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“ESSA MESMA ARMA CONTRA ELES”: CAPITALISMO, PODER, LINGUAGEM E EDUCAÇÃO INDÍGENA

“THAT SAME WEAPON AGAINST THEM”: CAPITALISM, POWER, LANGUAGE AND INDIGENOUS EDUCATION

RESUMO

No âmbito de processos de estratificação, categorização, organização e legitimação da desigualdade no capitalismo constitutivos da sociedade atual, descrevemos e discutimos, neste artigo, o modo como lideranças indígenas subvertem recursos textuais ao darem resposta às exigências de elaboração de documentos escolares que instituições governamentais fazem às escolas de suas comunidades. Os dados aqui apresentados foram gerados, através de uma abordagem etnográfica, em uma ação de extensão de um programa federal de formação continuada de professores indígenas, a Ação Saberes Indígenas na Escola, desenvolvida no estado de Santa Catarina, em terras indígenas guarani, kaingang e laklãnõ-xokleng. O dado sobre o qual nos debruçamos é um texto de Kerexu Yxapyry, liderança mbya-guarani da Terra Indígena Morro dos Cavalos (Palhoça/SC). A análise e a discussão que tecemos com base nele são pautadas em estudos atentos às realidades linguístico-discursivas do campo situado e às ideologias que são articuladas para controle e regulamentação de recursos textuais nas práticas sociais. Os resultados da discussão apontam para uma obediência subversiva das lideranças ao se apropriarem de recursos textuais em práticas de letramento, criando, recriando e decidindo em prol de dominar sua realidade e fazer cultura. Gêneros textuais, como um projeto político-pedagógico (PPP), acabam se constituindo, no campo da educação escolar indígena, como se verifica no nosso contexto aplicado, em frentes de batalha ligadas ao letramento e às regras e exigências complexas e pesadas que polícias discursivas buscam impor para conjurar os poderes e perigos dos discursos indígenas em relação à educação escolar que desejam. Nessa frente, defendemos que a subversão de elementos textuais pode ser interpretada como fazendo parte de práticas de letramentos de reexistência, aqueles em que sujeitos agentes contestam moldes e espaços socialmente legitimados em relação aos usos da linguagem, situando-se na fronteira entre a obediência e a subversão textual nas periferias do capitalismo.

Palavras-chave:
discurso e poder; liderança indígena; ideologias linguísticas; letramento; Mbya-Guarani.

ABSTRACT

Among other processes of stratification and categorization within inequality in capitalism, we aim to describe and discuss, in this paper, the process of subversion of textual resources on behalf of Brazilian Native Guarani leaders seeking to respond to institucional requirements concerning documents regulating their schools. The ethnographic data that are here presented were generated within a situated context, particularly, within an extension action (within a federal program for indigenous teacher training), the Indigenous Knowledge at School Action, developed inside Guarani, Kaingang and Laklãnõ-Xokleng’s lands. The piece of data on which we focus makes part of a speech by Kerexu Yxapyry, Mbya-Guarani leader from Morro dos Cavalos Indigenous Land (Palhoça, Santa Catarina). The analyses and the discussion are supported by research works on linguistic-discursive realities from the applied field and by how ideologies are articulated to control and rule over linguistic resources in social practice. The results of the discussion reveal a subversive obedience in the way Native leaders such as Kerexu make some textual resources their own in literacy practices, thus creating, re-creating and deciding, so as to be able to dominate their reality and make culture. Textual genres, such as a political-pedagogical projects, become battlefronts concerning literacy and the heavy rules and demands that discursive polices seek to establish in order to diminish the power of indigenous discourses about their school education. Within those battlefronts, we understand that the subversion of textual elements can be interpreted as being a reexistence literacy practice, i.e. one that contests socially legitimated patterns and spaces in what concerns to language use. Those practices take place within the borders between textual obedience and subversion in the peripheries of capitalism.

Keywords:
discourse and power; indigenous leadership; language ideologies; literacy; Mbya-Guarani.

