Resumos
Este artigo apresenta reflexões com base na experiência e na pesquisa desenvolvida com as mulheres camponesas vinculadas atualmente ao Movimento de Mulheres Camponesas e também na interação com grupos, movimentos, articulações, práticas e coletivos de educação popular em saúde que atuam em todas as regiões do Brasil. Identificamos as bases do contexto e do cotidiano de vida, de resistência e de luta dessas mulheres camponesas, suas interfaces com os processos de saúde-adoecimento, bem como as contribuições político-pedagógicas que emergem nas práticas de cuidado, promoção e educação popular em saúde, próprias desses atores sociais.
trabalho em saúde; educação e movimentos sociais
This article presents reflections based on the experience and on research conducted with peasant women currently tied to the Peasant Women Movement and also on the interaction with different groups, movements, coordinations, and collective popular health education practices in operation in all Brazilian regions. We identified the base of the context and of everyday life, of the resistance and struggle of these women peasants, their interfaces with the health and illness processes, as well as the identification of the political contributions and educational practices that emerge in the popular health care, promotion and educational practices of these social players.
work in health; education and social movements
ARTIGO ARTICLE
Contribuições do movimento de mulheres camponesas para a formação em saúde
Contributions of the peasant women movement to training in health
Vanderléia Laodete Pulga
Grupo Hospitalar Conceição, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Doutoranda em Educação com Ênfase na Saúde pela Faculdade de Educação da Uni versidade Federal do Rio Grande do Sul. <vanderleia.pulga@gmail.com>
Correspondência Correspondência: Vanderléia Laodete Pulga Rua Pedro Canabarro, 95, Boqueirão CEP 99025-280, Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil
RESUMO
Este artigo apresenta reflexões com base na experiência e na pesquisa desenvolvida com as mulheres camponesas vinculadas atualmente ao Movimento de Mulheres Camponesas e também na interação com grupos, movimentos, articulações, práticas e coletivos de educação popular em saúde que atuam em todas as regiões do Brasil. Identificamos as bases do contexto e do cotidiano de vida, de resistência e de luta dessas mulheres camponesas, suas interfaces com os processos de saúde-adoecimento, bem como as contribuições político-pedagógicas que emergem nas práticas de cuidado, promoção e educação popular em saúde, próprias desses atores sociais.
Palavras-chave: trabalho em saúde; educação e movimentos sociais.
ABSTRACT
This article presents reflections based on the experience and on research conducted with peasant women currently tied to the Peasant Women Movement and also on the interaction with different groups, movements, coordinations, and collective popular health education practices in operation in all Brazilian regions. We identified the base of the context and of everyday life, of the resistance and struggle of these women peasants, their interfaces with the health and illness processes, as well as the identification of the political contributions and educational practices that emerge in the popular health care, promotion and educational practices of these social players.
Keywords: work in health; education and social movements.
As experiências vivenciadas na educação popular e nos processos educativos fizeram germinar inquietações e produziram reflexões a partir do cotidiano articuladas com o conhecimento acumulado e sistematizado historicamente, desafiando-nos a identificar as contribuições que os movimentos sociais populares podem oferecer aos processos de formação de trabalhadores(as) da saúde, área estratégica que a cada dia cresce e requer aprimoramento.
Inicialmente, cabe evidenciar que os movimentos sociais populares são compreendidos
como o conjunto social de setores organizados das classes populares, cuja práxis se orienta pela necessidade e pelo desejo de melhorar as condições de produção e reprodução da própria existência e pela perspectiva, mais ou menos consciente, de construção de novos ordenamentos sociais, econômicos, políticos e culturais (Paludo, 2001, p. 45).
Assim, apresentamos um desafio complexo e exigente, o de evidenciar a práxis de educação em saúde desenvolvida por grupos e movimentos sociais populares discriminados e explorados por uma sociedade na qual o capital vale mais que a vida, e as expressões culturais das classes populares pouco são reconhecidas ou valorizadas. Adentrar esse universo popular de forma dialética, identificando possibilidades de ação construídas pelos movimentos sociais populares e por práticas integrativas, tradicionais e culturais no campo da saúde, sem a intenção de torná-las modelos em si ou que estas se esgotem em si mesmas, mas, ao contrário, que possibilitem uma análise crítica dessas experiências e que alimentem a construção de referenciais pedagógicos para a formação de trabalhadores(as) do Sistema Único de Saúde (SUS), é o objetivo deste trabalho.
O final do século XX também ficou marcado pelo questionamento de paradigmas, entre os quais os da ciência e da modernidade, aliados à crise de referenciais envolvendo o papel de instituições como família, Estado, Igreja, escola e as relações humanas e com a biodiversidade.
Numa era que parece ser de incertezas, em nosso desafio de sermos descobridores de sinais, percebemos como na América Latina vêm emergindo expressões de que 'outro mundo é possível' com lutas populares, com conquistas de governos democráticos, populares, uns com opção socialista, outros numa perspectiva progressista (Sader, 2009).
Esses sinais são reveladores de potencialidades que emergem e que podem produzir impactos importantes para o avanço das classes populares no acúmulo de forças de um projeto de sociedade que supere o capitalismo (Sader, 2009) e avance na perspectiva socialista, democrática, solidária, ecológica e com respeito às diversidades étnico-raciais, políticas, religiosas, de gênero, geracional e de orientação sexual.
