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RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE: ANÁLISE DA IMPLANTAÇÃO DE DOIS PROGRAMAS PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, BRASIL

MULTIPROFESSIONAL RESIDENCY IN HEALTH: ANALYSIS OF THE IMPLEMENTATION OF TWO PROGRAMS BY THE UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, BRAZIL

RESIDENCIA MULTIPROFESIONAL EN SALUD: ANÁLISIS DE LA IMPLEMENTACIÓN DE DOS PROGRAMAS POR LA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, BRASIL

Resumo

As residências multiprofissionais em saúde atendem às necessidades do Sistema Único de Saúde e da Política de Educação Permanente, sendo instrumento de formação e inserção de profissionais nos serviços de saúde. Por ser uma nova intervenção, propôs-se uma análise para avaliar o grau de implantação do programa em dois pontos de atenção vinculados à Universidade Federal de Santa Catarina, com análises documentais e revisões bibliográficas, com elaboração dos modelos teórico, lógico e da matriz de análise e julgamento. A coleta de dados, realizada de maio a agosto de 2018, foi feita por meio de entrevistas com atores do programa. Os resultados da avaliação apresentaram aspectos favoráveis quanto à organização do projeto político pedagógico, estruturação dos órgãos de acompanhamento previstos na legislação e elaboração do processo seletivo. Como aspectos limitantes, citam-se a ausência de recursos financeiros para implantação das atividades dos residentes, baixa inserção dos tutores e preceptores no processo de aprendizagem, poucas iniciativas de capacitações para os atores, bem como ausência de avaliação pela Comissão Nacional de Residências Multiprofissionais em Saúde.

Palavras-chave
residências multiprofissionais; implantação; avaliação; saúde

Abstract

The multiprofessional residencies in health meet the needs of the Brazilian Unified Health System and of the Ongoing Education Policy, and are a tool for the training and insertion of professionals in the health services. Due to the fact that it is a new intervention, we proposed an analysis to assess the degree of implementation of the program in two health care services connected to the Universidade Federal de Santa Catarina, with a documentary analysis and bibliographic reviews, with the development of the logical and theoretical models, and of the analysis and assessment matrix. The data collection, which took place between May and August 2018, was made through interviews with 16 actors from the program. The results of the assessment show favorable aspects regarding the organization of the political pedagogical process, the structuring of the follow-up agencies provided in the legislation, and the development of the selection process. As limiting aspects, we can mention the absence of financial resources to implement the activities of the residency students, low insertion of the tutors and preceptors in the learning process, few training initiatives for the actors, as well as absence of an evaluation by the National Committee of Multiprofessional Residencies in Health.

Keywords
multiprofissional residencies; implementation; assessment; health

Resumen

Las residencias multiprofesionales en salud cumplen las necesidades del Sistema Único de Salud Brasileño y de la Política de Educación Permanente, siendo instrumento de formación e inserción de profesionales en los servicios de salud. Por ser una nueva intervención, se propuso un análisis para evaluar el grado de implementación del programa en dos puntos de atención vinculados a la Universidade Federal de Santa Catarina, con análisis de documentos y revisiones bibliográficas, con elaboración de los modelos teórico, lógico y de la matriz de análisis y evaluación. La obtención de datos, realizada de mayo a agosto de 2018, fue realizada por medio de entrevistas con 16 actores del programa. Los resultados de la evaluación presentaron aspectos favorables en cuanto a la organización del proyecto político pedagógico, estructuración de los órganos de seguimiento previstos en la legislación y elaboración del proceso selectivo. Como aspectos limitantes, se citan la ausencia de recursos financieros para implementación de las actividades de los residentes, baja inserción de los tutores y preceptores en el proceso de aprendizaje, pocas iniciativas de capacitaciones para los actores, así como ausencia de evaluación por la Comisión Nacional de Residencias Multiprofesionales en Salud.

Palabras clave
residencias multiprofesionales; implementación; evaluación; salud

Introdução

Com a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), fundamentado na Constituição Federal de 1988 e na Lei Orgânica da Saúde, de 1990, a saúde passa a ser direito de todos os cidadãos e sua promoção um dever do Estado, tendo princípios e diretrizes para seu funcionamento (Brasil, 1990aBRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. 1990b. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm>. Acesso em: 10 fev. 2018.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Lei...
, 1990bBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.). A partir do conceito ampliado de saúde, concebido pela Organização Mundial da Saúde como sendo uma interação entre o bem-estar físico, psicológico e social do sujeito, aliado aos determinantes sociais referenciados pelo SUS, os serviços de saúde buscam romper com o conceito de saúde como ‘ausência de doenças’ e caminham para a perspectiva de atendimento integral ao usuário, de forma multiprofissional.

Explicita-se a necessidade de ações que visem ao reordenamento de recursos humanos, mediante políticas nas esferas federais, estaduais e municipais, tendo como norteadora a Política de Educação Permanente em Saúde (2004 e 2006). Dentre os objetivos dessa legislação, cita-se propiciar a melhoria nas inovações nos processos e instrumentos de gestão e, como consequência, elevar a eficácia e a qualidade dos serviços no SUS (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.).

A Residência Multiprofissional em Saúde (RMS) é considerada um instrumento de formação profissional para o SUS e caracteriza-se por ser uma pós-graduação de modalidade lato sensu, tendo como proposta a formação em serviço. O programa é uma parceria entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, criado a partir da promulgação da lei n. 11.129, de 2005.

A atuação vinculada ao cotidiano laboral tem como objetivo a transformação do processo e da organização de trabalho e das práticas profissionais. Ou seja, configura-se como uma ação e um processo educativo, aplicado no âmbito do trabalho, de modo a possibilitar mudanças nas relações, nos processos e nas respostas às necessidades de saúde da população.

