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Curso em saúde mental no contexto da Covid-19 com povos indígenas por meio de ensino remoto

Course in mental health in the context of COVID-19 with indigenous poeples through remote learning

Curso sobre salud mental en el contexto del Covid-19 con pueblos indígenas a través del aprendizaje a distancia

Resumo

O enfrentamento à Covid-19 suscitou a necessidade da formação em Saúde Mental para profissionais da saúde, educação, proteção social e lideranças comunitárias que atuam junto aos povos indígenas. Em seus cotidianos, essas comunidades já convivem com questões que impactam a saúde mental e a espiritual, mas o sofrimento psíquico ficou ainda mais evidenciado no contexto pandêmico. O curso ‘Bem viver: Saúde Mental Indígena’, voltado para mitigar o impacto psicossocial da Covid-19 nas populações indígenas da Amazônia brasileira, exigiu estratégias inovadoras ante o desafio de ensino remoto nesse contexto de conectividade limitada e isolamento territorial. Os desenhos pedagógico e operacional do curso priorizaram o diálogo intercultural na elaboração dos conteúdos com uso de diversas ferramentas de ensino para superar barreiras de conectividade e de entendimento da língua portuguesa no formato escrito. Apesar do desafio da produção coletiva e intercultural, dada a diversidade étnica, o curso foi um espaço de produção e trocas entre profissionais de diferentes áreas e lideranças comunitárias, sempre buscando um olhar ampliado sobre as práticas de cuidado, apoio psicossocial e valorizando as formas de atenção à saúde utilizadas pelas comunidades.

Palavras-chave:
saúde indígena; saúde mental; Covid-19; Amazônia

Abstract

The confrontation with COVID-19 raised the need for training in Mental Health for health, education, social protection and community leaders who work with indigenous peoples. In their daily lives, these communities already live with issues that impact mental and spiritual health, but psychological distress was even more evident in the pandemic context. The ‘Well Living: Indigenous Mental Health’ course, aimed at mitigating the psychosocial impact of COVID-19 on indigenous populations in the Brazilian Amazon, required innovative strategies in the face of the challenge of remote learning in this context of limited connectivity and territorial isolation. The pedagogical and operational design of the course prioritized intercultural dialogue in the development of content using various teaching tools to overcome barriers to connectivity and understanding of the Portuguese language in written format. Despite the challenge of collective and intercultural production, given the ethnic diversity, the course was a space for production and exchanges between professionals from different areas and community leaders, always seeking a broader look at care practices, psychosocial support and valuing ways of health care used by communities.

Keywords:
indigenous health; mental health; COVID-19; Amazon

Resumen

La lucha contra el Covid-19 planteó la necesidad de promover la capacitación en Salud Mental para los profesionales de salud, educación, protección social y líderes comunitarios que trabajan con pueblos indígenas. En su vida diaria, estas comunidades ya conviven con problemas que impactan la salud mental y espiritual, pero el sufrimiento psíquico fue aún más evidente en el contexto de la pandemia. El curso ‘Bien Vivir: Salud Mental Indígena’, dirigido a mitigar el impacto psicosocial del Covid-19 en las poblaciones indígenas de la Amazonía brasileña, requirió estrategias innovadoras ante el desafío del aprendizaje remoto en un contexto de conectividad limitada y aislamiento territorial. El diseño pedagógico y operacional del curso priorizó el diálogo intercultural en el desarrollo de contenidos, utilizando diversas herramientas didácticas para superar las barreras a la conectividad y comprensión del idioma portugués en formato escrito. A pesar del desafío de la producción colectiva e intercultural, dada la diversidad étnica, el curso fue un espacio de producción e intercambio entre profesionales de diferentes áreas y líderes comunitarios, buscando siempre una mirada más amplia a las prácticas asistenciales, al apoyo psicosocial y de valoración de las formas de atención a la salud utilizadas por las comunidades.

Palabras clave:
salud indígena; salud mental; COVID-19; Amazonía

Introdução

A pandemia da Covid-19 que se espalhou pelo mundo desde dezembro de 2019 tem impactos ainda mais severos naqueles grupos sociais com condições de vida já precarizadas como refugiados, trabalhadores informais, moradores de rua etc. Embora ainda não haja dados definitivos que relacionem risco de morbidade e mortalidade de Covid-19 com etnicidade, evidências apontam para resultados clínicos desfavoráveis impulsionados tanto por questões biológicas quanto socioeconômicas (Pan et al., 2020PAN, Daniel et al. The impact of ethnicity on clinical outcomes in Covid-19: A systematic review. EClinicalMedicine, v. 23, 100404, 2020. DOI: 10.1016/j.eclinm.2020.100404.
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). A possibilidade de defesa da vida e luta contra o vírus, tanto em relação às estratégias de prevenção quanto às de assistência ou de mitigação de seus efeitos, tem sido uma construção permanente não só do poder público, mas também das organizações sociais nos diversos territórios.

