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Torna-te indivíduo: a noção de si e do outro no laço social capitalista

Become an individual: the notion of self and other in the capitalist social bond

Conviértete en individuo: la noción de sí mismo y del otro en el vínculo social capitalista

Resumo

Este ensaio se dirige a um campo lacunar na crítica da economia política: o estudo e a disputa da noção de pessoa no laço social capitalista. Com esse intento, trazemos ‘o indivíduo’ ao foco, defendendo a ideia de que ele configura uma instituição capitalista, isto é, uma regra de pensamento sobre si e sobre os outros que dá consistência à sociedade. Mostramos, então, que essa consistência pode ser percebida na própria análise que Marx faz do capitalismo, uma vez que o preenchimento histórico do sentido do trabalho e a lógica dos conteúdos da mercadoria exigem a produção de sujeitos essencialmente heterônomos, submissos e eivados pela desigualdade. O indivíduo é, assim, reconfigurado, posto no lugar de uma solução de compromisso que propaga um discurso oposto: o de que nossa individualidade é uma marca aparente de autonomia, independência, igualdade e liberdade.

Palavras-chave:
indivíduo; sujeito; capitalismo; economia política; Marx

Abstract

This essay addresses a lacunar field in the critique of political economy: the study and dispute of the notion of person in the capitalist social bond. With this intention, we bring ‘the individual’ to focus, defending the idea that he or she configures a capitalist institution, that is, a rule of thought about the self and the other that gives consistency to society. We show, then, that this consistency can be perceived in Marx’s own analysis of capitalism, since the historical fulfillment of the meaning of labor and the logic of the contents of the commodity require the production of essentially heteronomous subjects, submissive and driven by inequality. The individual is thus reconfigured, put in the place of a compromise solution that propagates an opposite discourse: that our individuality is an apparent mark of autonomy, independence, equality and freedom.

Keywords:
individual; subject; capitalism; political economy; Marx

Resumen

Este ensayo se dirige hacia un campo abierto en la crítica de la economía política: el estudio y disputa de la noción de persona en el vínculo social capitalista. Con esta intención, enfocamos al ‘individuo’, defendiendo la idea de que el configura una institución capitalista, es decir, una regla de pensamiento sobre sí mismo y sobre los demás que da consistencia a la sociedad. Mostramos, entonces, que esta consistencia puede percibirse en el propio análisis del capitalismo de Marx, ya que el cumplimiento histórico del sentido del trabajo y la lógica de los contenidos de la mercancía requieren la producción de sujetos esencialmente heterónomos, sumisos y marcados por la desigualdad. El individuo es así reconfigurado, puesto en el lugar de una solución de compromiso que propaga un discurso opuesto: el de que nuestra individualidad es una marca aparente de autonomía, independencia, igualdad y libertad.

Palabras clave:
individuo; sujeto; capitalismo; economía política; Marx

Introdução

Neste ensaio de economia política, debruçamo-nos sobre uma instituição fundamental do laço social: a ‘nossa noção de pessoa’, ou seja, o sentido que damos ao ‘eu’, ao ‘outro’ e às formas de sermos ‘nós’. O recorte do texto toma como ponto de partida o ‘indivíduo’, entendendo-o não só como uma consciência de si historicamente determinada, mas também como um elemento ideológico necessário à reprodução capitalista.

Em um exercício crítico, com suporte em textos marxianos, propomos pensar a existência de uma forma de sujeição posta no indivíduo; forma que configura uma razão específica de viver e de morrer, que nos preenche o ser e comanda uma série de processos de subjetivação sem os quais não haveria sociedade capitalista.

Colocar o indivíduo em suspeição é necessário, embora seja também difícil. A dificuldade reside na própria natureza do objeto. Tratar do indivíduo é falar de nós mesmos, é nos inclinarmos em exame. Se, de antemão, falamos em sujeição, é porque o inquérito da noção de si no laço social capitalista revela uma desconfortável ferida narcísica. E não poderia ser diferente, na medida em que somos efeito dessa sociedade, constituídos dos valores e sentidos individualistas por ela oferecidos.

Propomos aqui uma investigação não exaustiva da constituição do indivíduo como noção de pessoa na modernidade, sobretudo em sua quadra capitalista, fazendo notar que ele se estabelece como uma forma de ser atômica, cuja incorruptibilidade se daria pela garantia de sua autonomia, liberdade e igualdade. Depois, propomos decompor essa concepção de si, fazendo-a ser entendida não como um predicado natural do ser, mas como o produto resultante do capitalismo e necessário para sua reprodução.

Intentamos, nesse esforço, caracterizar o sujeito capitalista como ser social que deve performar o indivíduo, sofrer dele. Autonomia, liberdade e igualdade se tornam soluções de compromisso, que escondem e reincidem o que lhes são aparentemente contrários, ou seja, uma forma de sujeição essencialmente heterônoma e de extrema vulnerabilidade, desigualdade e submissão.

A instituição do indivíduo

Pensar em cada ser humano como um indivíduo é uma invenção relativamente recente na história ocidental. Essa noção de pessoa, contudo, não é nem neutra nem empírica, tampouco natural. Antes, defendemos a ideia de que ‘o indivíduo’ e seus desdobramentos no ‘individualismo’ e na ‘individualidade’ são, isso sim, uma política para o ‘eu’, um regime para o ‘outro’ ou um elemento fundamental para a ideologia do laço social.

De fato, como política, a noção de que as pessoas são indivíduos alicerça o campo de sentido pronominal. Se eu, você, nós e os outros somos indivíduos, então devemos agir como tal e lutar pela manutenção da integridade dessa forma de ser. Deriva daí todo um espaço de possibilidades para o direito, a ética, a responsabilidade e a solidariedade.

Etimologicamente, a palavra ‘indivíduo’ tem origem no latim individuuos, um adjetivo que era usado para caracterizar o indivisível. Até o século XVII, esse termo latino era utilizado para traduzir o grego atomos - aquilo que não pode ser cindido -, além de ser empregado teologicamente para demarcar partes indissociáveis, como a santíssima trindade ou o matrimônio (Williams, 1976WILLIAMS, Raymond. Keywords: a vocabulary of culture and society. New York: Oxford University Press, 1976., p. 134).