Além disso, a questão da saúde demarcou avanços importantes em nível mundial com a descoberta de cura de vários tipos de endemias e epidemias. No entanto, as pessoas ligadas às classes populares dos países em desenvolvimento continuam morrendo por doenças que podem ser prevenidas; populações sofrem de doenças típicas da situação de fome e miséria, epidemias e pandemias, como é o caso da gripe A1N1, que vem assolando os povos; existe a Aids, que está colocando mulheres, crianças e idosos em situações de risco; além das doenças crônico-degenerativas próprias do envelhecimento da população que causam a morte de milhões de pessoas (Daron, 2003).
Ao mesmo tempo, o capitalismo que avança no campo por meio do agronegócio, uma estratégia capitalista de domínio dos territórios do campo e das florestas, centrado na apropriação das terras, dos recursos naturais e da biodiversidade por parte de algumas transnacionais, centrado no latifúndio, na produção de monoculturas, com o uso indiscriminado de agrotóxicos e transgênicos, vem produzindo um conjunto de consequências na vida de camponeses, ribeirinhos, quilombolas, indígenas, agricultores familiares e produzindo processos de adoecimento dessas populações. Dentre as questões mais sérias encontra-se o aumento de suicídio, de mortes por exaustão, de diversos tipos de câncer, de contaminações e de doenças alérgicas, dentre outras enfermidades, e junto com isso a ameaça que se apresenta de perda da soberania alimentar dos países empobrecidos e de sua diversidade de sementes crioulas que garantem a alimentação saudável desses povos.
Como a distribuição da riqueza ocorre de forma injusta e desigual, desencadeia processos desiguais na economia, na política e na cultura. Pela opção das elites mundiais e dos governos aliados, de fortalecimento do capitalismo em sua fase neoliberal, ou seja, o 'projeto da modernidade'1 pelo qual a construção das relações se dá em razão do lucro, e não da promoção da vida em todas as suas dimensões, têm se agravado as desigualdades entre ricos e pobres, entre homens e mulheres, entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento, e vem sendo destruída a cadeia ecológica dos seres vivos. Nessa perspectiva se consagra o poder do capital sobre o trabalho, transformando a vida em 'mercadoria', negando os direitos humanos, solapando a democracia e agravando a dependência externa dos países ricos ante os direitos fundamentais, como a questão da soberania alimentar, das sementes, da água, das plantas medicinais, colocando todos na lógica do mercado (MMC Brasil, 2007).
Conforme análise do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC)2 sobre esse processo de globalização nos moldes do mercado, a produção agrícola vem ficando exposta aos interesses das grandes elites, à promoção de exportações e à liberdade de competição, na qual quem tem mais dinheiro sempre vence. Isso vem levando a que percam a importância os cultivos de subsistência produzidos pela agricultura familiar camponesa, que antigamente tinham um papel fundamental, pois se consumiam mais de dois mil tipos de alimentos, basicamente aproveitando o que a natureza oferecia; hoje, a produção das famílias fica em seis ou sete tipos de produtos consumidos mundialmente e controlados por algumas redes multinacionais. Ao mesmo tempo, colocam-se no mercado produtos elaborados pelas indústrias de alimentos multinacionais para a população consumir, fragilizando o abastecimento alimentar e inserindo o Brasil no contexto da internacionalização da agricultura, baseada na produção de poucos produtos para a exportação (monocultura). Não bastasse isso, o pacote neoliberal para a agricultura baseia-se em tecnologias que geram a dependência de recursos externos e, consequentemente, a perda de autonomia e soberania, bem como a destruição da vida pelo uso de agrotóxicos e transgênicos.
Pesquisa realizada por Mara Tagliari durante sete anos num hospital de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul,3 analisou que no referido período ocorreram 11.837 nascidos vivos e, destes, 600 nasceram com deformações ósseas, hidrocefalia, anencefalia e nenhum sobreviveu. A hipótese aventada pela pesquisadora foi de que estas anomalias aconteceram em decorrência do uso de agrotóxicos.
Ao mesmo tempo, cresce a pobreza no campo, com a exclusão das classes populares e a discriminação de mulheres, negros, índios, idosos e crianças. O acesso dessas pessoas aos serviços de saúde e educação e às condições básicas, inclusive a alimentação, fica muitas vezes situado no embate entre os interesses do lucro, de um lado, e a necessidade de garantia desses direitos preconizados na Constituição, de outro.
Concomitantemente a esse processo, o capital internacional vem atuando de forma voraz no campo da saúde, transformando-o num negócio altamente lucrativo, submetendo a vida dos seres humanos aos interesses do capital. Nesse contexto mundial, o debate acerca de um projeto de sociedade libertador e emancipatório, tão forte no século passado, ganha um novo significado (Campos, 1992), apresentando enormes desafios a serem enfrentados, sobretudo no campo da saúde e da educação, e tendo como referência os paradigmas da vida e da saúde individual e coletiva de pessoas, povos, nações e do planeta como um todo, por serem áreas mediadoras essenciais para a vida como um todo.
