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PROTAGONISMO PARA UMA COMPREENSÃO SISTÊMICA SOBRE ACIDENTES DE TRABALHO E ANOMALIAS ORGANIZACIONAIS

PROTAGONISMO PARA UNA COMPRENSIÓN SISTÉMICA DE ACCIDENTES DE TRABAJO Y ANOMALÍAS ORGANIZACIONALES

Resumo

As investigações de acidentes e anomalias organizacionais são tradicionalmente baseadas em consultorias, análises internas ou externas às instituições que geralmente não conseguem engajamento e participação dos atores internos tanto no diagnóstico como na construção de soluções. Objetivou-se analisar se o método intervencionista Laboratório de Mudanças, empregado na compreensão dos determinantes organizacionais e das condições latentes de acidentes de trabalho, promove agência (protagonismo) e aprendizado expansivo dos atores envolvidos e contribui para visualizar e construir possíveis alterações na concepção e desenvolvimento da atividade de construção de grandes obras. Foram examinadas seis sessões do Laboratório de Mudanças, a fim de identificar os microciclos de aprendizado propiciados pelas séries de dupla estimulação. As sessões resultaram no engajamento dos atores que criaram seus próprios artefatos ou se apropriaram de conceitos ou modelos, tais como linha do tempo da obra, círculo vicioso, sistema de atividade, identificação de contradições na origem das anomalias e indicação de soluções para obras futuras. O estudo evidenciou que o Laboratório de Mudanças se apresentou propício à investigação de causas sistêmicas de acidentes e anomalias, revelando que a metodologia é potente para o aprendizado organizacional coletivo, uma vez que o grupo se engaja na compreensão, na análise e na busca de soluções.

agência; dupla estimulação; aprendizagem expansiva; laboratório de mudanças; prevenção de acidentes de trabalho

Resumen

Las investigaciones de accidentes y de anomalías organizacionales son basadas tradicionalmente en consultorías, análises internas y externas que generalmente no alcanzan la participación de los actores internos con en el diagnóstico y la construcción de soluciones. Este artículo analizasí el método intervencionista Laboratorio del Cambio, utilizado en la comprensión de determinantes organizacionales de accidentes de trabajo, promueve la agencia (protagonismo) y el aprendizaje expansivo de los actores involucrados, contribuyendo a construir posibles mudanzas en la concepción y desarrollo de construcción de grandes obras. Fueron analizadas seis sesiones del Laboratorio del Cambio, a fin de identificar los microciclos de aprendizaje propiciados por las series de doble estimulación. Las sesiones resultaron en el compromiso de los atores que criaron sus propios artefactos o se apropiaron de conceptos o modelos, tales como, línea de tiempo, círculo vicioso, sistema de actividad, contradicciones en el origen de las anomalías e indicación de soluciones para obras futuras. El estudio evidenció que el Laboratorio del Cambio se mostró propicio al análisis de causas sistémicas de accidentes y anomalías, revelando que la metodología es potente para el aprendizaje organizacional colectivo, una vez que el grupo se compromete con la comprensión, con el análisis y con la búsqueda de soluciones.

agencia; estimulación dupla; aprendizaje expansivo; laboratorio del cambio; prevención de accidentes de trabajo

Abstract

Analyses of work accidents and organizational anomalies are traditionally based on external consultancy, or internal or external analysis, which generally fails in terms of the engagement and involvement of internal actors during the diagnosis or creating solutions. This paper aims to analyze if the interventionist method called Change Laboratory used in the analysis of organizational determinants and latent conditions of work accidents promotes agency and expansive learning of the involved actors, contributing to visualize/construct possible changes in the conception and development of the activity of construction of large buildings. Six sessions of Change Laboratory were analyzed to identify the micro-cycles of learning, facilitated by series of double stimulation. The sessions led to the engagement of the actors who created their own artefacts or appropriated the concepts or models, such as the timeline of the airport building, vicious circle, activity system, contradictions identified in origin of the anomalies and the possible solutions for future building projects. The study showed that the Change Laboratory can be used in systemic analysis of work accidents and anomalies. It is a powerful instrument for organizational collective learning when the group of actors becomes involved at comprehending, analyzing and creating solutions.

agency; double stimulation; expansive learning; change laboratory; prevention of work accident

Introdução

As análises de acidentes de trabalho devem considerar tanto as causas proximais como as causas ou condições latentes. No Brasil, os estudos para prevenção de eventos indesejados, como acidentes de trabalho, geralmente enfocam ou os erros humanos dos operadores ( Almeida, 2006ALMEIDA, Ildeberto M. M. Trajetória da análise de acidentes: o paradigma tradicional e os primórdios da ampliação da análise. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v.10, n.19, p.185-202, jan/jun 2006. ) ou aspectos técnicos visíveis ou aqueles estabelecidos pela legislação, e não dedicam a devida atenção aos determinantes organizacionais e às condições latentes dos eventos ( Llory e Montmayeul, 2014LLORY, Michel; MONTMAYEUL, René. O acidente e a organização . Belo Horizonte: Fabrefactum, 2014. ). Com isso, a oportunidade de aprendizado organizacional, prevenção de novas ocorrências e possibilidade de aumento da confiabilidade dos sistemas fica prejudicada ( Vilela et al., 2014VILELA, Rodolfo A. G. et al. Work Ergonomic analysis and Change Laboratory: similarities and complementarities between interventionist methods. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON APPLIED HUMAN FACTORS AND ERGONOMICS - AHFE 2014, 5., 2014, Kraków, Poland. Proceedings… Kraków: AHFE, 2014. ).

Dentre esses constrangimentos e anomalias estão os acidentes de trabalho, atrasos da atividade, doenças ocupacionais, retrabalho, rotatividade, desperdício de recursos e outros.

A Análise Organizacional do Evento (AOE) é uma abordagem que busca compreender os fatores organizacionais patogênicos (FOP) incubados na instituição, também entendidos como condições latentes dos acidentes. Para isso, esta análise baseia-se em três dimensões da organização: histórica, transversal e vertical ( Dien, Llory e Montmayeul, 2004DIEN, Yves; LLORY, Michel; MONTMAYEUL, René. Organisational accidents investigation methodology and lessons learned. Journal of Hazardous Materials, [S.l.], v. 111, p. 147-153, 2004. ; Llory e Montmayeul, 2014LLORY, Michel; MONTMAYEUL, René. O acidente e a organização . Belo Horizonte: Fabrefactum, 2014. ). Neste processo, também devem ser identificadas a natureza das relações entre os atores deste sistema e as estratégias empregadas para o alcance de propósitos comuns e de poder e autonomia de cada pessoa ou grupo social ( Daniellou, Simard e Boissières, 2010DANIELLOU, François; SIMARD, Marcel; BOISSIÈRES, Ivan. Fatores humanos e organizacionais da segurança industrial: um estado da arte. Toulouse: Foundation pour une culture de securité industrialle, 2010. ).

Durante a análise dos acidentes de trabalho, devem ser considerados os aspectos subjetivos que permeiam as atividades ( Osório, Machado e Minayo-Gomez, 2005OSÓRIO, Claudia; MACHADO, Jorge M. H.; MINAYO-GOMEZ, Carlos. Proposição de um método de análise coletiva dos acidentes de trabalho no hospital. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 517-524, 2005. ) tanto dos trabalhadores como dos analistas.

De forma geral, as metodologias de investigação de acidentes são baseadas nos conhecimentos do analista ou de uma equipe reduzida, em que no máximo ouve os atores, cuja participação se restringe à condição de informantes, com baixo nível de protagonismo na fase de análise e na construção de soluções. De acordo com Alves e Osório (2005)ALVES, Camila A.; OSÓRIO, Claudia. Análise coletiva de acidentes de trabalho: dispositivo de intervenção e formação no trabalho. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho , São Paulo, v. 8, p. 87-98, 2005. , estas metodologias de investigação partem de uma preferência do saber científico sobre o saber prático, e consideram o analista como um expert e detentor do saber. Porém, é importante que neste processo seja considerado tanto o conhecimento científico quanto o conhecimento advindo da experiência ( Alves e Osório, 2005ALVES, Camila A.; OSÓRIO, Claudia. Análise coletiva de acidentes de trabalho: dispositivo de intervenção e formação no trabalho. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho , São Paulo, v. 8, p. 87-98, 2005. ), e que seja reconhecida a heterogeneidade dos saberes e experiências dos diversos profissionais envolvidos com o evento ( Osório, Machado e Minayo-Gomez, 2005OSÓRIO, Claudia; MACHADO, Jorge M. H.; MINAYO-GOMEZ, Carlos. Proposição de um método de análise coletiva dos acidentes de trabalho no hospital. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 517-524, 2005. ).