O sentido moderno do termo ‘indivíduo’ parece ter surgido somente no apagar das luzes do século XVII, quando, em 1694, o filósofo - e pai do liberalismo - John Locke (1632-1704) escreve “Ensaio acerca do entendimento humano” (“An essay concerning human understanding”). Ali, Locke se municia do adjetivo para substantivar “nossa ideia de qualquer ‘homem individual’” (Locke, 1978LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. In: LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. Segundo tratado sobre o governo. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 133-344., p. 240, tradução e destaque nossos).

A contribuição de Locke para o surgimento do indivíduo como noção de pessoa, contudo, é muito mais ampla do que esse episódio etimológico. Na verdade, podemos vislumbrar a concepção moderna da noção de pessoa como um indivíduo somando a filosofia lockiana àquelas apresentadas por René Descartes (1596-1650) e Isaac Newton (1643-1727).

Comecemos por Descartes. A vasta notoriedade do pensamento cartesiano em nosso tempo não se deve somente a sua formidável contribuição para a matemática e para a filosofia. Antes, seu famoso cogito ergo sum (‘penso, logo sou’) produz sentido para além dessas esferas do pensamento, sendo reconhecido por muitos, mesmo que apareça somente como um lema da nossa forma de ser.

O ‘penso, logo sou’ cartesiano sintetiza a concepção de que o pensamento é a forma de existência autônoma de um certo ‘eu’; um eu cuja razão é capaz de se fazer independente e livre, e que é habilitado a submeter a natureza (e tudo mais) ao seu escrutínio isento e desapaixonado. O ser em Descartes, assim, surge como efeito de uma subjetividade que se desvincula do mundo externo e se realiza no exercício de cogitar os objetos. No contexto renascentista, de emancipação do jugo teocêntrico do ocidente feudal, a razão cartesiana se faz uma potência emancipatória para a noção desse eu pressuposto que profere ‘eu penso, logo sou’.

Contudo, se nos perguntarmos sobre o que garante essa existência pensante, o que encontramos em Descartes é um silêncio: o silêncio de Deus. Deus, em sua bondade, se cala ante o livre-arbítrio do pensar, propiciando, assim, que esse pensamento coincida com o ser e que esse ser se individualize em uma relação divina, particular e suficiente. Dessa posição, o eu pode proferir ‘penso, logo sou’ e, de maneira íntegra, fazer-se uma consciência livre, independente e pronta. Nesses termos, é o silêncio de Deus que permite o marco cartesiano do Renascimento: a possibilidade de a razão romper e, simultaneamente, se reconciliar com Deus (Davis, 2003DAVIS, John. The theory of the individual in economics: identity and value. London: Routledge, 2003., p. 4).

Por esses meios, Descartes preserva um lugar para Deus, fazendo-o ocupar a posição lógica de um ‘Deus-garantia’, que generosamente assegura seja o humano como subjetividade desprendida, seja a natureza como exterioridade objetiva e apropriável. Caberia a esse ser de razão a dádiva e a responsabilidade de exercer seu domínio pensante.

Contudo, como vimos, é somente a partir do pensamento lockiano que a ideia do ‘homem individual’ começa a circular como noção de pessoa. Locke foi mais radical do que Descartes, na medida em que entendia a ‘natureza’ subjetiva como sendo o que constitui os indivíduos como seres independentes e autônomos. Em meio ao regicídio da Revolução Gloriosa e ao ódio ao catolicismo, Locke oferece uma noção de si e do outro como elementos da própria natureza, cuja racionalidade se constitui por meio de sua experiência e de seus sentidos (Davis, 2003DAVIS, John. The theory of the individual in economics: identity and value. London: Routledge, 2003., p. 4).

Locke propõe que a razão é adquirida ao longo da vida, pela acumulação de ideias simples (como partículas de saber) que, uma vez combinadas, produzem conhecimentos complexos. Contemporâneo de Newton, ele apresenta uma organização quase-mecânica e associacionista da mente, que seria paralela à organização mecânica da natureza newtoniana (Davis, 2003DAVIS, John. The theory of the individual in economics: identity and value. London: Routledge, 2003., p. 5).

Além disso, há de se notar que a razão em Locke não é um ponto de partida do ser, mas um elemento mediador entre o humano e suas necessidades vitais. Nesses termos, o exercício da razão adviria do imperativo da busca individual por autoconservação. As pessoas, sob tais condições, teriam, no progresso do conhecimento, um meio de sobrevivência (Luz, 2013LUZ, Manuel. Porque a economia não é uma ciência evolucionária: uma hipótese antropológica a respeito das origens cristãs do Homo Economicus. 2013. 191 f. (Doutorado em Ciências Econômicas) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013., p. 60). No limite, o indivíduo lockiano não é aquele que ‘pensa e, logo, é’, mas é aquele que ‘pensa para poder ser’.

A filosofia cartesiana estava entre as mais influentes na Inglaterra na segunda metade do século XVII, de modo que a articulação entre o pensamento de Locke e o de Descartes é evidente. De acordo com a lógica de particularização e independência da razão, podemos depreender que a noção de pessoa em Locke contém e nega a de Descartes. Como no pensamento cartesiano, o indivíduo (ou o eu) também aparece como o portador de uma subjetividade desprendida do mundo e capaz de se fazer independente, mas o individualismo do eu da filosofia lockiana prescinde do silêncio bondoso de Deus, o torna desnecessário.

De fato, o empirismo de Locke toma o eu pelo eu, o faz autêntico, autossuficiente, autointeressado e, assim, ‘indivisível’. É nesses termos que o indivíduo fundamenta e retroalimenta, como noção de pessoa, as consagradas concepções lockianas de liberdade, igualdade e propriedade; valores que, modulados de maneira específica, são predicados do eu na modernidade.

Para Locke, a liberdade do indivíduo é contraposta à não liberdade do escravo. Figurando não como um princípio, mas como um meio, o exercício da liberdade é entendido exatamente pela capacidade do indivíduo de, de maneira independente e íntegra, submeter o mundo externo como um objeto a ser conhecido, com o interesse, em última instância, de garantir a ‘própria vida’ (Davis, 2003DAVIS, John. The theory of the individual in economics: identity and value. London: Routledge, 2003., p. 5).