Essa arma poderosa que eu falo, que é a caneta, ela é porque os político do nosso país usam ela pra escrever as leis que cortam os direitos indígena, tiram os direitos indígena. Mas, por outro lado, também tão dando oportunidade pros nossos indígena, pros nossos universitário indígena, estudar e usar essa mesma arma contra eles pra se preparar pra competir com eles. (João Maria dos Santos, Aldeia Toldo Pinhal - Seara/SC, 31 de outubro de 2015).

INTRODUÇÃO

Objetivamos neste artigo1 1 Agradecemos, aos editores deste dossiê pelas suas contribuições em modo de ideias, sugestões, questionamentos, reflexões e comentários feitos em versões preliminares deste texto. Agradecemos a Kerexu Yxapyry pela sua liderança, pela sua caminhada, por compartilhar com seus parentes indígenas e nós interlocutores não indígenas seu conhecimento e suas ideias tão refletidas e sinceras. construir reflexões acadêmicas em relação à linguagem e à educação indígena a partir de uma investigação situada em uma ação de extensão que implementou um programa federal de formação continuada de professores indígenas, a Ação Saberes Indígenas na Escola, no estado de Santa Catarina, particularmente em terras indígenas guarani, kaingang e laklãnõ-xokleng. Neste percurso epistêmico, buscamos evidenciar modos de subversão de comunidades indígenas em dinâmicas interacionais específicas, destacando como as lideranças dessas comunidades, resistentes em relação ao lugar periférico que lhes é imposto, lidam com processos de categorização e de exclusão no sistema capitalista, contestando essa ordem estabelecida através da linguagem.

Em Santa Catarina, a população indígena foi estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, ano do último censo demográfico oficial realizado no Brasil, em cerca de 16.000 pessoas. Essa estimativa incluiu tanto os/as aproximadamente 10.400 guarani, kaingang e laklãnõ-xokleng que residem em terras indígenas como também aqueles/as que moram fora delas, em zonas rurais ou urbanas (BRIGHENTI, 2012aBRIGHENTI, C. A. (2012a). Povos indígenas em Santa Catarina. In: NÖTZOLD, A. L. V.; ROSA, H. A., et al. (Org.). Etnohistória, história indígena e educação: contribuições ao debate. Porto Alegre: Pallotti. p. 37-65. ). Dentre as terras indígenas, seis são de uso tradicional das comunidades kaingang, duas de comunidades laklãnõ-xokleng, e dezessete, de comunidades guarani, sendo que algumas famílias guarani também se fazem presentes em terras indígenas kaingang e laklãnõ-xokleng.

Com base em correntes dialógicas de sucessivos textos em gêneros do discurso escritos (BAKHTIN, 2006[1929]), a situação administrativa e jurídica das terras indígenas nesse estado, conforme explica Brighenti (2012bBRIGHENTI, C. A. (2012b). Terras Indígenas em Santa Catarina. In: NÖTZOLD, A. L. V.; ROSA, H. A., et al. (Org.). Etnohistória, história indígena e educação: contribuições ao debate. Porto Alegre: Pallotti . p. 255-277. ), é bastante diversificada: há terras indígenas demarcadas há um século, mas em processo de revisão de limites há décadas; áreas adquiridas com recursos de medidas mitigadoras de projetos como a duplicação da BR-101 e a construção do gasoduto Bolívia-Brasil; reservas identificadas para comunidades cujas terras de ocupação tradicional se tornaram em poucos anos uma cidade de grande porte, como Chapecó; terras para as quais os estudos de identificação ainda não foram iniciados; terras cujo processo de identificação foi apenas iniciado para depois ser, e permanecer ainda hoje, parado por um longo tempo; terras demarcadas, porém não homologadas; terras declaradas das quais é aguardada a demarcação física; e terras judicialmente embargadas. Em decorrência dessa diversidade de situações jurídicas, do 1% do território catarinense que representam os 77.759 hectares de terras indígenas, os indígenas estão em posse de apenas 38.000, menos do 50% do total (BRIGHENTI, 2012bBRIGHENTI, C. A. (2012b). Terras Indígenas em Santa Catarina. In: NÖTZOLD, A. L. V.; ROSA, H. A., et al. (Org.). Etnohistória, história indígena e educação: contribuições ao debate. Porto Alegre: Pallotti . p. 255-277. ). Essa situação de espólio fundiário se perpetua e amplifica na dita nova economia globalizada, o capitalismo neoliberal, na qual, embora avanços tecnológicos maciços tenham produzido possibilidades inéditas de circulação de informações e recursos, bem como deslocamentos de populações que podem assumir identidades pós- ou transnacionais (DE FINA & PERRINO, 2013DE FINA, A.; PERRINO, S. (2013). Transnational identities.Applied Linguistics, v. 34, no. 5, p. 509-515.), há um constante aprofundamento da desigualdade.

