ser analisada é que esse documento constitui um exemplo de articulação entre os movimentos sociais de defesa dos direitos humanos e a crítica às políticas manicomiais:

Um desafio radicalmente novo se coloca agora para o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental. Ao ocuparmos as ruas de Bauru, na primeira manifestação pública organizada no Brasil pela extinção dos manicômios, os 350 trabalhadores de saúde mental presentes ao II Congresso Nacional dão um passo adiante na história do Movimento, marcando um novo momento na luta contra a exclusão e discriminação. Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agentes da exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeita os mínimos direitos da pessoa humana, inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não basta racionalizar e modernizar os serviços nos quais trabalhamos. O estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora organizada. O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão deste tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de menores, nos cárceres, a discriminação contra os negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida. Organizado em vários Estados, o Movimento caminha agora para uma articulação nacional. Tal articulação buscará dar conta da organização dos trabalhadores em saúde mental, aliados efetiva e sistematicamente ao movimento popular e sindical.

CONTRA A MERCANTILIZAÇÃO DA DOENÇA

Contra uma reforma sanitária privatizante e autoritária;

Por uma reforma sanitária democrática e popular;

Pela reforma agrária e urbana;

Pela organização livre e independente dos trabalhadores;

Pelo direito à sindicalização dos serviços públicos;

Pelo dia Nacional de Luta Antimanicomial em 1988;

POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS!

II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental.

(Conselho Federal de Psicologia, 2017CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Carta de Bauru. 14 dez. 2017. Disponível em: https://site.cfp.org.br/tag/carta-de-bauru/. Acesso em: 25 nov. 2019.
https://site.cfp.org.br/tag/carta-de-bau...
)

Essa carta traduz uma posição firme e articulada com a crítica social e um questionamento ao modelo restrito de atenção psiquiátrica, apontando as determinações da violência social que se reproduzem nos hospitais psiquiátricos. Também aponta a constante violação dos direitos humanos da população internada, recusando o papel de reprodução da violência pelo Estado realizado durante a Ditadura Civil-Militar. Propõe a aproximação dos usuários e familiares com essa luta e um certo distanciamento do Estado. As principais deliberações foram: a adoção da bandeira de luta ‘Por uma sociedade sem manicômios’; a definição do dia 18 de maio como Dia Nacional da Luta Antimanicomial; a fundação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, formado por familiares e usuários dos serviços de saúde mental, trabalhadores, entidades formadoras, sindicatos, associações de moradores, conselhos profissionais da área de saúde, parlamentares, artistas e todos aqueles que encampassem a luta (Gradella Júnior, 2012GRADELLA JUNIOR, Osvaldo. O nascimento do capitalismo e a internação dos excluídos. IHU On-line: Revista do Instituto Humanitas Unisinos, Rio Grande do Sul, n. 391, Ano 12, p. 16-20, 2012.).

Naquele momento, o movimento tinha como objetivo o fim dos hospitais psiquiátricos pelo gasto inútil de verbas públicas e pela forma de atenção ultrapassada, sem resolutividade, excludente e violenta. Sua proposta era a criação de serviços substitutivos em saúde mental, tais como: Centro de Apoio Psicossocial (CAPS), Núcleo de Apoio Psicossocial (NAPS), Hospital-dia, Ambulatórios, Unidades Básicas de Saúde com Equipes Mínimas (1 psiquiatra, 1 psicólogo, 1 assistente social), Emergência Psiquiátrica, Leitos Psiquiátricos em Hospital Geral, Enfermaria Psiquiátrica em Hospital Geral, Centro de Convivência, bem como outras formas de atenção com conteúdo não manicomial (Gradella Júnior, 2012GRADELLA JUNIOR, Osvaldo. O nascimento do capitalismo e a internação dos excluídos. IHU On-line: Revista do Instituto Humanitas Unisinos, Rio Grande do Sul, n. 391, Ano 12, p. 16-20, 2012.).