O envolvimento dos trabalhadores de diferentes níveis na hierarquia ocorre na troca de experiências e conceitos, o que propicia uma renovação ou ampliação de recursos para o desenvolvimento de suas tarefas e, deste modo, a criação de um ambiente favorável a mudanças, ( Osório, Machado e Minayo-Gomez, 2005OSÓRIO, Claudia; MACHADO, Jorge M. H.; MINAYO-GOMEZ, Carlos. Proposição de um método de análise coletiva dos acidentes de trabalho no hospital. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 517-524, 2005. ).

Este artigo trouxe um caso empírico de acidente, ocorrido durante a construção de um aeroporto, para discutir com maior profundidade o problema da falta de metodologias que promovam o protagonismo e a aprendizagem expansiva dos trabalhadores na análise de acidentes e formulação de soluções.

Durante a construção deste empreendimento, ocorreram dois grandes acidentes com um intervalo curto entre eles. Após o segundo acidente, o Ministério Público do Trabalho (MPT) entrou em contato com a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo para ajudar na análise da situação e prevenção de eventos semelhantes. Para tanto, contou-se com o convênio de cooperação técnica e científica firmado entre as duas instituições ( São Paulo, 2013SÃO PAULO. Em defesa da saúde do trabalhador. Diário Oficial do Poder Executivo , Seção II, São Paulo, 13 junho 2013. Disponível em: < https://www.imprensaoficial.com.br/Certificacao/Certificador.aspx?caderno=Executivo%20II&link=/2013/executivo%20secao%20ii/junho/13/pagnot_0004_D4M5IM5FP4925eB2Q54RH9MRHN0.pdf >. Acesso em: 6 abr. 2016.
https://www.imprensaoficial.com.br/Certi...
), que propiciou o campo para a pesquisa de doutorado. Este artigo é um dos produtos da investigação.

Numa primeira etapa da pesquisa, a análise do acidente foi realizada com a aplicação do Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes de Trabalho – Mapa ( Almeida e Vilela, 2010ALMEIDA, Ildeberto M.; VILELA, Rodolfo A. G. A. G. Modelo de análise e prevenção de acidente de trabalho – Mapa . Piracicaba: Cerest, 2010. ) e da AOE ( Llory e Montmayeul, 2014LLORY, Michel; MONTMAYEUL, René. O acidente e a organização . Belo Horizonte: Fabrefactum, 2014. ). Nestes métodos, a equipe de investigação assume um papel de especialista na fase de diagnóstico e de recomendações, e não propicia condições de engajamento, protagonismo e aprendizagem dos atores envolvidos, o que reduz as possibilidades de mudanças.

Para ultrapassar o diagnóstico e construir com os atores uma compreensão mais expandida sobre as origens sistêmicas e condições latentes dos eventos e simultaneamente visualizar possíveis soluções, a equipe de pesquisa viabilizou cooperação com a Universidade de Helsinque para ajustar e aplicar, nas condições brasileiras, o método de intervenção formativa denominado Laboratório de Mudanças – LM ( Engeström, 2007ENGESTRÖM, Yrjö. Putting Vygotsky to work: The Change Laboratory as an application of double stimulation. In: DANIELS, Harry.; COLE, Michael; WERTSCH, James V. (eds.). The Cambridge Companion to Vygotsky . New York: Cambridge University Press, 2007. p. 363-425. ). Este método é aplicado para guiar ações em intervenções que visam aprendizagem expansiva e formação de agência (protagonismo) dos atores ( Virkkunen e Newnham, 2015VIRKKUNEN, Jaakko; NEWNHAM, Denise S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2015. ).

Este artigo tem como objetivo analisar se o método intervencionista Laboratório de Mudanças, empregado na análise dos determinantes organizacionais e das condições latentes de acidentes de trabalho, promove agência (protagonismo) e aprendizado expansivo dos participantes, e assim contribui para visualizar e construir possíveis alterações na concepção e desenvolvimento da atividade de construção de grandes obras, de modo a torná-las mais sustentáveis e seguras. Assim, este artigo visa também responder à seguinte questão: o LM pode contribuir para a construção do protagonismo e aprendizado expansivo dos trabalhadores, de modo a introduzir mudanças organizacionais em nível sistêmico que auxiliem na prevenção de novos acidentes?

Contextualização da Teoria da Atividade Histórico-Cultural

Recentemente, o método do LM tem sido apontado como um conjunto de ferramentas teórico-metodológicas com potencial para ajudar a transformar atividades. Esta metodologia é baseada na Teoria da Atividade Histórico-Cultural (TAHC) desenvolvida na Finlândia por pesquisadores da Universidade de Helsinque ( Querol, Jackson Filho e Cassandre, 2011QUEROL, Marco A. P.; JACKSON FILHO, José. M.; CASSANDRE, Marcio. P. Change Laboratory: uma proposta metodológica para pesquisa e desenvolvimento da aprendizagem organizacional. Administração: Ensino e Pesquisa, Rio de Janeiro, v. 12, n. 4, p. 609-640, 2011. ; Engeström, 2007ENGESTRÖM, Yrjö. Putting Vygotsky to work: The Change Laboratory as an application of double stimulation. In: DANIELS, Harry.; COLE, Michael; WERTSCH, James V. (eds.). The Cambridge Companion to Vygotsky . New York: Cambridge University Press, 2007. p. 363-425. ).

Na TAHC, a unidade teórica de análise é um sistema de atividade (SA) onde o sujeito age sobre o objeto (compreendido como significado, motivo e finalidade) por meio de mediações que incluem: os instrumentos e artefatos conceituais; as regras que englobam os regulamentos, normas e convenções relacionadas ao contexto da atividade; a divisão de trabalho que compreende também a hierarquia; e a comunidade (indivíduos ou grupos que transformam direta ou indiretamente o objeto) ( Engeström, 2001aENGESTRÖM, Yrjö. Expansive learning at work: toward an activity theoretical reconceptualization. Journal of Education and Work , [S.l.], v. 14, n. 1, p. 133-156, 2001a. ; Engeström e Sannino, 2010ENGESTRÖM, Yrjö; SANNINO, Annalisa. Studies of expansive learning: Foundations, findings and future challenges. Educational Research Review , [S.l.], v. 5, p. 1-24, 2010. ).

A TAHC pode ser resumida com a ajuda de cinco princípios: teoria de mediação cultural de ações humanas; multivocalidade; historicidade; contradições como fontes de mudança e de desenvolvimento; e possibilidade de transformações expansivas em sistemas de atividade por meio do ciclo de aprendizagem expansiva ( Engeström, 2001aENGESTRÖM, Yrjö. Expansive learning at work: toward an activity theoretical reconceptualization. Journal of Education and Work , [S.l.], v. 14, n. 1, p. 133-156, 2001a. ).

Durante este processo de aprendizado, os participantes “aprendem algo que não está lá ainda. Em outras palavras, os aprendizes constroem um novo objeto e conceito para sua atividade coletiva, e implementam este novo objeto e conceito na prática” ( Engeström e Sannino, 2010ENGESTRÖM, Yrjö; SANNINO, Annalisa. Studies of expansive learning: Foundations, findings and future challenges. Educational Research Review , [S.l.], v. 5, p. 1-24, 2010. , p. 2, tradução nossa). 4 4 No original: “learn something that is not yet there. In other words, the learners construct a new object and concept for their collective activity, and implement this new object and concept in practice” ( Engeström e Sannino, 2010 , p. 2).