Dentre os grupos vulnerabilizados, as comunidades indígenas têm apresentado uma taxa de mortalidade por Covid-19 cerca de 16% maior que a taxa nacional. Em fevereiro de 2021, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), foram 49 mil casos confirmados, 162 etnias afetadas e 970 indígenas mortos (APIB, 2021ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Emergência indígena. 2021. Disponível em: https://emergenciaindigena.apiboficial.org Acesso em: 20 fev. 2021.
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). No contexto geral, esses povos apresentam maior vulnerabilidade ao contágio por vírus respiratórios desde os primeiros contatos com os colonos europeus (Ferreira, 2020 FERREIRA, Luciane O. Relatório técnico contendo análise dos protocolos e normativas do Ministério da Saúde e da Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena (SESAI/MS) para o enfrentamento do Covid-19 junto aos povos indígenas. Cuiabá: Operação Amazônia Nativa, 2020.) e, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), são também marginalizados socioeconomicamente e, por consequência, sofrem maior impacto de emergências de saúde pública (OPAS, 2021ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE (OPAS). Impacto da COVID-19 nos povos indígenas da Região das Américas: perspectivas e oportunidades. Relatório da reunião regional de alto nível, 30 de outubro de 2020. OPAS, 2021. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/53539/OPASEGCCOVID-19210001_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 14 jul. 2021.
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).

Nesse sentido, a ciência pode desempenhar papel relevante para reduzir tal iniquidade seja reunindo evidências sobre as condições de vulnerabilização, seja contribuindo no desenvolvimento de capacidades organizativas para amplificar as estratégias de autocuidado e prevenção desses povos. Todavia, um levantamento bibliográfico realizado em 15 de julho de 2021, na Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), utilizando a janela específica sobre saúde mental e Covid-19, evidenciou um pequeno número de produções científicas nesse campo. Embora haja muita produção sobre o tema em geral (mais de 25 mil estudos), quando filtramos apenas para indígenas (descritor ‘indigenous’) na Região das Américas e excluindo trabalhos repetidos, encontramos apenas sete trabalhos completos. Tal panorama reflete o déficit na produção de pesquisas, relatos de experiência e, consequentemente, na dificuldade de elaborar formações e capacitações ancoradas em evidências científicas, as quais são fundamentais para a produção de projetos coerentes com as necessidades étnico-regionais e para o engajamento e orientação dos serviços, dos profissionais de saúde e dos próprios povos.

Ainda no que concerne à importância do ancoramento científico e às estratégias baseadas em evidências, reforça-se uma resposta célere em emergências sanitárias. Para tal, são necessárias, além de ações rápidas de assistência, estratégias de translação do conhecimento capazes de produzir sínteses e apresentações do conhecimento em formatos amigáveis, linguagem simples e mensagens diretas (Kabad et al., 2020KABAD, Juliana F. et al. A experiência do trabalho voluntário e colaborativo em saúde mental e atenção psicossocial na Covid-19. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 36, n. 9, e00132120, 2020. DOI: 10.1590/0102-31X00132120.
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) para aqueles que compõem as equipes de gestão e trabalho na fase de resposta. Se, por um lado, a modalidade Ensino à Distância (EaD) viabiliza o afastamento físico sem perder contato social, ela também aprofunda as preexistentes e resistentes desigualdades de acesso à educação (Almeida e Dalben, 2020 ALMEIDA, Luana C.; DALBEN, Adilson . (Re)organizar o trabalho pedagógico em tempos de Covid-19: no limiar do (im)possível. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, e239688, p. 1-20, 2020. DOI: 10.1590/es.23968
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), em especial aquela mediada por tecnologia.

Reconhecendo que apenas uma pequena parte dos trabalhadores de saúde, da educação e dos serviços de proteção social experienciaram emergências que poderiam lhes servir de base para a construção de planos de ação eficazes frente à atual crise sanitária, conforme apontam Noal et al. (2020NOAL, Debora S. et al. Capacitação nacional emergencial em saúde mental e atenção psicossocial na Covid-19: um relato de experiência. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, p. 293-305, 2020. DOI: 10.1590/0103-11042020E420.
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), é imprescindível que esses profissionais tenham acesso a ferramentas adequadas de formação para apoiá-los no cuidado cotidiano das comunidades. O documento orientador para resposta à política de Covid-19 das Nações Unidas considera a saúde mental como parte da resposta emergencial da saúde pública no manejo da pandemia (United Nations, 2020UNITED NATIONS (UN). Policy Brief: COVID-19 and the need for action on mental health. 2020. Disponível em: https://www.un.org/sites/un2.un.org/files/un_policy_brief-covid_and_mental_health_final.pdf . Acesso em: 25 maio 2020.
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). Se tem sido um desafio global incorporar estratégias de apoio psicossocial nos planos de contingência na maioria dos países, em um país da dimensão territorial e cultural como o Brasil é difícil pensar que esse desafio poderia ser superado sem participação de outros atores da sociedade e de outras organizações governamentais e não governamentais.