Em 2014, apesar dos avanços, ainda existiam cerca de 25.988 leitos psiquiátricos SUS em 167 hospitais psiquiátricos no Brasil (Brasil, 2015BRASIL. Ministério da Saúde. Estratégias de Desinstitucionalização: Leitos em Hospitais Psiquiátricos por UF. Saúde Mental em Dados – 12, ano 10, nº 12. Informativo eletrônico. Brasília: 2015. Disponível em: https://www.mhinnovation.net/sites/default/files/downloads/innovation/reports/Reports_12-edicao-do-Saude-Mental-em-Dados.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
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). Em Sorocaba, concentravam-se boa parte desses leitos e abusos eram denunciados constantemente pelos militantes, mesmo sofrendo ameaças (Conselho Regional de Psicologia, 2013CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA (São Paulo). Acordo prevê o fechamento de hospitais psiquiátricos da região de Sorocaba (SP). 16 jan. 2013. Disponível em: https://www.crpsp.org/noticia/view/1536/acordo-preve-o-fechamento-de-hospitais-psiquiatricos-da-regiao-de-sorocaba-sp. Acesso em: 1 nov. 2019.
https://www.crpsp.org/noticia/view/1536/...
). Na mesma época, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em suas diversas modalidades, eram 2209 no país (Brasil, 2015BRASIL. Ministério da Saúde. Estratégias de Desinstitucionalização: Leitos em Hospitais Psiquiátricos por UF. Saúde Mental em Dados – 12, ano 10, nº 12. Informativo eletrônico. Brasília: 2015. Disponível em: https://www.mhinnovation.net/sites/default/files/downloads/innovation/reports/Reports_12-edicao-do-Saude-Mental-em-Dados.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
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). Na disputa política entre os dois modelos de atenção à saúde mental, cabe destacar dois aspectos: primeiramente, a relação estreita que existe entre o modelo preconizado pela luta antimanicomial e o respeito aos direitos humanos. Este modelo é compreendido em sua dimensão ético-política e histórica como resultado de lutas dos movimentos sociais que se consolidam sob a forma de declarações, códigos, pactos e leis. Em segundo lugar, tem-se que a legitimidade e a visibilidade sociais desse modelo enfrenta dificuldades, ao menos parcialmente, porque não vigora entre nós uma educação em direitos humanos disseminada, tampouco uma cultura de respeito aos direitos humanos.

Educar contra a Barbárie Manicomial

Como aponta Gallardo (2014)GALLARDO, Helio. Teoria crítica: matriz e possibilidade de direitos humanos. São Paulo: Ed. Unesp, 2014., os direitos humanos precisam ser compreendidos sob a perspectiva do campo político, o qual é visto como lugar de conflitos. Nesse sentido, tais direitos precisam ser despidos de pretensões metafísicas e considerados tanto como produtos de lutas históricas dos movimentos sociais quanto dos resultados ambíguos nessas lutas. Assim, “Direitos humanos possuem seu ‘fundamento’, ou seja, sua matriz, na conflituosidade social inaugurada e desdobrada pelas formações sociais modernas” (Gallardo, 2014GALLARDO, Helio. Teoria crítica: matriz e possibilidade de direitos humanos. São Paulo: Ed. Unesp, 2014., p. 21). Além disso, há uma brutal ignorância sobre o conteúdo e os problemas relacionados aos direitos humanos na formação dos profissionais ligados à saúde. Carvalho (2018)CARVALHO, Lauriston A. Educação em Direitos Humanos: uma revisão de literatura. Revista Eletrônica de Educação, São Carlos, v. 12, n. 1, 2018, p. 30-45., investigando a literatura sobre a educação em direitos humanos em cursos superiores, constatou que o tema saúde mental não consta entre a maior parte dos artigos analisados.

