Resumos
O presente artigo tem por objetivo abordar alguns aspectos da vida dos agentes comunitários de saúde do município de São Carlos, São Paulo. Utilizou-se para a construção deste estudo a pesquisa qualitativa, com a aplicação da entrevista semiestruturada e análise temática de conteúdo. Quatro categorias resultaram da análise: como vejo meu trabalho; dificuldades e facilidades de morar no bairro; o ACS em seus diferentes papéis; e, por fim, qualidade de vida: a vida como ela é. A aproximação com a realidade estudada possibilitou perceber o agente comunitário de saúde para além da dimensão trabalho e destacar os aspectos que o particularizam e diferenciam dos demais profissionais do Sistema Único de Saúde, a saber: ser trabalhador, morador e usuário. Concluímos que o agente comunitário de saúde precisa ser compreendido na singularidade que a profissão apresenta, proporcionando o fortalecimento pessoal e profissional cotidiano.
saúde coletiva; agente comunitário de saúde; condições de trabalho; pesquisa qualitativa
This article aims to address a few aspects related to the lives of the community health workers in the city of São Carlos, São Paulo. Qualitative research was used to build this study, with the application of semi-structured interviews and thematic content analyses. Four categories resulted from the analysis: How I see my work; the difficulties and advantages of living in the neighborhood; the CHA in their different roles, and, ultimately, quality of life: life as it is. Being closer to the reality being studied enabled a view of the community health agents beyond the work dimension and highlighted aspects that particularize and set them apart from other professionals in the Unified Health System, namely: Being a worker, resident and user. We conclude that the community health agent needs to be understood based on the uniqueness of the profession, providing personal empowerment and a professional routine.
public health; community health agent; working conditions; qualitative research
Este artículo tiene por objetivo tratar de algunos aspectos de la vida de los agentes comunitarios de salud del municipio de São Carlos, San Pablo. Para la construcción de este estudio se utilizó la investigación cualitativa, con la aplicación de la entrevista semiestructurada y análisis temática del contenido. Del análisis resultaron cuatro categorías: cómo veo mi trabajo; dificultades y facilidades de vivir en el barrio; el ACS en sus diferentes papeles; y, finalmente, calidad de vida: la vida tal como es. La aproximación con la realidad estudiada permitió observar al agente comunitario de salud más allá de la dimensión trabajo y destacar los aspectos que lo caracterizan y diferencian de los demás profesionales del Sistema Único de Salud, a saber: ser trabajador, residente y usuario. Llegamos a la conclusión de que el agente comunitario de salud necesita ser comprendido dentro de la singularidad que representa su profesión, proporcionando el fortalecimiento personal y profesional cotidiano.
salud colectiva; agente comunitario de salud; condiciones de trabajo; investigación cualitativa
ARTIGO ARTICLE
O agente comunitário de saúde como morador, trabalhador e usuário em São Carlos, São Paulo
The community health agent as a person, worker, and user in São Carlos, São Paulo
El agente comunitario de salud como residente, trabajador y usuario en São Carlos, San Pablo
Juliana Morais Menegussi1 1 Faculdade Anhanguera, Matão, São Paulo, Brasil. Mestre em Gestão da Clínica em Saúde pela Universidade Federal de São Carlos. < jmmenegussi@gmail.com> ; Márcia Niituma Ogata2 2 Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil. Doutora em Enfermagem Fundamental pela Universidade de São Paulo. < ogata@ufscar.br> ; Maria Helena Pereira Rosalini3 3 Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil. Mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas. < mariarosa@ufscar.br>
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Juliana Morais Menegussi Av. Mauricio Galli, 1.215, apartamento 202, bloco 02, Vila Sedenho CEP 14806-155, Araraquara, São Paulo, Brasil
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo abordar alguns aspectos da vida dos agentes comunitários de saúde do município de São Carlos, São Paulo. Utilizou-se para a construção deste estudo a pesquisa qualitativa, com a aplicação da entrevista semiestruturada e análise temática de conteúdo. Quatro categorias resultaram da análise: como vejo meu trabalho; dificuldades e facilidades de morar no bairro; o ACS em seus diferentes papéis; e, por fim, qualidade de vida: a vida como ela é. A aproximação com a realidade estudada possibilitou perceber o agente comunitário de saúde para além da dimensão trabalho e destacar os aspectos que o particularizam e diferenciam dos demais profissionais do Sistema Único de Saúde, a saber: ser trabalhador, morador e usuário. Concluímos que o agente comunitário de saúde precisa ser compreendido na singularidade que a profissão apresenta, proporcionando o fortalecimento pessoal e profissional cotidiano.
Palavras-chave: saúde coletiva; agente comunitário de saúde; condições de trabalho; pesquisa qualitativa.
ABSTRACT
This article aims to address a few aspects related to the lives of the community health workers in the city of São Carlos, São Paulo. Qualitative research was used to build this study, with the application of semi-structured interviews and thematic content analyses. Four categories resulted from the analysis: How I see my work; the difficulties and advantages of living in the neighborhood; the CHA in their different roles, and, ultimately, quality of life: life as it is. Being closer to the reality being studied enabled a view of the community health agents beyond the work dimension and highlighted aspects that particularize and set them apart from other professionals in the Unified Health System, namely: Being a worker, resident and user. We conclude that the community health agent needs to be understood based on the uniqueness of the profession, providing personal empowerment and a professional routine.
Keywords: public health; community health agent; working conditions; qualitative research.
RESUMEN
Este artículo tiene por objetivo tratar de algunos aspectos de la vida de los agentes comunitarios de salud del municipio de São Carlos, San Pablo. Para la construcción de este estudio se utilizó la investigación cualitativa, con la aplicación de la entrevista semiestructurada y análisis temática del contenido. Del análisis resultaron cuatro categorías: cómo veo mi trabajo; dificultades y facilidades de vivir en el barrio; el ACS en sus diferentes papeles; y, finalmente, calidad de vida: la vida tal como es. La aproximación con la realidad estudiada permitió observar al agente comunitario de salud más allá de la dimensión trabajo y destacar los aspectos que lo caracterizan y diferencian de los demás profesionales del Sistema Único de Salud, a saber: ser trabajador, residente y usuario. Llegamos a la conclusión de que el agente comunitario de salud necesita ser comprendido dentro de la singularidad que representa su profesión, proporcionando el fortalecimiento personal y profesional cotidiano.