Dessa concepção de liberdade, Locke desdobra sua noção de igualdade. A liberdade é o denominador comum que estabelece a igualdade individual, de modo a fazer com que todos sejam iguais perante o direito de lutar por sua autoconservação, por seu interesse. A pessoa escravizada tem esse direito sequestrado. Ele está desapropriado do valor da igualdade. A igualdade lhe é imprópria, da mesma forma que seu corpo, seu trabalho, sua vida.

Por fim, a concepção lockiana de propriedade também aponta para a autoconservação. É pela propriedade que os indivíduos livres e iguais podem garantir o usufruto dos ‘seus’ bens; um usufruto que, no limite, teria de se dar pela posse exclusiva e excludente. O exemplo excelente é o do consumo de nutrientes. Como ninguém pode dividir o consumo dos mesmos nutrientes, então a manutenção da vida dependeria, ‘naturalmente’, do direito à apropriação privada, inalienável e, claro, individual.

Liberdade, igualdade e propriedade, assim, configuram um circuito que conforma uma individuação específica, de modo a constituir o ‘eu’ pelo imperativo incorruptível da autoconservação. Locke, nesses termos, fundamenta os indivíduos por meio da relação destes com seus objetos de interesse que, justamente, lhes são as formas de assegurar a vida.

Há que se notar que se a liberdade iguala os indivíduos, são exatamente esses interesses que delineiam sua singularidade. Segundo Foucault, o que Locke concebe por ‘interesse’ é o “princípio de uma opção individual, irredutível, intransmissível, esse princípio de uma opção atomística e incondicionalmente referida ao próprio sujeito” (Foucault, 2008, p. 372).

A subjetividade desprendida do mundo, que enquadra o indivíduo lockiano, se configura, dessa forma, como uma mecânica de interesses e paixões particulares. Essa caracterização de si e do outro não existia na filosofia ocidental antes de Locke e do empirismo inglês (Foucault, 2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 370). O pensamento lockiano está no contexto da inauguração, da invenção do indivíduo, do confinamento do ‘eu’ em um mundo de primeira pessoa (Davis, 2003DAVIS, John. The theory of the individual in economics: identity and value. London: Routledge, 2003., p. 6).

Desse recorte analítico, o que propomos é observar que o indivíduo se torna uma instituição da modernidade. Essa proposição nos é central. Assumir o indivíduo como uma instituição é desvelar que ele performa uma ‘regra do jogo’ capitalista. É reconhecer que ele não somente é um produto de processos históricos, senão que, como instituição, o indivíduo também é um elemento conservador, um fator de inércia social e psicológica (Veblen, 1983VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo: Abril Cultural , 1983., p. 88). Ele é o postulado que condiciona a compreensão do humano, implicando tanto uma determinada forma de consciência de si como uma determinada ordem para a sociedade.

Aqui, não podemos deixar de fazer um último recurso à etimologia. A palavra ‘instituição’ tem suas raízes no latim statuere, que significa “fazer ficar em pé”, “levantar” (Klein, 1966KLEIN, Ernest. Etymological dictionary of the English language. Elsevier: New York, 1966., p. 801). Se a modernidade instituiu o indivíduo, o que fazemos agora é conduzi-lo à ‘clínica’, ‘incliná-lo’, para poder deitar sobre ele nossa análise. Partamos, então, da prefiguração do indivíduo na economia política, a fim de colocá-lo na perspectiva crítica ao capitalismo, como levada à frente por Marx.

A economia política do indivíduo

Ao menos desde a segunda metade do século XX, a economia ocupa um lugar de protagonismo dentre as narrativas que buscam interpretar o humano e suas interações sociais. Esse protagonismo, carregado de poder e influência, pode ser explicado exatamente pelo fato de que a economia convencional é ‘uma ciência liberal’. De maneira bastante evidente, o liberalismo econômico chama para si a função de ser o guardião do individualismo e de seus valores morais inerentes. É tomando o indivíduo como um dos maiores pressupostos normativos da sociedade contemporânea que essa economia constrói todo um discurso sobre o que é possível, sobre o que é eficiente e sobre como se configura o real exercício da liberdade, da igualdade e do mérito.

O interessante é que no campo da luta ideológica e teórica a institucionalização do indivíduo, certamente a maior fortuna do liberalismo, por vezes nem é percebida como tal. Não temos, de fato, outra razão que não a de sermos indivíduos e, desse lugar, performarmos nossa vida. A força do indivíduo como instituição nos conforma mesmo antes de tomarmos consciência e, despercebidamente, produz e reproduz uma maneira profunda de estarmos no mundo.

‘Como não houvesse alternativa’, não nos faz sequer sentido conceber a existência de uma outra sina ao eu. Pretendemos, neste trabalho, apontar uma direção de subversão desse fado. Intentamos, mesmo, colocar essa forma de exercício de si em suspeição, mostrá-la sintomática e atravessá-la pela materialidade do laço social.

Para tanto, retomemos o liberalismo econômico, a fim de vislumbrar um abrigo excelente do individualismo. A economia, como esfera do pensamento, nasce como herdeira de dois pais: John Locke, o já citado pai do liberalismo; e Adam Smith (1723-1790), o dito pai da economia. Significa dizer que a economia já nasce liberal, dada tanta influência de Locke no pensamento smithiano. Desde sempre, ela se conforma com a institucionalização do indivíduo, carregando nele todos os significantes de átomo indivisível, subjetividade desengajada e consciência naturalmente autointeressada.

É nesse ponto que a física de Newton toma seu lugar. A importância do pensamento newtoniano é central, uma vez que oferece justamente uma ciência que permite tomar a natureza externa como objetiva, redutível a ‘partículas’ bem-comportadas e que compõem um mecanismo regido por normas passíveis de serem discernidas e apreendidas pela razão. Newton criou a possibilidade de que nós nos apropriássemos das leis do mundo, dos átomos aos astros, e por esses meios os submetêssemos à compreensão. Mais do que isso, ele incitou as ciências humanas a tentarem emular seu método de compreensão do mundo.

Iluminado por Locke, Smith colore o indivíduo com tons newtonianos, reduzindo todo o complexo dos direitos naturais, da autonomia da razão, da liberdade privada e da mecânica de paixões e interesses a um princípio simples e bem-comportado, tanto quanto os átomos da ordem natural. A partir de Smith, temos a concepção de indivíduo como um ser de um único interesse: ‘o interesse econômico’.