Essa perspectiva crítica sobre as origens, os fundamentos e as práticas sociais de educação e defesa dos direitos humanos é essencial. Sem o reconhecimento de que a sociedade é mediada por conflitos e de que estes, muitas vezes, são modulados por formas consideradas legítimas de violência, nos tornamos ingênuos a respeito das possibilidades do uso dos direitos humanos para garantir o respeito à vida, à liberdade e à igualdade entre os diversos. Essa concepção crítica também reflete a necessidade de uma educação em direitos humanos que não se restrinja à exposição histórica ou positivada de leis e tratados sobre direitos; torna-se essencial expor os conflitos sociais que deram origem às reivindicações (sob a forma de luta por reconhecimento e direitos) e movimentos sociais, destacar que os eventuais ganhos, muitas vezes, são anulados por novas tecnologias sociais ou são deslegitimados por ideologias que procuram justificar formas insidiosas de dominação e violência.

No Brasil, embora exista, desde 2003, um Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (Zenaide, 2007ZENAIDE, Maria N. T. Introdução. In: SILVEIRA, Rosa M. G. et al. (org.). Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Ed. Universitária. 2007. p. 15-25.), a realidade é que há um abismo entre as pretensões e as realizações nesse campo. Apesar disso, propostas de educação em direitos humanos nas universidades na América Latina são essenciais para a construção de uma cultura de respeito tais direitos e esta, por sua vez, é uma tentativa de garantir que abusos como os praticados historicamente contra pessoas com transtornos mentais não se repitam. Apesar da existência de planos e iniciativas importantes, Koehler (2018)KOEHLER, Sonia M. F. Direitos humanos e justiça: a perspectiva de graduandos em cursos de licenciatura e bacharelado. Impulso, São Paulo, v. 28, n. 72, p. 113-127, maio/ago. 2018., em investigação sobre as percepções e a sensibilidade de estudantes de cursos superiores sobre os direitos humanos, constatou que o conhecimento sobre esse campo entre os estudantes é pobre, e que embora o tema seja tratado mais sistematicamente em cursos da área das ciências humanas e do direito, uma compreensão ampliada dos impasses relacionados aos direitos humanos não se faz presente.

Tendo em vista a ausência de práticas sistemáticas disseminadas, concordamos com Candau (2007CANDAU, Vera M. Educação em direitos humanos: desafios atuais. In: SILVEIRA, Rosa M. G. et al. (org). Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Ed. Universitária. 2007. p. 399-412.) que a educação em direitos humanos se organiza a partir de três elementos. O primeiro refere-se à formação de sujeitos de direitos e o segundo é o empoderamento dos atores sociais que sofrem historicamente violações de seus direitos. O terceiro elemento diz respeito à manutenção da memória das catástrofes históricas que fundamentam uma postura de ‘nunca mais’ em relação a ações de genocídio, tortura, escravização etc. O primeiro visa a desenvolver nos estudantes uma consciência de que direitos não são dádivas, mas conquistas; o segundo visa a mobilizar a potência política das pessoas que são vítimas de violações e abusos de poder; o terceiro visa a produzir processos de transformação pela exigência de justiça em relação aos crimes cometidos contra a humanidade na história e pela recusa em reproduzir formas sociais de dominação que são naturalizadas pela ideologia. Ademais, uma educação em direitos humanos precisa também compatibilizar forma e conteúdo, ou seja, a defesa dos que sofrem violações não é compatível com posturas autoritárias ou de suposta neutralidade política ao ensinar.

Uma formação dos agentes da saúde mental mediada pelos preceitos da educação em direitos humanos em um viés crítico, portanto, parte do pressuposto de que o trabalho engaja os profissionais em questões políticas, em conflitos que se expressam nas disputas entre diferentes modelos de atenção, nas mediações técnicas e nos diferentes protocolos de atenção psicossocial. Mas não são somente os profissionais diretamente envolvidos os interessados nessa questão; os usuários e familiares são também parte essencial da equação. Nesse sentido, também eles devem poder se perceber como agentes das políticas públicas da saúde mental, compreender a história de abusos e violências que existe nesse campo e as razões pelas quais o modelo preconizado pelo movimento da luta antimanicomial entrelaça atenção especializada e respeito aos direitos humanos. Essa tarefa é da educação pública que, tal como aponta Adorno (2002)ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002., deve ser uma educação política para a produção de uma consciência aguda sobre as contradições da sociedade capitalista, chamando a atenção para os conflitos de interesses que são camuflados ora por justificativas pseudocientíficas ora por fraudes informacionais.