A realidade fundiária catarinense caracterizada acima (que não é diferente de outros estados e regiões do país) é um reflexo dessa desigualdade, uma violação que se estende historicamente por séculos, mas que se estende também, num plano mais imediato, desde 1988. Naquele ano, a Constituição Federal reconheceu aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” e deu cinco anos à União para concluir a sua demarcação (BRASIL, 1988, s/p.). Desde 1988, o direito de as comunidades indígenas poderem desenvolver o ensino regular nas escolas de suas aldeias também nas suas línguas e de acordo com seus processos próprios de aprendizagem aguarda igualmente sua materialização efetiva (cf. SOUZA, 2009SOUZA, L. M. T. M. (2009). Relatório sobre Educação Indígena Diferenciada, Intercultural e Bilíngue no Brasil. In: LÓPEZ, L. E. e HANEMANN, U. (Orgs.). Alfabetización y multiculturalidad: Miradas desde América Latina. Guatemala: UIL-UNESCO, PACE-GTZ. p. 99-128.; NOTZOLD; ROSA, 2012NOTZOLD, A. L. V.; ROSA, H. A., et al. (Orgs.). (2012). Etnohistória, história indígena e educação: contribuições ao debate. Porto Alegre: Pallotti .; BRIGHENTI; NÖTZOLD, 2010BRIGHENTI, C. A.; NÖTZOLD, A. L. V. (2010). Educação guarani e educação escolar: Desafios da experiência mbya e nhandeva. Cadernos do LEME, v. 2, n. 2, p. 22-40.).

A falta de efetivação desse direito contribui para que essas comunidades permaneçam na “linha abissal”, lugar esse fortalecido pela escola que, nesse sentido, segue sendo central para a manutenção da hegemonia da modernidade capitalista, em relação à qual os indígenas são, nas palavras de Sousa Santos (2010, p. 47-49), os “habitantes paradigmáticos” do “outro lado da linha”. Esse outro lado seria o “reino do impensável na modernidade ocidental” (SOUSA SANTOS, 2010SOUSA SANTOS, B. (2010). Descolonizar el saber, reinventar el poder. Montevideu: Trilce., p. 49), aquele onde habitam as “sociedades da recusa da economia”, como as denominou Clastres (2004[1980], p. 128).

Em prol da violação de direitos a que nos referimos, numerosas “exigências complexas e pesadas” colocadas por “polícia[s] discursiva[s]” (FOUCAULT, 1970FOUCAULT, M. (1970) A ordem do discurso. [s.l.]: Sabotagem, 2004., p. 13-14) favorecem instituições não indígenas (e os grupos de poder não indígenas no seu comando) em detrimento dos indígenas.

Com base no exposto, partimos, portanto, das asserções de que a perene violação institucional dos direitos dos povos indígenas brasileiros2 ocorre em prol do projeto capitalista neoliberal hegemônico, e de que o papel da linguagem é essencial para se concretizar tal violação (HELLER, 2011HELLER, M. (2011).Paths to post-nationalism: A critical ethnography of language and identity. Oxford: Oxford University Press.). Acreditamos que este artigo pode trazer uma contribuição significativa para compreendermos, a partir de um olhar situado, como processos de categorização que organizam e legitimam a desigualdade através da linguagem (HELLER, 2011) se dão em embates entre lideranças indígenas e instituições educacionais. Buscamos, assim, evidenciar o modo como relações entre capitalismo e linguagem nessas interações específicas afetam dinâmicas interacionais e de mobilidade das pessoas.

