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Territórios e identidades: questões e olhares contemporâneos

RESENHAS REVIEWS

Grácia Maria de Miranda Gondim

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil <grama@fiocruz.br>

Territórios e identidades: questões e olhares contemporâneos. Frederico Guilherme Bandeira de Araújo e Rogério Haesbaerth (Orgs.). Rio de Janeiro: Access, 2007, 136 p.

Os textos organizados por Frederico Guilherme Bandeira de Araújo e Rogério Haesbaerth em Territórios e identidades: questões e olhares contemporâneos resultam de uma comunicação coordenada no XI Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur) em Salvador, em 2005. Refletem em profundidade os conceitos de território e de identidade à luz dos contextos político, econômico e cultural forjados no interior dos projetos de modernidade/pós-modernidade e suas consequências na esfera pública e privada - na dimensão espaço-temporal e na subjetividade dos sujeitos. É leitura fundamental para aqueles que se debruçam sobre esses temas nos campos da saúde e da educação. As reflexões indicam direções metodológicas e estratégias de análise capazes de potencializar estudos em diferentes áreas: na educação, sobre o lugar do conhecimento e dos sujeitos da aprendizagem - a escola, o professor, a família, a sociedade; na saúde, para compreender os significados e sentidos do processo saúde-doença e a organização do sistema de saúde em territórios-população - como direito à vida e a cidade.

O livro indaga a polissemia dos termos território e identidade na contemporaneidade, em função de posições epistemológicas divergentes produzidas por mudanças radicais na estrutura da sociedade em escala planetária, que refletem novas configurações do Estado-Nação, da cultura e da intimidade da vida das pessoas. Os processos produtores destas transformações têm como características centrais à globalização da economia, o relativismo liberal, a velocidade da informação, o intercâmbio étnico e a mobilidade de populações por todo o mundo. Dentre os entes emblemáticos da modernidade, a fragmentação da cultura e o aprisionamento do sujeito em si mesmo são geradores de crise permanente de identidade social e dissociação espaço-tempo que se materializam, em última instância, em uma profunda crise no próprio campo de legitimação dos saberes em si. É no contexto dito pós-moderno que emerge uma concepção de território que realça tanto a continuidade e a fixidez quanto as relações duráveis e bem-definidas de coletivos identitários ou instâncias de poder. Do mesmo modo, a ideia de classe social se dilui em função dos arranjos produtivos, tecnológicos e organizacionais centrados na lógica do trabalho individual a despeito do trabalho coletivo. O individual privilegiado não é mais o sujeito consciente de si inserido e constituído em uma totalidade-mundo na qual expressa sua subjetividade. É agora sujeito de si mesmo pela exacerbação da liberdade individual e da subjetividade frente ao conjunto de outros sujeitos em si. Nessa direção, os textos realizam análises críticas dos conceitos de território e identidade, das práticas de construção identitárias e dos processos de territorialização-desterritorialização-reterritorialização, consubstanciados em variados arranjos espaciais - local, regional e global, e em múltiplos contextos de vida.

"Identidades e territórios enquanto simulacros discursivos" traz um recorte epistemológico da problemática dos signos a partir da concepção do 'conceito' - como possibilidade de representação do real ou como incompletude e multiplicidade, para traduzir processos, objetos e sujeitos. Para pensar o território, a identidade e as relações entre eles, o autor remonta ao pensamento platônico do logos como razão universal, e à teoria das ideias como essência das coisas, para situá-los como conceitos que podem expressar um objeto no mundo, sem confundir-se com ele. Ao problematizá-los enquanto conceitos (re)significados em contextos sociais emergentes, investe-os de diferentes significados - ora como espaços da diferença e resistência, ora como homogeneização de indivíduos e padronização mercadológica de coletivos. Assim, território e identidade, para além de suas materialidades, são vistos como significações simbólicas constituídas pelos sujeitos em sua luta cotidiana no campo das formulações sobre o mundo. A base epistemológica dessa reflexão é a 'virada linguística', passagem conceitual de uma visão de mundo calcada na teoria das representações para outra que busca entendê-lo a partir dos signos, dos processos de significação onde o mundo só se torna real a partir do pensamento, da linguagem. Nesse contexto, o autor descreve os dois termos como 'simulacros discursivos', por entender que a objetividade dos signos se constitui a partir de encaixes de quatro domínios inseparáveis - o objeto, o significante, o significado e o sentido, os quais conformam a totalidade. Portanto, a materialidade dos conceitos só se efetua na arena das relações interdiscursivas e das relações sociais.