O apoio de profissionais e demais atores no controle da pandemia junto aos povos indígenas insere-se num contexto mais amplo de luta desse grupo visando à formação de profissionais para atuação no contexto intercultural, diretriz estratégica da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI). A promoção de um modelo de saúde inclusivo e diferenciado, que respeite as especificidades culturais dos povos, incorporando concepções de saúde tradicionais bem como o direito à reafirmação de suas culturas, deve transversalizar a atuação de profissionais no contexto indígena (Diehl e Pellegrini, 2014 DIEHL, Eliana E.; PELLEGRINI, Marcos A. Saúde e povos indígenas no Brasil: o desafio da formação e educação permanente de trabalhadores para atuação em contextos interculturais. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, n. 4, p. 867-874, abr. 2014. DOI: 10.1590/0102-311X00030014.
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; Landgraf, Imazu e Rosado, 2020LANDGRAF, Julia; IMAZU, Nayara E.; ROSADO, Rosa M. Desafios para a educação permanente em saúde indígena: adequando o atendimento do Sistema Único de Saúde no sul do Brasil. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 24, e190166, 2020. DOI: 10.1590/Interface.190166.
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).

Apesar de muito ter sido produzido na literatura nacional e na internacional entre os anos de 2020 e 2021 referente às questões de saúde mental na pandemia Covid-19, a singularidade deste artigo, além de envolver povos indígenas, visa apresentar os desafios e soluções pragmáticas e inovadoras para formação num contexto de limitada conectividade virtual − por acesso à internet − e presencial − por restrição de circulação como medida de biossegurança para contenção sanitária.

Diante desse cenário singular, em outubro de 2020 a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef) e a Coordenação das Organizações Indígenas na Amazônia Brasileira (Coiab), promoveu um curso em saúde mental voltado para mitigar o impacto psicossocial da Covid-19 nas populações indígenas da Amazônia brasileira. Neste artigo descrevemos a experiência sobre a estratégia usada no curso Bem-Viver e Saúde Mental para profissionais da saúde, educação, proteção social e lideranças comunitárias que atuam no enfrentamento à Covid-19 junto a populações indígenas.

Bem-Viver: Saúde Mental Indígena

Com o avanço da pandemia nos territórios e a vulnerabilidade das comunidades indígenas no seu enfrentamento, foi necessário criar dispositivos para apoiar os profissionais e lideranças comunitárias na assistência e cuidado aos agravos em saúde que incluíssem o cuidado psicossocial. Essa preocupação deu origem ao projeto intitulado Povos Indígenas da Amazônia Contra Covid-19 (PIACC), uma intervenção dialogada de mitigação dos impactos da pandemia. As diretrizes desse projeto foram: promover os direitos humanos e a igualdade entre os povos, usar abordagens participativas, aproveitar as capacidades existentes e promoção do protagonismo indígena. Para isso, além do curso, as ações do projeto contemplaram também Comunicação para Mudança Social e de Comportamento (CMSC) e a distribuição de kits de higiene em oito áreas prioritárias em cinco estados na Região Amazônica.

O curso ‘Bem-Viver: Saúde Mental IndígenaFUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Campus Virtual Fiocruz. Bem-viver: saúde mental indígena. 2021. Disponível em: https://campusvirtual.fiocruz.br/gestordecursos/hotsite/bemviversaudeindigena/programaaao/4952 . Acesso em: 1 maio 2021.
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’ foi destinado não só para profissionais de saúde, mas também para aqueles que atuam na educação, proteção social, bem como lideranças comunitárias e jovens comunicadores indígenas.

Apesar de não haver uma identidade ‘indígena’ única, pois há povos com diferenças culturais muito bem delineadas, as diversas etnias apresentam uma cosmovisão comum que ultrapassa dualismos mente-corpo, indivíduo-coletivo, humano-ambiente. Como resultado direto do permanente diálogo intercultural na concepção do curso, desde o princípio optamos em adotar o conceito de ‘bem-viver’ por entender que representa um modo alternativo que permite repensar práticas e ampliar o discurso da lógica biomédica dominante que orienta os serviços de saúde e assistência social vigentes. Bem-viver não se restringe à ‘saúde da mente’ numa subjetividade particular, mas também ao bem-estar individual, comunitário, familiar e espiritual (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Especial de Saúde Indígena. Departamento de Atenção à Saúde Indígena. Atenção psicossocial aos povos indígenas: tecendo redes para promoção do bem viver. Brasília: Ministério da Saúde, 2019. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Atencao_Psicossocial_Povos_Indigenas.pdf . Acesso em: 28 abr. 2021.
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).