O modelo de atenção psicossocial, por exemplo, deve ser considerado um direito conquistado a duras penas e não se deve esquecer os custos em vidas e sofrimento produzidos pelo modelo manicomial. Como exemplo, pode-se citar o Programa “De Volta Para Casa” do Ministério da Saúde, que visa à reintegração social de egressos de longas internações, segundo critérios definidos na lei n. 10.708, de 31 de julho de 2003, com pagamento do auxílio-reabilitação psicossocial no valor de R$ 412,00, que já contemplou cerca de 4.000 pessoas, e as Residências Terapêuticas, que são 686 unidades atualmente (Brasil, 2020).

Os constantes ataques à Política de Saúde Mental por grupos defensores do retorno dos hospitais psiquiátricos e da inclusão das comunidades terapêuticas no tratamento aos usuários de drogas culminaram, em dezembro de 2017, na publicação da Portaria n. 3.588/17 (Brasil, 2017BRASIL. Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017. Dispõe sobre a Rede de Atenção Psicossocial, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 22 dez. 2017. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/173164120/dou-secao-1-22-12-2017-pg-236. 2020b. Acesso em: 3 out. 2020.
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) que introduz o hospital psiquiátrico e as Comunidades Terapêuticas como ponto de atenção nas Redes de Apoio Psicossocial (RAPS). Aprofundando essa tendência a retomar modelos manicomiais, no início de 2019, a Nota Técnica n. 11/20192 2 Nota que foi posteriormente retirada do site do Ministério da Saúde, conforme informação da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD). Disponível em: http://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf. Acesso em: 22 jan. 2020. (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Nota Técnica n. 11/2019: CGMAD/DAPES/SAS/MS. Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Disponível em: http://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf Acesso em: 21 jul. 2020.
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) consolida uma ação de desmonte dos modelos substitutivos de saúde mental afirmando, contraditoriamente, que os diferentes modelos não se anulam um ao outro. Propõe o acréscimo, nas RAPS, dos seguintes serviços: Unidade de Acolhimento (adulto e infanto-juvenil), Hospital Psiquiátrico, Hospital-Dia, Comunidades Terapêuticas, Ambulatório Multiprofissional de Saúde Mental e CAPS (IV AD) para funcionar 24 horas nas regiões de ‘cracolândias’. Embora os modelos substitutivos, em tese, continuem existindo, retoma-se a antiga modalidade asilar com o hospital psiquiátrico e se procura consolidar uma nova modalidade: as comunidades terapêuticas. Afirmamos que se trata de desmonte porque liberar práticas manicomiais deslegitima os modelos substitutivos e compromete seu financiamento público, fundamental para um atendimento digno da população mais pobre. Houve muitos avanços e ao menos uma parcela da população acometida por transtornos mentais de qualquer ordem possui um atendimento de portas abertas, territorializado e garantidor de uma atenção psicossocial que respeita os direitos humanos. Garantir a permanência e o aperfeiçoamento desse modelo implica que a formação dos agentes de saúde não pode negligenciar a memória das inúmeras barbáries cometidas em nome do tratamento da loucura, nem o entrelaçamento histórico entre os modelos repressivos aplicados a ela e aqueles indicados aos criminosos, subversivos e vagabundos, tais como privação da liberdade, torturas e diversas formas de violência. É importante reconhecer que a prática de restrição de liberdade e de direitos de pessoas com diagnósticos de transtornos mentais não foi aplicada igualmente a todos. A velha distinção entre ‘cidadãos de bem’ e a ‘ralé’ inúmeras vezes operou como fiel da balança para determinar a aplicação da violência manicomial.