Palabras clave: salud colectiva; agente comunitario de salud; condiciones de trabajo; investigación cualitativa.
Introdução
A partir da vivência prática de uma das autoras como residente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), foi possível observar nas Unidades de Saúde da Família (USF) sentimentos de angústia e confusão do trabalhador agente comunitário de saúde (ACS). Essa percepção foi possível devido à atuação cotidiana em duas USFs pertencentes ao município de São Carlos, no interior de São Paulo.
A Saúde da Família constitui-se na estratégia de reorientação do modelo de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir da atenção básica. Essa estratégia foi iniciada em 1991, com a implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs), como parte do processo de construção do SUS.
Em 1994, o Ministério da Saúde lançou o Programa de Saúde da Família (PSF) como Política Nacional de Atenção Básica, que foi institucionalizada em 2006, constituindo-se na Estratégia Saúde da Família, com caráter organizativo, complementar e substitutivo ao Pacs.
O objetivo de uma USF é o de realizar atenção contínua nas especialidades básicas, com uma equipe multiprofissional para desenvolver as atividades de promoção, proteção e recuperação da saúde, características do nível primário de atenção (Brasil, 1997, 2011). É no bojo dessa ação que o ACS executa o seu trabalho, tendo como premissa estar em contato permanente com a comunidade, com o objetivo de unir dois universos culturais distintos, o científico e o popular, ajudando no trabalho de vigilância e na promoção da saúde (Nunes et al., 2002).
De acordo com Oliveira e colaboradores (2003), o ACS tem uma missão social bem clara, pois é alguém inteiramente identificado com sua própria comunidade, com os mesmos valores, costumes e linguagem, cuja capacidade de liderança se reverte em ação comunitária em prol da melhoria das condições de vida e de saúde daquela população. Com o fundamento teórico desses autores, é importante dizer que a inserção do ACS acontece de forma intensa, sobretudo no que tange à linha tênue que o separa entre ser agente comunitário de saúde, morador e usuário do serviço pelo qual trabalha.
A aproximação com a realidade vivida pelo agente comunitário foi possível devido às visitas domiciliares realizadas juntamente com esses trabalhadores e as reuniões de equipe - estas últimas um espaço em que a angústia do ACS era exposta de maneira evidente, conforme a fala de uma agente comunitária: "ser ACS é um caldeirão quente".
Outra atividade importante que provocou a reflexão sobre o contexto de vida e de trabalho do ACS foram as tutorias de campo.4 4 Espaço dedicado ao fortalecimento da formação profissional do residente. Na ocasião, trabalhávamos o papel do ACS na Estratégia Saúde da Família. Tais aproximações impulsionaram as pesquisadoras, sobretudo a residente, a aprofundarem esse universo de pesquisa, que traz consigo ambiguidades, sonhos, sofrimentos, vontades e esperança.
Refletindo sobre o que Furlan (2008a, 2008b) diz em seus trabalhos, o ACS carrega uma responsabilidade muito grande, posto que precisa trazer respostas e mediações para a comunidade que representa e o serviço pelo qual trabalha. Assim, analisar de que forma os ACSs percebem e estabelecem a relação morador, trabalhador e usuário do mesmo serviço ofertado e do mesmo território em que mora é a proposta deste artigo.
Passos metodológicos
De acordo com Minayo (2001), a pesquisa qualitativa se preocupa com um nível de realidade que não pode ser quantificado, como as crenças, os valores e os significados, afinal o seu caráter é intrínseco à realidade e à vida dos seres humanos. Dessa forma, tal metodologia permite desvelar, ainda que de maneira aproximada, a vida dos sujeitos desta pesquisa.
Foi utilizada, segundo essa abordagem, a observação participante, com a inserção diária da residente nos locais de pesquisa, e a entrevista semiestru-turada, composta de roteiro prévio com perguntas norteadoras.
A conduta ética é de suma importância no desenvolvimento de uma pesquisa científica, uma vez que ela traz consigo o compromisso e a responsabilidade com os dados coletados e a preservação da identidade dos sujeitos envolvidos.
Os dados foram coletados por meio de entrevistas individuais em salas reservadas dentro das USFs no período de março a maio de 2011, respeitando-se a privacidade, o sigilo e o anonimato. Todas as falas foram gravadas mediante autorização e a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, previamente apresentado e explicado aos sujeitos.
O roteiro de questões da entrevista semiestruturada foi composto por perguntas que norteavam o trabalho do ACS, perpassando as dimensões de ser morador do bairro em que trabalha, como também trabalhador e usuário do mesmo serviço ofertado. O objetivo era o de desvelar a relação que tais trabalhadores estabelecem diante desse tripé.
Em alguns momentos se fizeram necessárias intervenções pontuais para esclarecer as dúvidas que surgiram, porém, após o esclarecimento, as falas eram retomadas, não prejudicando o andamento nem inibindo os entrevistados. Assim, os ACSs foram identificados em uma sequência numérica de 1 a 11, dos quais os ACSs de 1 a 6 pertencem à USF do território A. Os demais, do 7 ao 11, pertencem à USF do território B.
Os dados foram analisados por meio do método de análise de conteúdo temático (Minayo, 2001). Após a transcrição fidedigna do material obtido, procedeu-se à leitura e releitura das entrevistas, aproximando-as dialeticamente dos referenciais teóricos, para posteriormente delimitá-las por assuntos de maior relevância e significância, agrupando-as em quatro categorias.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSCar, conforme o parecer de número 156/2011. Todos os procedimentos metodológicos empregados neste estudo estão de acordo com a resolução n. 196/1996.