No que concerne à saúde mental, há questões que já vêm sendo vividas pelas comunidades nas últimas décadas, mas que se agravaram no contexto pandêmico. A identificação dessas temáticas permitiu a abordagem prioritária dos assuntos, estruturando a formação em seis módulos, contendo, além de um módulo introdutório, os cinco temas sensíveis: autoatenção e estratégias comunitárias; crianças, jovens e anciãos; violências; álcool e outras drogas; e suicídio.

Desenho pedagógico do curso

O curso foi dividido em seis módulos disponibilizados semanalmente na plataforma digital (Quadro 1). No módulo introdutório, foram expostos os elementos teóricos norteadores para a compreensão de todo o curso e a atenção psicossocial junto às comunidades. No módulo de autoatenção e estratégias comunitárias, buscou-se evidenciar as alternativas pelas quais as comunidades lidam coletivamente com adoecimento. No módulo de crianças, jovens e anciãos, foram abordados os ciclos de vida e a concepção de pessoa apoiada nas relações de parentesco, vida comunitária, tradições e rituais de passagem. No módulo violências, foram discutidos os fenômenos de etnocídio e epistemicídio cometidos historicamente nos territórios. O módulo de álcool e outras drogas teve como tema o consumo de bebidas alcoólicas e de outras drogas entre o uso tradicional e o consumo abusivo, sendo destacado o diálogo como elemento norteador das estratégias de saúde para os profissionais que lá atuam. No último módulo, suicídio, o sofrimento das comunidades com a diminuição dos territórios, choque cultural e ameaça constante do mundo ocidental sobre as comunidades indígenas foi retratado, norteando a discussão a partir das questões postas pelos diferentes grupos étnicos.

Quadro 1
Organização pedagógica do curso

O curso foi pensado no formato à distância e autoinstrucional, para evitar a disseminação do vírus nos territórios indígenas, mas também como forma de alcançar de maneira rápida e simultânea as comunidades e profissionais que atuam em diversas localidades. O desenho pedagógico propôs ainda um grupo de discussão via aplicativo WhatsApp, coordenado por tutores pedagógicos com a finalidade de subsidiar possíveis dúvidas, bem como orientar alunos no acesso e compreensão do material.

O público-alvo e a diversidade cultural das comunidades impuseram o desafio da construção coletiva e intercultural. O corpo pedagógico foi composto por professores indígenas e não indígenas que assumiram as funções de professores conteudistas, revisores interculturais e tutores pedagógicos. Desde a sua concepção, o curso contou com a ativa participação de profissionais das etnias Mura, Tuxá, Xukuru, Tikuna, Macuxi, Tukano, Tembé, Nambikwara, Munduruku, oriundos de vários estados do Brasil, que produziram coletivamente o material pedagógico do curso. Como no público-alvo do curso havia lideranças indígenas, cuja tradição oral tem um peso importante na comunicação e transmissão do conhecimento, optou-se por utilizar diferentes tipos de ferramentas como material escrito no formato de cartilhas e videoaulas. Desse modo, foram priorizadas as narrativas orais e, ao mesmo tempo, estimulada a criação de vínculo entre os partícipes por meio da identificação étnica, uma vez que a apresentação de cada vídeo incluía representantes de diferentes etnias na exposição do módulo.

Simultaneamente ao diálogo intercultural, as trocas interdisciplinares foram possíveis pela presença de profissionais de diferentes áreas do conhecimento como psicologia, antropologia, linguística, ciências sociais, medicina, pedagogia e filosofia. Considerando que “cada saber conhece melhor seus limites e possibilidades comparando-se com outros saberes” (Santos, 2010SANTOS, Boaventura S. Um Ocidente não-ocidentalista? A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. In: SANTOS, Boaventura S.; MENESES, Maria P. (Orgs). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 519-562., p. 544), a produção do material foi orientada para buscar simetrias entre o conhecimento produzido academicamente e aquele produzido comunitariamente, baseado em saberes ancestrais e estratégias coletivas de produção de saúde e enfrentamento de doenças.

Considerando que há uma diversidade de culturas e tradições entre os povos indígenas, em que pesem algumas semelhanças, optou-se pela conscientização dos problemas e de suas causas profundas, oportunizando que soluções pudessem ser desenvolvidas localmente a partir de diálogos abertos sobre esses fenômenos nas comunidades. As comunidades indígenas constroem e renovam permanentemente suas práticas de cuidado. Mesmo onde não há serviço de saúde ‘formal’, as comunidades têm seus promotores de saúde cujas estratégias de cuidado baseadas em plantas, minerais, manobras manuais, terapias espirituais podem ser fortalecidas pelo saber biomédico complementando tais práticas.

