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SOBRE A DOMESTICAÇÃO DO GÊNERO GRAMATICAL1 1 Este texto foi escrito durante o isolamento motivado pela pandemia de Covid-19, que teve início em 2020. Faço esse registro, pois esse fato foi responsável por uma sensibilização da percepção do outro justamente em um momento em que estávamos inacessíveis. Agradeço ao Rômulo Bittencourt, a quem eu devo muito do debate que me levou a pensar o tema e com quem mantive o único contato humano no período. Agradeço às/aos pareceristas anônimas/os que contribuíram sobremaneira para a atual versão do texto. Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo apoio no desenvolvimento da pesquisa da qual faz parte o presente trabalho. Qualquer erro remanescente no texto é de minha inteira responsabilidade.

ON THE DOMESTICATION OF THE GRAMMATICAL GENDER

RESUMO

Neste trabalho, problematizo o conceito de categoria gramatical, particularmente gênero, apontando suas limitações como categoria discreta das línguas, a partir de cosmovisões diversas, a fim de redimensionar sua pretensa universalidade. As categorias gramaticais conhecidas no mundo ocidentalizado são constituídas ontologicamente, perpetrando-se como pressuposto na análise linguística desde então. Sua estrutura baseada em um Ser ocidental não é questionada em toda a sua existência, domesticando a descrição das diversas línguas. Entretanto, a partir de estudos linguísticos tipológicos e antropológicos que levaram em consideração epistemologias e cosmogonias diversas, foi possível verificar uma discrepância entre a categoria linguística gênero em diferentes línguas. Essa imposição categorial na análise linguística mostra-se ainda mais violenta quando vista através das lentes decoloniais, que nos permitem delinear não apenas uma epistemologia racista e sexista nos contornos da gramática/linguística ocidental, mas também ao confrontarmos um modelo ontológico às diversas cosmovisões. Dessa forma, ofereço uma reflexão do conceito de gênero gramatical como categoria, a partir da descentralização do conhecimento e de uma topologia linguística do ser, visando o cotejo do conceito convencional de gênero, caro à tradição gramatical, e suas representações em algumas línguas não indo-europeias, destacando seu apagamento na formulação do conceito de universalidade gramatical.

Palavras-chave:
gramática; categoria; gênero; cosmovisões

ABSTRACT

In this paper I discuss the concept of grammatical category, particularly gender, pointing out its limitations as a descriptive category of languages, from distinct worldviews, to resize its alleged universality. Grammatical categories known in the Western world are ontological constructions, which carries themselves out as presuppositions in the linguistic analysis since. Their structure based on a Western Being is not doubted in their whole existence, taming the description of several languages. However, from typological and anthropological linguistic studies which considered diverse epistemologies and cosmogonies, it was possible to verify discrepancies on gender as a linguistic category among different languages and cultures. This categorial imposition in the linguistic analysis turned up more violent when seen through decolonial lenses, which allowed us to outline not only a racist and sexist epistemology on the Western grammatical/linguistic contours, but also on confronting an ontological model to diverse worldviews. Thus, I offer some thoughts on the concept of grammatical gender as a category, from the decentralization of knowledge and from a linguistic topology of the being, aiming at comparing the conventional concept of gender, dear to the grammar tradition, and its correspondent in some non-Indo-European languages, highlighting its erasure in formulating the concept of grammatical universality.

Keywords:
grammar; category; gender; worldviews

INTRODUÇÃO

Em dezembro de 2015, Gisela Collichon e Luiz Carlos Schwindt publicaram no jornal gaúcho Zero Hora o artigo Por que a distinção entre gênero social e gramatical na língua portuguesa é necessária ao idioma, com argumentos linguísticos sobre o polêmico uso de formas ditas neutras para marcação de gênero gramatical no português brasileiro, como por exemplo, -@-, -x- ou -e- em substituição aos morfemas de gênero -a- e -o- em nomes (1a), pronomes (1b), adjetivos (1c) e formas participiais (1d):

(1) a. alun@, alunx, alune

b. tod@s, todxs, todes

c. bonit@, bonitx, bonite

d. cansad@, cansadx, cansade

Os autores argumentaram no referido artigo que há uma diferença entre gênero biológico (“natural”) e gênero gramatical, sendo a formatação gramatical do último invariável na língua, pois é estabelecido de forma arbitrária aos nomes das coisas que referem e apenas uma minoria dos substantivos na língua portuguesa (cerca de 6,5%, de acordo com o artigo) 2 2 Luiz Schwindt (2020) atualiza essa percentagem para apenas 5,6%. teria referentes animados sexuados. Essa análise para o português é amplamente defendida nos mais diversos campos dos estudos linguísticos (ver CAMARA JR., 1970CAMARA JR., Joaquim Mattoso. (1970). Estrutura da língua portuguesa. 3.ed. Petrópolis: Vozes.; MARTIN, 1975MARTIN, John W. (1975). Gênero? Revista brasileira de linguística, n. 2, p. 3-8.; LUCCHESI, 2000LUCCHESI, Dante. (2000). A variação na concordância de gênero em uma comunidade de fala afro-brasileira: novos elementos sobre a formação do português popular do Brasil. Tese de Doutorado em Linguística, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; MOURA, 2009MOURA, Maria Denilda. (2009). Concordância de pronomes pessoais em frases copulativas. Revisado e atualizado, Leitura, n. 43/44, p. 163-190.; CARVALHO, 2011CARVALHO, Danniel da S. (2011). Sincretismo, subespecificação de traços e a sintaxe de gênero em uma comunidade do português afro-brasileiro: um estudo de caso. Papia (Brasília), v. 21, n. 1, p. 83-97., 2013CARVALHO, Danniel da S. (2013). Algumas considerações sobre a morfossintaxe de gênero. Estudos Linguísticos e Literários, n. 47, p. 30-46., 2020aCARVALHO, Danniel da S. (2020a). Aspectos da morfossintaxe de gênero no português brasileiro. Cuadernos de la ALFAL, v. 12, n. 2, p. 357-384.; BISMARCK LOPES, 2014BISMARCK LOPES, Ícaro C. (2014). Traço e concordância de gênero na constituição da gramática do português. Dissertação de Mestrado em Língua e Cultura. Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura, Universidade Federal da Bahia, Salvador.; SCHWINDT, 2018SCHWINDT, Luiz C. (2018). Exponência de gênero e classe temática em português brasileiro,DELTA, São Paulo, v. 34, n. 2, p. 745-768., para citar alguns).

Por seu turno, trabalhos que investigaram a polissemia no fenômeno da generificação3 3 Generificação é o processo social pelo qual há o encaixamento de corpos aos valores binários feminino/masculino. Para um aprofundamento sobre o debate acerca da performatividade de gênero e a generificação dos corpos, ver Butler (1993) e Borba (2014), entre outres. linguística, apontam que a distribuição dos valores feminino/masculino na marcação de gênero de indivíduos humanos é bastante variável em certos grupos de falantes. Rodrigo Borba e Ana Cristina Ostermann (2007, 2008)BORBA, Rodrigo; OSTERMANN, Ana Cristina. (2007). Do bodies matter? Travestis’ embodiment of (trans)gender identity through the manipulation of the Brazilian Portuguese grammatical gender system. Gender and Language , v. 1, n. 1, 131-147., por exemplo, demonstram a variabilidade do uso de marcadores masculinos e femininos por sujeitas4 4 Os autores utilizam algumas expressões tradicionalmente invariantes em relação à marca de gênero, tais como transgênero e sujeito. Adoto, no entanto, uma variabilidade de gênero para as expressões no presente artigo, acompanhando o que aponta Grada Kilomba em sua carta de abertura à edição brasileira de seu livro Memórias da Plantação. Episódios de racismo cotidianos (2019). Diferentemente de Kilomba, que mantém as expressões invariantes na forma masculina, proponho no presente texto a adoção de suas variações, no intuito de indicar, sempre que possível, marcas identitárias às expressões linguísticas. travestis no sul do país. Essa variabilidade, também identificada na pesquisa de Don Kulick (1999, 2008 [1998])KULICK, Don. (1999). Transgender andLanguage: A Review of Literature and Suggestions for the Future. Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 5, p. 601-622., segundo os autores, dá-se motivada por fatores discursivos identitários, dos quais pessoas transgêneras lançam mão no intuito de produzir significados sociais distintos em diferentes contextos linguísticos. Apesar de se identificarem com o papel social atribuído ao feminino dentro de suas comunidades de prática (ECKERT; MCCONNELL-GINET, 2003ECKERT, Penelope; MCCONNELL-GINET, Sally. Language and Gender . Cambridge: Cambridge University Press, 2003.), as travestis sujeitas da pesquisa de Borba e Ostermann (2008) referiam-se a si no masculino quando da narrativa de uma memória familiar, por exemplo. Sujeitos e sujeitas transgêneras de diversas localidades do mundo, como apontam Borba e Ostermann (2008), também apresentam comportamento linguístico semelhante em se tratando da manipulação dos valores de gênero disponíveis em suas línguas. É o caso das hijras e as kotis na Índia (HALL, 1997HALL, Kira. (1997). ‘Go Suck your Husband’s Sugarcane!’ Hijras and the Use of Sexual Insult.” In: LIVIA, Anna; HALL, Kira (eds.). Queerly Phrased: Language, Gender , and Sexuality. New York: Oxford University Press, p. 430-460., 2005)HALL, Kira. (2005). Intertextual Sexuality: Parodies of Class, Identity, and Desire in Liminal Delhi.” Journal of Linguistic Anthropology, v. 15, n. 1, p. 125-144., das berdaches e as nadleehi dos povos originais norte-americanos (GOULET, 1997GOULET, Jean-Guy. (1997). The ‘Berdache’ - ‘two-spirit’: A Comparison of Anthropological and Native Constructions of Gender ed Identities among the Northern Athapaskans. The Journal of the Royal Anthropological Institute, v. 2, p. 683-701.; EPPLE, 1998EPPLE, Carolyn. (1998). Coming to Terms with Navajo Nadleehi: A Critique of Berdache, ‘Gay’, ‘AlternativeGender ’, and ‘Two Spirit’. American Ethnologist, v. 25, n. 2, p. 267-290.), as xanith do Omã (WIKAN, 1978WIKAN, Unni. (1978). The Omani Xanith: A Third Gender Role? Man, v. 13, n. 3, p. 473-475.), as fa’aleiti de Tonga (BESNIER, 2003BESNIER, Niko. (2003). Crossing Genders, Mixing Languages: The Linguistic Construction of Transgenderism in Tonga. In: HOLMES, Janet Holmes; MEYERHOFF, Miriam (eds.). Handbook of Language and Gender. Oxford: Blackwell, p. 279-301.), as mahu do Taiti (LEVY, 1971LEVY, Robert. (1971). The Community Function of Tahitian Male Transvestism: A Hypothesis. Anthropological Quarterly, v. 44, n. 1, p. 12-21.), as toms e dees da Tailândia (SINNOT, 2004SINNOT, Megan. (2004). Toms and Dees: Transgender Identity and Female Same-Sex Relationships in Thailand. Honolulu: University of Hawai’i.) (BORBA; OSTERMANN, 2008, p. 411, n.r. 18).5 5 Agradeço imensamente aos comentários de uma parecerista anônima pela lembrança dos importantíssimos trabalhos sobre generificação linguística a partir da literatura cuir. Orit Bershtling (2014)BERSHTLING, Orit. (2014). ‘Speech Creates a Kind of Commitment’. Queering Hebrew. In: ZIMMAN, Lal; DAVIS, Jenny L.; RACLAW, Joshua (eds.). Queer Excursions. Retheorizing Binaries in Language, Gender, and Sexuality. Oxford: Oxford University Press , p. 35-61. nos mostra, ainda, com dados do hebraico, a debilidade de línguas que apresentam marcação gramatical de gênero com valores binários na representação de corpos não-binários.

No entanto, os estudos acima mencionados abordam a mesma dualidade apresentada pelos tradicionais estudos mais formais de gênero, que apontam dois valores para essa categoria gramatical nas línguas com gênero gramatical, em sua maioria indo-europeias, como o português. A variabilidade nos usos, ou, nas palavras de Borba e Ostermann (2008), manipulação feita por pessoas transgêneras se dá sobre o mesmo material linguístico imputado pela tradição gramatical.

