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TRABALHO, SAÚDE E FORMAÇÃO POLÍTICA NA ENQUETE OPERÁRIA DE MARX

WORK, HEALTH, AND POLITICAL TRAINING IN MARX'S WORKER'S INQUIRY

TRABAJO, SALUD Y FORMACIÓN POLÍTICA EN LA ENCUESTA OBRERA DE MARX

Resumo

Em 1880, Marx redigiu e publicou a Enquete operária para investigar as condições de vida e saúde da classe trabalhadora francesa. Além da investigação em si, tratava-se de politizar e fortalecer as organizações de luta dos trabalhadores franceses. A Enquete é, portanto, um mecanismo de investigação e politização da classe trabalhadora. O objetivo deste ensaio foi analisar a atualidade da Enquete de 1880. Quatro aspectos dela foram discutidos: desenvolvimento e utilização, acidentes de trabalho, jornadas e intensidade do trabalho, salários e condições de vida. A consistência da Enquete se deve à teoria marxista que a sustenta. Afirma-se, neste ensaio, que o questionário de Marx e a forma enquete operária – entendida como mecanismo de investigação e politização – permanecem válidos.

Palavras-chave
marxismo; enquete operária; condições de trabalho; processo de produção; saúde do trabalhador

Abstract

In 1880, Marx wrote and published A Worker's Inquiry to investigate the living and health conditions of the French working class. In addition to the research itself, it had to do with politicizing and strengthening the French workers‘ struggle organizations. A Worker's Inquiry is, therefore, an investigation and politicization mechanism of the working class. The purpose of this assay was to analyze how current the 1880 A Worker's Inquiry is today. Four aspects of it were discussed: Development and use, labor accidents, working hours and intensity of the work, wages, and living conditions. The consistency of A Worker's is due to the Marxist theory that supports it. This essay states that Marx’ questionnaire and the form of “worker's inquiry” – understood as a mechanism for research and politicization – remain valid.

Keywords
marxism; worker's inquiry; work conditions; production process; worker's health

Resumen

En 1880, Marx redactó y publicó la Encuesta obrera para investigar sobre las condiciones de vida y salud de la clase trabajadora francesa. Además de la investigación en sí, se trataba de politizar y fortalecer las organizaciones de lucha de los trabajadores franceses. La Encuesta es, por lo tanto, un mecanismo de investigación y politización de la clase trabajadora. El objetivo de este ensayo fue analizar la actualizada de la Encuesta de 1880. Se discutieron cuatro aspectos de la misma: desarrollo y utilización, accidentes de trabajo, jornadas e intensidad del trabajo, salarios y condiciones de vida. La consistencia de la Encuesta se debe a la teoría marxista que la sostiene. En este ensayo, se afirma que el cuestionario de Marx y la forma encuesta obrera – entendida como mecanismo de investigación y politización – continúan siendo válidos.

Palabras clave
marxismo; encuesta obrera; condiciones de trabajo; proceso de producción; salud del trabajador

Introdução

Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). redigiu e publicou a Enquete operária3 3 Para tornar a leitura mais leve, empregamos os nomes Enquete operária, Enquete de 1880, Questionário e Enquete como sinônimos. Mas privilegiamos a palavra Enquete, que tem o sentido de investigação. em 1880 com o objetivo de investigar as condições de vida e de saúde da classe trabalhadora francesa. A Enquete também procurou politizar e contribuir para a organização e o fortalecimento dos trabalhadores franceses, ou seja, constituiu-se em instrumento político que tomou partido destes, sem criar uma falsa ilusão de imparcialidade (Ramminger et al., 2013RAMMINGER, Tatiana et al. Ampliando o diálogo entre trabalhadores e profissionais de pesquisa: alguns métodos de pesquisaintervenção para o campo da saúde do trabalhador. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n.11, p. 3.191-3.202, 2013.). Nas questões elaboradas por Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). reaparecem as análises e observações realizadas pelo autor em suas obras, especialmente O capital (Marx, 2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.), o que torna a Enquete um texto importante, em contraste com sua pouca utilização pelos movimentos dos trabalhadores e pelas ciências sociais.

Os agravos à saúde dos trabalhadores tratados na Enquete continuam a ocorrer no tempo presente, também por isso o texto de Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). é atual. Aos problemas não superados se somaram outros.

Neste ensaio, analisamos a atualidade da Enquete e sua relação com temas que envolvem ou influenciam as condições de trabalho: acidentes laborais, jornadas e intensidade do trabalho, salários e condições de vida. Antes de tratar especificamente de cada um desses tópicos, discorremos sobre o desenvolvimento e a utilização da Enquete operária.

Desenvolvimento e utilização

No final da década de 1870, o movimento operário francês começava a se reconstruir após a dura repressão que se seguiu à Comuna de Paris, em 1871. Foi nesse contexto que, em 1880, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). redigiu e publicou a Enquete operária. A primeira referência de Marx (2008)MARX, Karl. Instruções para os delegados do Conselho Geral Provisório: as diferentes questões. Marxists Internet Archive, 2008. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/marx/works/1880/letters/80_11_05.htm>. Acesso em: 5 ago. 2015.
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à necessidade de elaboração de enquetes ocorreu em 1866, em nome do Conselho Central Provisório da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), quando o autor solicitou a elaboração de inquéritos estatísticos sobre a situação dos operários nos países em que a AIT atuava. Marx (2008)MARX, Karl. Instruções para os delegados do Conselho Geral Provisório: as diferentes questões. Marxists Internet Archive, 2008. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/marx/works/1880/letters/80_11_05.htm>. Acesso em: 5 ago. 2015.
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destaca que, para agir, é preciso conhecer a realidade sobre a qual se vai atuar, e as enquetes contribuiriam para isso. Na solicitação de 1866, estão indicados os eixos principais que seriam retomados na Enquete de 1880. As lutas políticas impediram que as enquetes fossem realizadas imediatamente – somente em 1880 seria publicada a Enquete operária pela revista francesa Revue Socialiste. O Questionário original não foi assinado por Marx, mas, em carta endereçada a Friedrich Adolph Sorge, em 1880, o próprio Marx (1938)MARX, Karl. Karl Marx to Sorge. Letters of Marx and Engels from Science and Society. Science and Society, v. 2, n. 2, Spring 1938. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/marx/works/1880/letters/80_11_05.htm>. Acesso em: 7 ago. 2015.
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confirma ter redigido a Enquete operária.