Diante de tais considerações, pressupõe-se que a atuação interdisciplinar e multiprofissional, em conjunto com a formação e o ordenamento dos recursos humanos da saúde, permeie o atendimento integral ao usuário em consonância com os princípios e diretrizes do SUS. A integração entre ensino e aprendizagem nos espaços de atuação profissional em saúde possibilita que as necessidades dos usuários sejam apreendidas, tornando-se a diretriz da qualificação dos profissionais. Com a interação entre os diferentes profissionais, a RMS permite a superação da fragmentação das áreas, resultando na atuação de equipes multiprofissionais (Closs, 2010CLOSS, Thaísa T.O serviço social nas residências multiprofissionais em saúde na atenção básica: formação para a integralidade? 2010. 228 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.).

Para verificar como está o desempenho da RMS, foi realizada uma análise de implantação, utilizando como estratégia a aplicação de um modelo avaliativo para determinar o grau de implantação, testado em dois componentes - atenção básica e hospitalar - vinculados à Universidade Federal de Santa Catarina.

Método

Realizou-se um estudo1 1 Artigo baseado na dissertação de mestrado de Lais Santos Silva intitulada “Residências multiprofissionais em saúde: uma proposta de avaliação”, apresentada ao programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina em 2018. de caso único pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com duas unidades de análise: Hospital Universitário e atenção primária em saúde, da Secretaria Municipal de Saúde, vinculados à RMS da UFSC. Para operacionalizar tal estudo, concebeu-se um modelo avaliativo para determinar o grau de implantação. Para a construção dos modelos, foram realizadas análises documentais e revisão bibliográfica, com base na elaboração de um artigo de revisão integrativa, referentes ao programa, além de entrevistas com os participantes, buscando compreender e identificar seus objetivos e atividades.

A fim de delimitar os locais de pesquisa, estabeleceram-se os seguintes critérios: a inserção da RMS ter ocorrido há pelo menos cinco anos; a prestação de serviços vinculados exclusivamente ao SUS; e a realização das atividades nos pontos de atenção hospitalar e de atenção básica vinculados a uma única instituição de ensino superior. Portanto, selecionou-se a UFSC na modalidade de residência multiprofissional em contexto hospitalar e de atenção básica, sendo ambos os programas localizados no município de Florianópolis, com as características apresentadas a seguir (Quadro 1).

As entrevistas foram realizadas no período de maio a agosto de 2018. Como critérios para participação, selecionaram-se profissionais da equipe multiprofissional em diferentes funções dentro do programa - preceptores, tutores, coordenadores, residentes e profissionais da Política de Educação Permanente em Saúde de Florianópolis e do estado de Santa Catarina.

Quadro 1
Características dos locais de pesquisa

Foram selecionados profissionais que compõem as categorias de coordenadores (dois), preceptores (quatro), tutores (quatro), inseridos em tais funções há mais de um ano, residentes (quatro) matriculados no segundo ano do programa, além de um profissional do setor de educação permanente do estado de Santa Catarina e um vinculado ao setor no município de Florianópolis. Ressalta-se que cada profissão teve representatividade no estudo, sendo escolhido ao menos um representante para entrevista, considerando-se os diferentes processos de trabalho que envolvem as categorias profissionais no programa.

Nos resultados obtidos, tais sujeitos foram apresentados como ‘Entrevistado 1’ até ‘Entrevistado 16’, a fim de garantir o sigilo das informações cedidas. Quatro deles se desvincularam de suas funções do programa em março de 2018; não obstante, considerando suas experiências, optou-se por entrevistá-los.

Houve a aplicação do roteiro de entrevista, com perguntas referentes ao perfil profissional dos entrevistados - idade, sexo, escolaridade e tempo de atividade laboral no local. Foram definidas as categorias de análise a priori na matriz avaliativa, as quais orientaram a análise de conteúdo das entrevistas coletadas.

As entrevistas foram realizadas pela pesquisadora e gravadas mediante consentimento do entrevistado em caráter sigiloso, com embasamento na resolução n. 510/2016. Ocorreram nos locais de trabalho dos entrevistados (Hospital Universitário e centros de saúde) e, no caso dos tutores, em suas salas na UFSC, durando em média quarenta minutos. Todos os entrevistados assinaram duas vias do termo de consentimento livre e esclarecido; uma via permaneceu com o entrevistado e outra com a pesquisadora.

O modelo lógico e a matriz de análise e julgamento foram validados em oficina de consenso na modalidade de comitê tradicional, contando com a participação de representantes do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde (uma preceptora, uma tutora e duas residentes) vinculadas ao Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago (HU/UFSC), da atenção básica do município de Florianópolis (duas residentes egressas do programa) e da Pós-Graduação de Saúde Pública da UFSC (três professores doutores de avaliação e um doutorando).

O modelo lógico é a descrição do Programa de Residências Multiprofissionais em Saúde, construído e elaborado com base em diretrizes, legislações e entrevistas com profissionais envolvidos nesse programa. A Figura 1 apresenta tal instrumento com suas dimensões, atividades e produtos, além dos resultados, impactos esperados e efeitos.

Figura 1
Modelo lógico do Programa de Residências Multiprofissionais em Saúde

Para análise e julgamento dos dados foi elaborada a matriz de análise e julgamento (Quadro 2), construída a partir do modelo lógico da intervenção. Tal instrumento contempla três dimensões: estrutural, organizacional e técnico-operacional, as quais foram desagregadas em categorias, sendo estabelecida para cada uma a mesma pontuação máxima (70). A dimensão estrutural tem a finalidade de reconhecer a estrutura física, recursos financeiros e humanos que perpassam o funcionamento do programa. A organizacional tem como objetivo avaliar as atividades correspondentes ao programa, sua organização, funcionamento e logística. Por fim, a dimensão técnico-operacional agrega as atividades relacionadas diretamente ao ensino e ao serviço.