A aprendizagem expansiva pode ser sistematizada em um ciclo que percorre uma sequência de sete ações: questionamento; análise da situação; modelagem; exame do modelo; implementação do modelo; reflexão e avaliação; e consolidação e generalização dos resultados ( Engeström, Rantavuori e Kerosuo, 2013ENGESTRÖM, Yrjö; RANTAVUORI, Juhana; KEROSUO, Hannele. Expansive learning in a Library: actions, cycles and deviations from instructional intentions. Vocations and Learning , [S.l.], v. 6, p. 81-106, 2013. ).

Durante este ciclo ocorre confronto entre os diferentes pontos de vista dos atores, em ambiente propício para o envolvimento emocional e criação de agência ( agency ). De acordo com Virkkunen (2006VIRKKUNEN, Jaakko. Hybrid agency in co-configuration work. Outlines: Critical Social Studies, [S.l.], v. 8, n. 1, p. 61-75, 2006. apud Emisbayer e Mishe’s, 1998, p. 63, tradução nossa), 5 5 No original: “agency is a temporally embedded process of social engagement, informed by the past, oriented through evaluation of present toward future possibilities” ( Virkkunen, 2006 apud Emisbayer e Mishe’s, 1998, p.63). “agência” é um processo temporalmente incorporado de engajamento social, informado pelo passado, orientado por meio da avaliação do presente em direção a possibilidades futuras”.

O processo de formação de agência é mediado pelo uso de artefatos culturais ou estímulos ( Vygotsky, 1997VYGOTSKY, Lev S. The collected works of L. S. Vygotsky: the history of the development of higher mental functions. Robert W. Rieber (ed.). v. 4. New York: Plenum, 1997. ) que permitem empoderamento e protagonismo dos participantes durante as sessões de intervenção formativa e podem ser obtidos por meio do Método da Dupla Estimulação. Este método foi proposto por Vygotsky ( Engeström, 2007ENGESTRÖM, Yrjö. Putting Vygotsky to work: The Change Laboratory as an application of double stimulation. In: DANIELS, Harry.; COLE, Michael; WERTSCH, James V. (eds.). The Cambridge Companion to Vygotsky . New York: Cambridge University Press, 2007. p. 363-425. ), e nele são apresentados dois conjuntos de estímulos ao sujeito: o primeiro estímulo compõe-se de objetos da sua atividade e o segundo pode ser composto por signos, artefatos ou conceitos. Esta dupla estimulação auxilia os sujeitos a resolverem o problema e assim expandirem a visão sobre o objeto e a atividade na qual estão inseridos, o que possibilita o domínio e a compreensão do seu papel como ator coletivo, e o desenvolvimento de autonomia e empoderamento ( Engeström, 2007ENGESTRÖM, Yrjö. Putting Vygotsky to work: The Change Laboratory as an application of double stimulation. In: DANIELS, Harry.; COLE, Michael; WERTSCH, James V. (eds.). The Cambridge Companion to Vygotsky . New York: Cambridge University Press, 2007. p. 363-425. ; Vygotsky, 1998VYGOTSKY, Lev S. Pensamento e linguagem . 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ).

No LM, como um primeiro estímulo, o intervencionista apresenta dados espelhos que são informações que refletem a realidade cotidiana de situações e de aspectos problemáticos da atividade, ou seja, dados sobre a prática atual que auxiliam na percepção de que algo precisa ser mudado. Já no segundo estímulo, são usadas ferramentas e modelos conceituais para análise dos dados espelhos ( Virkkunen e Newnham, 2015VIRKKUNEN, Jaakko; NEWNHAM, Denise S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2015. ). Geralmente, os participantes substituem ou combinam os modelos conceituais oferecidos pelos intervencionistas por modelos formulados ou conceituações mediadas ( Engeström, 2011ENGESTRÖM, Yrjö. From design experiments to formative interventions. Theory & Psychology , [S.l.], v. 21, n. 5, p. 598-628, 2011. ).

Percurso metodológico

O método do LM pretende criar e desenvolver teorias, modelos e conceitos sobre processos de aprendizagem e desenvolvimento na gestão organizacional, por meio de uma expansão de conceitos e ideias que ajudam na compreensão do sistema ( Querol, Cassandre e Bulgacov, 2014QUEROL, Marco A. P.; CASSANDRE, Marcio P.; BULGACOV, Yára L. M. Teoria da Atividade: contribuições conceituais e metodológicas para o estudo da aprendizagem organizacional. Gestão & Produção , São Carlos, v. 21, n. 2, p. 405-416, 2014. ; Querol, Jackson Filho e Cassandre, 2011QUEROL, Marco A. P.; JACKSON FILHO, José. M.; CASSANDRE, Marcio. P. Change Laboratory: uma proposta metodológica para pesquisa e desenvolvimento da aprendizagem organizacional. Administração: Ensino e Pesquisa, Rio de Janeiro, v. 12, n. 4, p. 609-640, 2011. ).

Durante as sessões do LM, o intervencionista procura sistematizar, acelerar e intensificar o processo de aprendizagem expansiva pela introdução de sucessivas tarefas que proporcionam ações do referido processo ( Engeström e Sannino, 2010ENGESTRÖM, Yrjö; SANNINO, Annalisa. Studies of expansive learning: Foundations, findings and future challenges. Educational Research Review , [S.l.], v. 5, p. 1-24, 2010. ).

Antes de iniciar as sessões, foi realizada uma primeira etapa de coleta de dados etnográficos obtidos por meio de entrevistas, observações das situações de trabalho e análise de documentos que durou aproximadamente nove meses de campo. Estes dados tinham como objetivo ajudar os pesquisadores a formar uma hipótese inicial sobre as contradições que afetam o SA sob estudo, e também preparar os dados espelhos. Nesta primeira etapa, foram entrevistados trabalhadores da junta construtiva de diferentes funções e de diferentes departamentos, e trabalhadores de empresas terceirizadas.

Já na segunda etapa, foram realizadas seis sessões de LM, com duração que variou entre duas a três horas, em um total de aproximadamente 15 horas, dentro de auditório da empresa, com a participação em média de 11 atores pertencentes a departamentos-chave para o andamento da obra (departamentos de engenharia, planejamento, qualidade, produção e saúde, segurança e meio ambiente). Todas as sessões foram filmadas, gravadas e transcritas posteriormente.

A primeira sessão do LM iniciou com uma apresentação de todo o grupo, do projeto e de aspectos éticos. A partir da segunda sessão, todas as sessões iniciaram com um resgate pelos participantes do que havia sido feito na reunião anterior. Ao final de todas as sessões, também foi pedido ao grupo um feedback e sugestões para aprimorar o engajamento dos participantes nos encontros seguintes. Além das tarefas propostas nas reuniões, os participantes foram incentivados com trabalhos extrasessões, para dar continuidade às atividades não terminadas ou então amadurecer ideias para os encontros seguintes.

Os intervencionistas provocaram os participantes e facilitaram o debate sobre a ocorrência e as causas dos problemas vivenciados no cotidiano. Da fase de reconhecimento, o grupo percorre um trajeto em busca das origens sistêmicas e históricas das anomalias ( Virkkunen e Newnham, 2015VIRKKUNEN, Jaakko; NEWNHAM, Denise S. O Laboratório de Mudança: uma ferramenta de desenvolvimento colaborativo para o trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2015. ). Para isso, antes de iniciar as sessões de LM foi realizado um planejamento prévio de possíveis tarefas para as sessões entre os pesquisadores e depois com um dos participantes para discutir sobre a viabilidade destas tarefas e assim planejarem em conjunto outras possibilidades.

Após essa etapa, todas as outras tarefas foram planejadas semanalmente pelo grupo de pesquisa, seguindo o ciclo de aprendizagem expansiva, e foram baseadas no princípio da dupla estimulação ( Engeström, Rantavuori e Kerosuo,2013ENGESTRÖM, Yrjö; RANTAVUORI, Juhana; KEROSUO, Hannele. Expansive learning in a Library: actions, cycles and deviations from instructional intentions. Vocations and Learning , [S.l.], v. 6, p. 81-106, 2013. ).

Os pesquisadores intervencionistas apresentaram dados colhidos em campo ou tarefas que propiciaram o uso de dados espelhos provenientes da memória dos participantes ( primeiro estímulo ), que foram debatidos com instrumentos analíticos ( segundo estímulo ).