Atualmente, mais de seis milhões de trabalhadores(as) no Brasil atuam na área da saúde. Este contingente tende a aumentar ante o avanço e as demandas de ampliação do SUS, que, da década de 1980 até os dias de hoje, dobrou a quantidade de trabalhadores na saúde. Diferentemente das outras áreas produtivas contemporâneas, a da saúde, ao incorporar tecnologia, não prescinde de mão de obra, muito pelo contrário: a cada tecnologia incorporada há a necessidade de um conjunto de profissionais capacitados e habili-tados a lidarem com ela e sua interface com os usuários. Além disso, uma nova tecnologia não exclui a anterior - como, por exemplo, uma tomografia não exclui os raios X, uma ressonância não exclui a tomografia nem o conjunto de trabalhadores que lidam com essas tecnologias, e assim por diante, na cadeia de incorporação dos serviços de imagem (Pessôa, 2005).
Essa singularidade do processo de incorporação tecnológica no campo da saúde requer qualificação permanente e continuada dos trabalhadores. Além disto, o cotidiano de cada trabalhador da área da saúde é marcado pela interação entre sujeitos, pela fronteira entre a vida e a morte, pela potência de vida e sua fragilidade e pela necessidade constante de aprimoramento tanto do ponto de vista técnico para responder às demandas de promoção da saúde e de cuidados e atenção nos momentos em que as pessoas adoecem como, também, do ponto de vista humano, de relações, de humanização, pois sua realização profissional se dá na justa medida em que o outro tem mais vida e saúde.
Entretanto, cabe aqui ressaltar que o mundo do trabalho na saúde e os processos de trabalho em saúde não ficaram imunes à lógica do capitalismo e do neoliberalismo (Rizzotto, 2000), mas acabaram se construindo permeados pelas formas hegemônicas de produção, com a ênfase tecnicista, hospitalocêntrica e médico-centrada, e pela aceleração da incorporação tecnológica. Os trabalhadores da saúde estão submetidos a jornadas de trabalho de plantões de 12 e 24 horas, com processos de trabalho em que a exigência técnica e humana ultrapassa os limites cotidianamente.
É nesse contexto de limite de processos de trabalho que se insere o desafio da formação de trabalhadores do SUS, uma vez que o setor saúde é uma das áreas em que há maior incorporação tecnológica, entendida a tecnologia aqui como equipamentos, procedimentos terapêuticos, medicamentos, técnicas gerenciais. Esta situação é desafiadora e mostra a necessidade de fundamentação técnico-científica e programas de atualização, qualificação e especialização permanentes.
Em paralelo, observa-se que os processos de trabalho em saúde também podem se constituir em processos de exploração ou de alienação no trabalho, em que os trabalhadores não se reconhecem ou não encontram mais sentido naquilo que fazem (Marx, 1975; Gramsci, 1989).
Muitos processos de trabalho em saúde têm dificuldades de garantir a produção de cuidado, a construção de vínculos, acolhimentos e responsabilizações. Uma prática em saúde resolutiva requer uma combinação destes elementos com o uso de equipamentos tecnológicos, de infraestrutura adequada e de uma gestão participativa, superando a lógica centrada em procedimentos, dando lugar ao cuidado integral e equânime à saúde.
Assim, sem descartar a importância dos equipamentos e instrumentos que auxiliam o trabalho em saúde, na definição de diagnóstico e nas terapias, é importante destacar que o trabalho humano é insubstituível. O trabalho em saúde é relacional, isto é, acontece mediante relação entre um trabalhador e o usuário, por isso a tecnologia das relações é absolutamente fundamental. Toda a relação humana em saúde tem em si a dimensão cuidadora e educativa.
O modelo de atenção à saúde centrado em procedimentos mostra-se insuficiente para intervir nos problemas de saúde. É preciso haver mudanças no cotidiano de trabalho, na prestação das ações em saúde pelos diversos profissionais, para que haja a implementação de um novo jeito de atenção à saúde centrado no ser humano, em suas necessidades e interesses.
Uma clínica ampliada (Ferla, 2007) requer da construção cotidiana pelos trabalhadores, assim como um processo de organização e gestão do trabalho com interação entre os diferentes trabalhadores, espaços coletivos para reflexão, análise e troca de saberes entre os diversos profissionais, além de ações gerenciais mais dinâmicas e participativas. Ao mesmo tempo, a gestão dos serviços de saúde é de extrema importância na organização e no desenvolvimento do processo de trabalho em equipe, na construção de novas formas de produção das ações em saúde, de novas relações dos profissionais com os usuários, bem como entre os profissionais.
Segundo Vasconcelos (2001),4 a relação entre os serviços de saúde e a população é condicionada por dimensões estruturais complexas que requerem análise histórica, pois se inserem nos processos sociais, os quais dependem de dinâmicas culturais, políticas e econômicas que se dão fora dos serviços de saúde. Diante disso, as formas de intervenção na realidade são variadas: vão desde aqueles que, hegemônicos, procuram impor sua visão de mundo, de ciência, de cultura e de sociedade como a única alternativa possível, até os que apresentam a necessidade de repensar paradigmas e modos de vida mais justos e equânimes.
É nessa perspectiva transformadora e libertadora que se insere o tema em estudo. Suas premissas principais sustentam-se em fontes teóricas que caminham nessa direção de transformação da sociedade, das relações humanas e entre os seres vivos no planeta.