É preciso também uma atenção cuidadosa aos estereótipos e preconceitos presentes nos mais variados meios de comunicação sobre as doenças mentais. A leitura moralizante da loucura, presente desde Pinel, retroage sobre a sociedade como uma força afirmativa da identidade entre a razão instrumental e a sanidade, a ordem e a produtividade, e uma educação crítica deve explicitar essas relações. Foucault (1984FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: 1984., p. 91) já apontava que: “mesmo silenciada e excluída, a loucura tem valor de linguagem e seus conteúdos adquirem sentido a partir daquilo que a denuncia e repele como loucura”. A exclusão de determinadas formas de conduta e pensamento identificadas como ‘loucas’ tem como contrapartida a afirmação não problematizada da lógica identitária e da razão instrumental. Essa exclusão pressupõe também um apagamento da memória, na sociedade e no indivíduo. Acompanhando Foucault entendemos que o ‘regressivo’ na neurose descrita pela psicanálise é a contraparte no ‘mundo privado’ da separação histórica entre a infância e a idade adulta, ou seja, o adulto não pode mais se reconhecer naquelas ideias, percepções e sentimentos que um dia lhe foram íntimos. Vale a pena acompanhar o seu argumento:

Toda a evolução da pedagogia contemporânea, com o irrepreensível objetivo de preservar a criança dos conflitos adultos, acentua a distância que separa, para um homem, sua vida de criança de sua vida de homem feito. Isto significa que, para poupar à criança conflitos, ela a expõe a um conflito maior, à contradição entre sua infância e sua vida real. Se se acrescenta que nas suas instituições pedagógicas, uma cultura não projeta diretamente a sua realidade, com seus conflitos e suas contradições, mas que a reflete indiretamente através dos mitos que a perdoam, justificam-na e idealizam-na numa coerência quimérica; se se acrescenta que numa pedagogia uma sociedade sonha com sua idade de ouro (…) compreende-se que as fixações ou regressões patológicas só são possíveis numa certa cultura; que se multiplicam na medida em que as formas sociais não permitem liquidar o passado, e assimilá-lo ao conteúdo atual da experiência. (Foucault, 1984FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: 1984., p. 91-92)

Uma das tarefas da educação em direitos humanos na formação dos agentes de saúde, portanto, é lidar com o paradoxo entre as lógicas da formação técnica e do respeito aos direitos. Por um lado, os agentes de saúde devem se formar tecnicamente, isto é, receberem conteúdos e disciplinas voltados para a modalidade de razão instrumental que os torna aptos a se inserirem em rotinas e protocolos das instituições de saúde. Por outro lado, é fundamental dar voz ao sofrimento daqueles que foram mortos, aos aviltados pela violência de uma sociedade que suprime a memória da catástrofe de seu cotidiano e de suas instituições formativas. Fazer ouvir a voz dos vencidos, por si mesma, tampouco é uma atitude salvadora, pois é preciso dar conta do presente e, neste, o que ela traz é tanto a denúncia de uma injustiça como o apelo a que uma vida justa se faça agora. Em outras palavras, é preciso tomar os testemunhos históricos em diálogo com o presente, compreendendo que aquilo que houve, infelizmente, ainda ocorre em formas, eventualmente, transformadas.

Nesse sentido, tampouco os direitos humanos devem ser tratados como uma realidade dada; mais útil é entendê-los em sua ambiguidade, tanto expressando conquistas históricas em uma sociedade em conflito como contendo anelos ainda não realizados, mas que sustentam ideais de justiça e reconhecimento importantes para determinadas lutas políticas. É útil também assumir que esses ideais são múltiplos e contraditórios nos próprios direitos humanos. Recuperar na formação as diferentes concepções de direitos e de humanos próprias às diferentes gerações, com destaque para aquela que representa os movimentos sociais associados à luta antimanicomial, ou seja, a chamada terceira geração de direitos humanos, é importante porque esclarece os agentes de saúde mental em formação sobre a dimensão política de sua ação profissional.