Desde Smith, e cada vez mais intensamente com seus herdeiros teóricos e ideológicos, o liberalismo e o recém-nascido capitalismo transformam o eu e o outro em interesses econômicos encarnados. E essa encarnação tem um carma: a autoconservação por meio da propriedade privada. Assim se configura o famoso indivíduo egoísta smithiano. É o ser da razão autointeressada, o homo economicus, aquele cuja performance realiza o ideal liberal e capitalista em primazia.

As perguntas que incontornavelmente se apresentam são: como é possível que essa noção de pessoa, pensada e defendida, possa conceber alguma coisa como um laço social? Qual o espaço para confluir os autointeresses privados e ensimesmados na constituição de vínculos humanos? A resposta certamente não nos impressiona, haja vista que ela coopta nossa sociabilidade contemporânea: ‘por meio do mercado’. O mercado

possibilita a sociabilidade ao apresentar, àqueles que escolhem, as condições impostas pelo outro e pelo meio, constrangendo os anseios e coordenando as ações. (…) Nesse sentido, o mercado se faz o lugar lógico do que é social: é a única instância em que as plenas liberdades individuais encontram o equilíbrio (pretensamente) natural. (Silva et al., 2021SILVA, Daniel et al. Matrizes psicológicas da episteme neoliberal: a análise do conceito de liberdade. In: SAFATLE, Vladimir; SILVA JÚNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 77-122., p. 113)

A partir desse individualismo atômico, o liberalismo econômico passa a conceber a sociedade pela agregação de indivíduos; a razão social pela emergência da razão individual; e a liberdade de todos pela soberania da liberdade de cada um. Essas composições sociais serão cada vez mais livres quanto mais o mercado, a famosa mão invisível, empunha a sociabilidade e toma as rédeas dos interesses.

As últimas características que queremos salientar da constituição do indivíduo como noção de pessoa no capitalismo dizem respeito a um par de ações que se configuram como desdobramentos de seus interesses: ‘o preferir e o escolher’. Reduzidos aos interesses econômicos e tendo em vista as limitações do mercado, os indivíduos ‘devem’ realizar cálculos de custo-benefício a fim de definir suas preferências e decidir a alocação de seus recursos.

As ciências econômicas liberais têm nesses imperativos um dos seus marcos metodológicos. Preferir e escolher vão além da forma pela qual os indivíduos expressam seus interesses e buscam sua autoconservação. Desde os trabalhos de Paul Samuelson (1915-2009), na primeira metade do século XX, as escolhas são tomadas como o ‘rastro empírico das preferências’. Se um indivíduo escolhe a ociosidade ao trabalho, não há nada mais que se possa considerar, tendo em vista que tal escolha é a manifestação do seu interesse autônomo e livre. Esse avanço metodológico foi de grande valia ao liberalismo econômico, uma vez que redimiu seus economistas de arguir a respeito das condições psicossociais que perpassariam pelos atos decisórios e os condicionariam (Luz, 2013LUZ, Manuel. Porque a economia não é uma ciência evolucionária: uma hipótese antropológica a respeito das origens cristãs do Homo Economicus. 2013. 191 f. (Doutorado em Ciências Econômicas) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013., p. 32).

Contudo, essa caracterização, para muito além de seus aspectos teóricos e metodológicos, solidifica o ‘eu’ do discurso capitalista, o faz inalienável e indivisível. Isso porque o ato de preferir concederia ao indivíduo, no limite, o controle de si, imputando a ele uma racionalidade que é sua e que, portanto, o torna ‘senhor de sua própria casa’. ‘Ninguém pode preferir por ninguém’, diria certamente um economista liberal (provocando, talvez, um sorriso sarcástico naqueles que comandam a rede mercadológica de propagandas).

O ato de escolher, por sua vez, ‘transformaria a subjetividade em ação’, posicionaria o indivíduo na vida e o definiria como ser singular. A escolha é aquilo que revela a individualidade ou, mais do que isso, ela é ‘o indivíduo em realização’. E, de maneira nenhuma, essas afirmações nos soam sem sentido. De fato, o slogan ‘São as escolhas que fazemos que definem quem somos’ é mesmo um mantra contemporâneo, pronto para ser pronunciado para vender livros e cafés, para motivar ao trabalho ou imputar louros e referenciar o sucesso.

O outro lado da moeda é que essas mesmas escolhas, tomadas assim, transferem ao indivíduo a culpa sobre a sua sina, na medida em que apregoam que o futuro de um ser autônomo só pode depender da forma pela qual ele livremente toma iniciativa. Escolher é, afinal, algo que o indivíduo está condenado a fazer o tempo todo. Não há nenhum instante que escaparia à escolha, pois sempre se poderia fazer alguma coisa diferente daquilo que se faz. Significa que em nenhum momento o indivíduo está livre de incorrer em custos (Silva et al., 2021SILVA, Daniel et al. Matrizes psicológicas da episteme neoliberal: a análise do conceito de liberdade. In: SAFATLE, Vladimir; SILVA JÚNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 77-122., p. 111). A única escolha que o indivíduo não pode fazer é a de não escolher e, logo, a de não ser culpado.

Marx e a crítica ao indivíduo

Tomar o indivíduo como uma instituição moderna e capitalista tem o propósito de adentrar no campo dos discursos sociopolíticos exatamente num âmbito basilar para a constituição das formas de expressão da humanidade: a concepção do eu e do outro em suas conformações com o laço social. A supremacia do indivíduo, nesse sentido, representa uma derrota do pensamento e da práxis crítica. E o quase desconhecimento desse fracasso fundamental é uma fatalidade que cerceia nossa ação transformadora.

As decorrências políticas da noção de pessoa em conformação com o laço social já eram perceptíveis em meados do século XIX, quando Marx redigiu os Manuscritos econômico-filosóficos (Marx, 2004MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.). Neste texto, ele escreveu:

Acima de tudo é preciso evitar fixar mais uma vez a ‘sociedade’ como abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ‘ser social’. Sua manifestação de vida - mesmo que ela também não apareça na forma imediata de uma manifestação ‘comunitária’ de vida, realizada simultaneamente com outros - ‘é’, por isso, uma externação e confirmação da vida social. (Marx, 2004MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 107, destaque no original)

Para caracterizarmos as distintas noções de pessoa do liberalismo e de Marx, chamamos a primeira noção de ‘indivíduo’ e propomos denominar de ‘sujeito’ a pessoa entendida, explícita ou implicitamente, no pensamento marxiano. Da citação anterior, fica evidente que o sujeito, como um ‘ser social’, é uma pessoa ‘dividida’ pelo laço com o outro; trata-se de um sujeito preenchido pela história. Ele é uma pessoa ‘excentrada’, isto é, tem seu centro, ou seu íntimo, posto do lado de fora de si.