À luz dessas concepções, esse tema é aprofundado com base na abordagem dialética da história e do mundo, sempre aberta ao movimento de construção humana, dos projetos de sociedade e desenvolvimento (Marx, 1975). Ao mesmo tempo, traz uma concepção de ser humano integral, formado por várias dimensões que se articulam e se complementam: corporal, social, política, histórica e educativa. Uma abordagem de integralidade do ser humano apresenta-se como exigência ética e política (como opção) aos que atuam cotidianamente com pessoas, como é o caso, em especial, das áreas da educação e da saúde (Gramsci, 1989; Boff, 1999; Freire, 1996; Daron, 2003).
Com base nesses pressupostos, esta análise se baseia em inquietações, dúvidas e tensões que a autora vivencia como educadora na interação com outros sujeitos ligados a movimentos sociais populares, especialmente de mulheres camponesas, trabalhadoras urbanas, negras, sem teto, catadoras de material reciclável e de organizações, educadores, conselheiros e trabalhadores da saúde, possibilitando partilhar experiências e refletir sobre elas, construindo novos saberes e práticas promotoras de vida, cidadania, educação e cuidado em saúde. Por isso, está permeada por um 'caldo' cultural coletivo e tem suas origens no movimento pela Reforma Sanitária no Brasil e na luta popular, das mulheres, na luta das classes subalternas (Gramsci, 1989), que, ao longo de muitos anos de mobilizações, formulações e conquistas, vêm buscando um novo jeito de compreender e vivenciar a saúde no Brasil.
Assim, esta reflexão apresenta, ainda que de modo inacabado, pois está em processo de investigação essa temática, contribuições dos movimentos sociais populares e experiências nas práticas culturais, integrativas, tradicionais de cuidado e de educação popular em saúde com vistas a inovar nos processos de formação de trabalhadores da saúde do SUS. Buscou-se a articulação de várias ferramentas de investigação, pesquisa e produção de conhecimento por meio de pesquisa exploratória, descritiva e analítica, qualitativa e participativa, envolvendo múltiplos instrumentos.
A formação em saúde
A formação em saúde está ligada ao contexto de cada nação e à trajetória de lutas e conquistas dos(as) trabalhadores(as) em cada país. No Brasil, a educação de trabalhadores da saúde entrou na agenda política da Reforma Sanitária,5 mas teve influência forte do setor privado, particularmente da formação técnica.
O desafio que esse contexto oferece às diversas instituições que compõem o sistema de saúde tem dimensões políticas, técnicas, epistemológicas, organizacionais e operacionais. Em relação às dimensões técnica e política, o fortalecimento da modelagem tecnoassistencial construída pelo SUS parece ser o principal obstáculo a superar, uma vez que essa modelagem está em disputa em decorrência da diversidade de interesses que, reconhecidamente, cooperam no cotidiano das práticas em saúde.
No que se refere à dimensão epistemológica, o reconhecimento da articulação entre teoria e prática - assumindo a visão da prática não apenas como aplicação e verificação de teorias, mas ela mesma legítima para a produção e a validação de conhecimentos - parece ser um marcador do desafio apresentado na contemporaneidade para os diferentes atores e instituições da saúde, em particular do SUS. Em decorrência disso, demandas operacionais e organizacionais estão apresentadas aos diferentes atores do sistema de saúde para que o ensino, a pesquisa e a incorporação tecnológica sejam, em associação à atenção à saúde, resultados do sistema de saúde, capazes de demonstrar os princípios e as diretrizes do SUS.
No caso das instituições hospitalares, essa articulação entre atenção, ensino, pesquisa e incorporação de tecnologias tem desafios de duas naturezas. A primeira está bem representada nos estudos que associam a especialização a uma extrema fragmentação de atos de diagnóstico e terapêutica desenvolvidos por distintos profissionais, particularmente visíveis no interior dos hospitais. A segunda, que consiste na articulação entre os campos de conhecimentos e práticas da gestão e da organização do cuidado, não é específica para as instituições hospitalares, é verdadeira para a área da saúde como um todo. A subordinação da autonomia profissional à utilização de equipamentos e materiais especializados (e aos interesses que o complexo industrial na saúde mobiliza) ou aos conhecimentos estruturados (cuja quase totalidade está centrada no conhecimento biofisiológico) é um problema que afeta a qualidade do cuidado na saúde.
Um dos eixos estruturantes dos pressupostos da educação em saúde é a relação entre trabalho, educação e saúde inserida num contexto complexo e contraditório numa sociedade permeada pela hegemonia neoliberal.
Ao analisar o capitalismo em sua fase neoliberal, em que há a primazia da economia sobre a política e o todo da vida social, o corpo humano e a saúde passam a entrar na esfera do mundo da mercadoria, pela via concreta, simbólica, direta e imaginária, produzindo um conjunto de implicações no campo da atenção, da gestão, dos processos de trabalho e de educação na saúde que ficam situadas num contexto contraditório entre as demandas de saúde da população em contraposição aos interesses do capital, que busca a qualquer custo mais lucros por meio da oferta de serviços, ações e equipamentos do campo da saúde.