A análise dos dados iniciou-se com uma descrição detalhada das tarefas desenvolvidas durante as sessões. Para isso, foram usados os planejamentos realizados previamente a cada sessão, filmagens, gravações e relatórios das sessões. Durante as descrições, as tarefas foram divididas em séries de dupla estimulação (DE), evidenciando-se os primeiros e segundos estímulos de cada série, suas ações, resultados expansivos e sessões em que ocorreram.

As séries DE são entendidas como microciclos de aprendizagem expansiva que são variáveis e podem durar de minutos a horas, implicando mudanças parciais no objeto ou nos elementos do SA. Os microciclos iniciam-se quando um primeiro estímulo é aplicado e encerram-se após aplicação de um segundo estímulo e concretização da tarefa proposta pelos pesquisadores ( Engeström, 1996ENGESTRÖM, Yrjö. Developmental work research as educational research. Journal of Nordic Educational Research , [S.l.], v. 16, n. 5, p. 131-143, 1996. ; Engeström, 2001bENGESTRÖM, Yrjö. Activity theory as a framework for the study of organizational transformations. In: KNOWING IN PRACTICE, 2001, Trento. Proceedings... Trento: University of Trento, 2001b. ), tendo um produto ou modelo como resultado.

Durante a narrativa das séries DE, procurou-se identificar evidências de agência transformativa pelas falas e ações dos participantes durante e entre as sessões. A agência transformativa pode ser expressa em seis tipos: resistência; crítica; explicação; visionamento; compromisso de ações; e tomada de ações ( Haapasaari, Engeström e Kerosuo, 2014HAAPASAARI, Arja; ENGESTRÖM, Yrjö; KEROSUO, Hannele. The emergence of learners’ transformative agency in a Change Laboratory intervention. Journal of Education and Work , [S.l.], v. 29, n. 2, p. 232-262, 2014. ).

Além disso, procuraram-se evidenciar as ações de aprendizagem expansiva e protagonismo por meio da análise da expansão do objeto, operacionalizado aqui como a forma como os participantes compreendiam as causas sistêmicas dos acidentes e suas soluções com as tarefas realizadas e os resultados obtidos nas sessões.

As falas foram editadas para corrigir erros de concordância, porém foi mantida a coerência com o que havia sido dito. Por questões éticas, os nomes das pessoas foram suprimidos e cada pessoa foi identificada com uma letra ‘I’ (intervencionistas) ou ‘P’ (demais participantes) e número. Alguns dos produtos obtidos durante as sessões também passaram por edições: substituição de nomes de empresas; e rearranjo dos elementos do círculo vicioso para facilitar a visualização de suas ligações.

O estudo que originou este artigo cumpriu as exigências éticas de pesquisa em atendimento ao que determina a resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo sob o protocolo n. CAAE 11886113.5.0000.5421. Trata-se de resultados referentes a uma tese de doutorado e não existem conflitos de interesse associados com esta publicação.

Aprendizagem expansiva e as séries de dupla estimulação

Durante as sessões, foram evidenciadas nove séries DE detalhadas em seguida e sintetizadas no Quadro 1 , as quais foram planejadas de acordo com o ciclo de aprendizagem expansiva ( Figura 1 ).

Quadro 1
Resumo das séries de dupla estimulação durante o Laboratório de Mudanças

Figura 1
Ciclo de aprendizagem expansiva – Laboratório de Mudanças aeroporto

Na 1ª série DE, os participantes foram divididos em quatro subgrupos, de acordo com a época de início de trabalho naquele empreendimento, e foi pedido que debatessem sobre como enxergavam suas atividades e a obra, e sobre as principais facilidades e dificuldades na obra (primeiro estímulo). Ao final da discussão, as respostas de cada subgrupo foram abordadas com todo o grupo. Os pesquisadores, por meio dos conceitos de dificuldades e facilidades (segundo estímulo), questionaram quais eram as mais importantes e suas causas. O debate grupal foi baseado na experiência prática dos participantes.

O grupo elencou como facilidades: logística da região; disponibilidade de recursos; boas relações interpessoais; bons profissionais; acesso à informação; localização; condições e recursos financeiros da obra e estrutura física para o trabalho.

Já com relação às dificuldades, foram elencados: falta de capacitação de profissionais; falta de critério de seleção de pessoal; ‘carteiradas’; 6 6 Termo usado pelos trabalhadores para se referirem ao ato praticado por trabalhador de um cargo hierarquicamente superior quando dá ordens para quebras de procedimentos. mudança de escopo; mudança de diretoria; alta rotatividade; pouco diálogo entre lideranças; diferentes culturas; cronograma apertado; estresse; sobreposição de atividades; terceirização; estrutura organizacional pouco integrada; cadeia de decisão com muitos níveis; gestão sem integração; baixa qualidade do produto; jornada de trabalho extensa; ausência de feedback ; ausência de avaliação de desempenho; comunicação deficitária e dificuldade de cultura de segurança em todos os níveis.

O grupo elencou grande número de dificuldades relacionadas com o tempo e exemplificou com vivências pessoais. Pela primeira vez, os trabalhadores discutiram coletivamente sobre os problemas da obra.

Desde a 1ª série DE, a questão temporal começou a ser evidenciada como uma influência de origem histórica para os acidentes e anomalias que a construção do aeroporto estava vivenciando relacionada com escopo e prazos mal administrados e dimensionados:

Eu acho que o problema da construção civil, em geral, é um escopo mal dimensionado e mal administrado. Muitas vezes a obra demora para começar e, quando começa, não tem projeto direito. Não tem projeto consolidado. Aí os prazos são mal administrados. Chega no final, tem a data final pra cumprir e a gente tem que correr atrás (P 02).

Durante a discussão sobre a questão relativa a prazo, a proposta da linha do tempo como possível ferramenta emergiu da fala dos participantes, como revela a verbalização a seguir e propiciou o link para a próxima série DE.

Eu acho que se a gente fosse fazer uma linha do tempo, começa lá na definição do escopo, que é o projeto que define (...) Então são várias etapas e por você não ter um escopo definido, você não tem um prazo factível com aquilo que você definiu de escopo, que depende do seu escopo. Essas mudanças de escopo encadeiam tudo o que a gente vive aqui (P 04).

Assim, a 2ª série DE se iniciou com base nos resultados obtidos na discussão da 1ª série DE (primeiro estímulo), mediante o reconhecimento do aspecto temporal como fator explicativo na ocorrência dos problemas e distúrbios. Com o propósito de explorar de forma mais profunda este aspecto, os pesquisadores pediram aos participantes que construíssem uma linha do tempo (segundo estímulo – Figura 2 ) sobre a construção daquela obra.

Figura 2
Linha do tempo construída pelos participantes no Laboratório de Mudanças

A linha do tempo é uma representação visual, em ordem cronológica, de eventos marcantes sobre um determinado objeto, que os relaciona com a data em que ocorreram. Durante uma análise histórica, ela ajuda na identificação e compreensão das origens de contradições do SA que levam aos distúrbios observados ( Querol, Cassandre e Bulgacov, 2014QUEROL, Marco A. P.; CASSANDRE, Marcio P.; BULGACOV, Yára L. M. Teoria da Atividade: contribuições conceituais e metodológicas para o estudo da aprendizagem organizacional. Gestão & Produção , São Carlos, v. 21, n. 2, p. 405-416, 2014. ). Na intervenção, a linha do tempo foi uma ferramenta que auxiliou os participantes a compreenderem historicamente a expansão temporal da construção do aeroporto e, assim, as manifestações atuais de contradições neste SA. Isto foi percebido e verbalizado pelos próprios participantes:

Acho que essa aqui vai ser importante, hein? Tem que tirar, guardar esse arquivo e deixar esse histórico que eu acho que será a melhor atividade que a gente vai fazer aqui, porque isso é bom para a empresa, o histórico da empresa (...) para a gente também saber a causa, o que impactou os possíveis acidentes que aí fica como uma lição aprendida para todo mundo para as próximas obras, né? Já que todo mundo é de obra (P 04).