Conhecendo os territórios
Este estudo contemplou duas USFs, cada uma pertencente a um bairro periférico do município de São Carlos. Para tanto, como forma de esclarecer os procedimentos adotados neste estudo, é necessário caracterizar os bairros em que as USFs estão inseridas, uma vez que os territórios trazem diferenças na realização do trabalho cotidiano.
A cidade de São Carlos é conhecida nacionalmente por seu vigor acadêmico, tecnológico e industrial, o que lhe confere o título de capital da tecnologia. Conforme informações contidas no site da Prefeitura de São Carlos,5 5 Disponível em: < http://www.saocarlos.sp.gov.br/index.php/conheca-sao-carlos/115442-dados-da-cidade-geografico-e-demografico.html>. Acesso em: 20 maio 2010. a cidade conta com 221.936 habitantes e possui um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,841. Entretanto, apesar de todo o desenvolvimento tecnológico e humano, o município conta com uma vasta região popularmente conhecida por abrigar bolsões de pobreza e apresentar altos índices de vulnerabilidade social, em que a tecnologia e o desenvolvimento humano e social não são realidade na vida da maioria dos seus moradores.
O município está dividido em cinco grandes regiões de saúde, denominadas de Administração Regional de Saúde (Ares). Esta estrutura foi redefinida como uma maneira de garantir a representação da secretaria de saúde nos territórios. Sua função é a de coordenar as unidades de saúde localizadas na sua área de abrangência e de propiciar cuidado integral às necessidades de saúde dos moradores da área geográfica.
Nesta pesquisa, as USFs encontram-se em Ares distintos, porém com relevantes semelhanças no que se refere aos aspectos socioeconómicos.
O território A é relativamente pequeno e distante do centro da cidade. Muitos moradores residem em terrenos não legalizados. A maioria das residências é de alvenaria e conta com infraestrutura básica.
O bairro é marcado pela carência de serviços e apoios públicos estatais, fator esse que leva a comunidade a ter a USF como referência no atendimento às suas necessidades gerais. A comunidade é caracterizada por desemprego, analfabetismo, álcool e drogas, e demais reflexos da questão social.6 6 Esta deve ser entendida como o conjunto das expressões das desigualdades sociais da sociedade capitalista madura (Iamamoto, 2006).
O território B apresenta características muito similares ao A, entretanto, em virtude de carregar estigmas de uma 'ex-favela', as dificuldades são ainda maiores para os moradores. Segundo eles,7 7 Tal afirmação é corroborada pelos relatos dos moradores locais e dos próprios agentes comunitários. as oportunidades de trabalho são reduzidas para a população dessa comunidade, que também está sujeita a vários tipos de preconceito.
Vale destacar que o tráfico de drogas é um dos fortes desencadeadores das expressões da violência no bairro. Durante as visitas domiciliares realizadas no território, era possível observar o tráfico em suas diferentes escalas, bem como toda a ordem de vulnerabilidade que permeia a classe menos favorecida.
Dessa forma, ainda que ambos os territórios tenham características muito similares, a vida comunitária em cada local traz distinções que se refletem no desenvolvimento do trabalho dos ACSs e da equipe de saúde como um todo.
Análise dos dados
Os agentes comunitários das unidades de saúde A e B em São Carlos são em sua maioria do sexo feminino, com faixa etária de 20 a 40 anos de idade, atuando como ACS de um a cinco anos, moradores do bairro entre cinco e 20 anos, e com escolaridade predominante dos ensinos fundamental, médio e técnico.
O perfil socioeconômico dos territórios e a organização da gestão nas USFs interferem sobremaneira no modo com que os agentes comunitários veem seu trabalho e a sua inserção na comunidade e no trabalho.
Assim, para melhor compreensão dos significados atribuídos pelos agentes comunitários ao tripé morador, trabalhador e usuário do serviço que oferta, elencamos quatro categorias: como vejo meu trabalho; dificuldades e facilidades de morar no bairro; o ACS em seus diferentes papéis; e, por fim, qualidade de vida: a vida como ela é.
Como vejo meu trabalho
Para iniciar essa análise, é importante a aproximação com a categoria trabalho, por esta caracterizar-se como uma atividade exclusivamente humana e trazer consigo respostas prático-conscientes às necessidades daqueles que a praticam, ou seja, o homem (Iamamoto, 2006).
A atribuição de significados positivos ou negativos ao trabalho tem íntima relação com a construção histórica que se opera na sociedade atual, dadas as características económicas, políticas, sociais e culturais. Dessa forma, o ACS está intimamente ligado nesse contexto, e deve ser compreendido como um trabalhador da saúde que sofre os rebatimentos da classe-que-vive-do-trabalho (Antunes, 1995) e que passou a incorporar multifuncionalidades em sua prática profissional, num processo de flexibilização do seu trabalho, conforme o relato a seguir:
Aqui a gente tem mais um monte de coisa pra fazer. Tem que entregar leite... É uma hora, mas perde tempo também, a gente tem que ir antes, depois tem que assinar a lista de presença, a gente fica na recepção, a gente tem que ver para agendar consulta, se não tiver, tenta de novo, e aí a gente perde tempo, né? E isso acontece várias vezes por dia, entendeu?! Então, assim, eu não posso definir que eu sou uma ACS que faço só visita, a gente faz outras coisas também (ACS 1).
Eu faço de tudo. É meio faz tudo. Faço visita, fico na recepção, entrego leite, um pouquinho de tudo. Ajudo na coleta, prontuário. Tem muita coisa que não é competência do agente comunitário (ACS 11).
Os ACSs identificam a sobreposição de atividades que eles acumularam desde a aprovação das normas e diretrizes conforme a portaria n. 1.886, de 18 de dezembro de 1997 (Brasil, 1997), e as diretrizes para o exercício das atividades pelo decreto n. 3.189, de 1999 (Brasil, 1999).