Quadro 2
Matriz de análise e julgamento

A proporção final da avaliação de cada dimensão se deu mediante o somatório de sua pontuação sobre a soma máxima x 100. Destaca-se que os pontos de corte utilizados para determinar a avaliação final já foram empregados em estudos avaliativos anteriores (Quadro 3).

Quadro 3
Pontos de corte para se determinar a avaliação final

Com a validação, o modelo de avaliação foi testado em estudo de caso nos programas de residências multiprofissionais selecionados. A pesquisa está de acordo com as normas e diretrizes que envolvem seres humanos solicitadas na resolução n. 510/2016. Foram entregues aos participantes o termo de consentimento livre e esclarecido, salientando os objetivos da pesquisa e a decisão de escolha e participação voluntária, e o termo de autorização de gravação de voz, para a gravação da entrevista como técnica de coleta de dados.

Todos os participantes foram informados sobre objetivo, metodologia e finalidades da pesquisa, sendo-lhes assegurado ainda o direito de solicitar mais esclarecimentos a qualquer momento de sua realização, a negar-se a responder a questionamentos que na sua percepção poderiam trazer-lhes danos à integridade física, social e moral, e a garantia de seu anonimato e confidencialidade - além da opção de desistência do estudo e retirada do seu termo de consentimento a qualquer momento no decorrer da pesquisa.

O trabalho foi submetido à Plataforma Brasil e ao comitê de ética das instituições de realização da pesquisa. Na Plataforma Brasil, foi aprovado em maio de 2018 com o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) n. 78749317.0.0000.0121.

Resultados

A Tabela 1 apresenta o julgamento de valor dos programas de residências multiprofissionais nas dimensões citadas. Não foram observados resultados de implantação favoráveis em nenhuma das dimensões e unidades de análise. Observaram-se resultados mais favoráveis na atenção primária em saúde (Secretaria Municipal de Saúde) em relação ao Hospital Universitário (HU), exceto na dimensão estrutura, na qual observou-se melhor julgamento para o HU. Em seguida, detalharemos os resultados por dimensão e caso.

Tabela 1
Resultados de implantação das unidades de análise

Dimensão estrutural

A estrutura da UFSC é utilizada para a efetivação das atividades do programa de residência em decorrência de sua localização próxima ao Hospital Universitário, possibilitando aos residentes e tutores o uso da Biblioteca Central, auditórios, salas de aula e laboratórios.

O contexto hospitalar, o qual prevê atendimento conforme demanda, apresenta as consequências de tal processo de trabalho na condução das atividades da RMS. Nos últimos anos, o hospital vem passando por uma mudança estrutural, tendo como repercussões a diminuição no número de profissionais e o fechamento de leitos de unidades clínicas, o que incide diretamente no processo de trabalho dos atores do programa.

A ausência de disponibilização de recursos financeiros também foi relacionada como um obstáculo na aquisição dos materiais necessários, manutenção e condução das atividades, bem como nas participações em eventos científicos e despesas de possíveis palestrantes, conforme indicou o Entrevistado 12.

Não são suficientes, a gente não tem nenhum recurso extra, antes a gente tinha para participar de eventos, agora não existe mais. A gente não consegue trazer pa-lestrantes por falta de recursos, não sei, não acho muito bom [sic] os nossos recursos. Tem as bolsas, só a bolsa, que é o mínimo também para ter (Entrevistado 12).

A rotatividade de preceptores, os quais têm vínculos trabalhistas com o Hospital Universitário, ocorre principalmente por conta da sobrecarga que possuem ao tentar aliar o atendimento ao usuário paralelamente ao atendimento ao residente, o que se apresenta como um dos fatores limitantes ao processo de institucionalização do programa. Há divergências nas opiniões acerca da oferta de auxílio financeiro aos preceptores, considerando-se a tese que aponta que a inserção de qualquer profissional em um hospital escola já prevê dentre suas funções a formação e a aprendizagem dos alunos. Outros profissionais consideram a importância do subsídio financeiro, devido ao fato de a preceptoria ser desenvolvida como uma função agregada ao horário de trabalho. A ausência de carga horária disponibilizada pela instituição para realizar a supervisão e o acompanhamento do residente no serviço também gera baixa participação nas capacitações anuais ofertadas, conforme ressaltou o Entrevistado 3.

A gente sabe que quando fala em suporte financeiro é uma coisa que ia ajudar, porque a gente vê na prática que ninguém mais quer ser preceptor. Ainda que a gente ache que em um hospital escola, preceptor ou não, ele tem que contribuir com o processo de formação, ele tem que contribuir. Mas na prática o que a gente tem visto é que é um peso a mais, eu tenho que parar o que estou fazendo para ensinar, receber o residente [...] Acho que tinha que ter algum incentivo para quem fosse ser preceptor, se não for financeiro que seja disponibilizada [sic] algumas horas da sua carga horária para a residência (Entrevistado 3).

A dificuldade de inserção dos tutores, também vinculados à UFSC, nos espaços hospitalares e sua interação com os preceptores e residentes impactam a condução das atividades propostas. São disponibilizadas poucas horas no quadro de docência e há baixa adesão dos departamentos das profissões envolvidas, devido ao fato de o programa ser reconhecido como um curso de extensão dentro da universidade.

Percebe-se sobrecarga dos tutores inseridos no programa, os quais não se dedicam exclusivamente ao programa de RMS, possuindo vínculos com a graduação e a pós-graduação da universidade. Foi citado nas entrevistas que, em algumas situações, o preceptor fica responsável por demandas teóricas, o que impacta a rotina de trabalho e causa dificuldades na realização desses momentos. A interação entre preceptor e tutor no planejamento e no acompanhamento das atividades do residente ocorre de maneira falha e insuficiente, conforme descreveu o Entrevistado 13.