"Identidades territoriais: entre a multiterritorialidade e a reclusão territorial (ou: do hibridismo cultural à essencialização das identidades)" toma como eixo as reflexões de Lévi-Strauss (1977) sobre a crise identitária dos anos 1970 - o 'novo mal do século', para alertar sobre a necessidade de não nos atermos apenas aos aspectos subjetivos das revoluções sociais, mas, principalmente, sobre as condições objetivas que elas expressam. Argumenta acerca do modo de constituição de identidades nos múltiplos contextos contemporâneos, onde os sujeitos históricos as forjam na relação que estabelecem entre espaço geográfico, memória e imaginação. A ideia central é imbricar a esta discussão o olhar sobre a multiplicidade territorial, seu caráter híbrido, flexível, àquelas manifestações mais arraigadas do território e das identidades mais fechadas e essencializadas. Aqui os conceitos de território e cultura são indissociáveis e constituídos no jogo das interrelações onde se (re)definem a cada contexto em seu elementos constituintes. Nessa trama discursiva o território traduz a dimensão política do espaço geográfico, por conter em seu interior desejos e intencionalidades expressas por meio de diferentes formas de poder.

No mundo globalizado esses poderes são multifacetados, difusos, distinguindo-se daqueles mais formalizados e visíveis. São forças 'invisíveis' e simbólicas, nas quais as diferentes manifestações culturais põem em prática os projetos de mundo de grupos específicos. O autor propõe que o território seja visto como processo, relacional. Mais como territorialização do que como espaço fixo, estável. Como algo abstrato no sentido ontológico - possibilidade de tornar-se real a partir do imaginário e inserir-se como uma estratégia político-cultural a despeito da não materialidade do território de referência. A territorialização, por seu caráter processual, possibilitaria a constituição de identidades de forma dialógica, múltipla, aberta, em constante (re)construção: identidades territoriais, onde as referências espaciais localizam relações sociais, políticas, culturais e econômicas de grupos e indivíduos. Haveria, portanto, 'identidades desterritorializadas', constituídas pela complexidade da relação espaço-tempo, nomeadas de multiterritorialidades, um híbrido de lugares identitários com possibilidade de acesso a vários territórios em rede, sem hierarquia de lugar, e as 'identidades territoriais reclusas', reação a multiplicidade e ao hibridismo decorrente da velocidade do movimento pós-moderno.

Em "Espaços dos pobres, identidade social e territorialidade na modernidade tardia" se discute a possibilidade de influência do território na constituição da identidade social, em especial, a das classes populares que, já na virada do século XIX para o século XX, eram tidas como perigosas e estavam circunscritas a um território específico onde realizava sua materialidade. O texto traz elementos importantes à reflexão: a família - unidade socioeconômica fundadora da modernidade que articula dimensões do trabalho, espaço e sentimento; as redes - estrutura social que extrapola as relações familiares e permite a incorporação de outros sujeitos sem laços consanguíneos, e as noções de enraizamento e pertencimento - trazem em si a ideia de espaço-tempo. Como dado empírico, localiza a discussão da identidade social em dois cenários singulares - a favela brasileira e a cité francesa. Similitudes e diferenças marcam as dinâmicas desses lugares: as primeiras referem-se ao trabalho, à inserção dos jovens, à discriminação interna do lugar e à violência. As segundas vinculam-se à estrutura social e ao papel do Estado e permitem diferenciar e afastar a favela carioca da cité parisiense. Conclui o texto que o enfraquecimento das matrizes identitárias modernas, indivíduo, nação e classe social, cria na modernidade tardia brasileira um efeito homogeneizante nos territórios das classes populares cujo padrão espacial é a favela.