É perceptível que a essência desse profissional é 'perdida' no cotidiano de trabalho. Muitos ACSs atribuem essa justaposição de atividades à rotina administrativa que está presente nas USFs. Um dos motivos dessa sobrecarga pode ser entendido pelo fato de, na maioria das USFs, não existir em seu quadro de funcionários auxiliares administrativos, por exemplo, para contribuir com esse processo de trabalho interno.
De acordo com Silva e Dalmaso (2002), o trabalho do agente comunitário acontece de forma muito intensa. A relação estabelecida entre a prática do ACS e as respostas a serem dadas para a comunidade é um dado recorrente na fala de todos os sujeitos entrevistados.
Percebe-se que os ACSs trazem em seu trabalho a premissa de atender às diferentes necessidades dos usuários que acompanham e solucioná-las, conforme o depoimento a seguir:
Ser agente é a coisa mais linda, é um trabalho bonito, mas assim, aqui, não sei se é pelo bairro ou pela população, ele se torna frustrante, decepcionante. Porque aqui ele não vê o agente como uma pessoa que vai te orientar como prevenção, como ele agir com a medicação, essas coisas... Ele acha que por você ser morador do 'B', por você tá aqui há bastante tempo, ele vê você assim como: você tem que fazer alguma coisa, você tem que defender eles de alguma forma (ACS 8).
A responsabilidade de trazer respostas e soluções aos problemas da comunidade é o que define, do ponto de vista dos entrevistados, se o seu trabalho está sendo realizado de modo integral e efetivo. Quando o ACS percebe que a relação do serviço com a comunidade não consegue atender às necessidades da população, ele é o primeiro a se culpabilizar.
É difícil porque tem coisa que você não consegue resolver (ACS 6).
(...) as pessoas me cobram coisas que elas acham que eu poderia fazer por elas e pela comunidade e que eu não me vejo fazendo (ACS 4).
Pelo conhecimento que eu tenho, eu acho que eu poderia ter feito mais (ACS 8).
Para Santos (2004) e Silva e Dalmaso (2002), a figura do ACS é construída de acordo com dois aspectos identitários: identidade com a comunidade e pendor para a ajuda solidária. Tais identidades traduzem a ideia de que o tipo de orientação dado ao seu trabalho dependerá das próprias necessidades do público a ser atendido nas comunidades em que ele irá intervir. Dessa forma, torna-se esclarecedor o motivo pelo qual os ACSs atribuem ao seu trabalho a missão messiânica de sua prática, conforme o relato:
É um trabalho que eu gosto de fazer, eu gosto de estar perto das pessoas, pra ajudar no que elas precisam. É satisfatório ajudar as pessoas. As pessoas aqui não precisam só de saúde, elas precisam de atenção, elas precisam de assistência, elas tão precisando além de um esteto, entendeu? Então, elas precisam de coisas além. Então faz bem trabalhar e ajudar (ACS 4).
A fala dessa agente comunitária é o retrato do caráter de ajuda que essa profissão da saúde representa. É mister apontar nesse contexto, embora de maneira pontual, que a ACS usa uma linguagem metafórica, referindo-se à saúde para 'além do esteto', o que remete à visão ampliada de saúde.
Somente um dos 11 entrevistados conseguiu definir seu trabalho com uma concepção universalista, ou seja, colocando-se entre o serviço de saúde e a população, tendo como dimensão a auto-organização comunitária e os sistemas oficiais de saúde (Santos, 2004). Em contrapartida, esse profissional não elenca em suas prioridades as necessidades de saúde do território, restringindo sua ação para a "marca da doença" (Furlan, 2008b, p. 375).
Meu trabalho é acompanhar famílias da minha área de abrangência, acompanhar gestantes, hipertensos, diabéticos, acamados, crianças, orientar, fazer esse elo de ligação com a comunidade e o serviço. Essa porta de entrada da atenção básica que eles falam. Agendar encaminhamentos, orientar, fazer busca ativa de pessoas com problema, intermediar casos com a matricial... esses tipos de coisas (ACS 3).
É possível observar um fazer focado nos casos individuais, em que a potência da ação do agente comunitário estaria numa ação de conhecimento do território para propiciar à equipe uma possibilidade de pensar ações em saúde que fossem mais abrangentes, coletivas, comprometidas com o processo de conscientização e participação das pessoas para um efetivo processo de mudança social.
Percebe-se que o mundo do trabalho do agente comunitário é permeado de contradições que se misturam com a prática e a teoria desse profissional. Assim, pensar sua atuação com respaldo de ordem conceitual e instrumental, visando garantir formas de atuação cotidiana, a fim de prepará-lo como sujeito para a prática do trabalho (Furlan, 2008b), contribuiria para o cumprimento das atribuições do agente comunitário e melhor entendimento desse e para esse ator polifónico (Nunes et al., 2002).
Dificuldades e facilidades de morar no bairro
Uma das premissas do Ministério da Saúde é a de que o ACS resida na área da comunidade em que irá atuar (Brasil, 1997, 2002, 2011), com o objetivo de facilitar a interlocução entre o serviço de saúde e a comunidade. Dessa forma, o trabalho do ACS é baseado em ações educativas e preventivas que buscam fortalecer a organização, a valorização e o desenvolvimento comunitário, bem como o vínculo do sistema de saúde com a comunidade (Oliveira et al., 2003).
Justamente pela pluralidade que cerca o trabalho do agente comunitário, ora representando a comunidade, ora o serviço, sem definições claras que garantam qual o limite de sua atuação, desencadeiam-se algumas condições para o surgimento de dificuldades de morar e trabalhar no mesmo bairro.