Fica meio isolado a tutoria com o serviço [...] o serviço, por exemplo, tem que desenvolver todas as atividades do serviço mais as atividades de ensino. Muitas vezes a tutoria acaba fazendo essas atividades de ensino e mandando para o serviço, para o serviço avaliar e fazer sugestões. Mas nunca ocorre esse encontro. Seria interessante se o planejamento fosse junto (Entrevistado 13).

Os processos de trabalho que envolvem a atenção primária em saúde também trazem particularidades no desenvolvimento do programa de RMS. Com referência à estrutura física, não existem, nos centros de saúde, locais e salas próprias para as atividades e demandas dos residentes, que buscam revezar com outros profissionais a alocação desses espaços disponíveis.

Na questão estrutural eu acho que é um problema, porque a gente não tem nada garantido no centro de saúde. A gente inserido no serviço e tem que se adequar àquele serviço. Por exemplo, a gente não tem uma sala da residência. A gente tem que ocupar a sala dos profissionais e dividir espaço com os próprios profissionais de lá. Então improvisamos mesa, armários, esse é o espaço físico da residência lá (Entrevistado 2).

A ausência de recursos financeiros para as propostas pedagógicas dos residentes também interfere no processo de ensino-aprendizagem deles e dificulta a realização de propostas e ações de melhorias para a comunidade.

Recurso financeiro eu acho importante, principalmente para financiar cursos e seminários, trazer convidados, eventos mais pedagógicos. Isso a gente conseguiria ter feito muito mais se tivesse existido o recurso. Até o financiamento de projetos, porque o residente faz muita diferença na unidade de saúde, ele tem ideias bri-lhantes, e às vezes essas ideias não conseguem ser colocadas em prática por limitação financeira (Entrevistado 4).

Os profissionais preceptores são lotados na Prefeitura de Florianópolis, e algumas profissões envolvidas no Programa de Residências Multiprofissionais pertencem ao Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Com isso, há divisão dos atendimentos nos centros de saúde que compõem seu distrito sanitário, e os preceptores não estão diariamente com os residentes, que ficam alocados em um único centro de saúde, o que causa impactos na interação entre preceptor e residente e também na sua inserção e participação nas atividades e na relação com o tutor. A dificuldade de participação do preceptor em capacitações, decorrente da ausência de carga horária destinada ao programa de RMS e à supervisão do residente, gera limitações no entendimento da proposta do programa e na função do residente dentro dos serviços.

Diversas vezes a gente pensava nisso, em quanto os preceptores poderiam ser capacitados. Os professores da UFSC estavam lá disponíveis, mas a gente não tinha liberação, não se valoriza o papel do preceptor nesse nível. Nas oportunidades que foram dadas, eu consegui participar (Entrevistado 4).

Com referência aos tutores, que no contexto hospitalar são vinculados à UFSC, também existem críticas quanto à interação com o residente, aos preceptores e ao cotidiano do programa. As horas disponibilizadas aos tutores são insuficientes, os docentes não são exclusivos do programa e há baixa adesão dos departamentos em cederem profissionais para a função de tutor. Em ambos os pontos de atenção, o quadro de professores é insuficiente e há necessidade de participação e atividades no âmbito da graduação e de outros cursos da pós-graduação, conforme a fala do Entrevistado 3.

O que poderia ter mais eu acho é que os professores da UFSC não têm carga horária para coordenar, dar apoio aos preceptores, eles não têm muito tempo para a gente. Para nós, preceptores e alunos, isso é uma coisa que prejudicava, podiam ter mais tempo para a residência (Entrevistado 3).

Outra limitação referida é a distância entre os centros de saúde e a universidade, considerando-se que o deslocamento deve ser realizado pelo próprio tutor.

Os discursos indicam que há baixa institucionalização e reconhecimento do curso nos dois pontos de atenção estudados dentro da universidade, em comparação com os cursos de mestrado e doutorado e com a residência médica. Referem que tais cursos possuem maior notoriedade e disponibilização de estrutura física e de recursos humanos do que a residência multiprofissional, o que se reflete na organização das suas atividades e de recursos humanos.

Mas a Coremu, dentro da universidade, ela nunca teve um apoio institucional para se organizar enquanto um setor dentro da universidade, ela não tem sala física, técnico administrativo que possa atender os residentes nas suas demandas emergenciais e necessárias, não tem estrutura de arquivo, de início e fechamento de processos definitivos. Então historicamente isso se construiu basicamente pelo entendimento que as residências, no meu ponto de vista, são tangenciais à universidade. Elas não têm a importância dada a um programa de mestrado ou doutorado dentro da pós-graduação. Esse é um problema que eu vejo, a falta de institucio-nalização da Coremu e do programa dentro das instâncias da universidade. E isso traz uma dificuldade em agir muitas vezes sobre as demandas que são necessárias para o programa se gerir (Entrevistado 8).

Dimensão organizacional

A baixa inserção dos atores da RMS alocados nos espaços hospitalares na Política de Educação Permanente no Estado, bem como a ausência de atividades conjuntas entre os envolvidos no programa, também é fator limitante, considerando-se a prerrogativa da RMS na educação e mudança de processos de trabalho e aprendizagem.

O programa, vinculado à UFSC, oferta tutores dos departamentos envolvidos para a contribuição no processo de aprendizagem e formação dos residentes, mas de maneira insuficiente, e não possibilita acompanhamento e planejamento conjunto das atividades entre os atores, conforme apontou o Entrevistado 9.