Esta ferramenta permitiu a visualização de eventos históricos do aeroporto anos antes de iniciar a sua construção física, como, por exemplo, a demora no processo de concessão. Desta forma, os participantes puderam relacionar eventos que influenciaram na ocorrência não só dos acidentes, mas também de outros constrangimentos atuais, tais como greves, interdições, mudanças de diretoria, superdimensionamento da obra, ausência de cronograma, desperdício de recurso, retrabalho e alterações do projeto.

Ao final da construção da linha do tempo, foi pedido aos participantes que a observassem e analisassem quais seriam os eventos críticos 7 7 Evento crítico definido como sequência de ocorrências que resultam em transformações duráveis mais radicais de estruturas ( Sewell Jr., 1996 ). de maior impacto na atividade de construção da obra. Foram pontuados três eventos críticos para o atraso no cronograma do empreendimento: os três acidentes graves devido às paralisações de atividades; alterações do projeto e/ou tudo o que altera o foco da obra, devido à reprogramação das atividades quando pode ocorrer retrabalho e também em atrasos na entrega de materiais; e as mudanças de diretoria, que implicam uma nova forma de gestão que demanda um maior tempo para os trabalhadores se adaptarem.

[ao falar sobre a mudança de diretoria] até o cara se habituar e se ajustar a toda a atmosfera, a forma que o cara está acostumado a trabalhar, demanda uma mudança muito grande, uma mudança que não é tão imediata (P 03).

Nesta análise, o tempo aparece novamente como algo importante para a ocorrência dos acidentes e anomalias. Com esta tarefa, os participantes visualizaram historicamente como surgiram esses distúrbios e, assim, uma compreensão sobre a dimensão temporal do problema.

Alguns dos eventos colocados na linha do tempo são causas e estão na origem dos acidentes e anomalias, e outros seriam consequências. Desta maneira, foram planejadas atividades, divididas em etapa 1 (3ª série DE) e etapa 2 (4ª série DE), para auxiliar os participantes na compreensão das causas e consequências com a construção de um círculo vicioso.

Na etapa 1 (3ª série DE), os pesquisadores repassaram ao grupo novamente a lista de problemas e causas construída pelos participantes juntamente com a linha do tempo (primeiro estímulo). Ao visualizar estes primeiros estímulos e com base no conceito de origens, aspectos e impactos do círculo vicioso (segundo estímulo), os participantes listaram origens, aspectos e impactos de problemas na construção do aeroporto, e iniciaram a análise das relações de origens e impactos entre os distúrbios elencados e uma expansão da compreensão causal do problema.

No intervalo entre a próxima sessão, um pesquisador/intervencionista enviou aos participantes a representação gráfica da linha do tempo e a lista das origens, aspectos e impactos, por eles construídas, para que pensassem e complementassem com outras possíveis relações entre as origens, aspectos e impactos, e as apresentassem na sessão seguinte. Apenas um participante realizou a tarefa extrasessão, e a enviou por email aos participantes.

Antes de iniciar a terceira sessão do LM, este participante entregou uma nova versão da tarefa a um dos pesquisadores com novas análises e links no círculo vicioso. Seu protagonismo foi denotado como ação agentiva do tipo tomada de ações , ou seja, ele foi além das falas e ações concretas do grupo, e realizou uma ação que mudou o rumo das ações em curso ( Haapasaari, Engeström e Kerosuo, 2014HAAPASAARI, Arja; ENGESTRÖM, Yrjö; KEROSUO, Hannele. The emergence of learners’ transformative agency in a Change Laboratory intervention. Journal of Education and Work , [S.l.], v. 29, n. 2, p. 232-262, 2014. ).

Na etapa 2 (4ª série DE), os pesquisadores/intervencionistas apresentaram novamente aos participantes: a linha do tempo concluída ( Figura 2 ), a análise dos eventos críticos de maior impacto no atraso da obra e a lista das origens, aspectos e impactos elencados pelo grupo na 3ª série DE (primeiro estímulo). Em seguida, com o objetivo de explorar as causas dos distúrbios na obra, pediram que os participantes construíssem um círculo vicioso (segundo estímulo).

Durante a construção do círculo vicioso, os participantes evidenciaram outra forma de agência. Eles identificaram problemas e criticaram a forma de trabalhar, o que caracterizou uma ação agentiva do tipo crítica ( Haapasaari, Engeström e Kerosuo, 2014HAAPASAARI, Arja; ENGESTRÖM, Yrjö; KEROSUO, Hannele. The emergence of learners’ transformative agency in a Change Laboratory intervention. Journal of Education and Work , [S.l.], v. 29, n. 2, p. 232-262, 2014. ; Heikkilä e Seppänen, 2014HEIKKILÄ, Heli; SEPPÄNEN, Laura. Examining developmental dialogue: the emergence of transformative agency. Outlines-Critical Social Studies , [S.l.], v. 2, n. 15, p. 5-30, 2014. ).

A construção do círculo vicioso ( Figura 3 ) permitiu que os participantes visualizassem e analisassem a relação complexa entre as dificuldades e os eventos críticos apontados por eles nas sessões anteriores, e obtivessem, assim, uma expansão causal do problema. No trecho abaixo, os participantes discutiam sobre a relação entre um planejamento estratégico inadequado da diretoria para a contratação dos trabalhadores e a ausência de trabalhadores qualificados na obra, o que evidenciou essa relação de causa e efeito entre as dificuldades apontadas por eles na 1ª série DE.

Figura 3
Círculo vicioso construído pelos participantes

No início faltou mão de obra qualificada para iniciar o projeto e ver como ele ia ser. Foi o que gerou tudo isso (P 02).

A falta de expertise gera uma falta de estratégia, e essa falta de estratégia seria, inclusive, qualificar a mão de obra (P 07).

Essa falta de estratégia está relacionada com a diretoria, também, porque todo o estratégico tem que vir de onde? Da alta administração, de cima (P 02).

Então, temos que tirar daqui estrutura e organização inadequada ao se referir à mudança de lugar no círculo vicioso em construção (P 07).

A diretoria que gera o plano estratégico para poder chegar na força de trabalho lá em baixo (P 02).

No círculo vicioso, o prazo aparece novamente como algo de grande influência na construção da obra, seja como causa ou efeito nestas interações. Associado ao prazo, os participantes apontaram aspectos organizacionais e gerenciais como falta de expertise da organização até a falta de um plano estratégico para o empreendimento, como pode ser visualizado na sequência destacada na cor azul na Figura 3 .

Os elementos apontados no círculo vicioso e as suas interações fazem parte do SA de construção do aeroporto, relacionados às suas regras, comunidade, divisão de trabalho e ferramentas.

Desta maneira, após a construção do círculo vicioso, os pesquisadores apresentaram ao grupo conceitos sobre os elementos do SA. O modelo de representação triangular da atividade teve como objeto definido a construção do aeroporto, e foi enviado por e-mail aos participantes, como exercício para que eles pensassem em seus elementos e preenchessem o seu modelo. Entretanto, a tarefa extrassessão não foi realizada por nenhum dos participantes.

Na finalização da 4ª série DE, o grupo foi questionado a respeito da inserção de novos participantes como representantes de instituições da comunidade: MPT, Ministério do Trabalho e Emprego e Centro de Referência de Saúde do Trabalhador. Os integrantes atuais não concordaram com esta nova inserção por considerar que a entrada destes representantes poderia inibi-los e também que haveria uma regressão, já que teria que retomar com os novos possíveis participantes tudo o que se fizera até ali. Esta ação em que os participantes tomam a dianteira da discussão é interpretada como evidência de uma ação agentiva do tipo resistência por parte dos participantes durante o processo ( Haapasaari, Engeström e Kerosuo, 2014HAAPASAARI, Arja; ENGESTRÖM, Yrjö; KEROSUO, Hannele. The emergence of learners’ transformative agency in a Change Laboratory intervention. Journal of Education and Work , [S.l.], v. 29, n. 2, p. 232-262, 2014. ; Heikkilä e Seppänen, 2014HEIKKILÄ, Heli; SEPPÄNEN, Laura. Examining developmental dialogue: the emergence of transformative agency. Outlines-Critical Social Studies , [S.l.], v. 2, n. 15, p. 5-30, 2014. ).