Todos os ACSs entrevistados disseram que a maior dificuldade encontrada após assumirem o cargo foi a perda da privacidade, conforme o relato a seguir:
Morar aqui é uma dificuldade muito grande, porque as pessoas confunde (sic) muito. Por exemplo, se você tá em algum lugar do bairro: sacolão, na igreja, ou qualquer lugar, as pessoas olha (sic) pra você... Não vê que você depois daquele horário, não acha que você não tá mais trabalhando, você tem lazer. Aí eles pergunta (sic) e a gente responde, né? Pergunta se tem médico, se o exame chegou (ACS 1).
Dificuldade: a população às vezes confunde amizade com profissional, então acham que podem chegar na sua casa meia-noite, uma hora, pra coisas óbvias, que não têm necessidade de tá lá naquela hora. Outra coisa que dificulta é às vezes você ver sua vida particular invadida. As pessoas veem que hora você entra, que hora você sai, que hora você vem almoçar... As pessoas conhecem você e ficam de olho na sua vida. (ACS 5).
Percebe-se que essa esfera do trabalho do agente comunitário é bastante delicada, sobretudo quando observamos o emaranhado de relações a que esses trabalhadores são submetidos. Tal inserção interfere, inclusive, na forma como tais sujeitos passam a levar suas vidas após se tornarem ACSs. Muitos deles adquiriram novos comportamentos e rotinas, com o argumento de que não é possível mais ser a mesma pessoa, visto que sua presença na comunidade passa a ser referência do cuidado em saúde, ditando regras e comportamentos.
É um exemplo, é uma referência! Não fumo na rua, não fico sem camisa... Não lavo nem a calçada sem camisa... é estranho. Depois de ser ACS, tudo mudou! (ACS 10).
Depois que eu virei agente comunitária, eu não saio mais de casa. Só saio se for pra outro lugar. Antes eu andava no B, ficava na praça. Hoje eu não fico mais. Porque eles já te veem de uma forma diferente, eu acho. Eles te veem como a pessoa que tá trabalhando no posto (ACS 7).
Ainda que tal profissão possa influenciar no relacionamento com a comunidade, há que se ater sobre a dimensão do sofrimento, pelo fato de morar e trabalhar no bairro. Segundo Jardim e Lancman (2009), essa dupla inserção na comunidade leva o ACS a ter duplo papel: o de ser simultaneamente agente e sujeito. Tal relação cria uma porosidade entre o trabalhar e o viver na comunidade, ou seja, o agente não tem o distanciamento entre o ato de trabalhar e o de morar. Por esse motivo, a forma como o trabalho está organizado pode ser uma fonte de sofrimento psíquico para esse trabalhador.
A análise de Jardim e Lancman (2009) é traduzida nas falas a seguir:
Aí você sabe que a outra parte da comunidade tá precisando, você conhece a realidade dela, e você fica ali no meio, não consegue entrar num acordo nem com um nem com o outro. Porque se o sistema se nega, se não tem condições de fazer, você não pode fazer nada porque não depende de você. Em compensação, você sabe da necessidade da pessoa e você não consegue ajudar. Eu aprendi com o tempo a pôr pra fora, sabe? O sofrimento já me deixou adoecida quando eu comecei a trabalhar aqui (ACS 4).
As dificuldades são todas, porque eu não tenho mais vida. A minha vida se tornou a vida dos moradores do bairro B. A minha vida particular e trabalho virou tudo uma coisa só (ACS 8).
Tais relatos evidenciam a complexidade e o desgaste emocional do trabalho do ACS. Para esses trabalhadores, o trabalho passa a ter significados e consequências distintas, se comparado com o das demais classes profissionais do SUS, justamente pelo fato de a inserção do ACS ser diferente de todas as demais áreas da saúde.
É interessante pontuar neste estudo que a diferença da natureza de seu trabalho, associada à premissa do Ministério da Saúde de os agentes serem moradores do território, foi questionada pelos 11 entrevistados. Na concepção do ACS, a condição de ser morador do bairro não facilita a realização do seu trabalho; inclusive ele passa a ser reconhecido como uma interferência negativa, que tem a possibilidade de ver tudo o que acontece no bairro, sendo interpretado como alguém que sabe muito sobre o usuário.
Porque morar no bairro não tem necessidade nenhuma, pra mim isso é um erro. Pra você ter vínculo, pra cuidar da família, você não precisa tá aqui 24 horas. Você precisa ter sua privacidade, então não tem necessidade (ACS 1).
Por exemplo, eu moro de aluguel, tenho que ter minha casa. Mas não é esse padrão que quero. Mas isso me obriga a continuar aqui. Isso é uma dúvida que eu tenho, quem fez essa lei de agente comunitário, o que ele pensou em relação a isso? (ACS 3).
Eu acho que o trabalho seria muito melhor se morasse fora. Assim (...) a gente não tem vínculo, mas vira amizade, então tem uma confiança no bairro e tem certas liberdades e tem outras que, assim, eu não vou falar da minha vida pra essa aí porque ela mora na minha rua, ela vai saber o que tá acontecendo na minha casa, eu não quero que ela saiba... Eu acho uma loucura. Quem inventou isso não faz o serviço, pode ter certeza (ACS 8).
Ainda que os ACSs tenham clareza do motivo que os leva a ser moradores do bairro para a realização do trabalho, são notáveis a inquietação e os questionamentos que fazem sobre tal premissa do Ministério da Saúde. Para a maioria dos entrevistados, a esfera do vínculo não é determinante para o cargo, pois na concepção deles o vínculo não é dado - ele se cria, se constrói.
Então essa questão de que agente comunitário tem que morar na área pra ter vínculo, no meu caso não funciona. Então eu conheço meu vizinho do lado e da frente e só. A questão do vínculo já não funciona muito pra mim. Eu tenho vínculo com o pessoal da minha área, e se for ver, minha microárea é bem longe da minha casa, e eu fui construir esse vínculo depois. Eu não tinha antes. Se tem algum ACS pra provar isso, esse alguém sou eu (ACS 11).