Para tanto, importa analisar e interpretar como os processos de inclusão e exclusão funcionam em contextos e momentos específicos, identificando recursos linguísticos em disputa e sua valoração, revelando quem controla o acesso a recursos, quem lhes atribui valores e quem se beneficia ou sofre com essas dinâmicas no sistema capitalista contemporâneo (HELLER, 2011HELLER, M. (2011).Paths to post-nationalism: A critical ethnography of language and identity. Oxford: Oxford University Press.). Importa, igualmente, analisar e interpretar como as pessoas, muito mais do que simplesmente se beneficiarem dessas dinâmicas ou delas sofrerem as consequências, fazem cultura no âmago desses processos, no intuito de subvertê-los: ou seja, como fazem com que seus interesses e objetivos prevaleçam sobre aqueles objetivos e interesses que grupos de poder e instituições exógenos buscam impor a elas.

Explicitar como modos de subversão ocorrem através da linguagem no âmbito educacional é um desafio epistêmico que haverá de nos ajudar a favorecer um afastamento em relação a representações simplificadas de comunidades indígenas, pautadas em lógicas coloniais (HELLER; McELHINNY, 2017HELLER, M.; McELHINNY, B. (2017).Language, capitalism, colonialism: toward a critical history. Toronto: University of Toronto Press.).

1. “ESSA BUROCRACIA QUE EXISTE HOJE DENTRO DO MUNDO JURUÁ”: IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS PARA A DESIGUALDADE NO CAPITALISMO

Concordamos com Heller (2011HELLER, M. (2011).Paths to post-nationalism: A critical ethnography of language and identity. Oxford: Oxford University Press.) em que, além de dar conta de dizer o que vemos, precisamos dar conta também de dizer por que vemos o que vemos, e por que importa contar determinadas histórias. E importa contar essa história aqui trabalhada porque é questionável que possamos compreender dinâmicas sociolinguísticas a partir de uma perspectiva binária que pressupõe somente posicionamentos dicotômicos: os que controlam o acesso a recursos linguísticos vs. os que têm o acesso a recursos linguísticos controlados; quem se beneficia com certas dinâmicas e processos de categorização vs. quem “sofre” com eles. Entendemos, com Foucault (1979FOUCAULT, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. , p. 45), que o poder não é um “fenômeno de dominação maciço e homogêneo” de indivíduos, grupos ou classes que deteriam o poder sobre outros que não o possuiriam e estariam, portanto, a ele submetidos. O poder é, antes, um fluxo, “algo que circula” e “só funciona em cadeia”, constituindo os indivíduos e passando por eles, sendo por eles exercido nas redes e malhas onde circulam e onde, constituindo os seus centros de transmissão, estão sempre em posição de exercê-lo e/ou sofrer a sua ação (FOUCAULT, 1979FOUCAULT, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. , p. 103).

Nessa perspectiva, o poder implica liberdade, pois, se é possível ordenar a probabilidade das ações dos corpos dos outros (definição de Foucault para poder), é porque esses outros são indivíduos ou coletivos que podem assumir diversas condutas, reações e modos de comportamento. Há sempre, portanto, liberdade para a insubmissão, para fugas, subterfúgios ou resistência violenta (FOUCAULT, 1995): aqueles que reconhecem o poder que se exerce contra eles como abuso podem acionar a sua insubmissão “onde se encontram e a partir de sua atividade (ou passividade) própria” (FOUCAULT, 1979, p. 46).

A subversão é um reflexo da insubmissão e ela pode ser um objeto de estudo privilegiado para uma sociolinguística crítica, baseada no fazer etnográfico, que busca explicar como os processos de inclusão e exclusão (e resistência) no capitalismo funcionam em contextos e momentos específicos e como eles se materializam através da linguagem e das práticas sociais que a constituem.