Nas videoaulas, buscou-se explicitar essa possibilidade de articulação de técnicas, habilidades e conhecimentos, sendo apresentadas principalmente pelos professores indígenas ou outras lideranças convidadas. Essa estratégia visava facilitar a empatia nos participantes, mas também oportunizar que eles pudessem dialogar com a própria voz sobre seus saberes e práticas. Já nas cartilhas, abordaram-se questões teóricas voltadas para subsidiar os profissionais em reflexões necessárias sobre o seu processo de trabalho e produção do cuidado. Essa construção coletiva e combinação de estratégias abriu possibilidade para que diferentes visões pudessem ser elaboradas e expostas de modo a produzir um novo entendimento das questões de saúde mental e suas implicações nas comunidades tradicionais como também no contexto não indígena.

À medida que o curso avançou e houve interação com alguns participantes, além do diálogo com as instituições parceiras nos territórios, identificou-se que o conteúdo das cartilhas também pudesse estar acessível no formato de áudio, respeitando a tradição da oralidade desses povos. Ao final do curso, em um trabalho liderado pela equipe da tutoria pedagógica, o conteúdo das cartilhas também foi adaptado para o formato de podcast, tornando possível o acesso tanto àqueles com pouca alfabetização na língua portuguesa ou em linguagem digital, quanto aos não cursistas.

Como o projeto previa alcançar prioritariamente oito regiões etnográficas da Amazônia Brasileira (Leste de Roraima, Guamá Tocantins, Alto Purus, Alto Rio Negro, Alto Solimões, Tumucumaque e Paru D´Este, Médio Purus e Yanomami) com reconhecida dificuldade de acesso à internet, foi necessária uma estratégia diferenciada para inscrição e acompanhamento dos profissionais e lideranças dessas áreas. Em cada uma dessas regiões, em parceria com a Coiab, houve a colaboração de jovens comunicadores indígenas que, além de divulgar o curso em seus territórios, identificaram também potenciais interessados nesta qualificação. Uma equipe na sede da Fiocruz Amazônia ficou encarregada de inscrever os participantes com acesso limitado à internet no Campus Virtual Fiocruz, o que representou 21% do total de inscrições. O contato com esses participantes foi realizado prioritariamente por grupos de mensagem instantânea (WhatsApp) para cada região, de modo que tivessem acesso aos materiais assim que estivessem em áreas com cobertura de internet.

Como um curso livre, o curso ‘Bem-Viver: Saúde Mental Indígena’ foi disponibilizado no Campus Virtual Fiocruz (CVF), da Fundação Oswaldo Cruz, e teve carga horária de 60 horas integralmente de ordem teórica. Por ter sido usado um Ambiente Virtual de Aprendizagem, o curso foi aberto para participação de interessados em todo o mundo. Ao longo de oito semanas (04 janeiro a 25 de fevereiro de 2021), houve 2.540 inscritos, dentre os quais 28 foram de outros países (Colômbia, Itália, Peru, EUA, Inglaterra, África do Sul, Uruguai, Alemanha e Chile), além de participantes distribuídos em todas as 27 Unidades Federativas (Figura 1).

Figura 1
Total de inscritos no Brasil por localidade

A diversidade de pessoas que possivelmente poderiam se beneficiar com a formação representava também o tamanho do desafio de falar de temáticas complexas sobre uma pluralidade de mais de cem etnias, com especificidades e organizações distintas. Nesse sentido, o curso se apresentava como um espaço de comprometimento coletivo dos profissionais e atores envolvidos com a saúde indígena, ao mesmo tempo que propunha um olhar mais ampliado sobre as práticas de cuidado e apoio psicossocial, flexibilizando barreiras e valorização das formas de atenção à saúde utilizadas pelas comunidades.

Desenho operacional do curso

O desenho operacional do curso levou em conta a disponibilidade de tempo e condições de conectividade dos alunos para acessar os materiais, considerando que grande parte do público-alvo é formada por pessoas residentes ou trabalhadoras em lugares com acesso precário à internet. Optou-se por disponibilizar todas as atividades de modo assíncrono conforme a possibilidade de acesso tanto à plataforma do Campus Virtual Fiocruz quanto ao grupo de WhatsApp.

O desafio seguinte foi assegurar que esses inscritos conseguissem ter acesso ao material disponibilizado na plataforma. Para isso, uma equipe de tutoria ficou responsável por seu acompanhamento pedagógico. Por meio de grupos de WhatsApp, cada tutor acompanhou duas regiões, fornecendo informações relevantes sobre o curso e suporte técnico, compartilhando semanalmente o material (cartilha e videoaula) conforme ia sendo disponibilizado no Campus Virtual, além de mediar a interação entre os participantes e destes com os professores responsáveis por cada um dos módulos.