A 5ª série DE iniciou-se com a visualização do círculo vicioso (primeiro estímulo) construído pelos participantes. Na sequência, os pesquisadores reintroduziram os conceitos dos elementos do SA (segundo estímulo). Divididos aleatoriamente em quatro subgrupos, construíram o SA, no qual apenas o objeto (construção do aeroporto) foi previamente definido.

Nesta tarefa há uma expansão da compreensão do SA pelos participantes que, baseados em um modelo conceitual, analisaram de forma sistematizada quais seriam os diferentes elementos do SA da construção do aeroporto, e não apenas em sua atividade isolada.

A 6ª série DE foi uma continuidade da 5ª série DE, em que havia um papel com um triângulo desenhado e novamente apenas o objeto (construção da obra) estava definido. O círculo vicioso foi mostrado aos participantes e as respostas de cada subgrupo foram colocadas nos respectivos elementos do triângulo (primeiro estímulo). Por meio dos conceitos de SA e seus elementos (segundo estímulo), o grupo discutiu e, em consenso, construiu um SA coletivo ( Figura 04 ), com uma expansão da compreensão do SA para o grupo todo.

Figura 4
Sistema de atividade construído pelo grupo

Neste SA coletivo, o sujeito foi definido como a junta construtiva e a força de trabalho indireta (terceirizada), os quais estavam submetidos a regras internas de segurança do trabalho, regras de concessão, regras internas da junta construtiva, contrato com o cliente (concessionária), legislação brasileira e regras trabalhistas e ambientais. Algumas ferramentas medeiam esta atividade como cronogramas, recursos financeiros, projeto executivo, equipamentos, reuniões, instalações físicas e instrumentos industriais. A comunidade é composta pelos acionistas, comunidade local, stakeholders , concessionária, órgãos públicos e trabalhadores do aeroporto. A divisão do trabalho foi categorizada em divisão construtiva, divisão dos setores e divisão das equipes. Na época das sessões, parte do aeroporto já havia sido inaugurada e o início dos voos foi considerado como um resultado esperado. Nos resultados inesperados, alguns elementos do círculo vicioso voltaram a aparecer, tais como: custo acima do previsto, atraso da obra, retrabalho e acidentes graves e fatais.

Estes resultados inesperados refletem distúrbios decorrentes de manifestações das contradições do SA. Estas, por sua vez, representam tensões estruturais, historicamente acumuladas dentro e entre sistemas de atividade, que geram perturbações e conflitos, como também propiciam inovações, e visam mudar a atividade ( Engeström, 2001aENGESTRÖM, Yrjö. Expansive learning at work: toward an activity theoretical reconceptualization. Journal of Education and Work , [S.l.], v. 14, n. 1, p. 133-156, 2001a. ).

A representação do SA auxiliou os participantes a compreenderem as relações entre os elementos daquele sistema e as contradições existentes ( Engeström e Sannino, 2011ENGESTRÖM, Yrjö; SANNINO, Annalisa. Discursive manifestations of contradictions in organizational change efforts: a methodological framework. Journal of Organizational Change Management , [S.l.], v. 24, n. 3, p. 368-387, 2011. ). Desta forma, as origens dos acidentes e anomalias foram explicadas no modelo triangular, e trazidos à tona os problemas e distúrbios descritos nos dados espelhos ( Engeström, 2007ENGESTRÖM, Yrjö. Putting Vygotsky to work: The Change Laboratory as an application of double stimulation. In: DANIELS, Harry.; COLE, Michael; WERTSCH, James V. (eds.). The Cambridge Companion to Vygotsky . New York: Cambridge University Press, 2007. p. 363-425. ).

Na 7ª série DE, foi repassado ao grupo o SA coletivo construído na 6ª série DE (primeiro estímulo) e o conceito de contradições (segundo estímulo). Os participantes analisaram o SA para identificar, na relação entre os seus elementos, as suas contradições ( Quadro 2 ).

Quadro 2
Contradições e soluções identificadas pelos participantes

Durante a discussão em grupo, foi possível verificar que os participantes tiveram um pouco mais de dificuldade para a realização desta tarefa quando questionados sobre o que acharam da sessão:

Eu estou achando que está ficando mais difícil, viu? (P 12).

Estamos querendo chegar nas soluções e está ficando mais difícil agora (P 09).

Acredita-se que isso tenha acontecido por causa da complexidade do objeto, que é composto por diferentes subsistemas e os atores presentes não possuíam informação e domínio de todos os elementos deste SA. Cada departamento da obra poderia ser considerado um subsistema com o objeto compartilhado.

Para facilitar a compreensão e também uma análise das causas proximais do acidente, os pesquisadores/intervencionistas introduziram um novo primeiro estímulo: um caso concreto de evento ocorrido na obra. Foi apresentado o caso do segundo acidente, em que ocorreu o colapso da laje, com informações coletadas na fase etnográfica, acrescentadas de informações extraídas do laudo do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) sobre este evento. No entanto, a grande maioria dos participantes não trabalhava na obra na época do ocorrido, o que deixou a discussão abstrata, e a reduziu ao nível de hipóteses oriundas da experiência em outras obras ou outros fatos que aconteceram durante a edificação do aeroporto. Isto pode ser caracterizado como uma ação agentiva do tipo explicação , ou seja, explicam-se novas possibilidades ou potenciais na atividade, e as relacionam às experiências passadas positivas ou práticas antigas comprovadas ( Haapasaari, Engeström e Kerosuo, 2014HAAPASAARI, Arja; ENGESTRÖM, Yrjö; KEROSUO, Hannele. The emergence of learners’ transformative agency in a Change Laboratory intervention. Journal of Education and Work , [S.l.], v. 29, n. 2, p. 232-262, 2014. ), conforme verbalização abaixo:

Eu estava trabalhando numa empresa que a gente começou a concretagem de uma laje às 7 da manhã e (...) quando deu 8 horas da noite, (...) tinha mais ou menos umas 60 pessoas em cima dessa laje e ela cedeu um pouco. (...) Eu vi o engenheiro de produção e ele bateu no peito e falou: ‘Não pode parar, tem que continuar. É muito dinheiro. Tem que acabar hoje. Pode continuar’. (...) Foi muito trabalho e tudo culminou no tempo que esse cara tinha e no prejuízo. (...) Ele colocou em risco (...) a carreira, a vida dele e a vida de todo mundo que estava lá em cima por causa disso. (...) Muitas vezes volta (...) na questão do tempo. Porque dificilmente um funcionário (...) vira para o superior dele e fala: ‘Olha eu não vou fazer isso porque não tem tempo hábil, o serviço não vai ficar bom e o pessoal vai ficar em risco’. (...) Isso não é questão de empresa. Isso é em geral (P 09).

No caso relatado, aparecem elementos culturais, a inexistência de autonomia dos operadores e relações hierárquicas rígidas, que ajudam a explicar aspectos organizacionais e o papel da gerência, que premida por prazos e pressões financeiras, expõe a vida de pessoas a situações de risco grave e iminente, o que pode levar à ocorrência de acidentes.

Nesta etapa, mesmo com as dificuldades apontadas pelos participantes para a realização da série, eles se aproximavam de um diagnóstico explicativo ao relacionar aspectos centrais, históricos e organizacionais, e ocorria, portanto, uma expansão do entendimento das manifestações de contradições neste SA.

Os participantes refletiram sobre o SA produzido e trouxeram à tona para discussão novamente a questão do tempo, como foi evidenciado nas falas a seguir. O AS, juntamente com o círculo vicioso, facilitou a identificação de que o tempo teve um peso maior em relação aos demais fatores.

Acho que não é escopo global e completo, é escopo inatingível, digamos assim. (...) O que se queria fazer era muito para a quantidade de tempo que eles tinham (P 07).

E aí volta no primeiro dia que nós conversamos. (...) Volta ao prazo. O prazo daqui veio de onde? Veio de uma licitação que veio do governo, e tanto o governo e os órgãos federais se planejarem e fazerem as coisas, desencadeia ali. Ah! Agora vamos lá. É PAC 1, PAC 2, PAC [Plano de Aceleração do Crescimento] não sei o quê. É para ontem. Mas e o projeto? E os órgãos do governo estavam prontos com os projetos básicos? Aí desencadeia ali. Então sofre lá na ponta [ao se referir à obra do aeroporto e seus trabalhadores] (P 04).