Como disse o cacique kaingang João Maria dos Santos (citado na epígrafe deste texto), durante o II Grande Encontro Kaingang do programa de formação continuada docente Ação Saberes Indígenas na Escola, de que falaremos adiante, o domínio de recursos linguísticos de gêneros escritos, metonimicamente encarnados na “caneta”, constituem uma “arma poderosa”. Essa arma tanto pode agir a seu favor (na mão daquelas/es que estudam para poder usá-la em benefício das comunidades) como contra eles/elas (na mão daqueles/as que buscam violar seus direitos e atingem o poder necessário para que a violação aconteça). O perigo, portanto, não está na arma em si (as práticas e/ou os recursos linguísticos), mas no modo como ela é usada e como esse uso é avaliado por polícias discursivas em instituições em função do posicionamento identitário-cultural, econômico e sociopolítico dos interlocutores (SIGNORINI, 2008SIGNORINI, I. (2008). Metapragmáticas da língua em uso: unidades e níveis de análise. In: SIGNORINI, I. (Org.).Situar a lingua [gem]. São Paulo: Parábola Editorial. p. 117-148.). Como bem lembra Foucault (1970FOUCAULT, M. (1970) A ordem do discurso. [s.l.]: Sabotagem, 2004., p. 5), o discurso é um objeto de luta, “o poder do qual nos queremos apoderar”.

Para articular nossa discussão acerca desses processos de inclusão e exclusão (e resistência) no capitalismo, fazemos uso também do conceito de ideologias linguísticas. A partir de Kroskrity, Heller e McElhinny definem ideologias de linguagem como “crenças, sentimentos e concepções sobre linguagem, estrutura e uso, que geralmente apontam os interesses políticos econômicos de indivíduos, grupos étnicos e outros grupos, assim como de estados-nação” (KROSKRITY, 2010KROSKRITY, P. (2010). Language Ideologies - Evolving Perspective. In: JURGEN, J. (Ed.) Language Use and Society (Handbook of Pragmatics Highlights). Amsterdam: John Benjamins, p. 192-211. apud HELLER; McELHINNY, 2017HELLER, M.; McELHINNY, B. (2017).Language, capitalism, colonialism: toward a critical history. Toronto: University of Toronto Press., p. 236). Segundo Heller (2011), com base nas ideologias linguísticas, podemos entender como os processos de estratificação são construídos através da linguagem, de burocracias e ideais meritocráticos que posicionam sujeitos, de modo consistente e implacável, em lugares específicos dentro da hierarquia social. Também para Signorini, com base nesse conceito, torna-se possível enxergar a “luta de natureza político-ideológica tanto de construção e imposição” de padrões de adequação linguística como de resistência a esses mesmos padrões (SIGNORINI, 2001SIGNORINI, I. (2001). Construindo com a escrita “outras cenas de fala”. In: SIGNORINI, I. (Org.).Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Mercado de Letras. p. 97-134., p. 129-130). Nas palavras da autora, as ideologias linguísticas são “sistemas culturais de ideias ou crenças encarnadas nas práticas e articuladas pelos falantes em suas racionalizações, justificativas e avaliações de cunho moral e político sobre estrutura e uso linguístico”. Elas têm como função garantir “o sentido e legitimidade dos padrões usuais de diferenciação e hierarquização de formas e usos e que também servem de parâmetro para a inclusão/exclusão dos falantes em redes, práticas e instituições.” (SIGNORINI, 2008, p. 119)