O curso ficou disponível na plataforma por nove semanas (entre 18 de janeiro e 20 de março), sendo liberado semanalmente acesso a 1 módulo por vez. Cada videoaula tinha entre 20 e 30 minutos e as cartilhas entre 20 e 30 páginas. Caso fosse necessário acessar o material exclusivamente pelo Ambiente Virtual de Aprendizagem, os alunos teriam que conectar várias vezes a plataforma para concluir os estudos. A tutoria permitiu superar essa dificuldade ao disponibilizar todos os materiais devidamente compactados via WhatsApp.

Se, por um lado, a modalidade EaD possibilitou difusão de conhecimento de modo rápido e seguro, por outro, há dificuldade de acompanhamento humanizado e territorializado dos alunos. A estratégia da tutoria pedagógica, planejada desde o início do projeto, mostrou-se muito acertada para o alcance dos objetivos do curso, apontando caminhos sobre como deve acontecer essa ação em cursos EaD. Esse trabalho foi ainda mais relevante num contexto de baixa conectividade e cuja principal ferramenta de interação foram os grupos de WhatsApp, que funcionaram como uma sala de aula virtual em um ambiente solidário de aprendizagem.

Além do compartilhamento de material, os tutores também mediaram a comunicação entre participantes e professores. Eles compilavam perguntas que chegaram tanto via aplicativo de mensagem quanto via correio eletrônico (recurso pouco utilizado pelos alunos) de modo que o questionamento fosse respondido dentro de até dois dias.

Algumas regiões relataram mais dificuldade de acesso à internet que outras, sendo necessário suporte mais próximo do tutor sobre uso da plataforma e demais recursos tecnológicos. Alguns alunos relataram também que só conseguiam conexão em horários específicos ou que precisavam se deslocar para conseguir acessar a rede móvel de dados e, por isso, só visualizavam o material vários dias depois de postados, acumulando, por vezes, o material a ser lido. Embora relatado por pequeno número de participantes, outro desafio foi a pouca familiaridade com a língua portuguesa. Nesses casos, os tutores tiveram que identificar e contar com profissionais que pudessem dar apoio localmente nessa tradução.

A interação nesses grupos virtuais possibilitou a formação e o fortalecimento de redes de apoio entre os profissionais da região, criando forte laço entre os cursistas que se apoiaram e motivaram uns aos outros para a conclusão do curso.

Além das cartilhas e das videoaulas que ficaram hospedadas no Campus Virtual, os podcasts, com cerca de 20 minutos, foram hospedados no canal do parceiro Coiab na plataforma Spotify. Nesse formato, o material pôde também ser transmitido por rádios comunitárias, assim como facilmente difundido por WhatsApp. Está prevista ainda a disponibilização de um portal com todo o material de comunicação e de formação produzido pelo projeto PIACC, cumprindo o compromisso social de acesso aberto ao conhecimento.

Após o término do curso, muitos alunos solicitaram a continuação do acesso ao conteúdo. Desse modo, o conteúdo das cartilhas foi revisado e reeditado para publicação no formato de livro, lançado no mês de maio de 2021 (Kadri et al., 2021KADRI, Michele R. et al. (org.). Bem-viver: saúde mental indígena. 1. ed. Porto Alegre: Rede Unida, 2021. DOI: 10.18310/9786587180403.
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).

Resultados alcançados e lições aprendidas

Apesar da PNASPI definir que a formação de profissionais para atuação nesse contexto cabe ao órgão responsável pela saúde indígena, destaca também que instituições de ensino e pesquisa podem atuar na formação e certificação de profissionais indígenas e não indígenas (Diehl e Pellegrini, 2014 DIEHL, Eliana E.; PELLEGRINI, Marcos A. Saúde e povos indígenas no Brasil: o desafio da formação e educação permanente de trabalhadores para atuação em contextos interculturais. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, n. 4, p. 867-874, abr. 2014. DOI: 10.1590/0102-311X00030014.
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). Os autores apontam ainda que, nas iniciativas de formação capitaneadas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, pouca ênfase foi dada às questões antropológicas, embora estas sejam pontos diferenciados e sensíveis no escopo da saúde indígena. Especialmente diante de uma crise sanitária, essa qualificação é ainda mais urgente para apoiar a construção de respostas locais.

Do total de 2.540 inscritos, 37,3% receberam certificação após terem concluído todo o curso e respondido ao questionário final de avaliação do curso. Como resultado mais próximo e focado do trabalho de divulgação com as secretarias municipais de assistência social, saúde, conselho tutelar, além dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas nos estados do Norte, 41% do total de inscritos foram dessa região (Gráfico 1). Os participantes das oito áreas prioritárias que tiveram esse acompanhamento desde a inscrição, bem como durante o percurso do curso, apresentaram maior percentual de certificação dentre os participantes, alcançando 53% de alunos concluintes (Quadro 2).