Atualmente, as variáveis de gênero social passaram de um padrão binário para uma relação de papeis mais próximo de uma malha, um tecido. Cada fio da malha, por si só, pode ser entendido como uma unidade constituinte das possibilidades na compleição dos/das sujeitos/sujeitas, como valores sociais como raça ou classe. Entretanto, é apenas no todo que compreendemos seu papel enquanto elemento constituinte dessa malha.6 6 É o que se passou a denominar de interseccionalidade a partir dos estudos feministas negros (DAVIS, 1981; CRENSHAW, 1989; COLLINS, 1990; DORLIN, 2008; BILGE, 2009; AKOTIRENE, 2019)

Da mesma forma, os atuais desdobramentos de gênero têm percepções diversas a depender das intersecções pelas quais são perpassados. Uma travesti, por exemplo, só existe em uma realidade como a brasileira, sendo “lida” a partir de diversos prismas como mulher transgênera em sociedades em que seu papel de gênero inexiste ou possui outras leituras. Em outras palavras, da mesma forma que enxergamos, com olhos ocidentais do século XXI, papéis diversos para a categoria social gênero, podemos, e devemos, reclamar a mesma diversidade no que tange à inflexibilidade exarada pela autoridade das personae linguísticas, quaisquer que sejam. Devemo-nos indagar o porquê da preservação de uma instituição que, se algum dia nos representou, não o faz mais, pelo menos de forma eficaz. Essa preservação do saber ocidental pode ser entrevista, inclusive, na classificação dos diversos corpos não-binários, como já apontado anteriormente. No documento redigido sobre a situação dos direitos humanos das pessoas LGBTI e as diversidades ancestrais no contexto dos povos indígenas americanos (Abya Yala)7 7 Segundo Porto-Gonçalves (2009, p. 26), “Abya Yala vem sendo usado como uma autodesignação dos povos originários do continente como contraponto a América.” , em sua seção 17, é exposto como as variáveis de gênero social são restringidas a um conhecimento ocidental:

[n]o contexto atual, é também uma forma de violência neocolonial, a forma como indígenas com orientação sexual e identidade de gênero diversas são forçados a aceitar as formas ocidentais de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, transgêneros e intersex. Ser muxhe (Zapoteca) ou Omeguit (Kuna) não é sinônimo de transgênero; ser Quewa (Quechua) não é sinônimo de gay ou lésbica; ser teví (Guaraní), Nàdleehé (Navajo), winkte (Sioux), hwame (Mojave), Ihamana (Zuni), mexoga (Omahas), achnucek (Aleutas e Kodiaks), he man eh (Cheyen), wínjkte (Lakota), wigunduguid (Kuna), reze abuay (Samuco-Ayoreo); cuña oye mbo cuimba (Guarayo), nawíki ou renéke (Tarahumara) e outras formas de diversidade ancestral não são sinônimos de termos ocidentais, eurocêntricos, capitalistas, pois assumem sexualidade e gênero a partir de uma visão antropocêntrica-solipsista enquanto para a cosmovisão indígena, a sexualidade e os gêneros (podem ser mais de dois) são entendidos apenas na medida em que estão conectados e fazem parte da Mãe Terra, Pachamama e Abya Yala, coexistindo com as várias formas de vida que existem nela onde o ser humano é outra forma de viver, com a peculiaridade de ter o racionamento para ser sustentado no cuidado da vida como parte de uma cadeia da biodiversidade, por isso que a sexualidade e o gênero da visão de mundo indígena não podem e não devem ser desfeitos e isso deve ser respeitado por várias teorias e estudos acadêmicos.8 8 Documento escrito por relatores da Fundación Diversencia/Coalición LGBTTTI de las Américas en la OEA, Secretaria de Pueblos Indígenas frente al VIH, Sexualidad y DD.HH (SIPIA) e Colectivo Wigudun Galu, apresentado no Foro sobre Políticas Relativas a la Sociedad y Reuniones Anuales del Banco Mundial y Fondo Monetario Internaciona, em Lima, Peru, em outubro de 2015.

O clamor dos que apelam por uma neutralização de gênero é feito pela necessidade, segundo eles, da reclamação de como a língua deve representar diferentes sujeitos e sujeitas e seus corpos, emancipados na corrente revolução dos gêneros.9 9 Como aponta Natalia Knoblock (2021), a tentativa de utilização de uma marcação morfológica neutra já existente em uma língua, leva a uma “desumanização” do referente, como aconteceu no ucraniano.

Uma rápida pesquisa em um sítio de buscas online permite localizar outros artigos semelhantes ao de Collichon e Schwindt (2015)COLLICHON, Gisela; SCHWINDT, Luiz C. (2015). Por que a distinção entre gênero social e gramatical na língua portuguesa é necessária ao idioma. Zero Hora, 12 dez. 2015. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2015/12/por-que-a-distincao-entre-genero-social-e-gramatical-na-lingua-portuguesa-e-necessaria-ao-idioma-4928930.html. Acesso: 16 ago. 2020.
https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-al...
, escritos tanto por linguistas (ex.: FREITAS, 2017FREITAS, Monique A. (2017). Brasileirxs e brasileires: um ponto de vista da linguística sobre gênero neutro. Blog Cientistas Feministas, 10 out. 2017. Disponível em: https://cientistasfeministas.wordpress.com/2017/10/10/brasileirxs-e-brasileires-um-ponto-de-vista-da-linguistica-sobre-genero-neutro/. Acesso: 16 ago. 2020.
https://cientistasfeministas.wordpress.c...
; CARVALHO, 2018CARVALHO, Danniel da S. (2018). Gênero e língua: entre o gramatical e o social. Roseta, v. 1, n. 1, p.1-3. ), como por não-linguistas (ex.: MORAES, 2015MORAES, Madson. (2015). A linguagem inclusiva de gênero é uma ferramenta a favor de todos. Nossa Causa, 10 ago. 2015. Disponível em: https://nossacausa.com/linguagem-inclusiva-de-genero-e-uma-ferramenta-favor-de-todos/. Acesso: 16 ago. 2020.
https://nossacausa.com/linguagem-inclusi...
; COSTA, 2019COSTA, Taís. (2019). Linguagem Neutra de gênero: o que é e como aplicar. Comunidade, 14 jan. 2019. Disponível em: https://comunidade.rockcontent.com/linguagem-neutra-de-genero/. Acesso: 16 ago. 2020.
https://comunidade.rockcontent.com/lingu...
). Esses textos, em geral, veiculam uma distinção muito bem delimitada entre as regras que regem a língua e a intencionalidade do falante que, no caso da atual tentativa de neutralização de gênero, considerada por muitos como pura militância, utiliza de distorções não abalizadas por uma gramática cuja ordem e forma não são acessíveis ao falante. Tal argumento é mote de modelos de análise linguística denominados “formalistas” e englobam, de forma geral, duas perspectivas: a estruturalista e a gerativista. Por outro lado, a própria linguística fomenta a defesa de uma concepção de língua baseada no uso que permitiria performatividades. Mas, mesmo os funcionalistas antecipam limitações nessa performance. Segundo Neves (1997)NEVES, Maria Helena Moura. (1997). A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes., a maior dificuldade na sustentação do princípio da motivação do uso na configuração de uma língua é o devir do significado, parte essencial de sua formulação, pois, mesmo modelos baseados no uso assumem que a gramática da língua é formada por categorias invariáveis translinguisticamente, assumindo um modelo aristotélico de categorias da língua.

O cenário permite que visualizemos no debate pelo menos dois lugares de fala: o lugar da autoridade linguística sobre o comportamento da língua (como entidade individual), resultado da descrição e reflexão feita a partir de classes/categorias estabelecidas desde a antiguidade clássica (o que remonta, pelo menos, a Aristóteles); e o lugar do falante, que faz uso da língua para, nas palavras de Benveniste (1976, p. 68), “comboiar ‘o que queremos dizer’”.

Pelo menos desde os diálogos platônicos, a representação linguística é discutida através da dicotomia arbitrariedade versus motivação simbólica. É Saussure (2006 [1916])SAUSSURE, Ferdinand de. (1916). Curso de linguística geral. 27. Ed. Tradução de Isaac Nicolau Salum. São Paulo: Cultrix, 2006., entretanto, quem confere caráter teórico à questão da opacidade (arbitrariedade) ou da transparência (motivação) dos objetos linguísticos. A iconicidade surgida como resposta ao estruturalismo saussuriano define o signo linguístico com caráter motivado, havendo previsibilidade nas relações entre significados e seus significantes (ver GIVÓN, 1985GIVÓN, Thomas. (1985). Iconicity, isomorphism and nonarbitrary coding in syntax. In: HAIMAN, John. (org.). Iconicity in syntax. Amsterdam: John Benjamins, p. 187-219.).

A assunção de uma relação arbitrária do signo linguístico possibilitou a descrição maciça das línguas do mundo a partir de um método indutivo, que recebeu a denominação de gramática descritivista. Esse modelo, empregado até os dias atuais na elaboração de gramáticas das línguas naturais em trabalhos de descrição tipológica, por exemplo, eterniza o modelo idealizado aristotélico sobre o que queremos dizer sobre o “ser” .10 10 Daqui por diante, o “ser” aristotélico será grafado entre aspas enquanto as demais realizações do termo aparecerá sem as aspas.

Apesar de sua etimologia aludir à escrita (grámma, grámmatos, remete à letra, à escritura), o sentido do termo gramática consolidou-se, na ciência linguística, como sinônimo do conjunto das partes de constituição de uma língua. Podemos entender gramática como paradigma de descrição e explicação dos princípios constituintes de uma língua, seja ela ideal ou real. Funciona, portanto, como uma representação da própria língua. Entretanto, como todo paradigma, parte de um modelo considerado canônico e, no caso dos estudos linguísticos ocidentais, esse modelo sempre foi o grego, base da hiperonímia cultural indo-europeia, e, portanto, língua musa original da disciplina.

Entendo, aqui, gramática como monumento, que se caracteriza por “ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos” (LE GOFF, 2003LE GOFF, Jacques. (2003). História e memória. Tradução Irene Ferreira, Bernardo Leitão e Suzana Ferreira Borges. 5. ed. Campinas: Editora da UNICAMP., p. 537). Essa “memória coletiva”, entretanto, é bastante seletiva, como veremos adiante.

Trago ainda as palavras de Grada Kilomba, em sua carta de abertura do livro Memórias da Plantação. Episódios de racismo cotidianos, as quais nos lembra que a língua “tem [...] uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. (2008). Memórias da plantação. Episódios de racismo cotidianos. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 14). E a materialização dessa dimensão política é a própria gramática com seus “gloriosos e românticos discursos do passado colonial, com os seus fortes acentos patriarcais” (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. (2008). Memórias da plantação. Episódios de racismo cotidianos. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 13).11 11 Grada Kilomba refere-se, nessa passagem, à sociedade portuguesa, mas essa descrição se encaixa com o monumento gramatical definido há pouco. Portanto, na medida em que, segundo Jennifer Coates (1998, p. 301)COATES, Jennifer. (1998). ‘Thank God I’m a Woman’: The Construction of Differing Femininities.” In: CAMERON, Deborah (ed.). The Feminist Critique of Language : A Reader. 2nd. ed. London: Routledge, p. 297-320. “a linguagem tem um papel crucial na estruturação de nossa experiência”, essa mesma experiência é fundamental à própria estruturação da língua e de sua gramática.

É a partir desse panorama sobre o que constitui o que, por um lado, percebemos da língua, e por outro, herdamos como forma de percepção desta, que darei atenção ao que chamamos gênero gramatical, promovendo uma reflexão sobre seu papel como instrumento de representação sociocultural. Mais especificamente, discutirei como essa categoria gramatical representa, ou mesmo reflete, uma única construção sociocultural ao longo do tempo, erigindo um muro purista com codinome “científico”, que remete a realidades linguísticas dominantes.