É com base nesses sistemas de ideias e crenças que se sustentam conceitos como “domínio pleno da escrita” (SIGNORINI, 2001SIGNORINI, I. (2001). Construindo com a escrita “outras cenas de fala”. In: SIGNORINI, I. (Org.).Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Mercado de Letras. p. 97-134., p. 105), que seria o domínio absoluto de “padrões de teorização e avaliação prestigiados em instituições escolares e acadêmicas” (p. 98) identificados como a norma. Conceitos como esses são incompatíveis com as teorias dos Novos Estudos de Letramento (GEE, 1994GEE, J. P. (1994). Social Linguistics and Literacies: Ideology in Discourses. Londres: Taylor & Francis. ; STREET, 1984STREET, B. (1984). Literacy in Theory and Practice. Cambridge: Cambridge University Press., 2003), segundo as quais o letramento ou letramentos múltiplos, antes de um conjunto de habilidades ou domínio de padrões, são práticas sociais nas quais as pessoas são instruídas como parte de grupos sociais específicos. Nessa perspectiva teórica, as práticas de letramento em que se dão as atividades de ler, escrever e conversar estão atreladas a elementos como tempos, espaços, culturas e relações de poder específicas. São esses elementos que, de fato, atribuem sentido a essas práticas. Portanto, as avaliações sobre estrutura e uso linguístico precisam ser sócio-histórica e culturalmente situadas, e não podem ser indiferentes às especificidades dos tempos, espaços, culturas e relações de poder nas quais as práticas de letramento acontecem.

A noção de “domínio pleno da escrita” é incompatível, igualmente, com a teoria dos gêneros do discurso, segundo a qual, “cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados”, sendo que cada um deles reflete as “condições específicas e as finalidades” da esfera a que pertence, tanto no seu “conteúdo temático” como no seu “estilo verbal” e na sua “construção composicional” (BAKHTIN, 1979BAKHTIN, M. (1979). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997., p. 279). Portanto, ter “domínio pleno da escrita” significaria ter domínio dos temas, estilos e estruturas de todos os gêneros discursivos de todas as esferas de utilização da língua, o que sabemos ser impossível, inclusive porque, em decorrência das transformações incessantes das esferas, do surgimento de novas esferas e do desaparecimento de outras, os gêneros estão em constante transformação (BAKHTIN, 1979).

O fim último das ideologias linguísticas é controlar os discursos que podem ser enunciados com legitimidade em alguma(s) língua(s). Afinal, como afirma Bakhtin (1988BAKHTIN, M. (1988). Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec ., p. 71), forma e conteúdo estão “unidos no discurso, entendido como fenômeno social, em todas as esferas da sua existência e em todos os seus momentos”. Nessa linha, Signorini (2001SIGNORINI, I. (2001). Construindo com a escrita “outras cenas de fala”. In: SIGNORINI, I. (Org.).Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Mercado de Letras. p. 97-134., p. 106) denuncia que, em esferas públicas, as pessoas que são avaliadas como tendo “domínio pleno da escrita” são autorizadas para agirem nessas esferas. Por outro lado, pessoas que são avaliadas como não sendo detentoras desse “domínio pleno” encontram severas dificuldades e falta de visibilidade para suas ações nessas mesmas esferas. Diante da dificuldade para agir, conforme explica Signorini, sujeitos avaliados como não possuidores desse “domínio pleno” transformam tudo aquilo que sabem em “recurso de persuasão” (SIGNORINI, 2001SIGNORINI, I. (2001). Construindo com a escrita “outras cenas de fala”. In: SIGNORINI, I. (Org.).Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Mercado de Letras. p. 97-134., p. 106). Ou seja, nos letramentos múltiplos e nas múltiplas práticas sociais em que se envolvem nas esferas públicas, sujeitos procuram usar todos os recursos ao seu dispor, muitas vezes através de estratégias de insubmissão e subversão, que acabam constituindo intervenções socialmente significativas (SIGNORINI, 2001; HELLER, 2011HELLER, M. (2011).Paths to post-nationalism: A critical ethnography of language and identity. Oxford: Oxford University Press.). Nesse sentido, será de proveito trazer aqui a noção de práticas de letramento de reexistência (SOUZA, 2011), aquelas através das quais sujeitos ressignificam papéis e lugares atribuídos por uma sociedade marcada por desigualdades raciais e sociais, e que “criam outras formas de dizer o já dito, imprimindo de forma indelével suas identidades sociais” (SOUZA, 2011, p. 186).