Outros ACSs trazem como argumento o vínculo dos demais profissionais no território, como também o conhecimento da realidade local e das necessidades de saúde. Para o vínculo ocorrer, eles não precisam morar no bairro. Citam exemplos como o profissional médico, o dentista, a enfermeira e os próprios residentes multiprofissionais em saúde da família e comunidade.
Porque eu não preciso estar aqui e morar aqui pra saber o que a comunidade precisa. A auxiliar de enfermagem tem um forte vínculo com toda a comunidade, a residência veio, ficou dois anos e criou vínculo, a enfermeira tem vínculo com todo mundo, e ela não mora aqui. O vínculo você vai conquistando... (ACS 2).
No que se refere às facilidades do trabalho no bairro, a resposta predominante foi a de os ACS não terem que utilizar os meios de transportes públicos, podendo ir até o seu trabalho a pé. Outro relato da facilidade por estarem no bairro é o de ganharem tempo e terem um conhecimento maior acerca do sistema de saúde local.
A facilidade: você ganha muito tempo. Aqui, se eu entro 7 horas saio de casa 6:50 (ACS 9).
Não preciso pegar ônibus [risos], vou almoçar em casa, tenho mais contato com meus filhos, com minha família. Uma facilidade sendo ACS, eu conheço mais da rede, o que funciona, o que não funciona... de entender como funciona todo esse processo, não só de saúde, mas da educação, da cidadania... dá uma visão bem ampliada de como funciona uma rede e como encaminhar essas pessoas (ACS 2).
É possível identificar que a proposta do Ministério da Saúde, sobre o ACS morar no território, não é analisada pelos sujeitos da pesquisa como uma premissa que faz diferença na intervenção diária, sobretudo na esfera do vínculo. Dessa forma, aponta-se a importância de aprofundar essas questões, em virtude dos resultados obtidos na entrevista. O presente material não objetivou o aprofundamento dessa realidade apresentada, porém, conforme salientam Jardim e Lancman (2009), este é um campo a ser questionado e mais explorado, pelas consequências decorrentes na vida dos agentes.
O ACS em seus diferentes papéis
Dentro das USFs, é possível perceber a rotina intensa do ACS. A todo momento ele é requisitado, ora pela equipe, ora pelos usuários. De acordo com a fala de um dos entrevistados, talvez seja mais coerente dizer que o ACS é a 'maçaneta' do serviço, pelo fato de maçaneta significar estar ao alcance de todos, mesmo com a porta fechada.
O ACS representa uma figura comunitária importante, tornando-se representante do povo naquela comunidade.
Por exemplo, quando tem reunião de orçamento e reuniões que a gente participa... acho legal poder levar a demanda deles... mesmo sabendo que nem tudo o que a gente leva é resolvido. Como a gente tá mais perto da população, eles procuram a gente. Como aqui é um bairro carente, não tem muita coisa (ACS 2).
Tem muita gente que olha no bairro e me vê com uma liderança que eu acho que não tenho. Tem muita gente que fala assim: "Ah, você tem que se candidatar pra vereadora pra melhorar muita coisa aqui." Eu vejo isso como uma piada! Mas eles falam sério, sabe? Eu, assim, não me vejo fazendo isso, com essa capacidade política, então tem um lado que eu quero que minha comunidade melhore. E eu vou lutar pra isso (ACS 4).
A dimensão social do trabalho do agente comunitário é discutida por diversos autores (Furlan, 2008a, 2008b; Silva e Dalmaso, 2002; Jardim e Lancman, 2009; Nogueira et al., 2000), levando à seguinte reflexão:
(...) o papel social do ACS junto às comunidades confere legitimidade e eficácia humana ou cultural a seu perfil ocupacional, e isto é justamente o que o transforma num recurso humano fora do comum. Uma expressão usada com bastante frequên-cia para caracterizar o ACS é que ele atua como ponte ou elo entre a comunidade e as instituições de saúde. Mas essa função de 'ponte' pode ser concebida de maneira mais vasta, compreendendo o acesso aos direitos de cidadania de modo geral (Nogueira et al., 2000, p. 7).
Um dado importante nessa esfera analisada é que somente a unidade de saúde do território A trouxe essa dimensão política e social do trabalho do ACS. Já a unidade de saúde do território B em nenhum momento referiu práticas aproximadas com esse perfil social, no sentido atribuído por Nogueira et al.
Durante as análises, foi possível verificar que os ACS do território B não contam com o apoio dos gestores da unidade para a realização de premissas básicas do seu próprio trabalho, como por exemplo a identificação das necessidades de saúde do território. É notável que esses agentes comunitários vivenciam o que Furlan (2008a, 2008b) retratou em suas obras, quando diz que o ACS é silenciado e silencia-se na equipe.
De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 1997), o ACS é um trabalhador que integra a equipe de saúde local, auxiliando as pessoas a cuidarem da própria saúde por meio de ações individuais e coletivas. É a pessoa que está em contato permanente com a comunidade, ou seja, vive nela e faz parte dela, contribuindo no trabalho de vigilância e promoção da saúde.
Apesar do respaldo ministerial sobre a importância do trabalho do agente comunitário, o que se vê nas unidades de saúde pesquisadas é certa desvalorização ante as necessidades da população que são apresentadas pelos ACSs.
Essa realidade repercute, na visão dos entrevistados, na desqualificação de seu trabalho.
Eu, trazer queixas deles? Não existe, porque nunca ninguém escuta. Assim, eu vou trazer a queixa de um usuário pode ser que seja levado em consideração... mas nunca é muito escutado pela equipe. Porque às vezes você tem que ficar a favor do usuário, só que a gente não fica porque a gente tem medo! (ACS 7).
A situação torna-se ainda mais crítica quando todos os cinco entrevistados demonstraram ter medo da equipe. Muitos ACSs optam por não falarem sobre as reais necessidades de uma família acompanhada, e de não mediarem a relação entre unidade e comunidade.