Foram distribuídos 25 mil exemplares do Questionário. Cerca de cem retornaram preenchidos - entretanto, esse fato tem importância relativa. “O essencial era que os questionários, chegando aos operários, lhes dessem novas possibilidades de conhecer a maneira pela qual a exploração capitalista funciona” (Lanzardo, 1982LANZARDO, Dario. Marx e a enquete operária. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 233-246. (Série Teoria e História. 6)., p. 245).

A Enquete de Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). objetivava compreender a situação da classe trabalhadora para fortalecer suas organizações de luta e resistência, que haviam sido liquidadas após a Comuna de Paris e começavam a ressurgir no final dos anos 1870. Além disso, na introdução do Questionário, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). destaca que um dos objetivos deste era forçar o governo francês a fazer uma investigação séria sobre a situação da classe operária, como já havia acontecido na Inglaterra, resultando em conquistas como a limitação da jornada legal de trabalho em dez horas e leis sobre o trabalho de mulheres e crianças. Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). ironiza afirmando que, apesar dos escassos recursos de que dispunha, iniciaria as pesquisas acreditando que poderia animar o governo republicano da França a seguir o exemplo do governo monárquico da Inglaterra.

No contexto de renascimento e fortalecimento do movimento operário francês, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). se dirigiu à classe trabalhadora para informar e se informar também sobre questões relacionadas à saúde dos trabalhadores, o que mostra a importância que o autor atribuía a elas. Na introdução da Enquete, Marx (1982MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6)., p. 249) afirma: “Estes cadernos do trabalho constituem o primeiro passo que a democracia socialista tem que dar para abrir caminho à renovação social.” Ao final da introdução, o autor destaca que as respostas dos trabalhadores seriam classificadas e serviriam de base para a elaboração de monografias especiais que depois seriam reunidas, o que estava de acordo com o planejamento feito pelo Conselho Central Provisório da Associação Internacional dos Trabalhadores em 1866.

Após a publicação da Enquete operária, Marx e Guesde [1880MARX, Karl; GUESDE, Jules. The Programme of the Parti Ouvrier. Marxist Internet Archive. [1880]. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/marx/works/1880/05/parti-ouvrier.htm>. Acesso em: 7 ago. 2015.
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] elaboraram o Programa do Partido dos Trabalhadores Franceses, que foi aprovado em congresso realizado em novembro de 1880 e dialoga com a Enquete. Interessante notar que o programa do Partido dos Trabalhadores Franceses é atual e incorpora reivindicações de saúde dos trabalhadores, ou seja, não separa estas da luta pela emancipação do trabalho. É também por isso que defendemos a atualidade da obra de Marx, a Enquete incluída; além de tratar de problemas que continuam existindo, o autor não separa as questões de saúde dos trabalhadores da luta pela libertação do trabalho, nem coloca esta como mais importante do que aquelas.

Apesar de ser menos valorizada do que no tempo de Marx, a forma enquete operária – entendida como um mecanismo de investigação e politização da classe trabalhadora – continuou sendo utilizada. Mao Tsé-Tung organizou enquetes sobre a classe trabalhadora chinesa. Para Mao, as enquetes operárias eram úteis porque combatiam o subjetivismo (Thiollent, 1982THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. (Série Teoria e História. 6).). Tafalla (2006)TAFALLA, Joan. Una herramienta de investigación militante: la encuesta obrera, de Marx a los Quaderni rossi. In: BEL, Josep; VALENZUELA, Pep;TAFALLA, Joan (coords.). Miradas sobre la precariedad: debate y propuesta para una ‘encuesta sobre el trabajo' y la reconstrucción del sindicalismo de clase. Barcelona: El Viejo Topo, 2006. p. 11-33. propôs a realização de uma enquete operária na Catalunha. Na Itália da década de 1960, a forma enquete operária foi retomada e rediscutida com profundidade. A esquerda italiana foi o mais impressionante movimento popular de transformação da Europa ocidental no período posterior à Segunda Guerra Mundial (Anderson, 2010ANDERSON, Perry. Uma esquerda invertebrada: a herança desperdiçada da Itália. Revista Vírus, Lisboa, v. 9, n. 1, p. 5-21, 2010.). Nesse contexto é que foram retomadas as discussões sobre as enquetes operárias. O descontentamento com o Partido Socialista Italiano (PSI) e com o Partido Comunista Italiano (PCI) fez nascer o movimento conhecido como Operaísmo, que propunha o retorno a Marx e o desenvolvimento de ferramentas e métodos capazes de responder aos desafios apresentados pela industrialização fordista do pós-guerra (Cava, 2013CAVA, Bruno. A copesquisa militante no autonomismo italiano. Lugar Comum, Rio de Janeiro, n. 37-38, p. 17-38, 2013.). As origens do Operaísmo remetem à tentativa de retomada e aplicação da crítica da economia política marxista na Itália, a partir dos anos 1960, por jovens dissidentes do PSI e do PCI (Altamira, 2012ALTAMIRA, César. Antecedentes políticos do Operaísmo: os Quaderni rossi. Lugar Comum, Rio de Janeiro, n. 30, p. 17-28, 2012.). Os operaístas lançaram publicações seminais – Quaderni rossi, Classe operaria, Gatto selvaggio, Contropiano – que exploraram as transformações do trabalho e do capital na Itália (Anderson, 2010ANDERSON, Perry. Uma esquerda invertebrada: a herança desperdiçada da Itália. Revista Vírus, Lisboa, v. 9, n. 1, p. 5-21, 2010.).

A retomada da Enquete operária foi realizada principalmente pelo grupo de militantes reunidos em torno da publicação Quaderni rossi, entre eles Dario Lanzardo e Raniero Panzieri. Este último foi um dos principais responsáveis pela valorização da forma enquete operária. Naquele contexto, um dos objetivos das enquetes era investigar e esclarecer por que os trabalhadores estavam se afastando das suas organizações (Altamira, 2012ALTAMIRA, César. Antecedentes políticos do Operaísmo: os Quaderni rossi. Lugar Comum, Rio de Janeiro, n. 30, p. 17-28, 2012.).