Esse processo tende a enfraquecer o Estado-nação e as políticas públicas em favor do acúmulo de riquezas e do lucro. O impacto dessas políticas neoliberais é a desproteção do conjunto dos cidadãos, especialmente dos trabalhadores, o enfraquecimento de políticas públicas de caráter universalizante e o aumento da miséria, da pobreza e da desigualdade social, colocando em risco a vida dos povos e o próprio planeta.
Nesse sentido, os processos de educação em saúde precisam problematizar, analisar e construir ferramentas tanto de análise como de novos conhecimentos, junto com os(as) educadores(as) e estudantes para intervir no mundo do trabalho, tendo em vista o protagonismo e a emancipação desses sujeitos rumo à construção de uma sociedade justa, democrática e solidária. Tais pressupostos não se constroem senão na dinâmica plural e dialética que se faz no diálogo e na produção conjunta dos sujeitos envolvidos nos processos educativos no campo da saúde.
É notório que o modelo de pensamento predominante na saúde é orientado por uma racionalidade científica, em que a relação dos profissionais se dá com a doença e não com a pessoa. Com isso, os profissionais tendem a restringir seu objeto de intervenção ao corpo doente, distanciando-se da pessoa e de seu sofrimento. Tais práticas em saúde impõem limites na percepção das necessidades de atenção e na efetividade das intervenções.
Essa tendência ganha força à medida que avança e se desenvolve o modelo tecnocientífico, em que a conversa, o olhar, o toque do corpo deixam de ter importância para uma possível identificação de anormalidades, uma vez que elas podem ser reveladas por exames laboratoriais e de imagem. Os atendimentos tendem a ficar restritos a procedimentos técnicos, à solicitação e à análise de exames, à prescrição de medicamentos etc.
Embora baseada em uma teoria científica, a prática em saúde depende de valores morais, éticos, ideológicos e subjetivos dos profissionais, pois envolve interpretação e decisão pessoal na aplicação do conhecimento científico às situações singulares. Nesse espaço, há a abertura à autonomia de cada um dos trabalhadores no exercício profissional e no modo de cuidar, que pode ser acolhedor ou não. É preciso haver mudanças no cotidiano de trabalho, na prestação das ações em saúde pelos diversos profissionais para que haja a implementação de um modelo de atenção centrado no usuário, em suas necessidades e interesses.
O encontro do profissional com o usuário é um espaço aberto para a construção de novas práticas. Merhy (2002) destaca esse espaço como lugar estratégico de mudança do modo de produzir saúde. O envolvimento do profissional com o trabalho; a sua disponibilidade para escutar, estabelecer vínculo com o usuário; o compromisso de oferecer uma atenção integral e humanizada, de utilizar seu conhecimento para produzir cuidado em saúde e sua responsabilização pelo usuário são importantes pontos de partida. Criar espaços de análise para entender o que acontece no encontro com o usuário e lidar com isso também são exigências para a construção de novas práticas.
A maneira como acontece o processo de trabalho é determinado por quem está em ato, ou seja, o próprio trabalhador. Isso ocorre porque, no processo de trabalho em saúde, o trabalhador comanda o modo como vai produzir a assistência - se esta acontece por parâmetros humanitários, com atitudes acolhedoras, ou de forma burocrática e sumária.
A gestão dos serviços de saúde é de extrema importância na organização e no desenvolvimento do processo de trabalho em equipe, na construção de novas formas de produção das ações em saúde, de novas relações dos profissionais com os usuários, bem como entre os profissionais. Para isso, o vínculo, a responsabilização, o conhecimento dos profissionais sobre a realidade de vida dos usuários, assim como a criação de espaços coletivos para a troca de saberes, a reflexão das práticas, a análise e a avaliação das ações produzidas, são alguns caminhos para construir novos modos de produção de cuidado e de processos de educação permanente em saúde.
Santorum (2006) colabora nesta análise sobre o processo de trabalho em saúde, salientando que é preciso ter um olhar a mais, que permita vislumbrar os 'microenfrentamentos', as 'microgestões' do trabalho, o desenvolvimento de saberes que acontecem na invisibilidade, na singularidade do concreto de cada experiência vivida pelos trabalhadores da saúde. A autora nos desafia a uma análise dos processos de subjetivação do mundo do trabalho para compreender como se dão a dinâmica, os processos, as características e as relações sociais e humanas que ocorrem no desenvolvimento do trabalho vivo em ato, nas atividades do fazer saúde.
O cotidiano do cuidado em saúde tem uma dimensão social e cultural que exige sensibilidades e ferramentas para melhor compreender, sentir, avaliar, experimentar e viver múltiplos processos de cuidado. As práticas de saúde constituem redes, fluxos de saberes e de fazeres, de diálogos, de conversas em que todos se beneficiam: os que cuidam são cuidados e aqueles que procuram saúde obtêm respostas.
Nessa perspectiva, a educação permanente em saúde entendida como uma prática de ensino-aprendizagem e, também, como uma política de educação em saúde, que deve levar em conta os princípios que orientaram a criação do SUS - construção descentralizada do sistema, universalidade, integralidade, participação popular -, constitui-se como uma estratégia fundamental para ressignificar os processos de trabalho em saúde.