Nas palavras de Errington (2001, p. 20)ERRINGTON, Joseph. (2001). Colonial Linguistics. Annual Review of Anthropology, v. 30, p. 19-39. , “representações metalinguísticas da fala estrangeira, emolduradas em línguas mais familiares aos europeus, tornou possível, de forma recorrente, a figuração da linguagem entre as ‘características culturais e representacionais da autoridade colonial’”. O que está em jogo, portanto, são as fontes das “certezas linguísticas autoritárias” (GREENBLATT, 1991GREENBLATT, Stephen. (1991). Marvelous Possessions: The Wonder of the New World. Chicago: Univ. Chicago Press. , p. 89), uma vez que estão arraigadas em juízos hierárquicos de línguas e povos (ver OLENDER, 2012OLENDER, Maurice. (2012). As línguas do Paraíso. Arianos e semitas: um casamento providencial. Tradução de Bruno Feitler. São Paulo: Phoebus.).

O intuito do presente texto é provocar, a partir de uma “desobediência epistêmica” (MIGNOLO, 2010MIGNOLO, Walter D. (2010). Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Signo.), uma reflexão sobre o que herdamos como categorias gramaticais e, mais especificamente, como construímos certas categorias nominais a partir de um “ser” idealizado e perpetuamos essa construção como fato linguístico. Nossa intuição é de que o apego ao cânone da gramática grega no fazer científico linguístico, para além de gerar preconcepções enclausurantes das categorias de língua, condiciona as “descobertas linguísticas” a um modelo pré-moldado, e expõe nossas “feridas coloniais”, avigorando o sentimento de inferioridade causado pela presumida inadequação ao modelo eurocêntrico. Nesse sentido, entendemos a atribuição de certas classes linguísticas ao monumento gramatical como movimento de racialização linguística.12 12 Não posso deixar de mencionar os trabalhos que abordam a racialização linguística e a linguificação de raça, contidos no volume editado por H. Samy Alim, John R. Rickford e Aretha F. Ball (2016), os quais procuram “perguntar e responder questões críticas sobre as relações entre língua, raça e poder através de diferentes contextos e sociedades etnorraciais” (ALIM, 2016, p. 3). Recomendo também a leitura da resenha feita por Fernanda Cerqueira e por mim do volume (CERQUEIRA; CARVALHO, 2021). Nas palavras de Olender (2012, p. 81)OLENDER, Maurice. (2012). As línguas do Paraíso. Arianos e semitas: um casamento providencial. Tradução de Bruno Feitler. São Paulo: Phoebus.,

[o] termo ‘raça’ assegurou durante o século XIX, um enquadramento explicativo que assumiu um status de norma, oferecendo, aos olhos de uma grande quantidade de autores, um sistema hierárquico que permitia esclarecer um sentido possível de história passada e vindoura da humanidade.

Assim, a instituição de uma dicotomia de gênero como estatuto linguístico é representativo da violência epistêmica exercida pela empreitada colonial, desde o século XVI (MIGNOLO, 1995MIGNOLO, Walter D. (1995). The darker side of the Renaissance: literacy, territoriality and colonization. Ann Arbor: The University of Michigan Press. , 2000MIGNOLO, Walter D. (2000). Local histories/global designs: coloniality, subaltern knowledges and border thinking. Princeton: Princeton University Press.), que impunha os moldes linguísticas indo-europeus às línguas descobertas nesse processo.

Sem ambições historiográficas, a presente discussão pretende submeter à crítica pós-colonial a lógica embalsamada da antiguidade a partir de uma breve revisão histórica e tipológica do processo de invenção da ideia da categoria gramatical gênero.

Nas seções seguintes, discutirei a concepção de categoria, a partir da retomada do conceito aristotélico do termo, atualizando-a em uma geopolítica do conhecimento, de Maldonado-Torres (2008)MALDONADO-TORRES, Nelson. (2008). A topologia do Ser e a geopolítica do conhecimento. Modernidade, império e colonialidade. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80, p. 71-114. DOI: 10.4000/rccs.695
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. Trarei alguns argumentos na tentativa de problematizar o próprio conceito de gênero como categoria gramatical no sentido ocidentalizado legado pela tradição gramatical greco-latina e reforçado pelo movimento dos gramáticos comparativistas do século XIX, apresentando exemplos de classificação nominal bastante diversa do modelo ocidental, mas sempre encaixada nos padrões estabelecidos. Por fim, discutirei a tentativa de padronização formalista da categoria gênero como reflexo dos corpos cujas vozes eram audíveis, enquanto os novos corpos contemporâneos não cabem mais no espelho ocidentalizado materializado na gramática de gênero.

1. O VALOR CATEGÓRICO DO SER

O linguista britânico Greville G. Corbett, referência na literatura linguística quando se trata da descrição das categorias nominais nas línguas do mundo, costuma apresentar versões da seguinte citação: “gênero é uma categoria infinitamente fascinante” (CORBETT, 2015CORBETT, Greville G. (ed.). (2015). The expression of gender. Berlim: De Gruyter Mouton., p. 1). Essa citação carrega inúmeras significações, mas a que nos interessa na presente discussão é como gênero na gramática é instituído como “categoria”.

O debate materializado no artigo de Collichon e Schwindt (2015)COLLICHON, Gisela; SCHWINDT, Luiz C. (2015). Por que a distinção entre gênero social e gramatical na língua portuguesa é necessária ao idioma. Zero Hora, 12 dez. 2015. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2015/12/por-que-a-distincao-entre-genero-social-e-gramatical-na-lingua-portuguesa-e-necessaria-ao-idioma-4928930.html. Acesso: 16 ago. 2020.
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e que vem sendo reverberado em artigos científicos, meus inclusive, parte do princípio de que língua, como entidade universal, é constituída por um inventário de categorias invariáveis, o que permitiria prognosticar seus fenômenos. Essas categorias, no entanto, resultam de reflexões de pensadores, em sua maioria gregos, sobre línguas indo-europeias, em grande parte o próprio grego.

Em seu Categorias, Aristóteles estabelece que o “ser” é formado por atributos, κατηγορία, em um total de dez categorias predicativas: substância, quantidade, relação, qualidade, quando, onde, estar em uma posição, ter, fazer, sofrer. Para Aristóteles, aprender a realidade correspondia, necessariamente, aos próprios modos de ser. Segundo Papavero e Abe (1992, p. 144)PAPAVERO, Nelson.; ABE, Jair M. (1992). Categorias do ser e biologia.Estudos Avançados, v. 6, n. 14, p. 143-156., “[Aristóteles] nunca considerou seriamente a possibilidade de que a realidade pudesse não ser em si mesma aquilo que percebemos ou concebemos que seja”. Nas palavras do filósofo grego, em Analíticos Primeiros (Analytikà prótera apud PAPAVERO; ABE, 1992PAPAVERO, Nelson.; ABE, Jair M. (1992). Categorias do ser e biologia.Estudos Avançados, v. 6, n. 14, p. 143-156., p. 144) categorias seriam “coisas que se atribuem a uma outra, ou algo que se diz com verdade de outra coisa, [podendo] ser tomadas em tantos sentidos distintos como há categorias.”

Zingano (2013)ZINGANO, Marco. (2013). As Categorias de Aristóteles e a doutrina dos traços do ser. doispontos, v. 10, n. 2, p. 225-254. lembra que os tradutores de Categorias não foram consensuais quanto à precisa tradução do termo κατηγορία. O autor afirma que Trendelenburg (1846)TRENDELENBURG, Adolph. (1846). Geschichte der Kategorienlehre. Hildesheim: Olms, 1979. traduziu-o como predicação, enquanto Bonitz (1853)BONITZ, Hermann. (1853). Ueber die Kategorien des Aristoteles. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967. “sustentou que o termo [...] designava antes os diferentes modos - tomados em sua máxima generalidade - pelos quais asserimos o ser” (ZINGANO, 2013ZINGANO, Marco. (2013). As Categorias de Aristóteles e a doutrina dos traços do ser. doispontos, v. 10, n. 2, p. 225-254., p. 227).

Benveniste (1976 [1966])BENVENISTE, Émile. (1966). Problemas de Linguística Geral. Volume I. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. procura transportar as categorias aristotélicas ao universo linguístico, as quais podemos interpretar, grosso modo, como sendo substantivos, adjetivos, advérbios, verbos. De acordo com Wolff (2018, p. 25)WOLFF, Francis. (2018). Prefácio. Das categorias de Aristóteles à categorialidade. In: ARISTÓTELES. Categorias . Tradução, introdução e notas de José Veríssimo Teixeira da Mata. São Paulo: Editora da UNESP, p. 11-26., “a categorialidade que parece ser mais ‘natural’ a Aristóteles é aquela que lhe impõe em realidade a língua grega: a ontologia de Aristóteles seria, de fato, apenas reflexo de uma gramática particular”. Sendo assim, as categorias representativas do “ser” seriam a interpretação dos predicados possíveis segundo um recorte histórico da língua grega coeva ao filósofo grego e que foi alçado ao grau universal por seus sucessores.

Benveniste nos lembra que Gomperz (1959) nos alertava sobre qual “ser” era idealizado por Aristóteles em sua elucubração categorial:

‘Aristóteles’, diz Gomperz, ‘imagina um homem de pé, diante dele, no Ginásio, por exemplo, e passa sucessivamente em revista as perguntas e as respostas que se poderiam fazer sobre ele. Todos os predicados que se podem ligar a esse sujeito caem sob um ou outro dos dez artigos desde a pergunta suprema - qual é o objeto percebido aqui?’ (GOMPERZ, 1959 apud BENVENISTE, 1976, p. 73)

Muito claramente podemos capturar da citação de Gomperz feita por Benveniste que o “ser” aristotélico possuía uma essência muito particular de um momento histórico, social e cultural específico. Entretanto, essa natureza essencial do “ser” tornou-se paradigmática na construção do pensamento gramatical ocidental. Toda e qualquer língua seria descrita e analisada a partir desse “ser” e seus predicados, que era baseado no prototípico frequentador do γυµνάσιον (gymnasion) ateniense: jovem, do sexo masculino, não escravizado.

Mas, a pergunta silenciada todo o tempo durante a transmissão do conceito de categoria pelos gramáticos e linguistas é, fazendo uso do questionamento de Wolff (2018, p. 21)WOLFF, Francis. (2018). Prefácio. Das categorias de Aristóteles à categorialidade. In: ARISTÓTELES. Categorias . Tradução, introdução e notas de José Veríssimo Teixeira da Mata. São Paulo: Editora da UNESP, p. 11-26., “o que se quer dizer por ‘ser’, e se essa palavra tem sempre o mesmo sentido”.

O “ser”, portanto, não incluía variações estrangeiras e assim se conservou na constituição e manutenção de seus predicados que compõem, até os dias atuais, as gramáticas das línguas ocidentais. Desde então, a descrição das demais línguas do mundo, à medida que eram “descobertas”, era feita com base nas categorias gramaticais europeias. Está criado, portanto, o mito do cânone gramatical! Um cânone que não apenas silenciou outras possibilidades gramaticais, mas torturou vozes, rompeu línguas, impôs idiomas, impediu discursos (KILOMBA, 2019). Esse mito é revitalizado e reforçado com o surgimento dos neogramáticos do século XIX e a divulgação da filogênese indo-europeia.

Faço aqui uma digressão para estabelecer uma distinção do que chamo de cânone gramatical daquele feito por Henriques (2004)HENRIQUES, Cláudio C. (2004). O cânone lingüístico-literário das gramáticas de Celso Cunha. Filologia e Linguística Portuguesa, n. 6, p. 115-159. , que o define a partir da noção do que chama de cânone linguístico-literário: a seleção de excertos de autores canônicos da literatura de uma língua que ilustram suas gramáticas normativas. Meu entendimento de cânone gramatical parte de uma metarreflexão sobre o que se supõe constituir gramática como entidade mais ou menos universal.

Voltemos à transmissão do cânone gramatical. Em sua maioria alemães, os neogramáticos, financiados pelo Estado, motivados pela evocação do sânscrito dos Vedas hindus no século anterior e por uma tentativa de descrição de uma “genealogia da humanidade pensante” (OLENDER, 2012OLENDER, Maurice. (2012). As línguas do Paraíso. Arianos e semitas: um casamento providencial. Tradução de Bruno Feitler. São Paulo: Phoebus.), perseguem uma língua original, cujas raízes resultavam nas línguas primordiais jaféticas (europeias) e semitas (asiáticas), condicionando um darwinismo social de base linguística. Essa “hereditariedade” linguística limitava-se, assim, a uma leitura de mundo como europa.13 13 Adotei a grafia minúscula das iniciais dos nomes de continentes, como um pequeno exercício de desobediência epistêmica. Portanto, o “ser” poderia ser mantido em seu sentido mais puro. Olender (2012)OLENDER, Maurice. (2012). As línguas do Paraíso. Arianos e semitas: um casamento providencial. Tradução de Bruno Feitler. São Paulo: Phoebus. recomenda que devamos desnaturalizar o delírio de uma lógica genealógica, que aplica essa tradição gramatical paternalista e purista como motor do pensar científico linguístico.