A 7ª série DE ajudou os participantes a identificarem as contradições ( Quadro 2 ), e assim, hierarquizar e diferenciar entre os aspectos ou entre fatores isolados, o que era determinante. Em outras palavras, identificaram as tensões estruturais no interior do sistema que explicavam os acidentes e anomalias, para poderem pensar em possíveis soluções.

A modelagem das soluções foi dividida em etapa 1 (8ª série DE) e etapa 2 (9ª série DE).

Na 8ª série DE, o círculo vicioso foi novamente mostrado aos participantes (primeiro estímulo) e discutido com o conceito de principais problemas em nível político, de planejamento e local (segundo estímulo), e assim foram elencados dois problemas mais importantes em cada um desses níveis.

Quanto ao nível político, foram pontuados o atraso na licença ambiental e o panorama político. Este último foi compreendido no sentido de ser uma obra com prazos de conclusão determinados não pelo tempo real que a obra exigia, e sim por decisões políticas devido à realização da Copa do Mundo e de eleições presidenciais no Brasil no ano de 2014. Já quanto ao nível de planejamento foram consideradas a ingerência e a falta de projeto executivo. Devido à forte pressão no que se referia ao prazo da obra, iniciou-se a construção do aeroporto sem um projeto executivo definitivo. Por fim, quanto ao nível local, questões como inversão de prioridades e ingerência local foram colocadas como problemas mais importantes.

Na 9ª série DE, a lista dos principais problemas elencados na 8ª série DE (primeiro estímulo) e o conceito de soluções (segundo estímulo) propiciaram ao grupo discutir e elencar possíveis soluções ( Quadro 02 ), a longo ou curto prazo, para cada um daqueles níveis para o SA do aeroporto.

Os pesquisadores também trouxeram o caso de sucesso mundial da construção do Parque Olímpico de Londres em 2012, como um primeiro estímulo. Na obra, que foi finalizada quase 12 meses antes do prazo final, não aconteceu nenhum acidente fatal e sobraram recursos financeiros ( Bolt et al., 2012BOLT, Helen M. et al. Pre-conditioning for success: characteristics and factors ensuring a safe build for the Olympic Park. Loughborough: Loughborough University. Research Report – HSE, 2012. ). O grupo ficou bastante interessado neste caso e foi enviado material sobre esta experiência.

Empregando o conceito de soluções e comparação de duas realidades diferentes, os participantes analisaram e elencaram o que era possível aproveitar e/ou adaptar para o caso do aeroporto brasileiro.

A maioria das soluções propostas em nível político foi relacionada com o processo de licitação, o qual deveria considerar não apenas os preços mas também as técnicas e uma análise de custos mais precisa. Além disso, o cronograma proposto no momento da licitação deveria ser analisado por algum órgão público para que não fossem aprovadas concessões com cronogramas de construção impraticáveis.

Nas soluções em nível de planejamento, foi proposta uma uniformização das ações das gerências, a diminuição da burocracia, trabalhos em equipe, melhorias no gerenciamento das empresas terceirizadas, treinamentos específicos e contínuos para todas as áreas e funções e criação de um setor de custo. Durante as sessões, a junta construtiva passava por um problema financeiro que se refletiu nas soluções. Já em nível local, o grupo pontuou a existência de reuniões semanais com todos os setores e dentro dos setores, matriz de comunicação mais abrangente, melhorias no sistema de controle dos documentos e maior fiscalização, cobrança e responsabilização.

Ao observar o círculo vicioso construído pelo grupo e os sinais de contradições elencados pelos participantes, constatou-se que o aspecto temporal emergiu tanto nas contradições como nas possíveis soluções propostas. Estas últimas foram compreendidas em processo expansivo ao longo dos encontros.

No final do LM, os participantes retomaram o que havia sido feito e expressaram o que acharam da intervenção. As falas foram positivas, com sugestões de continuidade destas sessões, pois pela primeira vez tiveram oportunidade de discutir sobre o que faziam na obra e assim entender como era o funcionamento daquele SA. Antes da experiência no LM, muitas vezes, os participantes não sabiam exatamente o que era feito nos outros departamentos e agora tinham uma compreensão ampliada da construção do aeroporto:

Análise coletiva e sistêmica na produção de agência

A sequência das séries DE pode ser comparada, analogamente, como se os participantes estivessem subindo degraus de uma escada, em que os produtos de séries anteriores contribuíram para a expansão da compreensão sobre o problema. Os participantes realizaram coletivamente uma análise histórica e organizacional do SA de grandes obras, o que pode ser considerado um aprendizado expansivo de todos os envolvidos nas sessões (participantes e pesquisadores).

Durante as sessões, os participantes discutiram pela primeira vez sobre os problemas que ocorriam na obra, e, ao final das sessões, após sucessivas análises com a introdução dos primeiros e segundos estímulos, eles conseguiram elaborar um diagnóstico e a formulação de soluções que podem ser generalizadas para obras semelhantes. O método da dupla estimulação neste caso empírico impulsionou o sujeito a ir além do problema dado inicialmente, abrindo uma nova perspectiva e expansão do objeto ( Engeström, 2009ENGESTRÖM, Yrjö. The future of Activity Theory: a rough draft. In: SANINO, Annalisa; DANIELS, Harry; GUTIÉRREZ, Kris D. (eds.). Learning and expanding with Activity Theory . New York: Cambridge, 2009, p. 303-328. ).

Nas 7ª e 9ª séries DE, a aplicação do primeiro e segundo estímulos, previamente planejados pelos pesquisadores, não logrou muito sucesso para obtenção de um produto ou modelo. Por isso foi necessária a aplicação de um novo primeiro estímulo. As séries DE ou microciclos de aprendizagem expansiva só foram consideradas finalizadas com a obtenção de um produto ou modelo. Trata-se de um processo de vai e vem de ciclos de ações de aprendizagem dentro de um ciclo de aprendizagem expansiva ( Engeström, Rantavuori e Kerosuo, 2013ENGESTRÖM, Yrjö; RANTAVUORI, Juhana; KEROSUO, Hannele. Expansive learning in a Library: actions, cycles and deviations from instructional intentions. Vocations and Learning , [S.l.], v. 6, p. 81-106, 2013. ).

Estas ações podem ser visualizadas de forma mais concreta por meio dos resultados obtidos durante as sessões (linha do tempo, círculo vicioso, sistema de atividade, identificação de contradições e possíveis soluções).

Além disso, considerando as dimensões histórica e organizacional ( Llory e Montmayeul, 2014LLORY, Michel; MONTMAYEUL, René. O acidente e a organização . Belo Horizonte: Fabrefactum, 2014. ), suas lições podem ser generalizadas para entender e prevenir acidentes semelhantes. Nesta perspectiva, os acidentes são entendidos como anomalias do SA, um resultado inesperado, que tem origem em contradições no interior do sistema.

A construção civil apresenta uma alta dinamicidade das atividades e a atividade de concretagem, que estava sendo executada no momento do acidente da laje, havia sido encerrada na obra aproximadamente 10 meses antes do início das sessões. Como foi mencionado anteriormente, muitos participantes não trabalhavam na obra na época do acidente do colapso da laje. Ao se trazer um dado concreto, ou seja, a análise do IPT sobre o acidente, a discussão ficou restrita ao nível de hipóteses e baseada nas experiências dos participantes em outras obras, pois eles não conheciam a realidade da obra na época. Isto prejudicou a análise e a visualização dialética dos participantes entre as causas proximais e as causas distais do acidente em questão, o que foi considerada uma limitação do estudo do ponto de vista da análise de causas proximais. Porém, mesmo sem ter conseguido realizar a análise das causas imediatas, os participantes tiveram nesta tarefa ações agentivas do tipo ‘explicação’ em que conseguiram identificar contradições do SA.

Os participantes manifestaram protagonismo durante as sessões, o qual foi evidenciado pela demonstração de diferentes tipos de ações agentivas, como, por exemplo, ‘crítica’, ‘resistência’, ‘explicação’ e ‘tomada de ações’. Eles questionaram e reformularam algumas tarefas propostas pelos intervencionistas, em que tomam a dianteira do processo de intervenção.