Os militantes do Quaderni rossi procuraram teorizar sobre a forma enquete operária. Segundo Panzieri (1982PANZIERI, Raniero. A concepção socialista da enquete operária. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 225-231. (Série Teoria e História. 6)., p. 231), “a enquete é um método correto, eficaz e politicamente fecundo para entrar em contato com os operários isolados ou com grupos de operários”. Para o autor, não há contradições entre a forma enquete operária e o trabalho de construção política – ocorre que aquela é parte deste. Panzieri (1982)PANZIERI, Raniero. A concepção socialista da enquete operária. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 225-231. (Série Teoria e História. 6). destaca ainda que o trabalho de elaboração de uma enquete reúne militantes e operários; a discussão teórica entres estes é um meio de formação política. Para Lanzardo (1982)LANZARDO, Dario. Marx e a enquete operária. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 233-246. (Série Teoria e História. 6)., a Enquete de 1880 foi uma explicação teórica sobre problemas concretos vividos e conhecidos dos trabalhadores. A crítica se manifestava ora como esclarecimento direto, ora como juízo de valor, e tinha o objetivo de ampliar a conscientização. Lanzardo (1982)LANZARDO, Dario. Marx e a enquete operária. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 233-246. (Série Teoria e História. 6). ressalta ainda que, para os militantes do Quaderni rossi, as enquetes eram uma forma de testar se a teoria e os instrumentos de intervenção do grupo eram funcionais.

Thiollent (1982)THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. (Série Teoria e História. 6). destaca pontos positivos da Enquete operária: a negação da passividade e o fato de ser mais do que um simples somatório de opiniões. O autor afirma que a Enquete de 1880 não é perfeita nem aplicável em qualquer circunstância ou época, mas a concepção que a sustenta pode servir como base para a elaboração de novas enquetes operárias.

Acidentes de trabalho

Na primeira seção da Enquete, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). procura se informar sobre o porte da empresa e a natureza do processo produtivo em que está inserido o operário, para dessa forma compreender os acidentes de trabalho e suas consequências.

Investigações sobre as condições de vida, saúde e segurança dos trabalhadores não são estranhas ao marxismo. Engels (2010)ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra: segundo as observações do autor e fontes autênticas. São Paulo: Boitempo, 2010. relata a situação da classe trabalhadora inglesa em meados do século XIX. Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. também estuda as condições de saúde e segurança dos operários ingleses; utiliza, para isso, relatórios produzidos por inspetores de fábrica. Em sua obra máxima, O capital, Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. expõe e discute acidentes a que estavam expostos os trabalhadores ingleses. O autor mostra que são os processos de produção que, no limite, explicam os acidentes.

Além de relacionar os problemas de saúde dos trabalhadores com o processo produtivo, Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. esboça os traços principais dos acidentes e do trabalho industrial na Inglaterra do século XIX. Na Enquete, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). investiga se os mesmos problemas começavam a afetar os trabalhadores franceses; as questões elaboradas pelo autor partem das observações e análises do trabalho industrial inglês. A relação entre o processo de produção e os problemas de saúde está presente no Questionário. Podemos demonstrar isso comparando a Enquete com O capital. Neste, Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. cita um relatório de inspeção de fábrica que trata dos acidentes com crianças inglesas durante a limpeza de máquinas automáticas de fiar:

É possível que as self-actingmules sejam máquinas tão perigosas quanto quaisquer outras. A maior parte dos acidentes ocorre com crianças pequenas, e precisamente porque engatinham por baixo das mules para varrer o chão, enquanto as máquinas ainda estão em movimento. Diversos minders (trabalhadores que operam as mules) foram processados judicialmente (pelos inspetores de fábrica) e condenados ao pagamento de multas em razão desse procedimento, porém sem que disso resultasse qualquer benefício geral. Se os fabricantes de máquinas pudessem ao menos inventar um varredor automático, cujo uso dispensasse essas crianças pequenas de engatinhar por baixo da máquina, eles dariam uma bela contribuição a nossas medidas preventivas (Reports of Inspectors of Factories for 31st October, 1866, p. 63, apud Marx, 2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 493).

Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. conhecia os perigos relacionados à limpeza de máquinas com base no que relatavam os inspetores de fábrica ingleses. Sabia que o problema estava relacionado ao processo de valorização do capital, ou seja, à necessidade de acumulação, manutenção dos lucros e funcionamento ininterrupto das máquinas. Essa possibilidade derivada da teoria marxista foi reforçada por meio dos relatórios dos inspetores fabris. Na Enquete, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). pergunta qual idade com que as crianças começavam a trabalhar; além disso, investiga se os operários franceses enfrentavam os mesmos problemas de saúde e segurança que os ingleses. Tal preocupação aparece na questão 43: “As máquinas são limpas por operários especialmente designados para isto ou são gratuitamente limpas pelos operários que trabalham com elas durante o dia?” (Marx, 1982MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6)., p. 252). Esta questão é interessante por ter relação direta com os acidentes de trabalho que ocorriam nas indústrias do século XIX. Como, não raro, os operários eram pagos por tarefa ou por peça, e a limpeza das máquinas não era remunerada, os trabalhadores eram forçados a limpar as máquinas em funcionamento, o que provocava acidentes. É por essa razão que, na Enquete, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). indaga se a limpeza era realizada por operários especialmente designados para isso. Percebe-se, dessa forma, que Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). procura relacionar os acidentes aos processos de produção, inclusive considerando o trabalho real e não apenas o prescrito.

Se é verdade que o processo produtivo se transforma, também é verdadeiro que a análise deste continua sendo fundamental para a compreensão e o combate aos agravos à saúde dos trabalhadores. A ideia segundo a qual os acidentes devem ser explicados a partir do processo de produção já estava presente no pensamento marxista, na Enquete inclusive. Posteriormente, essa ideia seria retomada e aplicada pelos pesquisadores e militantes do campo saúde do trabalhador.4 4 As ideias e os eixos norteadores das práticas em saúde do trabalhador surgiram das reivindicações dos movimentos sociais dos anos 1960, principalmente na Itália. No Brasil, essas ideias começaram a ganhar força no final da década de 1970, com o início da abertura política e o fortalecimento dos movimentos sociais e dos sindicatos. Assim nasceu o campo saúde do trabalhador, que busca compreender e eliminar os danos à saúde dos trabalhadores, atuando fundamentalmente sobre o processo produtivo (Vasconcellos, 2011).