Como alternativa a esse “ser” ocidental, grego, puro, cuja manutenção tem sido feita na literatura linguística por um Sein humboldtiano, Maldonado-Torres (2008) sugere que desloquemos o “ser” do centro para as periferias. Em outras palavras, as ciências, nelas incluída a linguística, deveriam considerar as diferentes cosmogonias em detrimento de uma ontologia fundamental na formulação de uma nova forma de pensar a teoria do conhecimento.

A cristalização categorial gramatical transmitida linguisticamente de forma impositiva pelo processo expansionista europeu causou o silenciamento através de epistemicídios das culturas colonizadas. Esse pensamento foi difundido (e ainda o é) como princípio da modernidade: é impossível sobreviver sem as “descobertas” teóricas e culturais europeias (ver MALDONADO-TORRES, 2008MALDONADO-TORRES, Nelson. (2008). A topologia do Ser e a geopolítica do conhecimento. Modernidade, império e colonialidade. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80, p. 71-114. DOI: 10.4000/rccs.695
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). Tal princípio é questionado a partir da formulação de colonialidade por Quijano (2000)QUIJANO, Anibal. (2000). Coloniality of Power, Eurocentrism and Latin America.Neplanta: Views from South, v. 1, n. 3, p. 533-580. e serve de reflexão a partir de então nas mais diversas faces do pensar das humanidades.

A noção de “colonialidade do poder”, para Quijano (2001)QUIJANO, Anibal. (2001). Globalización, colonialidad y democracia. In: Instituto de Altos Estudios Diplomáticos Pedro Gual (org.).Tendencias básicas de nuestra época: globalización y democracia. Caracas: Instituto de Altos Estudios Diplomáticos Pedro Gual, p. 25-28., parte do princípio de que o modelo de poder moderno está articulado sob os eixos da formação racial, o controle do trabalho, o Estado e a produção de conhecimento, que surge no século XVI, com a passagem dos mappae-mundi ao Orbis Universalis Christianus, e cujo ápice se dá, não coincidentemente, no século XIX, com a emergência do sentimento nacionalista impulsionado, sobretudo, pelo discurso da busca do original, no caso que nos interessa diretamente, linguístico.

Para Mignolo (2006, p. 633)MIGNOLO, Walter D. (2006). Os esplendores e as misérias da “ciência: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistémica. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de. (Ed). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, p. 667-709.,

[a] ‘ciência’ (conhecimento e sabedoria) não pode ser separada da linguagem; as línguas não são apenas fenómenos ‘culturais’ em que as pessoas encontram a sua ‘identidade’; elas também são o lugar onde se inscreve o conhecimento. E, dado que as línguas não são algo que os seres humanos têm, mas algo de que os seres humanos são, a colonialidade do poder e a colonialidade do conhecimento engendraram a colonialidade do ser.

Pensar a língua e, consequentemente, a gramática, como espaço identitário requer necessariamente o deslocamento do “ser” e, portanto, de sua essência, como meio de desfazer seu status quo (HOOKS, 2017). Entretanto, a linguística, mais especificamente a gramática, parece incólume, ou mesmo impenetrável, no caso desta última, à essa reflexão. Não ignoro os esforços dos estudos no campo da Linguística Aplicada e da Linguística Cuir na desconstrução dos conceitos coloniais de língua. Entretanto, também não ignoro a indiferença das demais disciplinas linguísticas em relação ao tema. Essa segregação epistêmica é o que impede de repensarmos a categorialidade nas línguas. Sua estrutura baseada em um “ser” ocidental, indo-europeu, e mais especificamente greco-latino, não é questionada em toda a sua existência, subjugando a descrição das diversas línguas. O controle colonial sobre o pensar gramatical é o que nos faz acreditar, por exemplo, que a distribuição das categorias nominais, como gênero, obedece a uma tradição sexuada binária. Posso ousar afirmar, portanto, que o binarismo e, sobretudo, o patriarcado definiram sobremaneira os valores categoriais atribuídos a gênero.

Essa reverência ao conhecimento construído a partir da sócio-história grega perpetra o que Maldonado-Torres (2008) denomina de topologia do Ser e da geopolítica racista do conhecimento de Heidegger (1967 [1947])HEIDEGGER, Martin. (1947). Carta Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.. A descentralização do ser possibilitaria a construção de conhecimento dialógico, sem apagamentos, rasurando as fronteiras estabelecidas pela tradição ocidentalista.

Um exemplo atual do costumeiro reforço do alicerce dessas fronteiras na descrição de gênero gramatical é o recente trabalho de Michele Loporcaro (2018)LOPORCARO, Mechele. (2018). Gender from Latin to Romance. History, Geography, Typology. Oxford: Oxford University Press., cujo livro Gender from Latin to Romance: History, Geography, Typology (Gênero do latim ao romance: história, geografia, tipologia) propõe a manutenção do “ser” eurocentrado na tentativa de “uma reconstrução de como os sistemas de gênero nas línguas e dialetos românicos se tornaram o que são hoje em dia” (LOPORCARO, 2018LOPORCARO, Mechele. (2018). Gender from Latin to Romance. History, Geography, Typology. Oxford: Oxford University Press., p. xiii, tradução minha). Esse objetivo claramente restringe o entendimento de “língua românica” às suas versões europeias, desconsiderando suas variedades americanas e africanas, por exemplo. Nenhuma variedade fora dos limites europeus é descrita na obra de Loporcaro. Entretanto, a introjeção das línguas românicas na expansão ibérica do século XVI deixou marcas indeléveis na forma como esses povos passaram a perceber língua (ver SEVERO, 2016SEVERO, Cristine Gorski. (2016). The Colonial Invention of Language s in America. Alfa, São Paulo, v. 60, p. 11-28.).

A diversidade de tradições pode fomentar o deslocamento de um conhecimento ontológico, portanto aristotélico e mesmo heideggeriano, do “ser” para um conhecimento cosmogônico, periférico, que nos permite questionar o que de essência esse novo ser possui ao invés de encaixotá-lo em padrões que não o cabe.

O conceito de ser não ocidentalizado nos permite representar novas nuances de suas categorias. Bastide (2018 [1971]) nos dá uma ideia de como o deslocamento do “ser” reflete diferenças nas categorias linguísticas:

[a] concepção ocidental define o indivíduo ao mesmo tempo pela sua unidade intrínseca; ele é indivisum in se; e, por outro lado, pela sua autonomia; ele se coloca pela sua oposição; ele é ab alio distinctum. Ora, essas duas características faltam à pessoa tal como a concebem os Africanos, que é divisível e não se distingue. [...] Lá onde vemos um rebanho, os Nuer vêm [sic] vacas. Lá onde vemos a floresta, os Bantu vêm [sic] Árvores. (BASTIDE, 2018 [1971]BASTIDE, Roger. (1971). O princípio de individuação (contribuição a uma filosofia africana).Cadernos de Campo, v. 27, n. 1, p. 220-232, 2018., p. 226-227)14 14 Não ignoro aqui a perspectiva estruturalista de Bastide e homogeneização de sua idealização do ser africano. O autor integra o presente debate para ilustrar que, mesmo em um pensamento relativista, podemos extrair diferentes concepções de ser ignoradas pela tradição gramatical.

A passagem de Bastide acima permite que vislumbremos como as distintas cosmogonias estabelecem novos entendimentos de categorias como quantificação, uma vez que a percepção ocidental de quantidade pode não coincidir com a de povos diferentes, como no exemplo bantu.15 15 Chamo atenção para o fato de o termo banto ter, ao longo da história, recebido conotações positivas e negativas nas diferentes áreas do conhecimento. Kees van der Waal (2011) nos lembra da carga colonial e reducionista da utilização da expressão como sinônimo de “povo”. Mantenho a expressão usada por Bastide apenas para ilustrar a discussão feita a partir do excerto de seu texto. A conceptualização da categoria de gênero também segue esse fio, como será ilustrado a seguir.

2. A CONVENÇÃO CATEGORIAL DE GÊNERO

A tradição gramatical como a recebemos no século XXI é antiga, como já mencionado aqui, sendo uma herança inquestionável da antiguidade clássica. De acordo com Neves (2005)NEVES, Maria Helena Moura. (2005). A vertente grega da gramática tradicional: uma visão do pensamento grego sobre a linguagem. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora UNESP., as categorias nominais e verbais (gênero, número, caso, tempo, modo, voz e pessoa), eram tratadas, como categorias acessórias nas gramáticas gregas. Protágoras, que, de acordo com Neves, é o primeiro a distinguir uma partição de classe dos seres animados, já assume que a distribuição do gênero nas palavras seria arbitrária, morfológica, e dependeria da terminação dos nomes, e não de uma essência própria às coisas por eles designadas. Dessa forma, o gênero dos nomes que designariam os seres humanos não corresponderia sempre ao sexo biológico, mas seria o resultado de regras precisas, identificáveis nas práticas sociais que organizam dada sociedade (ver CARVALHO et al., 2020bCARVALHO, Danniel da S. (2020b). As genitálias da gramática. Revista da ABRALIN, v. 19, n. 1, p. 1-21.). Protágoras distinguiu três formas de gênero para a língua: árren (masculino), thély (feminino) e skeûos (neutro), este último podendo ser traduzido como “objeto”, “coisa”. Aristóteles dá seguimento a essa distribuição arbitrária, e localiza o gênero neutro em um lugar intermediário entre o feminino e o masculino. Curiosamente, como aponta Carmen Rosa Caldas-Coulthard (2007)CALDAS-COULTHARD, Carmen Rosa. (2007). Caro colega: exculsão lingüística e invisibilidade. Discurso & Sociedad, v. 1, n. 2, p. 230-246., Protágoras imprime ajustes aos nomes gregos para que se encaixem em sua classificação e, dessa forma, estabeleçam concordância com o sexo de sua/seu referente.

Dionísio o Trácio consagra a distinção gramatical dos gêneros protagóricos arsenikón, thelykón e oudéteron, e passa a associar ao neutro um valor pejorativo, e adiciona à classificação de gênero o koinón (comum) e o epikoinon (epiceno).16 16 Como pode ser visto hoje em dia, algumas estratégias de neutralização de gênero em sistemas binários suscitam esse valor pejorativo, pois geram leituras desumanificadas ou coisificadas dos referentes humanos (ver KNOBLOCK, 2021). Começamos aqui a perceber uma formalização da classificação dos valores de gênero na gramática de Dionísio o Trácio, pois sua distribuição é estabelecida meramente como resultado da concordância nominal: koinón compreendendo nomes que podem receber artigos masculino ou feminino a depender do sexo do referente, sem alteração em sua forma (ex.: kýon “cão”); epikoinon compreendendo nomes também invariáveis quanto ao gênero, mas também quanto ao uso de artigos (ex.: chelidón “andorinha”, que recebe artigo feminino) (NEVES, 2005NEVES, Maria Helena Moura. (2005). A vertente grega da gramática tradicional: uma visão do pensamento grego sobre a linguagem. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora UNESP., p. 199).

A ascensão de uma divisão biológica e arbitrária entre os valores de gênero surge com os filósofos escolásticos. Thomas de Erfurt, em sua Grammatica Speculativa, (cerca de 1310 da era comum), atribui os diferentes valores de gênero a funções metafóricas dos seres que representam a partir de uma leitura sincrônica das diferenças dos sexos à época. Thomas de Erfurt estabelece os valores masculino, feminino, comum e neutro ao gênero dos nomes da seguinte forma:

[o] gênero masculino é o modo de significar a coisa de acordo com a propriedade do agente, como vir (‘homem’), lapis (‘rochedo’). O gênero feminino é o modo de significar a coisa de acordo com a propriedade do paciente, como petra (‘rocha’), mulier (‘mulher’). O gênero comum é o modo de significar a coisa de acordo com qualquer uma das (duas) propriedades determinadas, como homo (‘humano’), virgo (‘virgem’). (ERFURT, 2019ERFURT, Thomas de. (2019). Tratado sobre os modos de significar ou gramática especulativa. Tradução e comentários Alessandro Jocelito Beccari, Curitiba: Ed. UFPR., p. 171-172).