Segundo Ceccim (2005), educação permanente em saúde é o processo educativo que coloca o cotidiano do trabalho em saúde em análise, que se permeabiliza pelas relações concretas, as quais operam realidades, e que possibilita construir espaços coletivos para reflexão e avaliação de sentido dos atos produzidos no cotidiano. Ao mesmo tempo que possibilita a atualização cotidiana das práticas segundo as novas tecnologias disponíveis, busca a construção de relações e processos no interior das equipes, das práticas organizacionais e das práticas interinstitucionais ou intersetoriais.
Esse conjunto de elementos ajuda a compreender um pouco do desafio que se apresenta para pensar os processos de formação dos(as) trabalhadores(as) em saúde a fim de que possam se reconhecer naquilo que fazem e de que, na interação com o outro, no ato de cuidar, possa acontecer um processo humanizado permeado pela alteridade, solidariedade e amor ao outro.
Como todo processo de trabalho em saúde, pela sua singularidade, tem em si uma dimensão educativa e cuidadora, é preciso que a formação desses trabalhadores possa contribuir e oferecer bases, fundamentos, princípios e ferramentas para que ela aconteça sem ser instrumental, como ocorre de forma hegemônica atualmente.
Por sua vez, os movimentos sociais populares, experiências de educação popular e saúde e práticas integrativas, culturais e tradicionais vêm mostrando que é possível qualificar trabalhadores numa perspectiva transformadora, integral do ser humano, emancipatória e produtora de cidadania. Por isso, dessas experiências emergem inovações importantes a serem analisadas criticamente para que os processos formativos e os programas educacionais no campo da saúde produzam inovação e integração ensino-serviço-comunidade que possam traduzir os anseios populares no que tange à formação de trabalhadores do SUS.
As contribuições político-pedagógicas para a formação em saúde que emergem das mulheres camponesas
Ao refletir sobre experiências desenvolvidas pelos movimentos sociais populares, em especial o MMC,6 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e os grupos, movimentos e práticas que se reúnem na Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (Aneps), na Rede de Educação Popular em Saúde e na Articulação Nacional de Extensão Popular em Saúde, pode-se dizer que essas práxis são portadoras de uma dinâmica educativa, pois sintetizam nelas o próprio ser humano integral em suas relações histórico-atuais consigo mesmo, com os outros, com a sociedade, com a natureza e com a transcendência. A práxis articula o todo; a ideia principal se centra na liberdade concreta, universal e historicamente conquistada pela luta política. Isso ocorre de forma histórica e processual, pois o próprio processo produz, pelo trabalho, pela luta política, pela experiência e pela reflexão, a liberdade do ser humano presente na vida de cada mulher participante.
Esses coletivos populares desenvolvem o processo formativo, articulado ao político-organizativo e à construção das experiências de promoção à saúde que se constituem em formas de resistência popular nos territórios do campo e das periferias urbanas. Entretanto, adentrando mais a reflexão sobre essa práxis, pode-se afirmar que ela é portadora de uma dinâmica educativa e de uma mística libertadora, ambas imbricadas no eixo gênero-raça-etnia, classe e projeto popular, que se constitui na própria identidade dessas organizações. Por isso, tem como base norteadora a metodologia de construção de processos político-organizativos, formativos e de resistência popular, próprios da concepção e das práticas da educação popular. E tem como sujeitos centrais as pessoas que participam dessas organizações populares. A base da relação entre os sujeitos do processo é a realidade concreta, o projeto popular que eles querem construir, mediado pelo projeto político e pelas estratégias de cada organização. Fundamenta-se nos seguintes princípios na relação político-pedagógica:
As pessoas como sujeito principal do processo. Ser sujeito significa o reconhecimento de que cada pessoa tem história, é uma totalidade de aspectos (inteligência, emoção, razão, cognição, afetividade), um ser integral e que constrói conhecimento com o outro numa relação de alteridade e de amor. Cada ser é único e está fadado ao mundo das diferenças e da pluralidade. Por isso, a responsabilidade histórica é, ao mesmo tempo, de todos e de cada ser em si.
Esta práxis prioriza o processo político-pedagógico de construção compartilhada de conhecimento e a relação entre sujeitos de ensino-aprendizagem, superando as formas autoritárias.
Há uma intencionalidade estratégica nestes processos educativos voltada para a transformação da realidade concreta tanto cotidiana quanto da estrutura da sociedade, bem como a transformação humana, das relações sociais, de gênero, raça e classe, das relações políticas com base na radicalização da democracia. A par da transformação está a base de libertação de todas as formas de opressão, exploração, discriminação, violência e a construção de uma nova sociedade e da cidadania e emancipação dos sujeitos e das classes populares.
Os sujeitos dos processos político-pedagógicos são educadores e educandos dentro do movimento pelas exigências que se apresentam, ora assumindo o papel de educadores, ora o de educandos. Porém, além disso, há os educadores populares organicamente engajados no movimento, que têm o papel de contribuição na assessoria, na formação e na pesquisa, no sentido da implementação da proposta do movimento de forma processual.
Os valores éticos, a coerência, o coletivo e a postura aberta, de busca de ser mais, de companheirismo e solidariedade, são alguns determinantes que permeiam o trabalho de mulheres, homens e jovens.