O mesmo relatório de inspeção fabril citado anteriormente aborda a ocorrência de acidentes relacionando-os aos dias da semana e à limpeza das máquinas:

Agora existem novas fontes de acidentes que não existiam há vinte anos, especialmente a velocidade aumentada da maquinaria. Rodas, cilindros, fusos e teares são, agora, movidos com uma força maior, e em constante aumento; os dedos têm de agarrar o fio quebrado com mais rapidez e segurança porque, se colocados com hesitação ou descuido, são sacrificados. (…) Um grande número de acidentes é causado pela pressa dos trabalhadores em executar sua tarefa. Devemos recordar que é da maior importância para os fabricantes que sua maquinaria seja mantida ininterruptamente em movimento, isto é, produzindo fio e tecido. Cada parada de um minuto é não apenas uma perda de força motriz, mas de produção. Por isso, os trabalhadores são incitados pelos supervisores, interessados na quantidade da produção, a manterem a maquinaria em movimento – e isso não é de pouca importância para operários que são pagos por peso ou por peça. Embora na maioria das fábricas seja formalmente proibido limpar as máquinas quando estas se encontram em movimento, tal prática é geral. Só essa causa produziu, durante os últimos seis meses, 906 acidentes. (…) Embora a tarefa de limpeza seja realizada diariamente, o sábado é geralmente reservado para a limpeza completa da maquinaria, e isso ocorre, na maior parte do tempo, enquanto ela está em movimento. (…) Por ser esta uma operação não remunerada, os operários procuram concluí-la o mais rápido possível, razão pela qual o número de acidentes às sextas-feiras e especialmente aos sábados é muito maior do que nos outros dias da semana. Às sextas-feiras, o excedente de acidentes ultrapassa em cerca de 12% o número médio dos quatro primeiros dias da semana; aos sábados, esse número é 25% maior do que a média dos 5 dias anteriores; porém, levando-se em conta que a jornada de trabalho fabril aos sábados é de somente 7 ½ horas e de 10 ½ horas nos demais dias da semana, o excedente sobe para mais de 65% (Reports of Inspectors of Factories for 31st October, 1866, p. 9, apud Marx, 2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 498).

O longo trecho que citamos é importante porque relaciona os acidentes ao processo de produção; mostra que aqueles são determinados, em última instância, por este. Não é a imprudência dos trabalhadores que causa acidentes – estes são provocados, no exemplo citado, pela intensificação do trabalho causada tanto pelo aumento do ritmo da produção quanto pelas formas de pagamento, no caso o salário por peça. É por essa razão que Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6)., na Enquete, questiona se os operários eram pagos por tempo ou por tarefa. A teoria econômica de Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. ensina que a taxa de lucros é a variável fundamental do modo capitalista de produção. O autor mostra que os capitalistas são forçados a reinvestir seus lucros na produção para aumentar a competitividade e sobreviver à concorrência. Entretanto, Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. não para nesse ponto. Por saber que o processo de produção afeta diretamente as condições de vida e saúde dos operários, o autor busca materiais e relatos que possam fundamentar e exemplificar sua teoria econômica. Para tanto, vale-se dos relatórios de inspetores de fábrica, que conheciam de perto os problemas do trabalho. Interessante notar que, no trecho citado anteriormente, os acidentes ocorrem no processo de trabalho, ou seja, na relação do trabalhador com os objetos e meios de trabalho; entretanto, é o processo de valorização do capital que intensifica o trabalho, provocando os acidentes.

Importante destacar que, na Enquete e em O capital, quando trata de acidentes de trabalho, Marx (1982MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6)., 2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.) jamais responsabiliza os trabalhadores. Para o autor, trata-se sempre de entender os acidentes a partir da dinâmica do processo de produção. Nesse ponto, o pensamento marxista antecipa práticas que posteriormente seriam adotadas no campo saúde do trabalhador.

Jornadas e intensidade do trabalho

Questões sobre jornadas e intensidade do trabalho aparecem, principalmente, na seção II da Enquete de 1880. Essas perguntas foram elaboradas com base nas análises e observações realizadas anteriormente por Marx, especialmente em O capital.

A jornada de trabalho é o número de horas trabalhadas em dado espaço de tempo – por exemplo: oito, dez, 12 ou 14 horas por dia. Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. mostra que as jornadas não são fixas, variam no tempo e no espaço e são determinadas pela interação de diversos fatores. Afirma que o valor da força de trabalho é determinado pelo tempo socialmente necessário para sua produção e reprodução. Ele chama esse período da jornada de tempo necessário. Segundo Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., no capitalismo as jornadas se dividem em duas partes: o tempo necessário para reproduzir e repor o valor da força de trabalho e o tempo excedente, ou sobretrabalho, que é apropriado pelo capitalista. A primeira parte corresponde ao tempo socialmente necessário para produzir meios de vida requeridos para garantir a sobrevivência do trabalhador. A segunda parte da jornada de trabalho, o tempo excedente, forma a mais-valia, que é apropriada pelo capitalista. A partir da relação trabalho excedente/trabalho necessário, Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. calcula a taxa de maisvalia, ou taxa de exploração. Por exemplo: se uma jornada de 12 horas diárias estiver dividida em seis horas de trabalho necessário e outras seis horas de trabalho excedente, a taxa de mais-valia será de 100%.

O esforço para ampliação da taxa de mais-valia pode ser atingido de duas maneiras: pelo prolongamento das jornadas (mais-valia absoluta) ou pelo aumento do trabalho excedente em relação ao necessário (mais-valia relativa). Importante destacar que o capital pode tentar se valer da combinação da mais-valia absoluta com a relativa. Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. mostra que, no início do capitalismo, os aumentos das taxas de mais-valia foram obtidos pelo prolongamento das jornadas; posteriormente, cresceu a resistência da classe trabalhadora, e os capitalistas privilegiaram a exploração da maisvalia relativa.

A intensificação do trabalho é definida por Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. como elevação do esforço, preenchimento mais denso dos poros do tempo de trabalho, maior dispêndio de trabalho no mesmo tempo. Ou, dito de outra forma, com a intensificação o trabalhador produz mais valores de uso numa mesma unidade de tempo; os aumentos da taxa de exploração que eram realizados por meio de ampliações das jornadas e via mais-valia absoluta passam a ser obtidos através da mais-valia relativa. A magnitude intensiva, ou de grau, se impõe sobre a magnitude extensiva. Entretanto, Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. ressalta que há sempre um ponto nodal na produção a partir do qual aumentos da intensidade e das jornadas se excluem; os limites físicos dos trabalhadores impedem que jornadas e intensidade sejam ampliadas ao mesmo tempo. Em ge-ral, a eficiência da força de trabalho cai à medida que as jornadas são ampliadas; no entanto, com a redução destas, em situações historicamente determinadas, o capital é capaz de compensar no grau de exteriorização do trabalho o que perde na redução da duração deste. Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. constata que na metade do século XIX, na Inglaterra – país com as forças produtivas mais desenvolvidas na época –, o capital, por meio da intensificação do trabalho, compensou com vantagem as reduções nas jornadas. Na Enquete operária, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). investiga se as reduções na jornada estavam sendo acompanhadas de elevações da intensidade do trabalho também na França. Oautor tenta avaliar se a tendência observada na Inglaterra estava se repetindo na França.

Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. mostra que a inserção de maquinaria no processo produtivo, que ganhou força na Inglaterra no final do século XVIII, foi um meio poderoso de ampliação das jornadas e da intensidade do trabalho – porque, desde então, as máquinas passaram a controlar o ritmo de trabalho. Nas corporações de ofício, os trabalhadores conheciam praticamente todo o processo produtivo e, sobretudo, controlavam o ritmo de trabalho. Com a consolidação do capitalismo industrial, o ritmo da produção deixou de ser comandado pelos trabalhadores e passou a ser ditado pelas máquinas a serviço da acumulação de capital. A partir de então, ampliaram - se as jornadas e intensificou - se o trabalho.

A grande indústria nasceu na Inglaterra, no final do século XVIII, como afirma Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.. Posteriormente, os processos de produção típicos do capitalismo industrial se espalharam para outros países. Na Enquete operária, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). procura saber se os prolongamentos das jornadas de trabalho, associados à consolidação da grande indústria, já estavam presentes na França do final do século XIX. Exemplos: questão 41: “Se há trabalho diurno e noturno, que sistema de turnos se aplica?” (Marx, 1982MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6)., p. 252); questão 42: “Qual é o número habitual de horas extraordinárias durante os períodos de maior atividade industrial?” (Marx, 1982MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6)., p. 252). Além de investigar a ampliação das jornadas, esta última pergunta mostra que a prática de responder às oscilações positivas da demanda com horas extras, associada aos processos de trabalho flexíveis e à reestruturação produtiva, já era conhecida e praticada no final do século XIX. Na perspectiva marxista, a transformação dos processos produtivos só é possível se a correlação de forças entre as classes sociais permitir. Para Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., foi a resistência operária que forçou a redução das jornadas de trabalho na Inglaterra em meados do século XIX. Ao escrever sobre a França, o autor registrou que a jornada de 12 horas diárias foi conquistada apenas com a revolução de fevereiro de 1848.

Pelo mesmo caminho de raciocínio, pode-se pensar que o retorno e o reforço da prática de responder às oscilações positivas da demanda com horas extras, retomada com a reestruturação produtiva, foram possíveis devido à correlação de forças desfavorável aos trabalhadores. Mészáros (2014)MÉSZÁROS, István. Marx, nosso contemporâneo, e seu conceito de globalização. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 25-37. cita três exemplos atuais de inversão da tendência de redução das jornadas de trabalho: forte oposição patronal à lei que tentou fixar as jornadas em 35 horas semanais na Itália; acordo entre a Volkswagen da Alemanha e os sindicatos para ampliar as jornadas de 35 para 42 horas, de forma que essas sete horas adicionais não caracterizassem horas extras; aumento das jornadas de 48 para 52 horas semanais no Japão. O autor destaca ainda que, nesses dois últimos países, as jornadas foram ampliadas apesar das altas taxas de desemprego.

Para Basso (2014)BASSO, Pietro. A jornada de trabalho no início do século. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 73-83., as jornadas de trabalho estão se tornando mais intensas, extensas e difíceis de suportar. Ele ressalta elevações da jornada ocorridas na França: de 35 para 36 horas sem aumento de salários na Bosch, em Vénissieux; de 35 para 38 horas nas fábricas da Société d’Emboutissage de Bourgogne (SEB), no Vosges; de 35 para 37,5 na empresa de limpeza Cattinair, com elevação salarial simbólica de 2%; elevação para 39 horas semanais no setor de hotelaria, neste caso com ampliação salarial de 11%.

Marx (2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 479) chama de “período de transição” o espaço de tempo em que um capitalista monopoliza uma inovação antes que esta seja apropriada e empregada pelos concorrentes. Isso ocorre porque, para o autor, as taxas de lucro tendem a se nivelar. Elevações nos lucros atraem concorrentes, o que, por fim, reaproxima os lucros da média. Os períodos em que inovações são monopolizadas podem estar associados a ampliações da jornada. Tal associação é tratada na questão 42 da Enquete, que pergunta qual o número de horas extraordinárias durante os períodos de intensa atividade industrial. Os períodos de maior atividade industrial geralmente estão relacionados ao ciclo econômico, mas é possível pensá-los também como decorrentes de inovações tecnológicas ou nas formas de gestão do trabalho que aumentem os lucros. Sabendo que esses aumentos costumam desaparecer em pouco tempo, os capitalistas procuram ampliar as jornadas para aproveitar ao máximo a conjuntura favorável.

À medida que as forças produtivas se desenvolvem, é possível produzir mais em menos tempo. Para Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., a ampliação da capacidade produtiva decorre da incorporação da ciência aos processos produtivos e da intensificação do trabalho. Conforme a sociedade se torna capaz de produzir mais em menos tempo – ou seja,à medida que, numa mesma jornada, os trabalhadores produzem mais valores de uso –, o tempo socialmente necessário para reproduzir e repor a força de trabalho tende a diminuir. Com o desenvolvimento das forças produtivas, seria possível reduzir as jornada se a intensidade do trabalho, mas, como o objetivo do capital é a ampliação das taxas de lucro, o desenvolvimento das forças produtivas provoca a intensificação e às vezes até o prolongamento das jornadas de trabalho. Marx (2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 480) define esse fenômeno como “paradoxo econômico”.

A intensificação do trabalho causada pelos métodos de pagamento por produção é outro problema que continua presente. Os cortadores de cana têm enfrentado sérios problemas em razão dos pagamentos por produção. Tavares e Lima (2009)TAVARES, Maria A.; LIMA, Roberta O. T. A ‘liberdade' do trabalho e as armadilhas do salário por peça. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 12, n. 2, p. 170-177, 2009. estudaram o trabalho dos cortadores de cana no estado da Paraíba. As autoras constataram que os pagamentos por produção atendem melhor aos critérios de flexibilidade do receituário neoliberal e intensificam o trabalho. Ferreira (2015FERREIRA, Leda L. Análises do trabalho: escritos escolhidos. In: VEZZÁ, Flora M. et al. (orgs.). As duas faces do trabalho: atividade & emprego. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2015. p. 377-391., p. 385) afirma que o “sistema de pagamento por produção tem sido um dos maiores responsáveis pelo ritmo de trabalho frenético dos cortadores de cana, que não param de cortar nem para atender suas necessidades fisiológicas”.