O mote do discurso "Festa e identidade: a busca da diferença para o mercado de cidades" é a cidade e as manifestações culturais. As festas populares são tratadas como possibilidade de construção identitária, de resistência e afirmação do lugar, mas, também, como produto mercadológico, utilizadas como recurso cultural que denota as particularidades locais diante do mercado global. No Brasil tiveram desde sempre um caráter ritualístico de compartilhamento entre atores estratégicos e os demais moradores das cidades. A cidade de Mossoró no Rio Grande do Norte é o lugar onde a autora visualiza diferentes formas de apropriação dos espaços das festas: ora como expressão da identidade popular, ora como manipulação de grupos específicos - do estado e/ou da sociedade tradicional, para fins de controle e propaganda regional. Nesse sentido, a festa se caracteriza como produção social, que gera diferentes produtos em diversas dimensões da vida - material, espiritual, política, econômica e simbólica. Por um lado, podem celebrar o encontro e a unidade entre pares, servindo de renovação e (re)atualização de sua identidade, por outro, pode evidenciar conflitos, tensões e censuras. É um espaço de múltiplas territorialidades - os diferentes sujeitos se fazem representar na esfera material e imaterial. As festas 'concebidas' são aquelas organizadas pelo poder público com intenção regulatória - do profano, do subversivo, como domínio estratégico-funcional. Já as festas 'vividas' relacionam-se às representações espontâneas dos habitantes da cidade - os afetos, o sagrado, as paixões, como domínio simbólico-expressivo. Nos últimos anos as festas populares na cidade de Mossoró têm significado as lutas de forças antagônicas locais: de um lado a espetacularização dos rituais pelo poder público junto com a indústria da cultura; de outro, a igreja e a população resgatando a tradição de bravura e religiosidade como forma de resistência da identidade local.

O texto final, "Território, identidade e lutas sociais na Amazônia", problematiza os embates territoriais travados para preservar as identidades locais. O marco da discussão é o processo de integração e incorporação da região na divisão territorial do trabalho, em escala nacional e internacional, a partir dos anos 1960. Cria-se no norte do país uma malha espacial de controle técnico-político, definida por meio de planos, programas e projetos governamentais, indutores de um tipo de desenvolvimento que erige a região à condição de fronteira de recursos naturais disponível ao massacre do grande capital. Essa modernização conservadora - colonialista e autoritária - fez emergir movimentos sociais tradicionais em oposição à desterritorialização e à fragmentação das identidades daí decorrentes. As lutas populares se configuraram como 'resistência' à subalternização material e simbólica e de afirmação das identidades e modos de vida próprios daquelas populações. São lutas por maior igualdade e melhor distribuição dos recursos materiais - criação de território de igualdade, mas, também, por reconhecimento das singularidades culturais, expressas nos modos de produzir e reproduzir a vida nesses lugares - criação de territórios de diferenças. Esses contextos identificam novos sujeitos políticos, num nítido movimento emancipatório do território e da cultura. Diante das especificidades das lutas na Amazônia, o autor conclui que a construção de identidade é sempre histórica e realizada por sujeitos implicados. É relacional e contrastiva - afirma-se nas diferenças e em movimentos de interação. É material e simbólica - representa o concreto/objetivo e o subjetivo/ simbólico. É estratégica e posicional - está em estreita conexão com as relações de poder e demarca, incessantemente, as diferenças de grupos, podendo ser hegemônica ou subalterna. Por fim, propõe uma tipologia para identidade de acordo com a posição que os sujeitos ocupam no espaço social: a identidade legitimadora - outorgada pelo Estado para efetivar seu controle sobre o corpo social; as identidades de resistências - fruto da luta de sujeitos desvalorizados pela lógica dominante; e a identidade de projeto - forjada pela necessidade de (re)significar e (re)posicionar o papel de certos atores sociais no convívio social.

Este texto encerra a da coletânea, deixando em aberto inúmeras respostas para que o leitor empreenda sua própria busca de significado para os conceitos de território, identidade e cultura.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Set 2012
  • Data do Fascículo
    Nov 2009
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