Alguns estudos de caso há articulação, algumas atividades nas disciplinas que às vezes têm uma aproximação com tutor e preceptor, na reunião do GAP... Com certeza poderiam ser melhor, as limitações são as funções de cada um. O tutor não está o tempo todo no HU e o preceptor acaba tendo suas atividades na instituição. Aí a disponibilidade de tempo faz com que essa aproximação fique mais frágil (Entrevistado 9).

Dentre os elementos potencializadores da residência multiprofissional no contexto hospitalar, evidenciam-se as reuniões do Núcleo Docente Assistencial Estruturante (NDAE) e da Comissão de Residências Multiprofissionais (Coremu), com representatividade dos atores, datas e pautas definidas, além do acesso dos envolvidos às atas. Os estágios de alguns cursos da graduação dentro do Hospital Universitário, que estão inseridos no programa, fomentam o contato entre tutores e residentes, produzindo maior interação nas atividades entre os atores.

O projeto político pedagógico (PPP), ainda que não seja apresentado formalmente para os envolvidos, contém as informações necessárias sobre a organização e proposta de condução do programa, estando disponibilizado no website a versão de 2011 (<http://www.hu.ufsc.br/setores/rims/projetos/>, acesso em: 21 maio 2019). Ao se considerar que o PPP é o instrumento que demonstra toda a organização e proposta do programa, a sua não divulgação é um ponto negativo para a adoção do papel do preceptor e tutor.

Com referência às disciplinas ofertadas, houve críticas aos conteúdos ministrados e ao predomínio de docentes de algumas profissões na elaboração e condução das aulas, fato ligado à baixa adesão dos departamentos da universidade na condução do programa. Outro fator limitante foi a ausência de avaliação pela Comissão Nacional de Residências Multiprofissionais em Saúde (CNRMS), o que gera o não fornecimento de certificação aos residentes egressos do programa, como ressaltou o Entrevistado 3.

A nossa maior angústia hoje é a questão da certificação. Isso gera angústia para quem entrando, para os egressos, para quem envolvido. Nenhuma residência no Brasil é certificada pelo MEC, ela é aprovada, funciona com aprovação do MEC dentro dos preceitos da CNRMS, porém não foram avaliadas (Entrevistado 3).

Na composição do programa vinculado à atenção primária em saúde, evidencia-se que o parâmetro observado se encontrou no limite para a classificação de implantado. Considera-se para isso a aproximação com a Política de Educação Permanente, devido ao fato de os preceptores serem profissionais do município e este possuir uma política interna de educação permanente. Como ponto de fortalecimento cita-se que, mesmo com a dificuldade de encontros entre preceptores e tutores em virtude da limitação de carga horária de ambos os programas, realizam-se mensalmente os planejamentos das atividades do residente, sendo pactuados entre os três atores e passíveis de alterações conforme demanda. No que concerne à estruturação dos órgãos do programa, as reuniões do Núcleo Docente Assistencial Estruturante (NDAE), chamadas de ‘momentos integrados administrativos’, e da Coremu, ocorrem com cronograma definido, atas com acesso aos atores e pautas encaminhadas, conforme assinalado pelo Entrevistado 1.

Nosso NDAE tem colegiado completo. Tudo o que a gente tem que decidir é decidido nesse espaço, com a participação de residentes, preceptores e tutores [...] Agora, além dos preceptores que são nossos grandes parceiros, nós temos a participação do pessoal da Escola de Saúde Pública que existe na Prefeitura. Então isso nos ajuda e ajuda nas decisões, porque não adianta o preceptor, tutor e residente, e até mesmo a coordenação, decidirem se a parceira não autoriza ou não reconhece aquele planejamento como um planejamento válido e construído por todos (Entrevistado 1).

O “Guia do Residente” é o instrumento entregue aos residentes na sua inserção no programa e auxilia na compreensão das atividades, de suas distribuições e objetivos. Os atores entrevistados consideram que o projeto político pedagógico é executado integralmente, ainda que seja disponibilizada uma versão datada de 2011. Assim como o programa vinculado ao HU, não há certificação e avaliação contínua dos órgãos nacionais responsáveis.

Dimensão técnico-operacional

A organização e a elaboração do processo seletivo para a inserção dos novos profissionais nos dois programas cumprem todas as exigências determinadas, como os critérios de seleção, provas, número de vagas, disponibilidade de conteúdo programático e critérios de desempate. Os atores vinculados ao HU ressaltaram que algumas áreas de concentração do programa possuem os denominados ‘momentos integrados’, em que os residentes organizam temas para debate e discussão multiprofissionalmente. São abordados temas que estão inseridos nos cotidianos profissionais e auxiliam na capacitação e formação contínua dos sujeitos, como informou o Entrevistado 15.

O que tem que junta as profissões, na verdade os residentes, é o momento integrado, que é quinzenalmente, e eles têm duas horas de espaço garantido dentro da prática profissional, do horário de trabalho, para refletir. É um momento que eles fazem mais de apresentação de tema, de discussão de algum caso. É difícil para o preceptor participar porque os residentes saem pontualmente para ir (Entrevistado 15).

Há dificuldades em alguns núcleos profissionais para organizarem momentos teóricos, devido à carga horária dos tutores ou preceptores, bem como à localização do departamento da profissão (em outro município).

O processo de avaliação do residente com relação ao serviço, programa, preceptor e tutor também ocorre de maneira incipiente, já que o instrumento disponibilizado não é conhecido pelos residentes. Os entrevistados consideram que os trabalhos de conclusão da residência não contribuem de maneira eficaz para a disseminação do programa.