Alves (2006)ALVES, Francisco J. C. Por que morrem os cortadores de cana? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 90-98, 2006. traz dados sobre a produtividade no Complexo Industrial Canavieiro em São Paulo: crescimento de cinquenta para mais de oitenta toneladas por hectare, entre as décadas de 1960 e 1980; três toneladas de cana cortada por dia/homem nos anos 1950; seis toneladas na década de 1980; 12 toneladas no final dos anos 1990 e início do século XXI. De acordo com o autor, o crescimento da produtividade no setor se deve ao pagamento por produção, que provoca o aumento do dispêndio de energia e do esforço no corte de cana, podendo causar a perda precoce da capacidade de trabalho e até mortes. Alves (2009)ALVES, Francisco J. C. Políticas públicas compensatórias para a mecanização do corte de cana crua. Ruris, Campinas, v. 3, n. 1, p. 153-178, 2009. mostra que, no Complexo Industrial Canavieiro, o aumento da produtividade foi obtido por meio da intensificação do trabalho.

Sustentado por novas práticas de gestão (Metzger et al., 2012METZGER, Jean-Luc et al. Predomínio da gestão e violência simbólica. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 37, n. 126, p. 225-242, 2012.), o aumento da intensidade do trabalho é provocado por sistemas de remuneração variada, modalidades de participação nos lucros e resultados e banco de horas (Pina e Stotz, 2011PINA, José A.; STOTZ, Eduardo N. Participação nos lucros ou resultados e banco de horas: intensidade do trabalho e desgaste operário. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 36, n. 123, p. 162-176, 2011.). A intensificação é, de fato, um fenômeno central para entender o trabalho nos dias de hoje (Cardoso, 2013CARDOSO, Ana C. M. Organização e intensificação do tempo de trabalho. Sociedade e Estado, Brasília, v. 28, n. 2, p. 351-374, 2013.), assim como a saúde dos trabalhadores envolvidos (Pina e Stotz, 2011PINA, José A.; STOTZ, Eduardo N. Participação nos lucros ou resultados e banco de horas: intensidade do trabalho e desgaste operário. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 36, n. 123, p. 162-176, 2011., 2014PINA, José A.; STOTZ, Eduardo N. Intensificação do trabalho e saúde do trabalhador: uma abordagem teórica. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 39, n. 130, p. 150-160, dez. 2014.).

Salários e condições de vida

Questões sobre salários e condições de vida aparecem principalmente na seção III da Enquete. Essas perguntas também foram elaboradas com base em análises teóricas realizadas anteriormente por Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014..

Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). explora bastante as consequências das formas de pagamento sobre as condições de vida e saúde dos trabalhadores franceses. Em O capital, ele analisa o salário por tempo e por peça nos capítulos 18 e 19, respectivamente (Marx, 2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.). Segundo o autor, as duas formas de pagamento eram conhecidas dos trabalhadores ingleses e franceses desde o século XIV e, apesar das diferenças pontuais, ambas contêm uma parcela de trabalho não pago.

Para Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., o salário por peça geralmente é mais favorável para a produção capitalista por duas razões principais: permite a intensificação do trabalho e diminui a necessidade de supervisão. Isso ocorre porque a expansão da produção se torna interessante para o trabalhador, que, dessa forma, amplia sua remuneração. Importante destacar que esse problema aparece na Enquete e continua atual, inclusive causando graves danos à saúde dos trabalhadores. Marx (2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 616) esclarece: “O valor da força de trabalho aumenta de acordo com seu desgaste, isto é, com a duração de seu funcionamento e de modo proporcionalmente mais acelerado do que o incremento da duração de seu funcionamento.” Assim, se as jornadas se prolongam além do limite considerado normal, as horas extras costumam ser mais bem remuneradas do que as horas normais de trabalho, embora, como salienta Marx (2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 617), “numa proporção ridiculamente pequena”.

Questões relacionadas ao trabalho extraordinário estão presentes na Enquete. Além disso, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). investiga os efeitos das formas de remuneração sobre as condições de vida dos operários. Por exemplo: os pagamentos por hora que permitem o emprego de trabalhadores nos momentos de pico da produção, eliminando a regularidade da ocupação e fazendo “com que o sobretrabalho mais monstruoso se alterne com a desocupação relativa ou total” (Marx, 2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 616). Esta questão aparece na Enquete nas perguntas 52 e 54, quando Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). indaga aos operários se o trabalho é sazonal e se eles recebem por hora ou por dia. Problemas relacionados aos salários por produção apontados por Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. continuam atuais: surgimento de intermediários, descontos e fraudes.

Os pagamentos por produção são antigos e ainda estão presentes no mundo do trabalho. No Brasil, a agroindústria canavieira é um dos setores econômicos em que os problemas relacionados às remunerações por produção são mais graves. Guanais (2013)GUANAIS, Juliana B. “Quanto mais se corta, mais se ganha”: uma análise sobre a funcionalidade do salário por produção para a agroindústria canavieira. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 305-325. mostra que este método de pagamento é funcional para a agroindústria canavieira porque atrela a remuneração ao volume de cana cortado, fazendo com que os trabalhadores se identifiquem com os objetivos e as metas da empresa; mas ao incentivar a intensificação do trabalho, promove o esforço excessivo, o que contribui para a ocorrência de acidentes, dores na coluna, tendinites e câimbras. Segundo a autora, o salário por produção, apesar de já existir anteriormente, difundiuse na agroindústria canavieira a partir da reestruturação produtiva do setor sucroalcooleiro nacional em meados da década de 1980.