É bastante complicado porque eu vejo falhas em várias partes. A unidade de saúde tem várias falhas. Tem que ter muito jogo de cintura. Muita coisa tem que fingir que não escutou, né? E levar como dá. Aí você fica quietinho... Preciso do emprego, e como pai de família você precisa trabalhar, né? (ACS 9).
Eu tenho que inventar a minha verdade pra passar pra eles e uma verdade pra passar pra equipe, entendeu? Tenho que filtrar, que afunilar as informações. Porque não são as mesmas linguagens (ACS 10).
Para outros ACSs entrevistados, a dificuldade da realização do trabalho está pautada pela falta de proximidade e identificação dos membros da equipe com a comunidade em questão.
De acordo com Furlan (2008b), o trabalho do ACS tem inclinação para as atividades com os usuários, e isso deve ser aproveitado e potencializado dentro do serviço. Infelizmente, a potência do trabalho dos ACSs nesse sentido é questionada, evidenciando a falta de respaldos mínimos dos gestores para a realização de seus trabalhos. Para tanto, é importante apresentar a descrição feita pela ACS 8 sobre a dificuldade do trabalho na equipe do território B. Ela retrata a não proximidade e a falta de respeito com os valores e a cultura da comunidade pelos gestores:
Eles [os moradores] não é (sic) ouvido, não é (sic) recebido. Lá fora eles não têm que falar, eles têm que aceitar. A população não se muda. Você não consegue mudar a mente de uma comunidade que tá aqui há vinte, trinta anos, esquecida e abandonada. E de repente, tem cinco anos essa unidade que queira fazer deles as pessoas mais corretas, mais limpas, mais pontuais do mundo. Você não consegue. Essa comunidade é carente, é analfabeta, ela não tem noção de higiene... E de repente em cinco anos quer que as pessoas mudem. Você não muda em vinte, trinta, cinquenta anos de uma comunidade assim do dia pra noite, e você não consegue fazer com que os mais intelectuais se tornem maleáveis em relação a eles. Eles se colocam na posição deles, e é isso e isso. Eu não tenho que mudar, quem tem que mudar são eles. E a cultura deles [equipe] não é a nossa, é a minha cultura também, porque eu moro aqui. Eu me coloco no lugar deles, porque eu moro aqui, eu sou desse bairro (ACS 8).
Segundo Silva e Dalmaso (2002), é preciso o desenvolvimento e a incorporação de tecnologias que apoiem a identidade do agente comunitário, integrando as diferentes dimensões de sua atuação, tanto as previstas quanto as necessárias, objetivando a preparação de todos os demais sujeitos do programa, e não apenas o agente comunitário de saúde.
Outra dimensão avaliada nessa categoria é sobre a relação dos ACSs como usuários do serviço que ofertam. Para muitos deles, a utilização do serviço é constrangedora, visto que a relação estabelecida com os profissionais da unidade acaba se tornando pessoal, repercutindo na não utilização do serviço.
Você não sente bem, porque você tá ali com pessoas que você considera mais amigas do que profissionais, entendeu? Eu acho que essa é a questão. E eu acho que isso não é só meu (ACS 4).
Todos os ACSs da unidade de saúde A reconhecem a ética e a conduta dos profissionais da equipe. Alguns agentes são atendidos em consulta, porém o que chama a atenção é a relação do ACS como usuário do serviço. As ações que eles buscam são estritamente pautadas em intervenções médicas, não havendo acompanhamento longitudinal e familiar, conforme proposta da Estratégia Saúde da Família.
Só usei aqui uma vez, quando tava com conjuntivite. Eu não procuro muito a unidade. Não tinha nem histórico. Quando a doutora foi me avaliar, não tinha nada na ficha (ACS 3).
Em relação aos agentes comunitários da unidade de saúde do território B, nenhum se considera usuário do serviço. O motivo apresentado é a incipiente estrutura da USF em que trabalham, associada à falta de acolhimento - o que, do ponto de vista deles, não existe.
Você conhece as pessoas, e eu não me sinto à vontade de ser anotadas coisas minhas no prontuário porque qualquer pessoa que trabalha comigo pode ter acesso. Segundo, porque eu acho que por algumas pessoas pode ser confundido o pessoal e o profissional (ACS 11).
De acordo com os relatos dos sujeitos da pesquisa, a profissão agente comunitário de saúde necessitaria de supervisão e cuidado por parte da gestão. Esta questão é uma dimensão frágil dentro das unidades de saúde pesquisadas, conforme a fala a seguir: "Precisa de gente pra cuidar de nós. A gente podia ter tipo um tutor, igual de vocês [residentes]. Pra cuidar dos agentes comunitários" (ACS 5).
Com embasamento em Furlan (2008a, 2008b) e Silva e Dalmaso (2002), acredita-se que as diferentes e complexas relações que o agente comunitário estabelece com a comunidade e com a equipe devem ser analisadas segundo a não definição, ainda, de tecnologias adequadas às necessidades e finalidades do trabalho.
Qualidade de vida: a vida como ela é
Na última categoria analisada, foi proposto que os ACSs avaliassem, do seu ponto de vista, a forma como enxergam sua própria qualidade de vida. Não foi utilizado nenhum instrumental avaliativo para analisar essa questão, mesmo porque o objetivo era o de compreender o olhar dos agentes comunitários sobre a sua vida.
De acordo com Paschoal (2001, apud Kluthcovsky et al., 2007, p. 182), "a importância da avaliação da qualidade de vida é que esta deve ser percebida pela pessoa, valorizando, assim, a opinião do indivíduo. A qualidade de vida tem um conceito diferente de pessoa para pessoa, tendendo a mudar ao longo da vida".
Essa percepção sobre a qualidade de vida é interessante, uma vez que ela adquire distintas opiniões e revelações dependendo do lugar que o ACS ocupa. Percebe-se que os agentes das equipes de saúde dos territórios A e B avaliam a qualidade de vida tendo o trabalho como central e determinante em sua avaliação pessoal.