A visão sexualista e antropomorfizada de gênero gramatical vai ao extremo quando identificamos no texto de Herder (1966 [1772], p. 134)HERDER, Johann G. (1772). Essays on the origin of language. In: HERDER, Johann G; ROUSSOU, Jean-Jacques. On the origin of language. Tradução de John H. Moran e Alexander Gode. Chicago/London: University of Chicago Press, p. 85-166, 1966. sua vocação reprodutiva: “[a] atribuição de sexo através da língua [é] [...] um interesse da humanidade e as genitálias da fala são, por assim dizer, os meios de sua reprodução.”17 17 Carvalho (2020) traz uma reflexão sobre o papel sexuado do gênero gramatical na cultura ocidental.

Essa relação entre as funções supostamente femininas, masculinas e neutras aos objetos representados por esses valores de gênero e da racionalidade do mundo ocidental eurocêntrico jazeu na descrição e prescrição gramatical até fins do século XIX. Como apontam Carvalho et al. (2020a)CARVALHO, Danniel da S.; BRITO, Dorothy B.S.; FARIAS, Jair G. (2020a). Individuação, aspecto nominal e a função de gênero nas línguas naturais. In: CARVALHO, Danniel da S.; BRITO, Dorothy B.S. (eds.). Gênero e Língua(gem): teoria e prática. Salvador: EDUFBA, p. 295-318., para Jacob Grimm (1831, p. 344-346)GRIMM, Jacob. (1831). Deutsche Grammatik. Vol. 3. Göttingen: Dieterich., no terceiro volume de sua Deutsche Grammatik, “[...] gênero gramatical é a extensão do natural na imaginação da linguagem humana para todo e qualquer objeto”. Assim, Grimm sustenta que os valores “naturais” de gênero são válidos para a classificação dos seres. Já no século XX, Wackernagel (2009 [1924])WACKERNAGEL, Jacob. [1924] 2009. Lectures on Syntax: With Special Reference to Greek, Latin, and Germanic, Oxford, Oxford University Press. mantém essa premissa e vai além, justificando assim tal classificação: “o masculino é a manifestação do que é anterior, maior, ativo etc., o feminino, do que é posterior, menor, passivo, receptivo etc., o neutro, do que é criado, material, geral, insensato” (WACKERNAGEL, 2009WACKERNAGEL, Jacob. [1924] 2009. Lectures on Syntax: With Special Reference to Greek, Latin, and Germanic, Oxford, Oxford University Press. [1924], p. 448).

Eis, portanto, a linha que une um pensamento sociolinguístico pré-estruturalista18 18 Cunho aqui o termo sociolinguística pré-estruturalista para indicar que o pensamento linguístico (e mesmo científico) anterior ao surgimento do movimento estruturalista do século XX é concebido a partir de uma visão cristalizada de sociedade, cujo parâmetro era unicamente o europeu, descartando, dessa maneira, toda e qualquer possibilidade de infundir outra forma de se pensar que não fosse a ocidental. Toda ideia de língua até então foi estabelecida sobre o “ser” que se difundiu como exemplo único de indivíduo social e cultural. Esse pensamento fica evidente no debate de Valladolid, no século XVI, sobre a existência de alma nos seres colonizados, vencendo o argumento de que mesmo possuindo alma, tais indivíduos eram bárbaros e deviam, seguindo o pensamento aristotélico, ser escravizados e suas culturas, incluído suas línguas, deviam ser substituídas pela europeia. dos pensadores europeus do século XIX, e em especial e não coincidentemente os alemães, às “fábulas cultas” de que fala Vernant (2012)VERNANT, Jean-Pierre. (2012). Prefácio. In: OLENDER, Maurice. As línguas do Paraíso. Arianos e semitas: um casamento providencial . Tradução de Bruno Feitler. São Paulo: Phoebus, p. 7-12.. O autor cunha a expressão para ilustrar o gérmen das ciências humanas no século XIX:

[c]ultas pela erudição, pelo domínio do hebraico e do sânscrito, pelo recurso ao comparativismo na análise dos dados linguísticos [...], pelas relações feitas entre as estruturas das línguas, as formas de pensamento, os traços civilizatórios. Mas também fábulas, fantasias do imaginário social, em todos os níveis” (VERNANT, 2012VERNANT, Jean-Pierre. (2012). Prefácio. In: OLENDER, Maurice. As línguas do Paraíso. Arianos e semitas: um casamento providencial . Tradução de Bruno Feitler. São Paulo: Phoebus, p. 7-12., p. 10-11).

É baseada em uma tradição europeia construída com bases apenas em um conceito capturado de um conjunto bem específico de línguas, as indo-europeias, que gênero gramatical continua sendo categorizado. Essa herança mantém-se na constituição dos estudos da linguagem no século XX (ver JESPERSEN, 1924JESPERSEN, Otto. (1924). The Philosophy of Grammar. London: Allen and Unwin.; BLOOMFIELD, 1933BLOOMFIELD, Leonard. (1933). Language. New York: Holt, Rinehart & Winston.; BALLY, 1935BALLY, Charles. (1935). Le langage et la vie. 2ª ed. Zurich: Max Niehans Éditeur.; FODOR, 1959FODOR, István. (1959). The Origin of Grammatical Gender . Lingua, v. 8.1, n. 41, p. 186-214.; KURYŁOWICZ, 1964KURYŁOWICZ, Jerzy. (1964). The Inflectional Categories of Indo-European. Heidelberg: Carl Winter.; IBRAHIM, 1973IBRAHIM, Muhammad H. (1973). Grammatical Gender: Its origin and development. The Hague: Mouton.). Leonard Bloomfield estabelece a ideia estruturalista de gênero gramatical como um valor arbitrariamente atribuído aos nomes dos referentes:

[a]s categorias de gênero, na maioria das línguas indo-europeias [...] não concordam com nada no mundo real, e isso é verdade para a maioria de tais classes, [não havendo] nenhum critério prático pelo qual o gênero de um nome em alemão, francês ou latim possa ser determinado (BLOOMFIELD, 1933BLOOMFIELD, Leonard. (1933). Language. New York: Holt, Rinehart & Winston., p. 271-280).

A partir da segunda metade do século XX, a descrição das línguas do mundo, mesmo ainda tendo herdado o método estruturalista, aponta haver uma motivação semântica para gênero (ver GREENBERG, 1963GREENBERG, Joseph H. (1963). Some Universals of Grammar with Particular Reference to the Order of Meaningful Elements. In: GREENBERG, Joseph H. (ed.). Universals of Human Language . Cambridge, Massachusetts/London, England: MIT Press, p. 73-113.; AKSENOV, 1984AKSENOV, A.T. (1984). K probleme èkstralingvističeskoj motivacii grammatičeskoj kategorii roda (Sobre o problema da motivação extralinguística da categoria de gênero), Voprosy jazykoznanija, v. 33, n. 1, p. 14-25.; CORBETT, 1991CORBETT, Greville G. (1991). Gender. Cambridge: Cambridge University Press., 2015; AIKHENVALD, 2000AIKHENVALD, Alexandra Y. (2000). Classifiers: A Typology of Noun Categorization Devices. Oxford: Oxford University Press., 2016)AIKHENVALD, Alexandra Y. (2016). How Gender Shapes de World. Oxford: Oxford University Press .. Aksenov (1984, p. 16-17 apud CORBETT, 1991, p. 8)AKSENOV, A.T. (1984). K probleme èkstralingvističeskoj motivacii grammatičeskoj kategorii roda (Sobre o problema da motivação extralinguística da categoria de gênero), Voprosy jazykoznanija, v. 33, n. 1, p. 14-25., assevera que “de certa forma, todos os sistemas de gênero são semânticos no sentido de que sempre há um fundo semântico [extralinguístico] para o sistema de atribuição.”

Entretanto, são os mesmos trabalhos tipológicos que manifestamente assumiram um paradigma indo-europeu na classificação gramatical das línguas que nos permite ilustrar a limitação dessa categorização.

3. O QUE CHAMAMOS DE GÊNERO, AFINAL?

Meu questionamento aqui é se a classificação de gênero feita nas descrições linguísticas é, de fato, a representação de uma universalidade categorial, a partir de uma materialização simbólica de classes sexuadas nas línguas do mundo, ou se essa representação é fruto de um condicionamento cultural expresso através da cultura colonialista que guia o pensamento científico desde seu surgimento.

Regúnaga (2011)REGÚNAGA, María A. (2011). El género gramatical en algunas lenguas indígenas sudamericanas desde una perspectiva tipológico-comparativa. Lingüística, v. 26, p. 172-192., ao analisar o guajiro, língua da família arawak, falada na Colômbia, aponta que

los sustantivos del guajiro no pertenecen a un género predeterminado de antemano. Los sustantivos que remiten a entidades sexuadas, por ejemplo, refieren al espécimen genéricamente; si el hablante deseara focalizar el carácter femenino o masculino del humano o animal al que el término refiere, puede recurrir a ciertos sufijos determinativos (masculino singular/femenino singular/plural) o elegir las formas concordantes en género que presentan otras clases relacionadas con dicho nominal. Dado que el género funcionalmente no marcado es el femenino, es el que se utiliza por defecto en objetos, aunque también en personas y animales cuando no se conoce o no se quiere especificar su sexo. (REGÚNAGA, 2011REGÚNAGA, María A. (2011). El género gramatical en algunas lenguas indígenas sudamericanas desde una perspectiva tipológico-comparativa. Lingüística, v. 26, p. 172-192., p. 174-175)

A autora chama atenção ao fato de o guajiro apresentar uma peculiaridade quanto a atribuição de gênero aos substantivos:

[e]l gua[jiro] constituye una excepción, dado que los nominales no se consideran pertenecientes a un género de antemano - no traen un género preasignado desde el léxicon - sino que se les puede atribuir el que sea necesario según las características del referente. (REGÚNAGA, 2011REGÚNAGA, María A. (2011). El género gramatical en algunas lenguas indígenas sudamericanas desde una perspectiva tipológico-comparativa. Lingüística, v. 26, p. 172-192., p. 187)

Diferentemente da tendência generalista apontada por Corbett (1991)CORBETT, Greville G. (1991). Gender. Cambridge: Cambridge University Press., Regúnaga (2011)REGÚNAGA, María A. (2011). El género gramatical en algunas lenguas indígenas sudamericanas desde una perspectiva tipológico-comparativa. Lingüística, v. 26, p. 172-192. demonstra que, como o guajiro, outras línguas sul-americanas, como o mosetén, língua isolada boliviana, e o wari’, da família chapacura, falada no estado de Rondônia, utilizam a forma feminina para designar não marcação (neutralização na nomenclatura tipológica) de gênero, como nos exemplos abaixo.

(2) Mosetén

Elena y Fan, mö’-in käeijëdye’-tom San Jose-chhe’-in

Elena e Juan 3f-pl plantação-com San Jose-sup-pl

Elena e Juan, elas tinham uma plantação em San José

(3) Wari’

Querec ‘ina-nam ‘oro wari’

ver 1sg.rp/p-3pl.f coletivo pessoa

Eu vi as pessoas (mulheres e homens)

(REGÚNAGA, 2011REGÚNAGA, María A. (2011). El género gramatical en algunas lenguas indígenas sudamericanas desde una perspectiva tipológico-comparativa. Lingüística, v. 26, p. 172-192., p. 185)

Aikhenvald (2000)AIKHENVALD, Alexandra Y. (2000). Classifiers: A Typology of Noun Categorization Devices. Oxford: Oxford University Press. também reporta o comportamento desviante da marcação de gênero em outras línguas do mundo. A autora menciona que em oromo, uma língua cuchítica do norte da américa do norte, os nomes categorizados como possuindo marcação de gênero feminino são utilizados como marca do diminutivo e para expressar afeto. A mesma codificação de afeto é identificada pela autora na língua lokono, falada no norte da américa do sul, mas em palavras com marcação masculina.