Os dilemas apontados por Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). na Enquete reaparecem no estudo de Guanais (2013)GUANAIS, Juliana B. “Quanto mais se corta, mais se ganha”: uma análise sobre a funcionalidade do salário por produção para a agroindústria canavieira. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 305-325., inclusive nas falas dos trabalhadores. A autora constata diversas consequências relacionadas aos salários por produção: as usinas passam a conhecer exatamente o ritmo e a intensidade do trabalho de cada cortador de cana, mantendo empregados apenas os mais produtivos; diminui a necessidade de supervisão, pois os trabalhadores passam a interiorizar a disciplina e o autocontrole; as ampliações de jornadas e a intensidade do trabalho são apoiadas e endossadas pelos próprios cortadores que, dessa forma, recebem mais; cresce a competição entre os trabalhadores.

Na questão 57 da Enquete, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). pergunta se o trabalhador, que recebe por tarefa, sofre reduções salariais justificadas pela alegação de que o artigo produzido não atende aos requisitos de qualidade. Guanais (2013)GUANAIS, Juliana B. “Quanto mais se corta, mais se ganha”: uma análise sobre a funcionalidade do salário por produção para a agroindústria canavieira. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 305-325. mostra que os cortadores desconhecem quanto efetivamente produzem, porque o sistema de medição e pesagem das empresas confunde os trabalhadores – a cana cortada é medida em metros, mas os salários são pagos com base no peso (toneladas). Como não sabem ao certo quanto receberão por dia, os cortadores acabam se empenhando ainda mais no trabalho, às vezes até mais do que podem suportar. Além disso, a autora relata que as medições da produção ocorrem sem a fiscalização dos trabalhadores, que com frequência reclamam de serem lesados. Como se vê, os dilemas explorados na Enquete sobre os logros relacionados ao salário por tarefa continuam atuais na agroindústria sucroalcooleira. Com a reestruturação produtiva e a implantação de formas mais flexíveis de produção, é possível que tais problemas se ampliem e se alastrem para outros ramos de atividade.

Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014. afirma que os pagamentos por peça possibilitam a exploração de um trabalhador por outro e a existência de intermediários entre o capital e o trabalho. Por isso, nas questões 60 e 61 da Enquete, o autor indaga aos operários se os salários são pagos por intermediários e, em caso positivo, quais as cláusulas contratuais. Além disso, nas questões 64 e 65, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). procura comparar os salários por peça e por tempo, para avaliar qual seria mais interessante para os trabalhadores. Em seu estudo sobre o setor sucroalcooleiro, Guanais (2013)GUANAIS, Juliana B. “Quanto mais se corta, mais se ganha”: uma análise sobre a funcionalidade do salário por produção para a agroindústria canavieira. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 305-325. entrevistou trabalhadores de uma empresa da cidade de Cosmópolis, no interior de São Paulo. Constatou que a maioria deles preferia os pagamentos por produção – segundo os cortadores, essa forma de remuneração aumentava seus vencimentos. Somente duas trabalhadoras disseram preferir salários por tempo, porque não conseguiam ser tão produtivas quanto os melhores cortadores.

A aproximação estabelecida na Enquete entre crises, salários e empregos é interessante. Entretanto, os trabalhadores precisariam ter bons conhecimentos sobre os ciclos econômicos para responder às questões, afinal, por trás destas estava toda a teoria marxista da crise. Percebe-se, nessas perguntas, a intenção de Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). de se informar sobre a realidade francesa e sobre o conhecimento dos trabalhadores. Além disso, nota-se a intenção de politizar os operários, levando até eles informações sobre a dinâmica do modo capitalista de produção. Os salários tendem a crescer nos ciclos expansivos à medida que mais pessoal é contratado; o contrário ocorre quando a elevação salarial inibe novos investimentos e tem início a retração. Na questão 72, o autor solicita aos trabalhadores que relatem as oscilações salariais que experimentaram, percebe-se, portanto, que Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). explora o conhecimento dos trabalhadores sobre os ciclos de expansão e crise da economia capitalista.

Na questão 73, o autor especifica ainda mais o problema. Solicita que os trabalhadores relatem as baixas sofridas pelos salários nos períodos de retração ou crise industrial. Aqui, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). não só tenta se informar como também procura politizar os operários, já que sua pergunta contém uma afirmação: os salários diminuem durante as retrações e crises. Esse movimento foi detalhado em O capital.

Na questão 74, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). explora o contrário, ou seja, os aumentos salariais nos momentos de expansão econômica ou prosperidade. Também aqui se percebe a presença da análise desenvolvida anteriormente em O capital, além da busca por se informar sobre a realidade dos trabalhadores e politizá-los ao mesmo tempo, já que a pergunta contém uma afirmação.

A questão 75 trata do mesmo tema por outro ângulo. Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). solicita que os trabalhadores comentem os períodos de desemprego involuntário que experimentaram durante as crises. O processo de produção capitalista, com seus ciclos de avanço e retração, desemprega amplas parcelas da classe trabalhadora periodicamente. Na questão 75, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). explora os efeitos desse movimento sobre os trabalhadores. Já a questão 77 indaga se o trabalhador conhece operários que perderam o emprego devido à introdução de máquinas e outros aperfeiçoamentos, ou seja, o autor trabalha os efeitos da crise causada pela inserção de maquinaria na produção – ou, dito de outra forma, explora as consequências do crescimento do capital constante e da composição orgânica do capital. Se esse movimento fosse confirmado, seria um sinal de que a lei da queda tendencial das taxas de lucro já estava afetando a economia francesa do final do século XIX, o que apresentaria uma série de problemas e desafios para a classe trabalhadora.

Para Marx (2014MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 508), o capital pode aumentar o emprego de máquinas para utilizá-las como arma de resistência contra greves e reivindicações dos trabalhadores: “O capital, de maneira aberta e tendencial, proclama e maneja a maquinaria como potência hostil ao trabalhador. Ela se converte na arma mais poderosa para a repressão periódica das revoltas operárias, greves etc.” Segundo o autor, a partir de 1830 surgiram inúmeros inventos utilizados pelo capital para tornar o mais desnecessário possível o emprego de força de trabalho viva nos processos produtivos, combatendo, dessa forma, os motins operários.

Esse tipo de fenômeno continua atual. Alves (1991ALVES, Francisco J. C. Modernização da agricultura e sindicalismo: as lutas dos trabalhadores assalariados rurais na região canavieira de Ribeirão Preto. 347 f. Tese (Doutorado em Economia) – Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1991., 2009)ALVES, Francisco J. C. Políticas públicas compensatórias para a mecanização do corte de cana crua. Ruris, Campinas, v. 3, n. 1, p. 153-178, 2009. mostra que a mecanização do complexo agroindustrial canavieiro foi uma resposta patronal ao ciclo de greves dos cortadores iniciado na cidade de Guariba, em São Paulo, em 1984. De acordo com o autor, as usinas ampliaram a mecanização do corte de cana queimada para responder às greves dos trabalhadores; colheitadeiras foram introduzidas na produção para substituir cortadores e operadores de guincho. A questão 77 da Enquete contempla também a possibilidade de eliminação de empregos em razão de greves e outras lutas dos trabalhadores.