Gráfico 1
Distribuição de participantes por estado

Quadro 2
Inscrições e organizações comunitárias envolvidas no apoio ao curso

Do total de participantes que concluiu o curso e respondeu à enquete de encerramento, 97% avaliaram positivamente o curso e, embora 66% referiram ter algum conhecimento prévio sobre o tema, eles avaliaram que o conteúdo abordado os auxiliou a lidar melhor com seus respectivos trabalhos. Essas informações demonstram que a estratégia foi acertada, ou seja, que os participantes de fato atuam na área de saúde indígena. Cerca de 20% relataram ter tido alguma dificuldade para acesso, seja por questões operacionais quanto ao uso da plataforma, seja por equipamentos de computador, seja por compromisso de outras atividades de trabalho ou de estudo.

Na média, os recursos multimídias e a forma de apresentação dos conteúdos foram avaliados como muito bons e o curso atendeu às expectativas de aprendizagem. De forma geral, 98% avaliaram como boa ou muito boa a satisfação com o curso.

Apesar da necessidade de ofertar formação à distância já ter sido apontada como prioridade desde a 4ª Conferência Nacional de Saúde Indígena em 2006, pouco se avançou nessa construção (Luna et al., 2020LUNA, William F. et al. Identidade, cuidado e direitos: a experiência das rodas de conversa sobre a saúde dos povos indígenas. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, v. 44, n. 2, e067, 2020. DOI: 10.1590/1981-5271v44.2-20190309.
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). Essa estratégia de formação tem sido importante especialmente naqueles territórios mais afastados de centros urbanos, oportunizando qualificação avançada para profissionais (indígenas e não indígenas) que neles atuam, além de trabalhar com temáticas pertinentes ao cotidiano diferenciado da saúde indígena. Nesse sentido, destaca-se a experiência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp, 2021UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO (UNIFESP). Cursos de Especialização. Disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/uab/cursos/especializacao . Acesso em: 22 nov. 2021.
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), que realiza cursos de especialização no formato EaD desde 2009, no total de cinco turmas com cerca de 425 profissionais formados.

A pandemia trouxe urgência de formação para profissionais em temas como manejo clínico, vigilância epidemiológica, saúde mental. Ao longo de 2020, outros cursos voltados para grupos específicos como população de rua, idosos, povos indígenas, população privada de liberdade contribuíram para a construção de uma atenção qualificada para essas vulnerabilidades. A plataforma virtual Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS) reúne vários deles.

O diferencial do curso Bem-Viver foi o reconhecimento da acentuada escassez de recursos digitais e limitação de conectividade nos territórios prioritários da iniciativa, de tal modo que foi fundamental ter equipe focada nos suportes pedagógico e tecnológico para acompanhamento dos participantes. Desde a inscrição, apoio técnico, envio de material até a conclusão do curso, a equipe de tutoria acompanhou todas as atividades para que os profissionais pudessem ter acesso aos materiais, subsidiando-os na construção de estratégias mais eficientes ante o enfrentamento da pandemia.

Além da conectividade, outro ponto de permanente tensão e superação foi a tradução intercultural. Este não foi um trabalho trivial, uma vez que significou assumir a possibilidade de diálogo entre diferentes formas de conhecer e explicar o mundo. Assumindo a importância do exercício de desconstrução e reconstrução epistêmica intrínseca ao processo de elaboração do material do curso, o exercício de tradução não sobrepôs saberes, mas os ampliou com base na experiência do mundo (Santos, 2010SANTOS, Boaventura S. Um Ocidente não-ocidentalista? A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. In: SANTOS, Boaventura S.; MENESES, Maria P. (Orgs). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 519-562.). Na avaliação, os participantes destacaram que o fato de ter indígenas apresentando as videoaulas em seus próprios termos tornaram o curso mais rico e interessante. Muitos relatos destacaram, ainda, a qualidade do material escrito e a produção do audiovisual; como ponto a melhorar, foi sugerido um espaço no ambiente virtual para maior interação entre alunos e professores.

Grupos com maior escolaridade (do ensino médio em diante) conseguiam acessar os recursos educacionais com mais facilidade, interagindo melhor com o material escrito. Já os participantes com menor escolaridade apontaram, com mais frequência, que o recurso das videoaulas seriam mais úteis nos seus cotidianos. Isso evidencia a necessidade de combinação de diferentes formatos de apresentação do conteúdo, além de estratégias especiais para acesso virtual aos materiais. Dada a importância da oralidade para essas comunidades − forma predominante de transmissão, aquisição e produção de cultura em muitos grupos étnicos −, notou-se, ao longo do curso, que disponibilizar mais material ‘falado’ poderia facilitar a aprendizagem de parte importante dos alunos. Deste modo, o conteúdo das cartilhas também ficou disponível em episódios de podcasts como um recurso extra de mídia para divulgação, inclusive, para não cursistas.