Os métodos, as técnicas e os recursos para a construção dos processos educativos desenvolvidos com as mulheres exigem adequação com os objetivos, o público e o tempo.
Os princípios, os valores, a mística libertadora e emancipatória das pessoas e das classes populares dão sustentação às mulheres e aos sujeitos engajados nesse processo para resistir e enfrentar a realidade de forma organizada para transformá-la.
No caso específico do trabalho do MMC, as mulheres camponesas demonstram como sua práxis é portadora de uma dinâmica educativa, que expressa as diferentes dimensões da educação popular em saúde e se traduz concretamente nos seguintes modos:
O modo de cuidar como processo educativo-cuidador
Analisando o jeito como as mulheres desenvolvem o processo de cuidado com a saúde da mulher e da família rural, como experiência de resistência popular, articulada pela luta para a garantia de um sistema público e universal de saúde, pode-se identificá-lo como um processo educativo-terapêutico. Parte-se do pressuposto de que esse tipo de trabalho só pode ser realizado se for em grupo, com organização de base, trabalho coletivo e comunitário e o fazer com o que se tem, se sabe e se pode, sem depender de outros. Os elementos que expressam esse caráter, apontados pelas mulheres, são:
A acolhida, a capacidade de escuta e de respeito a cada pessoa que participa do grupo ou que procura a farmácia caseira comunitária.
O diálogo como a base da relação, em que tanto quem cuida como quem é cuidado são encarados como sujeitos. O estabelecimento do diálogo é que possibilita a problematização da relação entre os sintomas aparentes de dor e sofrimento com as possíveis causas.
O processo da saúde como busca de equilíbrio e energia e de construção de um modo de vida saudável que perpassa o conjunto das ações desenvolvidas pelo movimento. Percebe-se que as mulheres têm presente em seu cotidiano e buscam permanentemente compreender a dinâmica da vida em sua teia de complexidades e relações. No cuidar de cada pessoa como ser único, há uma relação de amor e afeto muito forte e a conjugação de várias ações, orientações de conduta, postura e mudança de comportamento e estilos de vida com terapias complementares. Assim, o trabalho que essas mulheres realizam vai desde a reorientação alimentar, a energização, os chás, o uso de plantas medicinais e remédios feitos por elas para curar determinadas doenças, a mudança de postura nas relações familiares e cotidianas, até a conexão com o universo e a dimensão da fé e da transcendência. Aliadas a isso, são construídas redes de apoio solidário às pessoas que mais precisam, o que o grupo de mulheres e outras organizações da comunidade acompanham.
O vínculo ou a conexão entre o grupo de mulheres, a comunidade e as pessoas que precisam de atenção é um aspecto forte, que gera confiança, companheirismo e responsabilidade para com o outro, o qual, em sua alteridade, se revela como um ser humano capaz e finito.
O processo de acompanhamento, não só com o registro que é feito numa ficha de cada pessoa, mas com o engajamento que é possibilitado no grupo do MMC, o qual vai gerando um processo de autoestima, de construção da libertação e cidadania das mulheres, as quais deixam de ficar presas às doenças e à condição de vítimas e vão dando um novo sentido às suas vidas. Por isso, muitas melhoram e acabam se desafiando e divulgando a necessidade de construir a farmacinha e o movimento em outros locais. Essa dinâmica educativa e cuidadora tanto encanta quanto possibilita a criatividade e o prazer na busca de ser mais gente. Uma das entrevistadas diz:
As pessoas precisam sentir o que é a vida. Assim como o médico que vai ao necrotério estuda, corta e analisa os cadáveres, para saber como lidar com as doenças, assim também a gente precisa conhecer e saber como funciona a vida, para se acostumar com a dinâmica da vida e das relações. É um novo paradigma e um novo jeito de viver (L.M.P.D., 2003).
Essa dinâmica tem dado certo porque o tipo de queixa mais comum das pessoas que estão nesse processo de cuidado está ligado à dinâmica de vida e trabalho que as mulheres e os camponeses enfrentam em seu cotidiano, de modo que se não se trabalhar para a mudança dessa realidade, os remédios, por si só, nada vão resolver.
Essas práticas mostram que os territórios da vida são mais amplos do que os serviços de saúde, por isso apontam a necessidade de se pensar a saúde com base na dinâmica complexa da vida, pois são práticas centradas na vida, em sua defesa, preservação, promoção e recuperação.
As práticas são centradas na vida e no cuidado com o ser existencial e sujeito que se apresenta. Privilegiam o acolhimento, as relações de afeto, respeito às diferenças e de responsabilidade e pertencimento, construtoras de um novo jeito de fazer saúde, de cuidar da vida e do ambiente.
A construção organizativa dos sujeitos como processo político-pedagógico
O caráter pedagógico dos processos organizativos populares não é novidade nem exclusividade da ação das mulheres. Essa dimensão vem sendo construída nas lutas populares no Brasil e na América Latina há muitos anos e tem sua sistematização nas bases assentadas nas práticas e concepções de educação popular. As formas organizativas emergentes, como é o caso do movimento de mulheres, põem em questão os modelos clássicos de organização social; trazem a visibilidade de setores excluídos e os incluem de forma organizada; trazem novas formas de se organizar e de exercício do poder; trazem novos conteúdos e novas metodologias, que desafiam os educadores em relação tanto aos processos formais de educação quanto às formas específicas de cada organização. Essas experiências que as mulheres vivenciam trazem como elementos pedagógicos o processo educativo como um todo, e não apenas atos isolados, a participação ativa, a capacidade de ouvir, de fazer, de construir juntos, de enfrentar conflitos e contradições.