Croft (1994)CROFT, William. (1994). Semantic universals in classifier systems. Word, v. 45, n. 2, p. 145-171. dá alguns exemplos de como a marcação de gênero codifica variadas significações. Em alamblack, língua papua, o sufixo masculino -r aplica-se a objetos altos, longos, finos ou estreitos, enquanto o sufixo feminino -t, classifica objetos curtos e largos. Em chócue, da família das línguas bantas, a marcação de gênero relaciona-se ao formato do objeto que representa: a classificação masculina de classe de palavras designa não somente entidades do sexo masculino, mas também objetos resistentes, altos e finos (fálicos); a classe de palavras feminina inclui objetos frágeis, curtos ou redondos.

Trudgill (2002)TRUDGILL, Peter. (2002). Sociolinguistic Variation and Change. Washington DC: Georgetown University Press., por seu turno, ilustra essa associação da marcação atribuída a gênero a outras percepções dos objetos. Em manambu, língua papua ndu, val “canoa” é associada à classe das palavras femininas quando se refere a uma embarcação pequena, e à das palavras masculinas quando possui dimensão maior. Essa relação em manambu estende-se às demais palavras distribuídas nas descrições linguísticas em masculino e feminino. Por exemplo, palavras que remetem à forma redonda nessa língua são classificadas como femininas (ar “lago, kabak “pedra”, ya:l “barriga”, ab “cabeça”). Aikhenvald (2016)AIKHENVALD, Alexandra Y. (2016). How Gender Shapes de World. Oxford: Oxford University Press . oferece a figura abaixo para ilustrar a distribuição das diversas categorias cognitivas entre os dois gêneros:

A partir da Figura 1, percebe-se uma tendência na distribuição das palavras na língua nas duas categorias destinadas a classificá-las: palavras classificadas com masculinas são associadas a elementos vistos como viris (força, altura, completude), e aquelas classificadas como femininas são associadas a elementos posicionados como feminis (pequenez, incompletude).

Figura 1
Atribuição de gênero em manambu

Essa relação entre palavras distribuídas em classes de palavras masculinas e femininas por seus descritores e características associadas a masculinidade e feminilidade é frequente na descrição de um número considerável de línguas africanas (ver HEINE, 1982HEINE, Bernd. (1982). African noun class systems. In: SEILER, H.; LEHMANN, C. (orgs.). Apprehension. Das sprachliche Erfassen von Gegenstanden, Teil II: Die Techniken und ihr Zusammenhang in Einzelsprachen. Tubingen: Narr, p. 189-216.).

No processo de colonização americana pelos europeus ibéricos, geraram-se contextos de bilinguismo, no qual há “caso[s] de desvio com respeito às normas de uma língua ou outra língua” (WEINREICH, 1953WEINREICH, Uriel. (1953). Language s in contact. New York: Publications of the Linguistic Circle of New York., p. 1), o que provocaria fenômenos de interferência. Segundo Weinreich (1953, p. 1, tradução minha)WEINREICH, Uriel. (1953). Language s in contact. New York: Publications of the Linguistic Circle of New York., o contato pode induzir efeitos profundos nas línguas, resultando em “rearranjo de padrões resultante da introdução de elementos estrangeiros nos domínios mais completamente estruturados da língua, como a maior parte do sistema fonêmico, uma grande parte da morfologia e sintaxe e algumas áreas do vocabulário (parentesco, cor, clima etc.).” Não é intuito do presente artigo discutir teorizações e metodologias acerca do contato linguístico, que participa desse debate pois, a partir dele, podemos vislumbrar possíveis interferências (e violências) da língua do colonizador (superstrato) na do colonizado (substrato) (ver MARTINET, 1975MARTINET, André. (1975). Elementos de Linguística Geral. 6ª ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes. ).

Tomemos como exemplo a língua apyãwa, do tronco tupi, falada em Mato Grosso. A cultura apyãwa apresenta uma forte distinção dos papeis designados pelo sexo. E essa distinção é refletida na língua através de marcas morfofonológicas e lexicais distintivas entre os sexos. Por exemplo, a partícula kwĩ é usada como vocativo na fala dos homens para se referirem a outros homens, como nos exemplos em (4):

(4) a. Exarapy kwĩ

‘Vem cá, rapaz!’

b. Ere xaã kwĩ

‘Vamos embora, rapaz!’

(KOXAMAXOWOO; CRUZ, 2019KOXAMAXOWOO, Tapirapé; CRUZ, Mônica C. (2019). Notas sobre a fala masculina e feminina entre os Apyãwa-Tapirapé.Revista Brasileira De Linguística Antropológica, v. 11, n. 2, p. 167-194., p. 175)

Já as mulheres utilizam a partícula rapy com mesma função, mas dirigindo-se às mulheres:

(5) a. Exarapy ’ãwo!

‘Vem cá!’

b. Araryn rapy!

‘Sim, sou senhora!’

(KOXAMAXOWOO; CRUZ, 2019KOXAMAXOWOO, Tapirapé; CRUZ, Mônica C. (2019). Notas sobre a fala masculina e feminina entre os Apyãwa-Tapirapé.Revista Brasileira De Linguística Antropológica, v. 11, n. 2, p. 167-194., p. 176)

Essa diferenciação entre a fala dos homens e das mulheres pode ser refletida fonologicamente, como nos exemplos akorok e ãkorok, formas distintas usadas para expressar a ação de urinar (“eu urino”) por homens e mulheres, respectivamente, ou ainda, a interjeição de susto “ui!”, expressa pelos homens como ari e pelas mulheres como a’i (ver KOXAMAXOWOO; CRUZ, 2019KOXAMAXOWOO, Tapirapé; CRUZ, Mônica C. (2019). Notas sobre a fala masculina e feminina entre os Apyãwa-Tapirapé.Revista Brasileira De Linguística Antropológica, v. 11, n. 2, p. 167-194., p. 174). Entretanto, devido ao contato linguístico, essa distinção vem sendo perdida na fala das mais jovens, que dão preferência à forma masculina em detrimento da feminina (ver PAULA, 2012PAULA, Eunice D. de. (2012). Eventos de fala entre os Apyãwa (Tapirapé) na perspectiva da etnossintaxe: singularidades em textos orais e escritos. Tese de Doutorado em Letras. Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia.).

Em outros casos, esse processo de contato interferiu na construção de uma estrutura inexistente na língua. Um exemplo disso é encontrado no próprio português brasileiro. Lucchesi (2000)LUCCHESI, Dante. (2000). A variação na concordância de gênero em uma comunidade de fala afro-brasileira: novos elementos sobre a formação do português popular do Brasil. Tese de Doutorado em Linguística, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. descreve um raro uso das formas de gênero em uma variedade do português falada por alguns habitantes da comunidade rural de Helvécia, no extremo sul da Bahia, no município de Nova Viçosa. Essa comunidade ficou por muito tempo isolada do contato com as cidades próximas e algumas tecnologias, como rádio e televisão, tardaram a alcançar o povoado. Esse isolamento, segundo o autor, preservou algumas características do que teria sido o resultado de um contato linguístico irregular no processo de formação do português brasileiro. Coletado no início dos anos 1990, o corpus construído por Lucchesi continha entrevistas com alguns falantes com mais de 90, 100 anos. Esses informantes, portanto, teriam adquirido esse português crioulizado ou em processo de descrioulização (LUCCHESI, 2000LUCCHESI, Dante. (2000). A variação na concordância de gênero em uma comunidade de fala afro-brasileira: novos elementos sobre a formação do português popular do Brasil. Tese de Doutorado em Linguística, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.) ainda no século XIX. Um dos traços mais marcantes dos falantes mais velhos dessa variedade do português era o uso das marcas de gênero. Segundo Carvalho (2011)CARVALHO, Danniel da S. (2011). Sincretismo, subespecificação de traços e a sintaxe de gênero em uma comunidade do português afro-brasileiro: um estudo de caso. Papia (Brasília), v. 21, n. 1, p. 83-97., a marcação de gênero feminino nos determinantes na variedade não segue a regra categórica de concordância do português, só sendo realizada quando o falante deseja expressar definitude, ou seja, o conhecimento do objeto pelos interlocutores, como observado no exemplo abaixo:

(6) Tem o Marquinho, tem João, teve Otéli, teve Célio, teve Máro, teve André, nunca nenhuma não trabaiava nas terra não! Cada uma caçô seu emprego. (CARVALHO, 2011CARVALHO, Danniel da S. (2011). Sincretismo, subespecificação de traços e a sintaxe de gênero em uma comunidade do português afro-brasileiro: um estudo de caso. Papia (Brasília), v. 21, n. 1, p. 83-97., p. 95-96, n.r. 10)

No exemplo em (6), extraído da fala de uma informante de 103 anos, os referentes são todos do sexo masculino, mas a referência pronominal (nenhuma e uma) apresenta marca morfológica de feminino. Isso se dá, na análise do autor, devido ao conhecimento da informante, mãe dos indivíduos mencionados no enunciado, e o entrevistador, portanto devendo apresentar marca de feminino em sua retomada.

Acredito, entretanto, que, no caso da descrição das línguas mencionadas anteriormente, o processo de contato não gerou interferência na estrutura das línguas, mas sua descrição partiu de um processo classificatório pré-moldado por um linguista, ou o que valha, que ignora a categorização de um ser através de olhos e vivências distintos dos seus.

4. A GRAMÁTICA NO ESPELHO

Até o presente momento, minha discussão interroga, pelo menos, (a) a concepção de categoria como base da descrição linguística e (b) o conceito de gênero como categoria baseado unicamente na experiência indo-europeia. As línguas que ilustram a seção anterior apontam uma imposição categorial na sua descrição, encaixando gênero como categoria dessas línguas, mesmo quando sua representação é claramente uma indexação de valores do conceito ocidental de masculino e feminino (ver Figura 1). As categorias gramaticais descritas em todos os estudos tipológicos e gramaticais consultados para a elaboração do presente artigo apresentam definições baseadas nas categorias aristotélicas, apresentadas na seção 1.

Mesmo quando explicitamente destacado que a distribuição das classes de palavras na categoria gênero é um mero instrumento metodológico, como o fazem Aikhenvald (2000AIKHENVALD, Alexandra Y. (2000). Classifiers: A Typology of Noun Categorization Devices. Oxford: Oxford University Press., 2016)AIKHENVALD, Alexandra Y. (2016). How Gender Shapes de World. Oxford: Oxford University Press . e Regúnaga (2011)REGÚNAGA, María A. (2011). El género gramatical en algunas lenguas indígenas sudamericanas desde una perspectiva tipológico-comparativa. Lingüística, v. 26, p. 172-192., a literatura linguística não abre caminho para repensar o próprio conceito de categoria, encaixotando as leituras de mundo dos povos das línguas descritas de acordo com a cosmovisão ocidental. Poucas foram as tentativas de dissociação entre as formas de uma língua e as categorias aristotélicas, mas sempre associando-as a algum tipo de categoria pré-estabelecida em nível macro ou microgramatical, como fonema ou morfema (ver GARVIN, 1948GARVIN, Paul. (1948). Kutenai III: morpheme distributions (prefix, theme, suffix). International Journal pf American Linguistics, n. 14, p. 171-187.).

A literatura sobre descrição das línguas indígenas está repleta de exemplos de hierarquizações e encaixamentos categorias. Citem-se os trabalhos de Rodrigues (1990)RODRIGUES, Ayron. D. (1990). You and I = Neither You nor I: The Personal System of Tupinambá. In Doris Payne (ed.) Amazonian linguistics: Studies in lowland South American languages, pp. 393-405. Austin: University of Texas Press., sobre inclusividade das pessoas do discurso nos pronomes em Tupinambá, e Junker (2011)JUNKER, Marie-Odile. (2011). Debunking the I above YOU illusion.LIAMES: Línguas Indígenas Americanas, v. 11, n. 1, p. 35-50., sobre a hierarquia de pessoa em línguas algonquianas, família de línguas indígenas faladas no nordeste do Canadá. Nos dois casos, os autores discutem a formatação discursiva de “pessoa” a partir de um “eu” e um “tu” construídos nas relações sociais ocidentais. Junker (2011)JUNKER, Marie-Odile. (2011). Debunking the I above YOU illusion.LIAMES: Línguas Indígenas Americanas, v. 11, n. 1, p. 35-50. conclui, por exemplo, que as línguas algonquianas possuem uma hierarquização 2ª pessoa > 1ª pessoa nas relações de concordância, a depender se se trata de discurso direto ou indireto. Em outras palavras, as relações de concordância de pessoa em uma língua como o cree dependem de uma intencionalidade do falante na enunciação.