De acordo com Iamamoto (2006), é no trabalho que o homem é capaz de projetar, antecipadamente, na sua mente o resultado a ser obtido, ou seja, o trabalho é o selo distintivo da atividade humana. E não é por acaso que na entrevista realizada com os ACSs o trabalho aparece preponderantemente nos relatos.
Olha, eu acho que se eu tivesse problemas emocionais de ficar mal, toda vez que alguma coisa ruim acontecesse, eu não teria mais condições de trabalhar. Você tem que ter uma personalidade forte, pra ver as coisas do dia a dia e separar o que é profissional, pessoal, familiar, lazer. Não tenho uma qualidade de vida ruim... acho que é boa. É um emprego que eu gosto, é um bairro que eu moro há 16 anos (ACS 4).
Os ACS relacionaram também a falta de privacidade como um fator que interfere na qualidade de vida.
A perda da qualidade de vida é na falta de privacidade, das pessoas verem o que você faz, mas no restante não... porque assim, eu gosto do meu trabalho, eu gosto do que faço (ACS 5).
Outra dimensão apontada como qualidade de vida é a importância de o sujeito ter informação. Segundo os ACSs, tal possibilidade só foi possível devido à profissão de agente comunitário de saúde.
O esclarecimento pra qualidade de vida é a essência. Se você não sabe as coisas, não tem como você ter qualidade de vida. Não me falta nada, eu sou esclarecida das coisas, eu sei buscar (ACS 2).
No que tange à opinião da qualidade de vida dos agentes comunitários da USF do território B, todos os cinco entrevistados disseram ter uma qualidade de vida ruim. A avaliação está ligada à relação do trabalho com a equipe de saúde da unidade, como também com os problemas sociais existentes no território.
Se fosse pra eu dar uma nota de tudo que envolve minha qualidade de vida, uma nota 5. Não avalio como se fosse ótima. Na vida, no profissionalismo, tudo. Será que se eu sair daqui vai mudar a vida? (ACS 7).
Eu acho que a qualidade de vida por conta do trabalho tá bem difícil agora. A unidade tá num momento complicado, e essa mistura da gente ser um pouco auxiliar administrativo e um pouco ACS, mãe de usuário e saco de pancada de funcionário, tá bem complicado (ACS 11).
Aqui no B, você mora no B, você é tratado como um criminoso. Eles não querem saber se você é um cara de bem ou não. O tratamento é igual. Então influi assim em muitos aspectos... na educação dos filhos... entendeu? Porque aqui no B é um caso específico de tráfico de drogas que está presente em todas as esquinas e lugares (ACS 9).
Ainda que os ACSs tenham distintas opiniões sobre a qualidade de vida que percebem em si, é notável que essa dimensão necessita de reflexões nos espaços internos das USFs, uma vez que, conforme os relatos, o trabalho tem importante influência - apesar da não mensuração quantitativa - na maneira como levam suas vidas e atribuem significados a elas.
Considerações finais
Apesar de o universo da pesquisa ser reduzido a duas USFs, em que foram envolvidos 11 agentes comunitários, os resultados do presente estudo permitem tecer algumas considerações e reflexões acerca da temática.
Durante o processo de investigação, foi possível perceber que os ACSs atribuem como sentido ao seu trabalho o caráter social e solidário, perfil esse que os fortalece e lhes garante orgulho no cotidiano do trabalho e para além dele. Entretanto, apesar dessa visão mitificada do ACS, muitos reconhecem a diminuição da essência prática desse trabalhador, em razão das sobreposições de atividades.
Essa constatação conclama à avaliação e ao planejamento das ações em saúde por toda a equipe, a fim de tornar o trabalho do ACS de acordo com a orientação dos documentos ministeriais (Brasil, 1997, 1999, 2002).
É importante destacar as dificuldades enfrentadas pelos ACSs pelo fato de residirem no mesmo bairro em que trabalham. Ainda que esta seja uma premissa para a inserção na profissão, essa condição, a longo prazo, desenvolve privações e sofrimentos de ordem emocional, que repercutem em sua qualidade de vida e no desenvolvimento de seu trabalho.
A multiplicidade de papéis assumidos pelo ACS interfere em sua vida pessoal, o que o faz ser representado como uma figura de referência para a comunidade. Essa representação faz com que a cobrança desse e para esse ator se torne ainda maior, principalmente no que tange atender às necessidades de saúde da população e cumprir com todas as exigências da função.
A relação com a equipe em territórios tão complexos é um desafio. Foi possível identificar que o saber do ACS é subjugado, demonstrando a existência de equipes que não atuam na lógica prevista pela Estratégia Saúde da Família, o que repercute em atendimentos fragmentados e desmotivadores.
Ocupar o lugar de agente comunitário de saúde é a tradução da busca de um SUS melhor e de uma sociedade mais justa. Em todos os discursos analisados, é fulcral o desejo de mudança da comunidade em que se mora, objetivando práticas que visem à melhoria de vida da população local - sendo essa vida a dos próprios ACSs.
Ainda que este estudo tenha suas limitações e recortes, foi possível garantir voz aos sujeitos. Essa voz que ecoa além dos muros das unidades de saúde e de seus bairros.
Finalizando essas considerações, era esperado que o ACS fosse percebido para além da dimensão do trabalho, ou seja, aponta-se como indicador a ser aprofundado o tripé que o cerca e o diferencia de toda a classe profissional do SUS, que é: ser trabalhador, morador e usuário.
Colaboradores
Juliana Morais Menegussi é a autora principal, responsável pela redação completa e pelas revisões. Marcia Niituma Ogata e Maria Helena Pereira Rosalini colaboraram com contribuições diversas e com a revisão.
Notas
Recebido em 18/07/2011
Aprovado em 12/04/2013
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
31 Mar 2015 -
Data do Fascículo
Abr 2014
Histórico
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Recebido
18 Jul 2011 -
Aceito
12 Abr 2013