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Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde: contribuições para renovação teórico-metodológica da saúde coletiva

PORTO, Marcelo F; ROCHA, Diogo F; FARSANELLO, Marina T. Saúde, Ecologias e Emancipação: conhecimentos alternativos em tempos de crise(s)São PauloHucitec2021212 p.

Desde a sua criação, em 2018, o Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes), fundado no âmbito da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), tem buscado contribuir com a renovação teórico-metodológica e paradigmática do campo da saúde coletiva1 1 Importante salientar que, apesar de sua criação em 2018, o Neepes institucionaliza uma trajetória de mais de duas décadas de pesquisas de seu coordenador, o pesquisador Marcelo Firpo de Souza Porto. . No livro Saúde, Ecologias e Emancipação: conhecimentos alternativos em tempos de crise(s), Marcelo Firpo Porto, Diogo Ferreira da Rocha e Marina Tarnowski Fasanello, cofundadores do Neepes, sistematizam os esforços de reflexão e pesquisa empreendidos no âmbito do Núcleo ao longo dos últimos anos, o que se desdobrou em produção de textos, realização de encontros e criação de disciplinas.

A obra expressa, neste sentido, as bases conceituais e metodológicas do Neepes, chave de leitura trabalhada em várias experiências de pesquisa e nos conceitos em construção que foram expressos nos diversos trabalhos acadêmicos publicados pelos autores ao longo desta trajetória em temas como enfoque socioambiental crítico; promoção e vigilância da saúde; saúde como dignidade; injustiças e conflitos ambientais; metodologias sensíveis colaborativas; promoção emancipatória da saúde, e a articulação de quatro dimensões de justiça - social, sanitária, ambiental e cognitiva - para compreender tanto a crise atual quanto alternativas na direção de outras sociedades.2 2 As principais referências bibliográficas, audiovisuais e notícias do Neepes podem ser acessadas no portal http://neepes.ensp.fiocruz.br/

A ideia central do livro, como salientam seus autores, está relacionada à compreensão de que a crise contemporânea é muito mais ampla, tendo em vista também ser uma crise das propostas e referenciais de emancipação social que nas últimas décadas orientaram movimentos acadêmicos e sociais, políticas públicas e práticas institucionais, incluindo a saúde coletiva (Porto, Rocha e Farsanello, 2021PORTO, Marcelo F.; ROCHA, Diogo F.; FARSANELLO, Marina T. Saúde, Ecologias e Emancipação: conhecimentos alternativos em tempos de crise(s). São Paulo: Hucitec, 2021. 212p.). Por este motivo, apontam para a necessidade de repensar e atualizar as bases que sustentaram as utopias e projetos de sociedade, tanto em suas dimensões conceituais e metodológicas como políticas e institucionais.

Os autores ressaltam o entendimento de que na contemporaneidade as fronteiras entre os tempos de crise e normalidade foram diluídas, em um contexto em que se mesclam expressões da crise em múltiplas dimensões, a exemplo das mudanças climáticas; desastres tecnológicos e pandemias. Nosso cotidiano é crescente e perigosamente atravessado por expressões desta crise, que escancaram como o funcionamento ‘normal’ do sistema traz consigo cada vez mais incertezas e desperdícios, seja de matéria e energia, ou mesmo de conhecimentos e experiências.

A ideia de que nossos sonhos de dignidade e felicidade se materializariam baseados na ciência, tecnologia, economia e produção de riquezas, como também na ampliação das liberdades individuais e diminuição do Estado, deparam-se com as múltiplas expressões de crise que vivenciamos. Em nome do progresso econômico, científico e tecnológico, a modernidade eurocêntrica prometia um mundo cada vez mais seguro, no entanto, os desequilíbrios provocados na natureza e as consequências como o aquecimento global, epidemias, adoecimento físico e mental, além do fascismo social, contestam a possibilidade de realização desta promessa. A profundidade da crise contemporânea exige, assim, que sejam repensados nossos sonhos e referenciais que lhes dão sustentação, e é justamente nesta perspectiva que a obra aponta instigantes contribuições.

Para não sermos destruídos por estes desdobramentos da modernidade, é necessário realizar um esforço de expansão da consciência humana, tendo em perspectiva seus próprios limites e o do planeta. A resolução da crise civilizatória passa, assim, pela transição rumo ao reconhecimento de distintas concepções de humanidade, conhecimento, economia, natureza, saúde, vida e morte. As sementes desta transição podem ser encontradas, como destacam os autores com base em seu profundo diálogo com o programa de investigação das epistemologias do Sul, nos espaços e experimentos sociais emancipatórios que emergem no Sul Global.3 3 O Sul Global é entendido para além de um espaço geográfico, é uma metáfora do sofrimento humano gerado nas antigas colônias e que permanece e se atualiza com o colonialismo atual, articulando-se ao capitalismo e gerando novas formas radicais de exclusão.

A saúde é tomada pelos autores, neste sentido, como uma potente metáfora para refletir sobre a crise civilizatória e as possibilidades de sua superação. Como destacam, durante muito tempo a medicina social latino-americana e a saúde coletiva consideraram inquestionáveis as bases da medicina científica e das tecnologias biomédicas, centrando, assim, sua crítica aos desdobramentos do capitalismo com as profundas desigualdades que gera. Reforçava-se assim a ideia de que o principal objetivo a ser perseguido deveria ser o de, através do planejamento estatal e do desenvolvimento científico e tecnológico da saúde, colocar os indicadores dos países da América Latina no mesmo nível daqueles dos países centrais, argumento que embasava a teoria da determinação social da saúde. Ao focar essencialmente na proposta de redução das desigualdades sociais, esta perspectiva crítica no campo de discussões da saúde acabou por dar pouca atenção aos questionamentos das características ontológicas e epistemológicas da compreensão de saúde que se tornou hegemônica com a ascensão da modernidade ocidental.