A própria concepção de categoria gramatical baseada nas relações gramaticais, como acionadas por Benveniste de sua leitura das categorias aristotélicas, é problemática. Dryer (1997)DRYER, Matthews Synge. (1997). Are Grammatical Relations Universal? In: BYBEE, Joan; HAIMAN, John; THOMPSON, Sandra. (orgs.). Essays on Language Function and Language Type: Dedicated to T. Givón. Amsterdam: John Benjamins, p. 115-143. contesta o papel categorial nas relações gramaticais a partir da discussão de algumas línguas que problematizam essa assunção. Uma delas vem das relações de pessoas gramaticais do cree, mencionadas acima. Outro exemplo que questiona o papel categorial na língua é o dyirbal, falado na Austrália, que gera dificuldades em classificar o que é o sujeito ou o objeto na oração. Já o achem, língua falada na Indonésia, reclama o que Dryer chama de macropapéis, tais como as categorias semânticas ator e experienciador, como categorias nas relações gramaticais.

Ainda, em línguas como pa’ikwené (língua arawak), é possível descrever comportamentos do ser através de classes gramaticais atribuídas aos numerais. Passes (2006)PASSES, Alan. (2006). Do um à metáfora: para um entendimento da matemática pa›ikwené (Palikur).Revista de Antropologia, v. 49, n. 1, p. 245-281. nos dá os seguintes exemplos do pa’ikwené: “você pode dizer de um homem retraído ou isolado que ele ‘um-izou’ a si mesmo,Ig pahavwihwé, ou que dois indivíduos se ‘dois-aram’ a si mesmos,Egkis piyanméhwé, ou seja, eles se casaram” (PASSES, 2006PASSES, Alan. (2006). Do um à metáfora: para um entendimento da matemática pa›ikwené (Palikur).Revista de Antropologia, v. 49, n. 1, p. 245-281., p. 246).

Se seguirmos o caminho do escrutínio das descrições das línguas dos povos dominados, reconheceremos diversos exemplos do encaixamento forçoso dos elementos componentes de sua gramática nas categorias pré-existentes no imaginário das línguas indo-europeias.19 19 Ver Carvalho (2021) para um aprofundamento dessa discussão.

Voltando a discussão iniciada na introdução do presente artigo, a arbitrariedade de gênero evocada por Collichon e Schwindt (2015)COLLICHON, Gisela; SCHWINDT, Luiz C. (2015). Por que a distinção entre gênero social e gramatical na língua portuguesa é necessária ao idioma. Zero Hora, 12 dez. 2015. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2015/12/por-que-a-distincao-entre-genero-social-e-gramatical-na-lingua-portuguesa-e-necessaria-ao-idioma-4928930.html. Acesso: 16 ago. 2020.
https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-al...
pode ser, então, questionada. Nos casos aventados na seção anterior, em um número considerável de línguas que apresentam alguma marcação classificada como gênero, mesmo os nomes apresentam uma subjetivação nessa classificação. A associação de marcas de virilidade e feminilidade a referentes fálicos ou delicados, respectivamente, na descrição de algumas línguas bantas não parece arbitrário, se levamos em conta que a maior parte das descrições das línguas africanas feitas no século XIX ocorreu pela pena de religiosos europeus (ERRINGTON, 2001ERRINGTON, Joseph. (2001). Colonial Linguistics. Annual Review of Anthropology, v. 30, p. 19-39. ). O mesmo aconteceu com os povos sul-americanos (SEVERO, 2016SEVERO, Cristine Gorski. (2016). The Colonial Invention of Language s in America. Alfa, São Paulo, v. 60, p. 11-28.).

Considerando gênero na classificação do indivíduo animado humano, e ignorando aqui que a própria designação de humano é um conceito eurocêntrico (ver CASTRO, 1996CASTRO, Eduardo V. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio.Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 115-144. ), devemos cuidar de alguns princípios.

Mesmo assumindo a representação do gênero dos seres inanimados como arbitrária, a representação dessa categoria nos animados humanos parte do reconhecimento de uma classe de gênero representativa da classe dos humanos. Nas palavras de Nietzsche (2016, p. 15)NIETZSCHE, Friedrich. (2016). Aurora. Reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso., “[q]uando o homem deu a todas as coisas um gênero, não acreditou estar brincando, mas haver obtido uma profunda compreensão: - apenas muito tarde, e talvez ainda não completamente, ele se deu conta da enormidade desse erro.” Em outras palavras, se a priori não temos alternativa na escolha do gênero dos seres inanimados e dos animados não humanos, visto que nesses gênero está associado à distinção sexuada entre fêmea e macho da espécie e naqueles essa distinção é inexistente, nos seres animados humanos a distinção sexuada representa um retrocesso na representação dessa espécie. Mesmo se pensamos na espécie humana apenas pelo viés sexuado, devemos atentar a um preconceito estrutural já reconhecido nas ciências.

É perceptível, até aqui, que independentemente de haver ou não uma motivação para a valoração da categoria gênero nos nomes das línguas naturais, sua classificação gira em torno de valores baseados em uma interpretação de um “mundo natural” em que a milenar distribuição sexuada dos seres animados é o único parâmetro. Essa naturalização da generificação dos corpos é tensionada atualmente, inclusive, na biologia. Segundo Fausto-Sterling (2002, p. 78, nota 137)FAUSTO-STERLING, Anne. (2002). Dualismos em duelo.Cadernos Pagu, n. 17-18, p. 9-79.,

[b]iólogos, médicos, psicólogos e sociólogos empregam um ‘nó de práticas produtoras de conhecimento’, incluindo ‘comércio, cultura popular, lutas sociais... histórias corporais... narrativas herdadas, novas estórias’, neurobiologia, genética e a teoria da evolução para construir crenças sobre a sexualidade humana.

Se pensamos, entretanto, em gênero como representação identitária de certos grupos que compartilham determinadas identidades, esse binarismo parece ainda mais inadequado. A tradição ocidental nos convenceu que gênero designa as distinções sexuais, biologizantes dos indivíduos. Esse determinismo há tempos foi questionado, principalmente nas ciências humanas. Gonçalves e Oliveira (2019, p. 4)GONÇALVES, Josiane Peres; OLIVEIRA, Edicleia Lima de. (2019). Diversidade cultural e relações de gênero em uma escola indígena sul-mato-grossense.Educação E Pesquisa, v. 44, e185144. defendem que a representação de gênero deve levar em consideração os contornos que a realidade é apresentada aos indivíduos, “dos exemplos que tiveram da cultura dominante, de como são vistos e reconhecidos.” Scott (1995, p. 72)SCOTT, Joan. (1995). Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação e Realizadade, v. 20, n. 2, p. 71-99., por exemplo, assume gênero como “a organização social da diferença entre os sexos. A referência à gramática é ao mesmo tempo explícita e plena de possibilidades não-examinadas.” Essa construção escapa ao binarismo cimentado nas categorias gramaticais milenares.

Assim, mesmo que assumíssemos uma dualidade para os seres animados na cultura ocidental, esse conceito seria consideravelmente restritivo para uma elaboração minimamente precisa da sexualidade humana e, consequentemente, de suas representações. Essas “narrativas herdadas, novas estórias” indicadas por Fausto-Sterling constituem a forma como o “ser”, mesmo ocidental, deve tensionar as classificações linguísticas, se são elas uma predicação desse “ser”.

O apagamento dos limites das marcas de gênero gramatical são uma tentativa de dirigir-se de forma provocativa ao “Eu hegemônico” (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, Aparecida Sueli. (2005). A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de Doutorado em Educação. Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 20). O discurso científico contrário à flexibilização de gênero gramatical tem por detrás uma imparcialidade histórica, como antevisto por Kuhn (2001, p. 71)KUHN, Thomas. (2001). A Estrutura das Revoluções Científicas. 6. Ed. São Paulo: Editora Perspectiva., cujos “instrumentos intelectuais são, desde o início, encontrados numa unidade histórica e pedagogicamente anterior, onde são apresentados juntamente com suas aplicações e através delas.” Fischmann (1994, p. 11)FISCHMANN, Roseli. (1994). Discriminação, preconceito, estigma: relações de etnia em escolas e no atendimento à saúde de crianças e adolescentes em São Paulo. Tese de Doutorado em Educação. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. entende que essa “unidade histórica e pedagogicamente anterior” é o que fundamenta os estigmas manifestados socialmente, uma “modalidade do ‘paradigma do senso comum’.”

A defesa de uma classificação binária de gênero gramatical é, portanto, a realização de uma profecia indo-europeia que apenas reforça o apagamento do ser que não se vê refletido nessa categorização.

Usamos no título da presente seção a metáfora do espelho. Ela simboliza aqui o “ser” refletido nas descrições gramaticais das línguas do mundo. Vimos em toda a discussão travada nessas páginas que as categorias gramaticais, desde suas origens gregas, são determinadas pela representação de um ente universalizado, mas que, como demonstrado em diversas passagens, representa apenas um decalque de um sujeito grego em um recorte temporal, cristalizado por uma tradição gramatical baseada no conceito eurocêntrico do “ser belo” (em todo manual de gramática brasileiro, a etimológica do termo gramática é associada à retórica grega). O exercício feito aqui é de reposicionar esse espelho para que possa refletir outros seres, ou os outros eus possíveis, seja no mundo ocidental contemporâneo, seja em culturas não ocidentais.

O que os exemplos que ilustram a introdução desse artigo representam é a desvinculação tentativa do desejo dos que defendem que o outro seja o reflexo do seu próprio desejo. Em palavras menos transcendentais, as rasuras feitas pelos usuários da língua ao exercitar suas identidades tensionando as possibilidades dessa língua (portuguesa, no nosso caso) é a tentativa de dar visibilidade a esses outros seres apagados pela tradição gramatical.

O tupi nos proporciona uma bela ilustração dessa relação do ser discutida aqui. Essa língua não apresenta uma cópula correspondente ao “ser” aristotélico, mas apresenta duas formas pronominais com essa finalidade: oré, que pode ser interpretada como “nós”, que suprime o ouvinte, e îandé, “nós”, inclusivo. Portanto, em toda a história do gênero gramatical, o “ser” que ele representa pode ser entendido como oré, que não inclui o outro seu diferente. Devemos, entretanto, entender que a dissolvência de gênero nos permite sermos îandé.

Reitero o fato de que esse exercício de rasura executado para ilustrar as diferentes identidades de gênero é um mecanismo legítimo até mesmo para os puristas da gramática em sua concepção mais formalista, pois nenhum princípio é ferido, seja ele de cunho estrutural (morfossintático) ou do campo da significação estreita (semântica formal), pois os enunciados são completamente gramaticais, interpretáveis pelos usuários da língua.

Devemos, portanto, diluir a basilaridade do grego como hiperonímia da cultura mundial e permitir que as representações diversas do ser sejam refletidas na língua e desapegarmo-nos de princípios estabelecidos a partir do desconhecimento ou da desconsideração das diferenças.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE REPRESENTAÇÃO DE DIFERENTES CORPOS NAS LÍNGUAS

No presente artigo, procurei estabelecer um ambiente de reflexão crítica sobre o conceito aristotélico de categoria, fundamental na construção da gramática ocidental que serve de base para a descrição e discussão de toda e qualquer língua e sua constituição enquanto entidade estruturada.

Essa discussão foi motivada pela defesa de teorias linguísticas de uma inflexibilidade nos padrões de realização de algumas categorias semântico-gramaticais, tais como gênero, na língua portuguesa, no fenômeno denominado neutralização de gênero. A defesa de uma métrica binária na marcação linguística, cujos valores masculino/feminino são assumidos como arbitrário na classificação de entidades inanimadas e animadas não-humanas (com ressalvas, nesse caso) em línguas de marcação de gênero, como o português, não deve ser estendida à representação de entidades humanas. Isso se dá pela associação desses valores a funções sociais que, por razões que extrapolam meu conhecimento e, até onde conheço, a própria arqueologia linguística, são desconhecidas, foram gramaticalizadas, ou seja, recebem o estatuto de unidade linguística de uma dada língua e passam a fazer parte de seu instrumental gramatical.