Por fim, é importante discutir o conteúdo da questão 99 da Enquete. Nesta, Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). indaga se o operário conhece fábricas em que a remuneração é paga parcialmente em forma de salário e parcialmente em forma de participação nos lucros (PL). O autor solicita ainda que o trabalhador aponte e compare as remunerações em que não há e em que há participação nos lucros, indicando também as obrigações que pesam sobre os que recebem PL. Por exemplo: esses trabalhadores poderiam fazer greves? A questão 99 é interessante porque mostra que os problemas relacionados às remunerações por participação nos lucros são mais antigos do que se imagina. A tendência é associar a PL às formas flexíveis de produção surgidas com a reestruturação produtiva. Entretanto, a Enquete indica que havia remuneração por participação nos lucros no século XIX.

Conclusão

A Enquete operária é atual por seis razões principais: explora problemas de saúde e de vida que continuam presentes no mundo contemporâneo; relaciona problemas de saúde e de vida dos operários ao processo de produção capitalista; valoriza o saber dos trabalhadores; sintetiza a teoria desenvolvida por Marx em O capital; integra a luta por saúde dos trabalhadores na luta pela libertação do trabalho; e pode servir como base para futuras enquetes operárias.

É possível afirmar que, além de explorar problemas que continuam a afetar as condições de vida e de saúde dos trabalhadores, a Enquete antecipa práticas e ideias que seriam adotadas posteriormente por pesquisadores e militantes do campo saúde do trabalhador. Por exemplo: a valorização do saber dos operários e a afirmação da importância de se compreender o processo de produção para se entender a relação entre saúde e doença.

Para escrever a Enquete operária,Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). utilizou as análises e categorias desenvolvidas em O capital, por isso ela tem importância no conjunto da obra marxista. As questões sobre acidentes de trabalho foram elaboradas com base em relatórios de inspetores de fábrica ingleses citados em O capital. As perguntas sobre os movimentos do emprego e dos salários durante os ciclos da economia capitalista estão baseadas na teoria das crises presente em O capital. Assim, é possível afirmar que a Enquete operária é uma síntese da teoria de Marx (2014)MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014..

O objetivo da Enquete não se restringia à coleta de informações sobre a classe operária francesa. Tratava-se de contribuir para o fortalecimento dos movimentos dos trabalhadores, que começavam a se reorganizar após a dura repressão que se seguiu à Comuna de Paris. Além de instrumento de conhecimento, a Enquete é uma forma de ação política que se posiciona ao lado dos trabalhadores. É por isso que algumas perguntas contêm afirmações. A forma enquete operária – entendida como um mecanismo de investigação e politização da classe trabalhadora – tanto leva quanto traz conhecimentos; pode, inclusive, ser elaborada em conjunto com os trabalhadores.

Os movimentos sociais e os sindicatos costumam separar a luta por saúde da luta pela libertação do trabalho. A Enquete operária não comete esse erro. No limite, trabalho livre é saudável, e o trabalho só será saudável se for livre. A obra de Marx, a Enquete inclusive, capta essa dimensão importante das lutas por saúde no trabalho e pela libertação deste, por isso não separa uma da outra. Houve um intenso desenvolvimento das forças produtivas depois de Marx, tornando ainda mais concreta a possibilidade de existência de trabalho livre e saudável, o que não ocorre devido à exigência de valorização do capital. O trabalho livre e saudável é ainda mais possível no tempo presente – a não separação das lutas por saúde do trabalhador e libertação do trabalho, como na Enquete, é bastante atual.

Como o próprio nome revela, a Enquete operária explora principalmente o trabalho industrial. O modo de produção capitalista se desenvolveu ampliando cada vez mais o setor de serviços, o que implicou uma série de novos problemas. Esse é um dos limites da Enquete – o texto de Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6). não contempla o setor de serviços. De qualquer maneira, é a forma enquete operária que continua atual, e não todas as perguntas formuladas por Marx (1982)MARX, Karl. O questionário de 1880. In: THIOLLENT, Michael. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3. ed. São Paulo: Polis, 1982. p. 249-256. (Série Teoria e História. 6)..

Novas enquetes podem utilizar algumas questões elaboradas em 1880, outras devem ser reformuladas, mas a Enquete operária é atual pela concepção que a sustenta. Esta deve estar presente em futuras enquetes. É um erro sobrevalorizar o poder e a importância das enquetes operárias, que são atuais e podem ser empregadas, mas de forma alguma substituirão a teoria. A força e a atualidade da Enquete de 1880 estão justamente no fato de ela se apoiar na teoria marxista de seu tempo. A forma do conflito entre capital e trabalho não é exatamente a mesma do tempo da Enquete operária, mas a essência não mudou – continua associada ao processo de produção capitalista e à exigência de valorização lhe é inerente. É o que explica a atualidade da Enquete e dos problemas que ela aborda.

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    Para tornar a leitura mais leve, empregamos os nomes Enquete operária, Enquete de 1880, Questionário e Enquete como sinônimos. Mas privilegiamos a palavra Enquete, que tem o sentido de investigação.
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    As ideias e os eixos norteadores das práticas em saúde do trabalhador surgiram das reivindicações dos movimentos sociais dos anos 1960, principalmente na Itália. No Brasil, essas ideias começaram a ganhar força no final da década de 1970, com o início da abertura política e o fortalecimento dos movimentos sociais e dos sindicatos. Assim nasceu o campo saúde do trabalhador, que busca compreender e eliminar os danos à saúde dos trabalhadores, atuando fundamentalmente sobre o processo produtivo (Vasconcellos, 2011VASCONCELLOS, Luiz C. F. Entre a saúde ocupacional e a saúde do trabalhador: as coisas nos seus lugares. In: VASCONCELLOS, Luiz C. F.; OLIVEIRA, Maria H. B. (orgs.). Saúde, trabalho e direito: uma trajetória crítica e a crítica de uma trajetória. Rio de Janeiro: Educam, 2011. p. 401-422.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2016
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2016
  • Aceito
    13 Jun 2016
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