Antes mesmo da física, Marx promove, nesses termos, a cisão do atomo. E esse nos é um ponto crucial. Entendemos mesmo que a cisão do indivíduo é capaz de liberar uma enorme energia de transformação. Cabe-nos mostrar como o indivíduo é uma peça fundamental do capitalismo, de modo a apontar possíveis espaços para transgredi-lo.

O caminho para tanto parece passar por outra obra de Marx: A ideologia alemã (Marx e Engels, 2007MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo , 2007.). Nesta obra, Marx e Engels buscam deslocar a filosofia das suas concepções de razão desprendida do mundo e de um espírito absoluto em direção à realidade concreta, ao materialismo histórico. O que significa isso? Significa que, ‘antes de tudo’, devemos viver; e viver implica uma determinada forma histórica e incontornavelmente social de se ‘obterem os meios de vida’. Logo, a base pela qual se pode experimentar a existência não está na razão, ou no absoluto; ela está nas formas pelas quais obtemos os bens que nos possibilitam existir.

O retorno ao cogito cartesiano nos ajuda não só a compreendermos o materialismo histórico, mas também a localizá-lo na forma pela qual nos reconhecemos como pessoas. Em ‘penso, logo sou’, podemos fazer aparecer duas existências: a da ‘pessoa que pensa’ e a da ‘pessoa pensada’, o eu e a consciência-de-si.

Ao dizer ‘eu sou’, a pessoa toma a si mesma como objeto e mobiliza a razão, a consciência e a linguagem para representar a si própria. Assim, podemos compreender a concepção crítica de Marx e Engels de que o indivíduo não pode ser entendido simplesmente como uma amostra individual da espécie humana, senão como uma construção da história, carregada de valores e funcionalidades. É a história que preenche a forma de existência e possibilita uma maneira específica de consciência de si, ou seja, de sujeição.

Quando submetemos a consciência e o ser-consciente à história, os fazemos produtos do laço social no qual eles se inserem e deflagramos que o pensar, longe de ser o evento inaugural do eu, é na verdade uma engrenagem do funcionamento da ordem material. O indivíduo, portanto, essa regra de pensamento sobre si no capitalismo, é um instrumento crucial para que esse laço social se mantenha e se reproduza.

O exemplo dos subtítulos dos livros de autoajuda seria excelente para expor as contradições do individualismo capitalista. Mas é importante reforçarmos que a institucionalização do indivíduo não se constitui como um discurso enganoso, falacioso ou simplesmente sofista. Pensar-nos indivíduos constitui uma ‘abstração concreta’, no sentido de que essa noção de pessoa é, de fato, uma forma específica de como o eu e o outro ‘aparecem’ e se desenvolvem socialmente.

A luta contra o indivíduo, como instituição capitalista fundamental, não deve se pautar, portanto, pela acusação de que ele é uma “ilusão da consciência”, propondo que nos desfaçamos dessa fantasia a fim de nos elevarmos ao status de uma “consciência humana” (Marx e Engels, 2007MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo , 2007., p. 84). Assim, retornaríamos à ontologia do pensar, uma vez que, no limite, entenderíamos que o humano poderia ter sua verdade alcançada quando a razão que o constitui estivesse livre das ilusões produzidas pelo laço social. Antes disso, é necessário que desenvolvamos um método de expor e explorar as contradições existentes no individualismo capitalista.

Um método para abordarmos nossa sujeição ao capitalismo

Explorar a contradição em torno da institucionalização do indivíduo parece nos apontar para a dialética. Entendemos que há dois pares dialéticos capazes de nos conduzir à compreensão materialista da sujeição na sociedade capitalista, bem como ao encontro do que há de potência transformadora em meio ao impossível da tomada de consciência histórica sobre si. Esses pares são: 1) a contenção e a negação; 2) a aparência e a essência.

Tomar esses pares como contraditórios e interpelá-los pela dialética significa dizer que os elementos que os constituem não se anulam mutuamente e que tampouco é possível passar de um ao outro pela negação; isso, sim, a caracterização de cada um desses pares como contraditórios, faz implicar que haja uma relação de ‘solidariedade entre contrários’, de modo que um existe somente quando possibilitado pelo outro (Safatle, 2006SAFATLE, Vladimir. A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo: Editora Unesp, 2006., p. 244).

A contradição entre conter e negar nos possibilita vislumbrar, pela dialética, o movimento lógico e de sentido dos fenômenos. Para tanto, Marx recorre à palavra alemã aufheben, traduzida para o português como ‘suprassunção’. A suprassunção combina duas acepções de aufheben, fazendo-a expressar, ao mesmo tempo, tanto anular quanto conservar; tanto abolir quanto poupar; tanto superar quanto preservar. O indivíduo, então, tem de ser o que surge como efeito do sentido de si no capitalismo, efeito esse produzido pelo movimento de contenção e negação das formas e dos conteúdos materiais dessa organização social.

Por sua vez, a oposição entre aparência e essência também é constante na obra de Marx, por conta da influência, nele, do pensamento de Friedrich Hegel (1770-1831). A dialética desse par contraditório reside na concepção de que a aparência da realidade de um fenômeno não é aquilo que solapa sua essência, que a perverte ou anula. Ao contrário, a realidade aparente é o que possibilita a essência real; é aquilo que encobre a verdade do fenômeno como maneira de preservá-lo (Žižek, 2003ŽIŽEK, Slavoj. El sublime objeto de la ideología. Buenos Aires: Siglo XXI, 2003., p. 249). Nesse sentido, a essência do sujeito no capitalismo pode ser reproduzida e mais a mais atualizada, somente na medida em que esse sujeito aparece como um indivíduo.

Esse movimento de contenção e negação que permite a reprodução de uma essência por meio de sua oposição à aparência deixa espaço ainda para mais um avanço. Ora, como se processam essas contradições na conformação subjetiva dos sujeitos? Qual o caráter tanto da negação que contém quanto da aparência que encobre e abriga a essência do laço social capitalista?