Os autores apontam, então, a necessidade de articular às lutas por justiça social e sanitária, que têm sido o foco da saúde coletiva nos últimos 40 anos, outras dimensões de justiça, especialmente a ambiental e cognitiva, com a perspectiva de ampliar nossos referenciais analíticos e de intervenção frente a um contexto nebuloso em que as chaves de leitura que nos orientaram até aqui parecem explicitar seus limites. Desta forma, chamam-nos a atenção, por exemplo, para a necessidade de reconhecer a legitimidade dos saberes e práticas holísticas, vitalistas e naturalistas acerca dos ciclos entre vida e morte, que são característicos de povos e comunidades tradicionais.

Esta reflexão sobre a crise civilizatória, que se expressa em um somatório de crises e esgotamento das ideias de emancipação que emergiram com a modernidade eurocêntrica, é aprofundada no capítulo introdutório do livro. Frente este contexto, os autores já anunciam a perspectiva de trabalho do Neepes, de contribuir apoiando processos e lutas emancipatórias que apontem para outros futuros possíveis e que emergem, especialmente, no Sul Global.

No segundo capítulo, é aprofundada a chave de leitura que embasa teoricamente o Neepes, com a apresentação das quatro (in)justiças que atravessam diferentes lutas e processos emancipatórios: social, sanitária ou por saúde, ambiental e cognitiva. Mediante a articulação entre estas quatro dimensões de justiça é que emerge a proposição orientadora do núcleo, de Promoção Emancipatória da Saúde (PES), segundo a qual o Neepes visa apoiar lutas sociais por saúde, dignidade e direitos territoriais nos campos e cidades. O conceito de PES aflora a partir da articulação de três campos interdisciplinares do conhecimento: a saúde coletiva, a ecologia política e as epistemologias do Sul. Ao articular formulações destes três campos do conhecimento, como salientado ao longo deste capítulo, emerge a noção de PES, buscando avançar na compreensão de processos emancipatórios contemporâneos em torno da articulação destas quatro dimensões de (in)justiça.

No terceiro capítulo, os autores destacam a importância, para o campo da saúde coletiva, de destacar como as opções econômicas e sociais que se desdobram do neoextrativismo, decisivo na conformação do modelo de desenvolvimento hegemônico no Sul Global, provocam enormes transformações com impactos socioambientais e problemas de saúde que atingem principalmente grupos sociais mais vulnerabilizados. O capítulo aprofunda, neste sentido, a reflexão acerca do enfoque socioambiental crítico que tem sido trabalhado no Neepes nos últimos anos com o objetivo de contribuir com uma abordagem das crises social e ecológica que marcam a sociedade contemporânea e relacionar a saúde com as transformações territoriais que se desdobram destes processos. Com fundamento na noção de conflito ambiental proposta pelos autores, que necessariamente envolve mobilizações e resistências, também é destacada a importância de conhecer estes processos para entender possibilidades de transformação que deles emergem. Uma das bases para esta reflexão são os acúmulos com a experiência do Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, um projeto que o Neepes iniciou em 2008 e que já mapeou mais de 600 conflitos socioambientais.4 4 Ver: Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil (Início). (https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/)

No quarto capítulo, os autores apresentam caminhos acerca da possibilidade de colocar em prática, alicerçados em metodologias sensíveis colaborativas, uma ecologia de saberes com base em diálogos interculturais, o que envolve a realização de processos de pesquisa com (e não sobre) sujeitos envolvidos com lutas por saúde, dignidade e direitos territoriais. Desta forma, o Neepes propõe fortalecer conceitual e metodologicamente processos emancipatórios com a efetiva participação dos sujeitos que trazem suas vidas, valores, saberes e lutas e, respeitosamente, dialogam com outros sujeitos em uma perspectiva do tornar comum, nos termos de Paulo Freire. O capítulo aprofunda, assim, a reflexão metodológica acerca de como fortalecer a copresença de sujeitos advindos de lutas sociais frequentemente invisibilizadas, com seus conhecimentos, práticas e linguagens, para desenvolver conhecimentos interdisciplinares com base em diálogos interculturais.

No quinto capítulo, os autores apresentam, a título de considerações finais, ideias e sugestões de agendas de pesquisa, com ênfase no campo de conhecimento da saúde coletiva, que possam contribuir para fortalecer a emergência de processos emancipatórios de promoção da saúde, dignidade e direitos territoriais.

Tendo em vista a reflexão que suscita e os potentes caminhos que abre, a obra se constitui, como afirma Boaventura de Souza Santos no excelente prefácio do livro, em um contributo importante para o projeto coletivo das epistemologias do Sul.

Referências

  • PORTO, Marcelo F.; ROCHA, Diogo F.; FARSANELLO, Marina T. Saúde, Ecologias e Emancipação: conhecimentos alternativos em tempos de crise(s). São Paulo: Hucitec, 2021. 212p.
  • 1
    Importante salientar que, apesar de sua criação em 2018, o Neepes institucionaliza uma trajetória de mais de duas décadas de pesquisas de seu coordenador, o pesquisador Marcelo Firpo de Souza Porto.
  • 2
    As principais referências bibliográficas, audiovisuais e notícias do Neepes podem ser acessadas no portal http://neepes.ensp.fiocruz.br/
  • 3
    O Sul Global é entendido para além de um espaço geográfico, é uma metáfora do sofrimento humano gerado nas antigas colônias e que permanece e se atualiza com o colonialismo atual, articulando-se ao capitalismo e gerando novas formas radicais de exclusão.
  • 4
    Ver: Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil (Início). (https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2022
  • Aceito
    11 Nov 2022
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