No programa da atenção básica do município de Florianópolis, os momentos de integração entre as profissões são vistos como espaços de formação contínua para os participantes, abordando temas do cotidiano profissional. O matriciamento entre equipe da saúde da família e Nasf permite a comunicação e a troca de saberes e conhecimentos interdisciplinares, além do direcionamento das ações de saúde que serão adotadas com os usuários.

Porém, a ausência de atividades entre todos os preceptores, tutores e residentes é vista como uma limitação do programa, considerando-se que essas atividades propiciam uma interlocução maior entre as realidades dos diferentes centros de saúde, assim como interação maior entre os atores, o que foi relatado pelo Entrevistado 2.

A questão teórico-prática é que poderia ser um pouco mais. Porque a gente tem encontro com tutores só uma vez ao mês, um período, e é um espaço muito curto, porque a gente tem demandas do serviço, às vezes particulares, individuais, que a gente tem que discutir nesse momento, mas também é o espaço para a gente discutir alguma demanda de conteúdo [...] Essas atividades é [sic] para ter participação dos preceptores, mas às vezes eles não têm liberação de carga horária, então não têm participação muito ativa. [...] Com os tutores a gente não tem essa interação, eles estão mais para questões burocráticas da residência, mas não acompanham nossas atividades, não estão no nosso dia a dia (Entrevistado 2).

Segundo entrevistas, não há instrumento que contemple a avaliação do residente para com preceptoria, tutoria, serviço e programa, apenas o espaço do NDAE, que é considerado um instrumento de análise do programa. Com referência à disseminação da proposta da RMS, há iniciativas de divulgação entre os tutores em seus espaços acadêmicos e nos conselhos profissionais. Os trabalhos de conclusão de curso começaram a ser expostos na biblioteca da universidade e por vezes são usados em discussões do cotidiano profissional.

Semelhanças entre os programas

A pesquisa e a análise dos dados obtidos por diferentes instrumentos ressaltaram a importância do programa para a formação profissional dos atores envolvidos, considerando-se a necessidade de mudança nos processos de trabalho com a inclusão de profissionais e suas demandas pedagógicas. Visualizaram-se fatores limitantes semelhantes no processo de implantação das RMS em ambos os programas. Apesar de contextos estruturais e processos de trabalho diferentes - hospitalar e atenção básica -, os dois apresentam dificuldades na participação de preceptores para elaboração e supervisão de atividades teórico-práticas dos residentes, levando-se em conta o fluxo de atendimento para os usuários e a ausência de carga horária para tal finalidade.

A baixa institucionalização do programa dentro da UFSC interfere diretamente na pouca adesão dos departamentos e consequentemente de tutores em ambos os programas. A interação entre preceptores, tutores e residentes ocorre de forma fragmentada e incompleta, já que os tutores dispõem de poucas horas para realizarem as atividades do programa, que são insuficientes para tal finalidade.

A ausência de recursos financeiros para elaboração e implantação de propostas dos residentes e manutenção das necessidades diárias do programa, como aquisição de materiais de escritório, repasse de subsídio para palestrantes e participação em eventos científicos, também é citada como uma das dificuldades em ambos os cenários.

As poucas iniciativas de capacitações - disponibilizadas pelos diferentes setores envolvidos - repercutem no conhecimento do programa, seus pressupostos, finalidade e papel estudantil do residente pelos diferentes atores e locais de inserção, gerando tensionamentos diários.

A avaliação e a certificação dos programas pela Comissão Nacional de Residências Multiprofissionais apresentam-se como uma grande limitação do programa para os atores, principalmente residentes, uma vez que não ocorrem. Assim, os programas não são reconhecidos e não têm a avaliação propiciando um processo contínuo de melhorias e adequações.

Como elementos semelhantes favoráveis aos programas estudados, citam-se as reuniões do NDAE e da Coremu, em que os entrevistados ressaltaram que têm acesso às atas e pautas de discussão, além das datas preestabelecidas dos encontros. O processo seletivo é apresentado com todos os critérios e etapas de seleção, distribuição das vagas e conteúdo programático para as provas escritas, com a participação de grupos de preceptores e tutores no seu desenvolvimento.

Os projetos políticos pedagógicos são disponibilizados nos websites dos programas, ainda que mantenham versões desatualizadas, apresentando objetivos, proposta metodológica e organização da matriz curricular, com fácil acesso a todos os envolvidos. As avaliações dos residentes ocorrem semestralmente, conforme solicitado na legislação, embora tal instrumento não englobe tópicos de avaliação dos residentes em relação aos outros atores.

Diferenças entre os programas

Como aspectos divergentes na implantação dos programas, podemos citar a disponibilização de estrutura física, considerando que o Hospital Universitário é próximo à UFSC e há aproximação com a estrutura desta Instituição de Ensino Superior (IES). Os centros de saúde que são locais de inserção dos residentes em saúde da família encontram-se mais afastados desse local. A participação dos preceptores também ocorre de forma distinta, uma vez que, devido à rotina de alguns preceptores da Residência Multiprofissional em Saúde da Família do Nasf, não ocorrem encontros diários nos centros de saúde dos residentes.

A aproximação com a Política de Educação Permanente do estado de Santa Catarina ainda se dá de maneira incipiente nos dois programas. Porém, o município possui uma política própria de educação contínua para os servidores, de modo que essa aproximação ocorre de maneira mais frequente, ainda que não suficiente.

Ressalta-se também que, segundo os entrevistados, o programa vinculado ao HU tem atividades que propiciam o engajamento de todos os residentes, com estudos e discussões de caso, o que é ausente no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família. Ainda que seja escassa a participação de tutores e preceptores, esse espaço se configura como um importante instrumento multiprofissional.

O planejamento das atividades do residente em conjunto com tutoria e preceptoria ocorre de forma mais concreta na Residência Multiprofissional em Saúde da Família. Como citou-se anteriormente, os tutores vinculados ao HU expuseram dificuldades nesse processo, o que não ocorre em conjunto com os demais atores.