A resposta para essas questões é um dos pontos centrais deste ensaio. Defendemos a ideia de que o capitalismo se reproduz pelo ‘fetichismo’. O fetichismo é o modo capitalista. Ele é a forma pela qual se nega e conserva. Ele é o tecido que a aparência estende para ocultar a essência desse laço social e dar abrigo a ela.

O fetiche é um ‘saber e fingir não saber’ e, ao mesmo tempo, um ‘agir como se fosse’. Nesse sentido, parece-nos rico aproximar Marx de outro autor que fez o fetichismo notável: Sigmund Freud (1856-1939). O denominador comum entre o fetiche em Marx e em Freud é a percepção de que o fetichismo produz uma realidade com base no ‘desmentido’, em um contorno quase-cínico do real.

Munidos dessa dupla contradição - negação versus contenção e essência versus aparência - operada pelo fetichismo, avancemos na direção de situar o sujeito capitalista e a função da institucionalização do indivíduo como noção de pessoa desse laço social.

Trabalho e sujeição no capitalismo: a produção do indivíduo como sintoma

Para abordarmos a sujeição no laço social capitalista, vamos começar do começo, como deve fazer toda abordagem materialista. O começo é a vida pela qual a história obriga que seja repetidamente vivida. Quer dizer que as formas de nutrir, sustentar e reproduzir a vida têm de condicionar o vivente, de modo a serem tomadas por aquilo que o possibilita.

E o que é viver no capitalismo? Viver no capitalismo é ser sujeito de um laço social que historicamente condiciona que os recursos necessários para a existência sejam obtidos, no limite, ante a distinção entre quem detém os meios de produção e quem dispõe apenas do próprio corpo para produzir. Essa distinção impõe que, antes de mais nada, existam trabalhadores e trabalhadoras que, a um outro, ofereçam uma parcela da vida e do corpo para serem consumidas em troca do salário, ou seja, daquilo que lhes daria o direito de adquirir o que contorna a fome, a sede e o frio; o que, portanto, viabiliza o viver.

Mas não é só isso. O triunfo histórico do capitalismo - e o que para muitos é o triunfo do capitalismo sobre a história - é que esse laço social é extremamente produtivo. Uma das imagens mais ilustrativas dessa produtividade foi captada por Adam Smith, no contexto da fábrica de alfinetes (Smith, 1988SMITH, Adam. Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. São Paulo: Nova Cultural , 1988., p. 17). O autor observa que a ‘divisão do trabalho’ eleva consideravelmente o volume de bens e serviços e que, além disso, subsome o trabalhador na simplificação da lida. Esse é o espaço para a maquinização da produção, para a revolução e para a superprodução.

Juntos, a separação entre trabalhadores e os detentores de meios de produção, o trabalho livre e assalariado e a extrema divisão do trabalho, instalam o capitalismo na história e formam as bases para a existência humana e o viver social de todos e todas que lhes são sujeitos. Essas condições não são triviais. Elas, na verdade, exigem que as pessoas sejam suportes do laço capitalista, pois é por meio desses suportes que o capitalismo se encarna e se reproduz. Em outras palavras, os sujeitos no capitalismo devem ser moldados objetiva e subjetivamente por esse vínculo material que lhes permite, dia após dia, viver.

‘Quais são as condições que o capitalismo impõe a seus sujeitos?’ Responder a essa pergunta, do ponto de vista materialista, implica determinar quais os alicerces da existência do eu e do outro nesse laço social. Esse é o campo no qual queremos edificar a noção de pessoa capitalista. Para tanto, vamos contrastar a essência e a aparência desse laço, a fim de compreender a dialética que constitui o imaginário de si.

A primeira condição capitalista é a de que seus sujeitos devem, antes de mais nada, contar com a alienação da força de trabalho a um outro, que a consumirá de acordo com seus interesses. Sendo assim, há uma ‘existência heterônoma’ bastante específica, fundamental e intensa nessa sociedade.

Transformada em mercadoria, a força de trabalho é um pedaço do eu que precisa ser adiantado ao outro para que, ‘depois’, possa surgir algo como um sujeito consciente. Nas palavras de Marx, “o trabalhador se torna, portanto, um servo do seu objeto [...] para que possa existir, em primeiro lugar, como trabalhador e, em segundo, como ‘sujeito’ físico” (Marx, 2004MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 81-82, destaque no original).

E o indivíduo autônomo? Ora, ele é a ‘aparência’ que surge para reproduzir a extrema heteronomia do eu no capitalismo. E não se trata de uma enganação, mas de uma abstração concreta desse laço social. Sob jugo da lida cada vez mais dividida e da pretensa pactuação de dois seres livres e independentes (o trabalhador e o empregado), o que é mais lógico do que figurarmos narrativamente como indivíduos autônomos?

De fato, essa autonomia individual se expressa pela ‘contenção e negação da heteronomia radical do laço social’. Somente pela aparência de autonomia, a forma de exploração do trabalho no capitalismo pode se reproduzir. Historicamente, foi na passagem do feudalismo para o capitalismo que esse laço social ‘deslocou a resignação para um campo obsceno’, retirando-a de sua relação com Deus, exigindo que ele se calasse diante dela, e fazendo aparecer a autonomia como um sintoma ‘fetichista’ que possibilitasse seu contrário: um sujeito heterônomo.

A heteronomia que funda a nossa vida, embora denegada pela narrativa de autonomia individual, se manifesta reincidentemente nas nossas angústias cotidianas. Talvez o exemplo mais vívido dessa condição seja o desamparo que nos toma ante a perda (ou a possibilidade da perda) do emprego. A demissão, experimentada como uma morte, nos enluta. E não se trata de uma romantização em torno do valor moral do trabalho, mas da tragédia que é ter as condições de manutenção da vida postas em suspeição, em ameaça.

Uma segunda condição capitalista é o ‘encerramento do trabalho à existência’. Percebamos que o trabalho em nome da reprodução do capital não é episódico ou momentâneo. Ele, na verdade, preenche todo o exercício humano de trabalhar. A lida diária no capitalismo deve ser uma lida vendida, de modo que essa atividade vital se atrofia pelo esforço repetidamente alienado.