O caráter educativo das lutas populares
As relações de poder que se verificam na disputa e construção da hegemonia democrática e popular, capazes de consolidar um bloco histórico das classes subalternas a fim de construir uma sociedade nova, baseada em novos valores éticos, políticos, econômicos e sociais, como a justiça, a solidariedade, a participação e o resgate da dignidade humana, constituem-se como um processo político-pedagógico. Essas relações são educativas e contribuem para a elevação cultural das classes populares.
Constituem-se, também, como um processo filosófico, pois as pessoas constroem e reconstroem formas de conceber o mundo e de se relacionar com outras pessoas e com a natureza. Nesse sentido, conteúdo e forma se articulam, pois, ao mesmo tempo que buscam construir uma sociedade nova, o processo em si é construtor do ser humano, de sua dimensão política e de sua autoconstrução.
A experiência desenvolvida pelas mulheres camponesas ligadas ao MMC e outras práticas populares de saúde estão inseridas num contexto que se poderia chamar de 'redes sociais de saúde popular', que realizam ações de promoção da saúde, prevenção de doenças, utilizando a diversidade de terapias naturais, alternativas e populares para cuidar da saúde e da vida. São experiências de resistência e afirmação de um novo jeito de pensar e cuidar da saúde. Essas práticas8 indicam desafios, quais sejam:
Construção de um sistema público de saúde (de um SUS) mais democrático, que seja capaz de ouvir a população, que cuide das pessoas como sujeitos, que enfrente as causas das doenças e que articule atores e possibilite a intersetorialidade.
Exigência ética de reconhecimento e fortalecimento dessas práticas populares de saúde, como formas de atenção à saúde que precisam de reconhecimento nas políticas públicas para repensar as políticas de saúde, para que não se apresentem como práticas marginais, mas legítimas.
Reconhecimento, autonomia e potencialização dessas práticas para que se tornem cada vez mais reflexivas com base nos instrumentos da educação popular e sejam qualificadas como processos construtores de vida, saúde e cidadania das mulheres e de grupos excluídos da sociedade.
Articulação entre os sujeitos (movimentos, grupos e entidades) dessas experiências populares, a fim de realizar processos formativos comuns com base na concepção de educação popular.
Construção de articulações mais amplas com os sujeitos das práticas populares de saúde, no sentido de realizar ações e lutas coletivas capazes de alterar a correlação de forças no 'jogo de interesses' naquilo que produz doença e ameaça a dignidade e a vida.
Essas experiências e esses desafios apontam também para a necessidade de se repensar o papel dos(as) educadores(as) que formam os(as) trabalhadores(as) da saúde. Nesse sentido, é fundamental a clareza do projeto político-pedagógico com base numa perspectiva integradora e integral do ser humano e dos processos educativos como mediação para a emancipação, a autonomia e a humanização dos sujeitos e dos povos, acreditando na capacidade humana de construir a história, de transformar a realidade e de se construir permanentemente como pessoa humana, partindo do princípio de que o fundamental nas relações é o diálogo, pois é o sentimento do amor tornado ação.
Ao mesmo tempo, essas experiências traduzem uma visão popular de educação, ou seja, uma educação não aprisionada na escola ou nas instituições formadoras, embora reconheçamos sua importância estratégica para nos tornarmos humanos no tempo histórico, ainda que tenhamos vocação ontológica para sermos mais. Além disso, revelam que as atividades educativas ocorrem em todos os espaços, e quanto mais organizado o movimento social, mais intencionalidade educativa se apresenta. Esses processos educativos evidenciam e afirmam a não neutralidade da educação e que o fazer educativo pode estar presente nas escolas, nas instituições formadoras e também nos movimentos sociais populares; que a pedagogia refere-se ao fazer da educação, sempre pautado pela questão do tipo de ser humano que queremos formar.
Além desses aspectos, há uma compreensão mais profunda da educação popular como concepção de educação libertadora/emancipatória e não de uma educação para o povo; uma educação calcada no compromisso com a transformação da sociedade e com a construção de sujeitos individuais e coletivos e centrada na reflexividade e não em iludir ou convencer.
Essas práticas provocam as instituições formadoras a se abrirem ao movimento sociocultural e a se renovarem firmando o fazer pedagógico com compromisso, seriedade e rigorosidade, ousando na utopia para praticar estratégias consequentes e não somente discursivas. Colocar o povo no centro do processo ainda é o melhor caminho - historicamente comprovado -, e a síntese desse novo momento histórico parece estar apenas começando! Esse desafio se apresenta a todos os que estão comprometidos com a construção de uma sociedade verdadeiramente justa e solidária.
Notas
Recebido em 19/10/2011
Aprovado em 13/12/2011
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Set 2013 -
Data do Fascículo
Dez 2013
Histórico
-
Recebido
19 Out 2011 -
Aceito
13 Dez 2011