Discussão

A pesquisa realizada e seus resultados trouxeram uma série de conceitos agregados ao programa de RMS que vão ao encontro de estudos já realizados. Perego e Batista (2016)PEREGO, Maira G.; BATISTA, Nildo A. Aprendizagens compartilhadas na residência multiprofissional em saúde. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, v. 10, n. 4, p. 39-51, dez. 2016. apontam que a proposta do programa de superar a fragmentação profissional do cuidado e propiciar um espaço de aprendizagens compartilhadas traz resultados positivos, mas encontra limites para sua concretização completa.

Evangelista e colaboradores (2016)EVANGELISTA, Solange C. et al. Percurso das ações de promoção na saúde na residência multiprofissional: análise à luz de um referencial europeu. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, v. 10, n. 4, p. 69-82, dez. 2016. discorrem acerca das potencialidades que o programa possui para promover mudança na prática dos serviços, visando fortalecer o trabalho em equipe com trocas de saberes entre as diferentes profissões. Estudos previamente realizados mostram que a inserção de profissionais residentes permite a adequação dos serviços às necessidades dos usuários e contribui para a formação contínua de todos os profissionais.

Assim, as mudanças nas práticas e nos processos de trabalho ocorrem não só na formação do profissional residente, mas também no serviço e nos espaços em que as atividades se desenvolvem. Espaços que são cenários de prática dos residentes demonstram ter um potencial questionador da prática instituída, além de serem dispositivos importantes de educação permanente dos trabalhadores (Sarmento et al., 2017SARMENTO, Lidiane F. et al. A distribuição regional da oferta de formação na modalidade residência multiprofissional em saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 113, p. 415-424, abr.-jun. 2017.).

As RMS são consideradas um importante instrumento de educação permanente, visando à formação dos trabalhadores de saúde e ao trabalho coletivo em saúde. Devem ser visualizadas no contexto histórico em que se desenvolvem, sendo que atualmente, em tempos de desmonte do SUS, a realização do programa pode ocorrer de maneira fragmentada (Silva, 2018SILVA, Letícia B. Residência multiprofissional em saúde no Brasil: alguns aspectos da trajetória histórica. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 200-209, jan.-abr. 2018.).

Dimensão estrutural

A expansão da oferta dos programas de RMS em âmbito nacional, conforme aponta Silva (2018)SILVA, Letícia B. Residência multiprofissional em saúde no Brasil: alguns aspectos da trajetória histórica. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 200-209, jan.-abr. 2018., ocorreu principalmente desde 2010, com a inclusão do MEC no aumento do número de vagas e programas vinculados à atenção hospitalar. Essa informação vai ao encontro do início das atividades no Hospital Universitário, em 2010, e na atenção básica, onde as atividades já estavam sendo desenvolvidas há um ano.

Para Beker e colaboradores (2016)BEKER, Karine K. et al. Atuação como apoiadores em saúde: reflexões sobre a formação na residência multiprofissional. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, v. 10, n. 4, p. 151-169, dez. 2016., os egressos do programa relatam que a falta de estrutura para discussão e espaços teóricos é um obstáculo ao exercício do programa de residências. Da mesma forma, a ausência de capacitação dos tutores e o desconhecimento de outros profissionais da instituição acerca da inserção do residente como profissional, atrelado ao seu papel educativo e formativo, principalmente nos espaços da atenção básica em saúde, também apresentam-se como dificultadores.

Os desafios encontrados para a concretização e a participação dos preceptores e tutores são identificados no estudo de Correio e Correio (2018)CORREIO, Natália G. M.; CORREIO, Daniel A. M. A formação multiprofissional em saúde sob a ótica do residente. Revista de Pesquisa: Cuidado é Fundamental, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 593-598, abr.-jun. 2018.. Como evidenciado nos programas estudados, as limitações nos espaços físicos disponibilizados para discussão e organização da equipe multiprofissional geram impactos no processo educativo e integrativo das profissões e no desenvolvimento do programa. A ausência dos preceptores e tutores diante do quadro de horas e demandas assistenciais dificulta, igualmente, a discussão de casos e temas específicos.

De acordo com os atores, há a necessidade de especialização e qualificação contínua dos preceptores para assumirem as demandas do programa, principalmente com os residentes suprindo necessidades profissionais da instituição. Santos Filho e colaboradores (2016)SANTOS FILHO, Enildo J. et al. Avaliação de um programa de residência multiprofissional em saúde da família e comunidade sob o olhar dos residentes. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, v. 10, n. 4, p. 129-149, dez. 2016. demonstram a necessidade de carga horária disponível aos preceptores para a criação de vínculo com os residentes, para o planejamento e execução das atividades de modo compartilhado e supervisionado.

O acúmulo de atividades assistenciais e de atendimentos para o profissional se configura como limitante ao processo de ensino e aprendizagem dos residentes, bem como a ausência de remuneração financeira ou outra modalidade de gratificação e reconhecimento para os preceptores (Silva, 2017SILVA, Verônica C. Os saberes que emergem da prática social do enfermeiro preceptor na residência multiprofissional em saúde. 2017. 198f. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.). Desse modo, uma das estratégias para fortalecimento do programa seria o investimento em capacitações, formação e valorização dos profissionais preceptores, além do papel de liderança na condução das atividades e ações (Arruda et al., 2017ARRUDA, Gisele M. M. S. et al. O desenvolvimento da colaboração interprofissional em diferentes contextos de residência multiprofissional em saúde da família. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 22, n. 1, p. 1.309-1.323, 2017.).