Ter consciência de si, no capitalismo, assim, é experimentar uma liberdade que só pode existir caso se negue o cerceamento da vida à manutenção da existência, como menciona Marx: “O trabalho estranhado inverte a relação a tal ponto que o homem, precisamente porque é um ser consciente, faz da sua atividade vital, de sua essência, apenas um meio para a sua existência” (Marx, 2004MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 84-85).

No capitalismo, o trabalho não pode ser, de fato, autônomo e livre. Ele não pode ter como ‘fim’ nem aquilo que está mais ligado à singularidade do sujeito - como a sublimação pela arte, pelo conhecimento, pelo esporte - nem aquilo que se dirige ao bem coletivo. Deve-se trabalhar, isso sim e tão somente, para o outro, para aquele que compra um largo pedaço da nossa força. Se é assim que se garante a - quase sempre ameaçada - existência, então ‘toda forma de trabalho para além daquele vendido aparece como uma perda, um desperdício de vida’.

A liberdade de escolha individual no capitalismo, então, compõe uma narrativa fetichista que encobre o fato de que pouco nos resta da vida para preenchermos livremente com nossos próprios interesses e nossas próprias escolhas. E o véu da aparente liberdade, que cobre a essência da nossa submissão, não cansa de tornar evidente aquilo que quer ocultar: artistas, esportistas, intelectuais, professores, ativistas e militantes aparecem como pseudotrabalhadores, vadios ou inúteis. O que há por trás dessa depreciação, senão o fato de suas atividades não serem perfeitamente apropriáveis pela lógica capitalista, carregando consigo, sempre, uma perigosa insubmissão?

Avançando, temos que a decorrência lógica e histórica da organização do trabalho assalariado e intensamente dividido deve ser a produção de ‘mercadorias’. No capitalismo, os trabalhadores, despossuídos dos meios de produção, devem vender sua força de trabalho ao capitalista, que promoverá a produção de bens e serviços destinados à venda. Embora essa relação social possa parecer simples, ela guarda uma série de exigências objetivas e subjetivas dos sujeitos que a empreendem.

Logo no início de O capital, Marx (1988MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1, tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988.) faz a célebre investigação do conteúdo da forma mercadoria. Ele identifica que há nela duas formas de valia: o valor de uso e o valor de troca. Primeiro, como valor de uso, significa que a mercadoria tem, em suas propriedades físicas, a capacidade de satisfazer as necessidades humanas. Nesse sentido, o valor de uso é uma propriedade qualitativa da mercadoria, uma vez que advém das propriedades de sua matéria. O valor de uso, portanto, não expressa, em si, uma medida (quantitativa) de valia.

Por sua vez, o valor de troca é, ele sim, quantitativo por excelência. Ele compreende ‘os termos pelos quais os bens são trocados’. Significa dizer que há uma relação quantitativa entre bens no valor de troca, haja vista que um bem se distingue para, socialmente, manifestar o valor de outro.

A pergunta condutora de toda a investigação promovida por Marx (1988MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1, tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988.) no primeiro capítulo de O capital é: como duas coisas qualitativamente diferentes em seus valores de uso podem ser quantitativamente reduzidas ao mesmo termo de troca? É o mesmo que perguntar sobre o que há de ‘específico’ na troca capitalista.

Marx observa que o que há de comum nas diferentes mercadorias é o fato de elas serem produzidas por meio do dispêndio do tempo de vida. É nesse elemento que Marx encontra a possibilidade de uma igual expressão quantitativa para bens incontornavelmente distintos: as mercadorias, para serem criadas, mobilizaram uma quantia de ‘tempo de trabalho’, tempo esse que é adquirido, como força de trabalho, pelo capitalista. Logo, quanto mais trabalho uma mercadoria demandar, maior deve ser o seu valor de troca.

Contudo, o próprio trabalho é de natureza distinta, tanto porque trabalhadores diferentes tendem a exercer trabalhos diferentes, quanto pelo fato de que há muitas maneiras distintas de se despender o tempo trabalhando. O preenchimento do tempo de trabalho da enfermeira, do professor e do marceneiro são tão distintos quanto distintos são os bens por eles produzidos.

Quanto a isso, avança Marx (1988MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1, tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988.):

Se ‘abstrairmos’ o seu valor de uso [da mercadoria], ‘abstraímos’ também os componentes e formas corpóreas que fazem dele valor de uso. Deixa já de ser mesa ou cadeira ou fio ou qualquer outra coisa útil. Todas as quantidades sensoriais se apagaram. [...] Ao desaparecer o caráter útil dos produtos, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados, e desaparecem também, portanto, as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a ‘trabalho humano abstrato’ (Marx, 1988MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1, tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988., p. 47).

A abstração a que Marx se refere não é um pressuposto analítico. Ele não nos convida a abstrair das diferentes qualidades dos bens e do trabalho empregados na produção. Não se trata de um reducionismo teórico, necessário para a compreensão de uma particularidade. Na verdade, essa redução é objetiva para Marx. Trata-se de uma abstração que se faz concreta. Ou seja, se não abstrairmos das distintas qualidades dos trabalhadores, dos trabalhos e dos frutos do trabalho, não é possível estabelecermos as trocas de mercadorias.

Essa é uma condição para a troca capitalista justamente porque as mercadorias foram produzidas para serem, mesmo, cambiadas. Trocar no capitalismo, então, obriga a abstração de diferenças e a redução do tempo de trabalho a uma “gelatina de trabalho humano indiferenciado” (Marx, 1988MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1, tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988., p. 47).

Essa abstração concreta significa uma subjetivação. As pessoas que são efeito do laço social capitalista trocam bens desiguais, desmentindo suas diferenças. Essa operação fetichista implica, pois, a conformação de ‘sujeitos indiferentes’. Os sujeitos devem ser indiferentes para que haja troca e, não só isso, para que haja esse tipo de organização produtora de mercadorias; logo, para que haja a provisão dos bens necessários à existência.

Se, por um lado, as mercadorias precisam ser distintas para que as trocas se justifiquem, por outro, essas diferenças contidas precisam ser negadas. Suas essenciais distinções precisam aparecer como equivalências. Essa operação é objetivada pelo dinheiro, signo contábil do capital, e subjetivada por sujeitos indiferentes às qualidades das mercadorias trocadas. Mais do que isso, se os termos de troca têm como possibilidade o fato de as mercadorias carregarem tempo de trabalho social na sua constituição, então o capitalismo exige que essa indiferença seja expandida na sociedade também para os trabalhos que produzem mercadorias e os trabalhadores que exercem essas atividades.