Nem sempre os planos dos intervencionistas correspondem às ações de aprendizagem dos participantes, o que pode ser considerada uma fonte de agência e inovação ( Engeström, Rantavuori e Kerosuo, 2013ENGESTRÖM, Yrjö; RANTAVUORI, Juhana; KEROSUO, Hannele. Expansive learning in a Library: actions, cycles and deviations from instructional intentions. Vocations and Learning , [S.l.], v. 6, p. 81-106, 2013. ). A aprendizagem expansiva, durante uma intervenção, requer que os participantes assumam o papel de liderança no processo de intervenção, ao rejeitar e reformular tarefas, portanto ações que alteram os planos do intervencionista (Rasmussen e Ludvigsen, 2009 apud Engeström e Sannino, 2010ENGESTRÖM, Yrjö; SANNINO, Annalisa. Studies of expansive learning: Foundations, findings and future challenges. Educational Research Review , [S.l.], v. 5, p. 1-24, 2010. ).

Mesmo nas abordagens sistêmicas como no MAPA e na AOE, via de regra, os trabalhadores atuam de forma passiva, apenas pelo fornecimento de dados por meio de entrevistas, observações de campo e documentos. Mudança e aprendizado precisam ser incorporados nas estratégias de análise de acidentes, de forma que as análises não parem no diagnóstico, como obra de um quebra-cabeça e uma construção do investigador que pouco impacto terá no interior das organizações. Para uma efetivação do aprendizado e implementação de mudanças em um SA, é preciso que haja protagonismo dos participantes durante essas análises. O LM mostrou-se no estudo empírico como uma ferramenta com potencial que pode ser utilizada para promover o protagonismo dos atores internos das organizações. Além disso, este método pode ajudar na compreensão sistêmica e histórica dos acidentes de trabalho e também propiciar um ambiente de aprendizado entre os atores envolvidos, facilitando o desenvolvimento, teste e implantação de soluções.

Neste caso empírico, o ciclo de aprendizagem expansivo foi prejudicado pela perda de alguns participantes, devido a fatores políticos, que resultou em uma parada da obra antes de estar totalmente finalizada. Entre a terceira e quarta sessão, foi descoberto um esquema de corrupção que envolvia grandes empreiteiras no Brasil. A construção do aeroporto era feita por uma junta construtiva que foi contratada por uma concessionária. A concessionária era composta por três empresas e uma das empresas estava envolvida neste esquema, e assim aconteceu um corte financeiro da concessionária para a junta construtiva. Desta forma, neste período, grande número de trabalhadores da junta construtiva foram demitidos ou afastados da obra, e entre eles estavam três participantes das sessões do LM. Como consequência destas demissões, na quarta sessão faltaram sete participantes, pois alguns dos participantes que continuaram na obra não puderam participar por não ter ninguém para substituí-los em seus setores.

Considerações finais

A obra teve início ao mesmo tempo em que o projeto executivo estava em andamento, em contexto social de pressão relativa a tempo condicionada por agenda político-eleitoral e por calendário de evento esportivo.

A organização do processo produtivo teve elevado custo social e humano, com três acidentes graves que levaram dois operários a óbito, conflitos como greves, paralisações, interdições dos órgãos públicos de vigilância em saúde e segurança dos trabalhadores, além de outras anomalias como horas extras habituais, dificuldade de comunicação e articulação entre departamentos, falta de capacitação de profissionais, ‘carteiradas’, rotatividade, mudanças de diretoria, mudança de escopo, pressão por produção, desperdício de recursos, ausência de projeto executivo etc.

Estes acidentes e outras anomalias tiveram como condicionantes históricos um processo de contratação baseado na modalidade EPC em que uma empresa, sem expertise em projetos de engenharia, é contratada para o desenho do projeto, aquisição de materiais e construção de todo o empreendimento. Para isso, adotou-se a estratégia de terceirização sob o contexto de pressão de tempo e sem a coordenação necessária.

A modalidade escolhida de junta construtiva, por outro lado, implicou o ajuntamento de empresas com culturas de gestão e de segurança distintas, o que resultou num planejamento instável e turbulento, agravado pela rotação do corpo gestor (quatro diretorias da junta construtiva em dois anos), que acarretaram instabilidade e mudança constante no escopo. Esta alternância deixou ainda mais difícil a atuação da segurança do trabalho, habitualmente colocada em segundo plano em relação à produção, evidenciado na prática habitual de burlas (‘carteiradas’).

Por meio das tarefas das sessões, os participantes tiveram a oportunidade de debater coletivamente os problemas e distúrbios presentes na obra, como também puderam analisar historicamente a origem destes problemas, o que propiciou uma compreensão da expansão temporal do objeto. Além disso, compreenderam de forma ampliada o SA da construção do aeroporto. Anteriormente, eles estavam restritos aos seus departamentos e não compreendiam muito bem as atividades desenvolvidas nos departamentos vizinhos, os quais compartilham do mesmo objeto (construção do aeroporto).

O LM, como um processo de aprendizagem expansiva e de orientação sistêmica, ajudou os pesquisadores e participantes a entenderem e visualizarem importantes mudanças no SA de construção de grandes obras. Além disso, identificaram condições latentes para ocorrência de acidentes e outras anomalias, as quais podem ser generalizadas para outras obras de grande porte. As sessões cuidadosamente planejadas, baseadas no princípio da dupla estimulação, provocaram um pensamento coletivo e aumento da agência dos atores envolvidos, que tiveram uma elevação na confiança e contribuição crescente durante as sessões, o que propiciou uma aprendizagem expansiva.

A expansão do aprendizado possibilitada pelo LM pode ser expressa na forma de uma síntese diagnóstica que representa uma releitura dos achados do coletivo, ou seja, o que o LM produziu como diagnóstico organizacional, evidenciou as principais contradições identificadas no contexto da obra e de seus antecedentes históricos. Com base no diagnóstico, o grupo conseguiu indicar algumas diretrizes e premissas para superação das contradições atuais e evitar resultados indesejados como o acidente e outras anomalias, abrindo uma perspectiva de futuro para o SA de obras de grande porte.

É importante ressaltar também que o aprendizado ocorrido durante a sessão não é suficiente para levar à expansão do objeto da atividade. Para tanto, faz-se necessária a continuidade de ações em direção à sustentabilidade do aprendizado até o final do ciclo. Neste caso, o ciclo foi interrompido prematuramente.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Santander, pelo suporte financeiro; a Mara Takahashi, Adilson Novello, Marcos Hister, William Alves, Ildeberto de Almeida, Nilson Soares e aos procuradores do Ministério Público do Trabalho, pela parceria e apoio. A Sandra Beltran, pela tradução do resumo em espanhol.

Referências

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    No original: “learn something that is not yet there. In other words, the learners construct a new object and concept for their collective activity, and implement this new object and concept in practice” ( Engeström e Sannino, 2010ENGESTRÖM, Yrjö; SANNINO, Annalisa. Studies of expansive learning: Foundations, findings and future challenges. Educational Research Review , [S.l.], v. 5, p. 1-24, 2010. , p. 2).
  • 5
    No original: “agency is a temporally embedded process of social engagement, informed by the past, oriented through evaluation of present toward future possibilities” ( Virkkunen, 2006VIRKKUNEN, Jaakko. Hybrid agency in co-configuration work. Outlines: Critical Social Studies, [S.l.], v. 8, n. 1, p. 61-75, 2006. apud Emisbayer e Mishe’s, 1998, p.63).
  • 6
    Termo usado pelos trabalhadores para se referirem ao ato praticado por trabalhador de um cargo hierarquicamente superior quando dá ordens para quebras de procedimentos.
  • 7
    Evento crítico definido como sequência de ocorrências que resultam em transformações duráveis mais radicais de estruturas ( Sewell Jr., 1996SEWELL, William. H. Jr. Historical events as transformations of structures: inventing revolution at the Bastille. Theory and Society , [S.l.], v. 25, p. 841-881, 1996. ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2018
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2016
  • Aceito
    30 Jun 2017
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