Arruda e colaboradores (2016)ARRUDA, Gisele M. M. S. et al. Educação interprofissional na pós graduação em saúde: dimensões pedagógicas interprofissional em uma Residência Multiprofissional em Saúde da Família. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, v. 10, n. 4, p. 187-214, dez. 2016. ressaltam também que o cenário dos serviços de saúde interfere diretamente nas atividades de preceptorias, principalmente com contratos temporários dos preceptores, vínculos precários, insatisfação e acúmulo de jornadas de trabalho em outros locais. Assim, há limitações quanto ao papel do preceptor na execução do processo de aprendizagem do residente.

Dimensão organizacional

A dificuldade do planejamento de ações e atividades do programa apresentadas na pesquisa é relatada em outros estudos. Matos (2016)MATOS, Tania M. C. Ideologia que permeia a prática de educação permanente por tutores e preceptores da residência multiprofissional em saúde. 2016. 147 f. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. destaca que os residentes entrevistados salientaram a dificuldade do planejamento principalmente nos serviços de atenção primária em saúde, além da falta de comunicação entre os profissionais, o que interfere no desenvolvimento do programa dentro desse serviço.

Verificam-se falhas no processo de aulas teóricas, principalmente quanto aos conteúdos apresentados e metodologias utilizadas, que muitas vezes não abarcam a multiprofissionalidade que deve estar presente no programa (Matos, 2016MATOS, Tania M. C. Ideologia que permeia a prática de educação permanente por tutores e preceptores da residência multiprofissional em saúde. 2016. 147 f. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.). Desse modo, os aprendizados são firmados por meio do cotidiano profissional e não pelos conteúdos abordados teoricamente.

A ausência de certificação se apresenta como um dos principais desafios aos residentes, decorrente da dificuldade de reconhecimento das atividades do programa em outros espaços de trabalho. Sassi e Machado (2017)SASSI, Marcelo M.; MACHADO, Rosana R. Residência multiprofissional em urgência e emergência: a visão do profissional residente. Revista de Enfermagem UFPE, Recife, v. 11, n. 2, p. 785-791, fev. 2017. ressaltam que, juntamente com a certificação, fatores como a carga horária extensa e a dificuldade de reinserção no SUS após o término do programa são limitantes para os profissionais de saúde residentes.

Dimensão técnico-operacional

No que se refere à excessiva carga horária e à preocupação com a saúde física e mental dos residentes, os estudos corroboram os relatos dos entrevistados, os quais apresentam a necessidade de acompanhamento psicológico e médico em relação a esses atores. Cavalcanti e colaboradores (2018)CAVALCANTI, Ismar L. et al. Burnout e depressão em residentes de um programa multiprofissional em oncologia: estudo longitudinal prospectivo. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 42, n. 1, p. 185-196, 2018. afirmam que fatores como a baixa experiência profissional, a excessiva carga horária semanal e a dupla jornada de estudante e trabalhador podem gerar adoecimento aos residentes dos diferentes núcleos profissionais. Em seu estudo, 75% dos participantes apresentaram Síndrome de Burnout, com sintomas como exaustão emocional, baixa realização do trabalho e depressão em diferentes níveis. Essa incidência é gradativa, aumentando ao longo dos dois anos e intensificando-se no período final do programa, com a inserção no mercado de trabalho.

O programa apresenta um conflito no que se refere ao seu objetivo e método de atividades perpassadas na legislação vigente. Se, por um lado, caracteriza um instrumento de educação em serviço pautado na integralidade e interdisciplinaridade, por outro cria uma carga horária exaustiva que gera precarização e exploração do trabalho (Silva, 2018SILVA, Letícia B. Residência multiprofissional em saúde no Brasil: alguns aspectos da trajetória histórica. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 200-209, jan.-abr. 2018.).

Considerações finais

O estudo realizado considerou que ambos os programas estão parcialmente implantados, conforme proposto. Em ambas as unidades de análise, os menores resultados observados foram na dimensão estrutural, devido à ausência de espaços adequados para as atividades, de editais para abrangerem as necessidades financeiras do programa e seus atores e, por fim, de capacitações contínuas para preceptores e tutores. Evidenciou-se a dificuldade de interação e disponibilidade desses atores no que concerne ao desenvolvimento e acompanhamento das atividades dos residentes, considerando-se a baixa adesão dos departamentos envolvidos no programa em ceder tutores.

As limitações estruturais e contextuais na elaboração e na condução do programa impactam diretamente o processo de formação dos atores. Segundo os entrevistados, a carga horária extensa do residente interfere no seu processo de formação, além de causar impacto nos âmbitos psicológico e físico. Também se faz necessária maior atuação de preceptores e tutores, assim como disponibilidade de carga horária deles para as atividades, além de mecanismos estruturais e financeiros que possibilitem a realização das atividades condizentes com o objetivo do programa.

As entrevistas ocorreram no local de trabalho, o que solicitou uma organização de espaço físico para que elas fossem realizadas em ambiente sigiloso. Porém, não é a situação ideal, pois pode constranger o profissional de saúde e os atores envolvidos em relatarem as situações de desafios e perspectivas desse processo.

A pesquisa evidenciou o potencial que as RMS apresentam na formação de profissionais residentes, tutores e preceptores. A participação desses atores possibilita que os serviços de saúde repensem e remanejem suas práticas profissionais, principalmente com a atuação dos docentes vinculados às instituições de ensino superior, com a articulação entre teoria e prática, de modo a qualificar as ações em saúde baseadas em subsídios teóricos.

  • 1
    Artigo baseado na dissertação de mestrado de Lais Santos Silva intitulada “Residências multiprofissionais em saúde: uma proposta de avaliação”, apresentada ao programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina em 2018.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2019
  • Aceito
    13 Maio 2019
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