Os sujeitos do capitalismo, por força do próprio laço que os constitui, têm cerceadas a capacidade de identificarem a si e aos outros como fundamentalmente diferentes. Tudo aquilo que nos faz socialmente determinados e que compreende as distinções historicamente estabelecidas (de classe, de raça e de gênero, por exemplo) é contornado pelo fetichismo capitalista.

Entretanto, temos de nos perguntar: se a indiferença é a essência da noção de si e do outro no capitalismo, o que aparece para contê-la e negá-la a fim de perpetuar e reproduzir esse laço? O que aparece, de maneira quase-cínica, é uma narrativa de ‘igualdade entre indivíduos’. Se observarmos de perto o ideário da igualdade capitalista - inclusive aquele do liberalismo econômico e da meritocracia -, o que encontraremos é que essa noção de igualdade prega, isso sim, a indiferença para com o outro.

A igualdade que caracteriza o indivíduo capitalista, então, nada mais é do que um sintoma. Ela é o que aparece da realidade doente que funda o sujeito desse laço social: a desigualdade. O capitalismo consegue se realizar nessa contradição, exatamente por perverter a ‘in’diferença com relação à desigualdade como uma ‘não’ diferença entre os indivíduos. ‘A igualdade surge como um fetiche’, como um desmentido cínico daquilo que se escancara e que lhe é o exato oposto.

O indivíduo: uma solução de compromisso fetichista

A dialética da contradição entre ser e não ser indivíduo nos conduz a entender como essa noção de si e do outro é uma aparência real que funda as formas pelas quais as pessoas podem pensar sobre o que são no capitalismo. Aparecemos como indivíduo para desmentir e reproduzir as condições essenciais da nossa sujeição.

Por uma narrativa épica, performamos esse eu que pensa ser interessado em si, e que a qualquer momento pode livremente escolher, iniciar, empreender e colher os frutos do seu trabalho. Encenamos nossa autonomia na defesa de nossos interesses, como todo mundo o faz. Iguais a todos, representamos nossa liberdade nas trocas diárias, nos contratos que nós escolhemos, a cada instante, assinar ou não assinar. Cada um por si, ascendemos ao palco dos mercados, estabelecemos nossos preços, vendemos, compramos e, fantasiando o nosso livre-arbítrio, mascaramos o bem-estar social; tudo sob a mão invisível e implacável de um Deus silencioso, calado.

Temos de sofrer desse individualismo para realizar nosso devir de sujeitos do capital. Somente assim reproduzimos um sistema que nos obriga a viver em nome dos interesses e preferências daqueles que alienam os frutos da nossa lida. Somente como indivíduos suportamos ser sujeitos que despendem a existência vendendo nossa atividade criativa, emancipadora e vital. E, de maneira importante, somente sendo indivíduos igualados pela indiferença podemos buscar nossas identidades fundamentais em campos outros que não na estrutura de classes e suas derivações históricas; amando, odiando, idealizando, rivalizando, lutando e comungando de acordo com os ditames do capital.

Mais do que isso, é preciso que chamemos a atenção, de novo, para algo fundamental: a forma pela qual a aparência contém e nega a essência de si e do outro no laço social capitalista é frágil, cínica, sarcástica. Ela é um véu que mais chama a atenção do que oculta aquilo que encobre. Da mesma forma que, segundo Freud (1996FREUD, Sigmund. Fetichismo [1927]. In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXI., p. 79), um fetichista não nega a anormalidade em relação ao objeto que move seu desejo - seja o fetiche por pés, seja por dinheiro ou por um certo tipo de brilho do nariz -, não é necessária nenhuma elaboração sofisticada para que nos vejamos diante de um estranhamento quando somos narrados como indivíduos autônomos, livres e iguais.

Os desmentidos capitalistas pelos quais sua essência é negada e reproduzida são evidentes. De que outra maneira, senão pelo fetiche, ou pela comédia, poderíamos tomar como autônomos os sujeitos que, antes de mais nada, passam fome e, despossuídos de quaisquer formas de obtenção de recursos materiais, se submetem à graça de quem domina os meios de produção?

De que maneira podemos ser livres, se o campo da escolha - desde a mais objetiva e fundamental até a mais subjetiva e fantasista - é restringido e conformado, mais e mais, pela semântica do desejo de poucos - semântica essa que produz e reproduz, que compra e vende, que excede e que se apropria das formas de gozo da sociedade?

E o que dizer da igualdade dos indivíduos, senão que é a encenação de uma farsa? Como as pessoas podem ser iguais quando é a diferença que os posiciona socialmente, pela classe, pelo gênero, pela raça, pela sexualidade, pela etnia? Chamar essas pessoas de iguais é um nítido instrumento de poder e de reprodução das formas históricas que o capitalismo engendra.

O fetichismo - da mercadoria, do dinheiro, do capital -, em seus processos de contenção e negação cínica da essência evidente do capitalismo, transforma o viver em um fio da navalha, no campo limite entre a neurose e a perversão: é o saber e o não saber da Lei; é, o tempo todo, desmentir o que se sabe. É uma maneira pela qual se reproduz e acumula um esquecimento.

Os brancos, com suas mentes fincadas nas mercadorias, não querem saber de nada. Continuam a estragar a terra em todos os lugares onde vivem, mesmo debaixo das cidades onde moram! Nunca passa pela cabeça deles que se a maltratarem demais, ela vai acabar revertendo ao caos. Seu pensamento está cheio de esquecimento e vertigem. Por isso eles não têm medo de nada e acham que estão a salvo de tudo. (Kopenawa e Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 435-436)

É assim que o xamã Davi Kopenawa faz o diagnóstico da nossa vida. E, mais do que isso, é dessa forma que ele, de maneira clínica, introduz o que, no apagar das luzes, pode ser a nossa morte.

Referências

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  • Financiamento

    Esta pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), na modalidade Programa de Excelência Acadêmica (Proex), nível Doutorado.
  • Apresentação prévia

    Este ensaio é resultante da tese de doutorado intitulada Do sujeito da Economia Política às condições da subjetividade capitalista, de autoria de Daniel Pereira da Silva, defendida no Programa de Pós-Graduação em Economia do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2022
  • Aceito
    28 Set 2022
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