Para além do conteúdo dos cursos, é necessário também melhorar as plataformas disponíveis para hospedar cursos em EaD. Contribuir para a superação da exclusão digital nesses lugares significa também ter plataformas e ambientes virtuais mais intuitivos e leves, de modo que sejam facilmente navegáveis através de dados móveis de telefonia celular. Nesses lugares, esta é a principal, senão a única, forma de acesso à internet e, por vezes, não suportam navegação em sites pesados.

Considerações finais

Diante dos casos de Covid-19 entre povos indígenas, é fundamental o desenvolvimento de ações de prevenção, cuidado e atenção a esses grupos e reforço das boas práticas por eles desenvolvidas, sobretudo no que se refere à atenção psicossocial. Desta forma, o curso ‘Bem-Viver: Saúde Mental Indígena’ buscou reforçar a importância da educação para o enfrentamento dos desafios e fragilidades no âmbito da atenção psicossocial no contexto de enfrentamento da pandemia, considerando a diversidade das etnias e as práticas tradicionais adotadas por esses povos.

Os poucos relatos de experiências nas bases de dados consultadas sobre a qualificação de trabalho com povos indígenas evidenciaram a singularidade e inovação das estratégias adotadas na elaboração deste curso. A produção do conteúdo guiado pelo saber tradicional dos consultores indígenas foi um exercício de decolonização do pensamento e permitiu uma aproximação afetuosa e virtuosa da academia com a realidade e a cultura indígena. A escolha no título do presente trabalho, ao substituir a preposição ‘para’ pela expressão ‘com os povos indígenas’ marca, também, o processo de construção dessa iniciativa.

Se há um déficit desde a graduação em formar profissionais com habilidades para atuar em contexto interétnico e intercultural (Diehl e Pellegrini, 2014 DIEHL, Eliana E.; PELLEGRINI, Marcos A. Saúde e povos indígenas no Brasil: o desafio da formação e educação permanente de trabalhadores para atuação em contextos interculturais. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, n. 4, p. 867-874, abr. 2014. DOI: 10.1590/0102-311X00030014.
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), essa aproximação com consultores indígenas desde a concepção do curso fortalece o reconhecimento deles no papel de docência com conhecimentos relevantes a ofertar, reforçando a percepção de si mesmos como agentes de transformação via atividades pedagógicas. A experiência possibilitou um espaço para reconhecimento e exercício do direito de suas culturas e práticas de cuidado.

A tutoria no formato planejado neste curso mostrou-se muito efetiva para reduzir a evasão esperada de um curso EaD, além de ser uma solução para minimizar a desigualdade e exclusão em grande parte da região amazônica no acesso ao conhecimento. Tão importante quanto a atuação dos tutores foi a adaptação dos conteúdos para outros meios de difusão: as cartilhas, vídeos e podcasts. As cartilhas garantiram um registro acadêmico seguro, de maior aprofundamento teórico e de fácil utilização posterior para profissionais de saúde indígenas especialmente. Os vídeos complementaram os conteúdos das cartilhas, exemplificando, com casos concretos, depoimentos, narrativas e personagens das realidades discutidas no curso. Por fim, os podcasts permitiram um alcance mais amplo dos conteúdos, sobretudo para aqueles grupos menos não alfabetizados na língua portuguesa. Apesar das dificuldades de conectividade da região, que já se sabia desde o início do projeto, a escolha pelo formato EaD e autoinstrucional ocorreu, em primeiro lugar, em função do baixo custo e rapidez em disponibilizar conteúdos àqueles profissionais em lugares remotos que, por isso, têm poucas oportunidades de assistir a cursos presenciais. Em segundo, tal formato foi escolhido pela capacidade de atingir um maior número de pessoas em pouco tempo, gerando a aquisição de conhecimentos e competências por meio do desenvolvimento da capacidade crítico-reflexiva para o desenvolvimento de ações a curto, médio e longo prazos. Por fim, no contexto atual de emergência sanitária e com a possibilidade de colapso dos sistemas de saúde, o curso autoinstrucional cumpre o papel de autonomia na atualização e transformação do cuidado em saúde, como principal estratégia de gestores e lideranças para atuar na resposta rápida aos agravos em saúde mental.

A multiplicidade de estratégias adotadas para a construção e condução do curso foi capaz de superar boa parte dos obstáculos previstos e encontrados, permitindo desenvolver profissionais para o cuidado com esses povos tradicionais que, de outra maneira, não conseguiriam acessar o conteúdo. Apesar das limitações encontradas, considerando a complexidade das questões logísticas e culturais, a adesão e permanência do público-alvo foi satisfatória e o propósito do curso, alcançado.

Referências

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  • Aspectos éticos

    A proposta deste trabalho foi dispensada de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa, seguindo os princípios do Artigo 1º, parágrafo único da Resolução n. 510 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), de 7 de abril de 2016.
  • Financiamento

    Fundo das Nações Unidas para Infância e Adolescência (UNICEF) - Projeto OFDA - BRZ/MAO/2020/002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2021
  • Aceito
    01 Dez 2021
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