Ilustrei esse movimento de gramaticalização com a categoria gênero, elemento componente dos traços de concordância de línguas como o português, apontando sua vinculação a um “ser” aristotélico e, consequentemente, ligado a uma realidade bastante específica de uma sociedade generalisticamente denominada europeia. Essa divisão histórica dos valores de gênero entre masculino, feminino e, em alguns casos, neutro, constituiu o modelo de descrição e análise de todas as línguas do mundo, forçando, em muitos casos, um encaixamento de categorias diversas em suas formas. Essa pasteurização constituiu, no presente debate, uma centralização categorial nesse “ser”, apagando qualquer outra forma de sê-lo, o que teve como consequência a impossibilidade de contorno de possíveis predicados.

Apresentamos que o que chamamos de convenção de gênero é epistemicida, pois não permite que o entendimento das entidades linguísticas outras possam ser compreendidas por visões distintas das europeias. Diversas línguas foram invocadas para demonstrar que a classificação de gênero descrita nas línguas não-europeias, não coincidentemente iniciada na tentativa de impor a cultura ocidental judaico-cristã nas américas e áfrica subsaariana (ver ERRINGTON, 2001ERRINGTON, Joseph. (2001). Colonial Linguistics. Annual Review of Anthropology, v. 30, p. 19-39. ), foi um movimento de alicerçamento racista baseado no apagamento de leituras de mundo não eurocentradas, disfarçado de preservação linguística.

O exercício linguístico da rasura das marcas de gênero no que diz respeito à representação de sujeitos e sujeitas é legítimo sociocultural e, particularmente, linguisticamente, pois seu lançamento é permitido pelos princípios básicos de construção linguística. Esse exercício não é novidade nas línguas do mundo e mostra como as relações sociais estabelecem o funcionamento de diversas estruturas. Lembremos dos pronomes de tratamento do japonês, cujo paradigma reflete uma estrutura social baseada no império nipônico, criando hierarquias que vão além das pessoas do discurso e de gênero; ou, da neutralização pronominal do inglês com a terceira pessoa do plural (they), que remete ao século XVIII (BARON, 1986BARON, Dennis E. (1986). Grammar and Gender. New Haven, CT: Yale University Press.); ou, ainda, mais recentemente, o estabelecimento de um pronome na tentativa de neutralização de gênero em finlandês, com a inserção dicionarizada do pronome hän (SENDÉN; BÄCK; LINDQVIST, 2015SENDÉN, Marie G.; BÄCK, Emma A.; LINDQVIST, Anna. (2015). Introducing a gender-neutral pronoun in a natural gender language: the influence of time on attitudes and behavior. Front. Psychol, v. 6, artigo 893, p. 1-12. ). Esses exemplos demonstram que houve em algum momento um esforço linguístico para a inclusão de formas cujo emprego original não correspondiam ao passado linguístico dos povos, mesmo em línguas com histórico diverso das americanas, ásio-australianas e africanas. Não nego os processos históricos de surgimento das línguas nacionais dos povos europeus. Apenas reconheço que seu processo de formação passou por contextos históricos diferentes e, portanto, resultam de uma realidade diversa.

Por fim, desejo que diferentes sujeitos e sujeitas passem a ser refletidos nos espelhos que constituem as gramáticas das línguas, formando, assim um caleidoscópio, cujos reflexos são mutantes, mesmo partindo de formas, à primeira vista, idênticas.

  • Bolsista CNPq
  • 1
    Este texto foi escrito durante o isolamento motivado pela pandemia de Covid-19, que teve início em 2020. Faço esse registro, pois esse fato foi responsável por uma sensibilização da percepção do outro justamente em um momento em que estávamos inacessíveis. Agradeço ao Rômulo Bittencourt, a quem eu devo muito do debate que me levou a pensar o tema e com quem mantive o único contato humano no período. Agradeço às/aos pareceristas anônimas/os que contribuíram sobremaneira para a atual versão do texto. Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo apoio no desenvolvimento da pesquisa da qual faz parte o presente trabalho. Qualquer erro remanescente no texto é de minha inteira responsabilidade.
  • 2
    Luiz Schwindt (2020)SCHWINDT, Luiz C. (2020). Sobre gênero neutro em português brasileiro e os limites do sistema linguístico. Revista da ABRALIN , v. 19, n. 1, p. 1-23. atualiza essa percentagem para apenas 5,6%.
  • 3
    Generificação é o processo social pelo qual há o encaixamento de corpos aos valores binários feminino/masculino. Para um aprofundamento sobre o debate acerca da performatividade de gênero e a generificação dos corpos, ver Butler (1993)BUTLER, Judith. (1993). Bodies that Matter: On the Discursive Limits of “Sex”. Nova York, Routledge. e Borba (2014)BORBA, Rodrigo. (2014). A linguagem importa? Sobre performance, performatividade e peregrinações conceituais. Cadernos pagu, v. 43, p. 441-474., entre outres.
  • 4
    Os autores utilizam algumas expressões tradicionalmente invariantes em relação à marca de gênero, tais como transgênero e sujeito. Adoto, no entanto, uma variabilidade de gênero para as expressões no presente artigo, acompanhando o que aponta Grada Kilomba em sua carta de abertura à edição brasileira de seu livro Memórias da Plantação. Episódios de racismo cotidianos (2019). Diferentemente de Kilomba, que mantém as expressões invariantes na forma masculina, proponho no presente texto a adoção de suas variações, no intuito de indicar, sempre que possível, marcas identitárias às expressões linguísticas.
  • 5
    Agradeço imensamente aos comentários de uma parecerista anônima pela lembrança dos importantíssimos trabalhos sobre generificação linguística a partir da literatura cuir.
  • 6
    É o que se passou a denominar de interseccionalidade a partir dos estudos feministas negros (DAVIS, 1981; CRENSHAW, 1989CRENSHAW, Kimberlé W. (1989). Demarginalizing the intersection of race and sex; a black feminist critique of discrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics.University of Chicago Legal Forum, p. 139-167.; COLLINS, 1990COLLINS, Patricia Hill. (1990). Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. Nova York/Londres, Routledge.; DORLIN, 2008DORLIN, Elsa. (ed.). (2008). Black Feminism (1975/2000) . Paris: L’Harmattan.; BILGE, 2009BILGE, Sirma. (2009). Théorisations féministes de l’intersectionnalité.Diogène, v. 225, n. 1, p. 70-88.; AKOTIRENE, 2019AKOTIRENE, Carla. (2019). Interseccionalidade. São Paulo: Pólen.)
  • 7
    Segundo Porto-Gonçalves (2009, p. 26)PORTO-GONÇALVES, Carlos W. (2009). Entre América e Abya Yala. Tensões de territorialidades. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 20, p. 25-30., “Abya Yala vem sendo usado como uma autodesignação dos povos originários do continente como contraponto a América.”
  • 8
    Documento escrito por relatores da Fundación Diversencia/Coalición LGBTTTI de las Américas en la OEA, Secretaria de Pueblos Indígenas frente al VIH, Sexualidad y DD.HH (SIPIA) e Colectivo Wigudun Galu, apresentado no Foro sobre Políticas Relativas a la Sociedad y Reuniones Anuales del Banco Mundial y Fondo Monetario Internaciona, em Lima, Peru, em outubro de 2015.
  • 9
    Como aponta Natalia Knoblock (2021)KNOBLOCK, Natalia. (2021). Using “it” and neuter grammatical gender as a dehumanizing discursive strategy. Manuscrito. Disponível em: https://www.academia.edu/45470489/Using_it_and_neuter_grammatical_gender_as_a_dehumanizing_discursive_strategy. Acesso em 14 de março de 2021.
    https://www.academia.edu/45470489/Using_...
    , a tentativa de utilização de uma marcação morfológica neutra já existente em uma língua, leva a uma “desumanização” do referente, como aconteceu no ucraniano.
  • 10
    Daqui por diante, o “ser” aristotélico será grafado entre aspas enquanto as demais realizações do termo aparecerá sem as aspas.
  • 11
    Grada Kilomba refere-se, nessa passagem, à sociedade portuguesa, mas essa descrição se encaixa com o monumento gramatical definido há pouco.
  • 12
    Não posso deixar de mencionar os trabalhos que abordam a racialização linguística e a linguificação de raça, contidos no volume editado por H. Samy Alim, John R. Rickford e Aretha F. Ball (2016), os quais procuram “perguntar e responder questões críticas sobre as relações entre língua, raça e poder através de diferentes contextos e sociedades etnorraciais” (ALIM, 2016ALIM, H. Samy; RICKFORD, John R.; BALL, Aretha F. (orgs.). (2016). Raciolinguistics. How langanuage shapes our ideas about race . Oxford/New York: Oxford University Press ., p. 3). Recomendo também a leitura da resenha feita por Fernanda Cerqueira e por mim do volume (CERQUEIRA; CARVALHO, 2021CERQUEIRA, Fernanda de O.; CARVALHO, Danniel da S. (2021). Racializando língua ou linguificando raça? Trabalhos de Linguística Aplicada, Dossiê Linguagem e Raça, no prelo.).
  • 13
    Adotei a grafia minúscula das iniciais dos nomes de continentes, como um pequeno exercício de desobediência epistêmica.
  • 14
    Não ignoro aqui a perspectiva estruturalista de Bastide e homogeneização de sua idealização do ser africano. O autor integra o presente debate para ilustrar que, mesmo em um pensamento relativista, podemos extrair diferentes concepções de ser ignoradas pela tradição gramatical.
  • 15
    Chamo atenção para o fato de o termo banto ter, ao longo da história, recebido conotações positivas e negativas nas diferentes áreas do conhecimento. Kees van der Waal (2011)WAAL, Kees van der. (2011). Bantu: From Abantu to Ubuntu. In: GRUNDLINGH, Albert; HUIGEN, Siegfried (eds.). Reshaping Remembrance. Critical Essays on Afrikaans Places of Memory. Amsterdam: Rozenberg Publishers. nos lembra da carga colonial e reducionista da utilização da expressão como sinônimo de “povo”. Mantenho a expressão usada por Bastide apenas para ilustrar a discussão feita a partir do excerto de seu texto.
  • 16
    Como pode ser visto hoje em dia, algumas estratégias de neutralização de gênero em sistemas binários suscitam esse valor pejorativo, pois geram leituras desumanificadas ou coisificadas dos referentes humanos (ver KNOBLOCK, 2021KNOBLOCK, Natalia. (2021). Using “it” and neuter grammatical gender as a dehumanizing discursive strategy. Manuscrito. Disponível em: https://www.academia.edu/45470489/Using_it_and_neuter_grammatical_gender_as_a_dehumanizing_discursive_strategy. Acesso em 14 de março de 2021.
    https://www.academia.edu/45470489/Using_...
    ).
  • 17
    Carvalho (2020)CARVALHO, Danniel da S.; BRITO, Dorothy B.S.; FARIAS, Jair G. (2020b). Notas sobre el aspecto del género gramatical. Revista Argentina de Ciencias del Comportamiento, v. 12, n. 3, p. 1-12. DOI:https://doi.org/10.32348/1852.4206.v12.n3
    https://doi.org/10.32348/1852.4206.v12.n...
    traz uma reflexão sobre o papel sexuado do gênero gramatical na cultura ocidental.
  • 18
    Cunho aqui o termo sociolinguística pré-estruturalista para indicar que o pensamento linguístico (e mesmo científico) anterior ao surgimento do movimento estruturalista do século XX é concebido a partir de uma visão cristalizada de sociedade, cujo parâmetro era unicamente o europeu, descartando, dessa maneira, toda e qualquer possibilidade de infundir outra forma de se pensar que não fosse a ocidental. Toda ideia de língua até então foi estabelecida sobre o “ser” que se difundiu como exemplo único de indivíduo social e cultural. Esse pensamento fica evidente no debate de Valladolid, no século XVI, sobre a existência de alma nos seres colonizados, vencendo o argumento de que mesmo possuindo alma, tais indivíduos eram bárbaros e deviam, seguindo o pensamento aristotélico, ser escravizados e suas culturas, incluído suas línguas, deviam ser substituídas pela europeia.
  • 19
    Ver Carvalho (2021)CARVALHO, Danniel da S. (2021). A domesticação da gramática de gênero. Campinas: Pontes. para um aprofundamento dessa discussão.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2020
  • Aceito
    10 Mar 2021
  • Publicado
    15 Mar 2021
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