A terceira geração de direitos humanos não somente incorpora a noção, própria à segunda geração, de que os homens não são seres abstratos, mas inseridos social e historicamente, como exige um olhar atento para as expressões sociais concretas de dominação e exclusão que culminam em práticas de desumanização. Seja por meio de estereótipos seja, eventualmente, pela própria linguagem científica, se impõem aos grupos que têm sua humanidade depreciada mecanismos de exclusão e violências várias, diretas ou sutis, encampando diferentes formas de não reconhecimento neles do ‘humano’.

Nesse sentido, torna-se crucial durante a formação a existência de disciplinas ou temas curriculares transversais que permitam olhar para as experiências de sofrimento desses grupos e pessoas como fenômenos mediados por uma concepção de ‘humanos’, mesmo no campo dos direitos, intrinsecamente excludente. A história da barbárie manicomial precisa ser analisada de forma a desfazer a noção rasa de que se trata de desvio, de acidente ou de negligência de determinados agentes. O desafio é identificar, nas formas da razão manicomial, mecanismos de exclusão e de cerceamento dos sentidos do ‘humano’ que produzem, por sua própria concepção, a violência.

É importante fazer notar como a concepção liberal de Direitos Humanos, a da primeira geração, em sua abstração brutal do lugar social dos homens concretos, permite que práticas discriminatórias sigam ocorrendo mesmo quando se oferecem aos cidadãos modalidades de tratamento e atenção consideradas legítimas dentro do campo científico. Daí a necessidade de defender experiências de saúde mental garantidas pelo Estado e críticas do modelo manicomial, que respeitam os direitos dos usuários a partir de uma perspectiva ampliada e dinâmica do que sejam os Direitos Humanos. O modelo liberal concebe as pessoas acometidas por transtornos mentais como consumidores e essa perspectiva deslegitima as políticas públicas voltadas para a saúde mental que emergiram das lutas antimanicomiais, enquanto atende somente a poucos que podem pagar e, simultaneamente, reforça a lógica e a prática da discriminação.

Adorno (2002)ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. apontou, de forma radical, que a não repetição de Auschwitz é a primeira exigência da educação. Parafraseando Adorno, podemos dizer que é uma exigência para todos os cursos que formam profissionais de saúde que os manicômios não sigam sendo instituições de morte e exclusão. Em alguma medida, resgatar memórias e discutir os direitos das pessoas que são identificadas com transtornos mentais nos parece fundamental para superar aquilo que ainda legitima processos de exclusão e violência ligados aos cuidados com essas pessoas.

Notas

  • 1
    A palavra hebraica Shoah significa desastre ou desabamento e tem aparecido em vários textos juntamente com a palavra de origem grega ‘Catástrofe’ no lugar de ‘Holocausto’ para referir o evento traumático de Auschwitz. Com isso, espera-se manter a tensão entre a possibilidade de representar o traumático e sua qualidade indizível, que escapa à possibilidade de representação. Para uma discussão aprofundada dessa questão, que tem amplas repercussões para a educação, ver o livro “Catástrofe e Representação” (Nestrovski e Seligmann-Silva, 2000NESTROVSKI, Artur; SELIGMANN-SILVA, Márcio. Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000.).
  • 2
    Nota que foi posteriormente retirada do site do Ministério da Saúde, conforme informação da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD). Disponível em: http://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf. Acesso em: 22 jan. 2020.
  • Financiamento
    Não houve financiamento.
  • Aspectos éticos
    Não se aplica.
  • Apresentação prévia
    Não se aplica.

Referências

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  • ADORNO, Theodor W. Problems of moral philosophy Stanford: Stanford University Press, 2001.
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    » http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-ii-cap8.html
  • ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro São Paulo: Geração Editorial, 2013.
  • BASAGLIA, Franco. A instituição negada Rio de Janeiro: GRAAL, 1985.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2020
  • Aceito
    08 Out 2020
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