Nas práticas de letramento institucionais, contudo, haverá que se confrontar sempre o “suporte institucionalmente constrangedor” das “polícia[s] discursiva[s]” que monitoram o cumprimento das regras e exigências impostas aos textos que se há de produzir em cada esfera. A obediência ou cumprimento dessas regras e exigências nas instituições viabilizará “a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem [e] os limites de seu valor de coerção” (FOUCAULT, 1970FOUCAULT, M. (1970) A ordem do discurso. [s.l.]: Sabotagem, 2004., p. 15).

Importa também para essa discussão relembrar a noção de cultura de Freire (1967FREIRE, P. (1967). Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 43), segundo a qual, as pessoas fazem cultura quando, a partir das suas relações com a realidade e através dos seus atos de “criação, recriação e decisão”, dinamizam o mundo, dominam a realidade e a humanizam, acrescentando a ela algo de que elas mesmas são fazedoras. É por isso que, através da linguagem e da subversão de recursos textuais em embates com polícias discursivas, é possível que indivíduos e coletivos subvertam processos de categorização, estratificação e de controle dos discursos no capitalismo, fazendo cultura.

Alinhamo-nos, finalmente, com trabalhos que têm analisado tensões e encontrado exigências e embates institucionais como as que aqui analisamos. Esses trabalhos, desenvolvidos em contextos quilombolas (SITO, 2011SITO, L. (2011). Apropriando-se do uso de atas: práticas de letramento em contexto quilombola. Identidade!, v. 16, p. 146-163.); no ensino superior junto a comunidades de recente acesso a universidade (SITO; KLEIMAN, 2017; PONSO, 2018PONSO, L. C. (2018). Letramento acadêmico indígena e quilombola: uma política linguística afirmativa voltada à interculturalidade crítica.Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 57, n. 3, p. 1512-1533.; OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2017OLIVEIRA, D. P; NASCIMENTO, A. M. (2017). Translinguajamento: pensando entre línguas a partir de práticas e metadiscursos de docentes indígenas em formação superior. A cor das letras, v. 18, p. 254-266.); no contexto da juventude negra e indígena periférica no movimento do hip-hop (NASCIMENTO, 2018; SOUZA, 2011) e na escola pública (PERSCH; PACHECO; MONTEIRO, 2006PERSCH, M. I. L., PACHECO, S. M., & MONTEIRO, M. R. (Orgs.). (2006). Uma escola para todos, uma escola para cada um. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Secretaria Municipal de Educação.) mostram, de modo semelhante, como essas comunidades reagem às exigências institucionais, fazem cultura e se constroem na insubmissão dos textos.

2. “EU ESCREVI AQUI NO PAPEL E A MINHA ESCOLA TÁ ACONTECENDO DESSE JEITO”: CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA

Nessa empreitada epistemológica caracterizada na introdução e na fundamentação teórica acima, analisamos e interpretamos um dado gerado em uma ação de extensão do Museu de Arqueologia e Etnologia Oswaldo Rodrigues Cabral, da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC3 desenvolvida em terras indígenas (TIs) guarani, kaingang e laklãnõ-xokleng. Para uma compreensão mais abrangente do/a leitor/a sobre o contexto geográfico a que nos referimos, apresentamos a localização e situação jurídica dessas TIs na fig. 1 a seguir:

Figura 1
Localização e situação jurídica das terras indígenas em Santa Catarina

A ação de extensão na qual foi gerado o dado etnográfico que nutre nossa discussão foi articulada com o objetivo de implementar, no estado de Santa Catarina, o programa de formação continuada de professoras/es indígenas Ação Saberes Indígenas na Escola (ASIE), um programa de âmbito federal desenvolvido através de instituições de ensino superior, como, no caso em pauta, a UFSC4. Nas suas duas primeiras edições, a ASIE-SC consistiu na organização de grandes encontros, organizados em intervalos de dois a três meses, em diferentes finais de semana, com professoras/es em formação, anciões/ãs, sábios/as e lideranças. O propósito desses grandes encontros era discutir como a educação indígena (os “processos próprios de aprendizagem” a que a Constituição faz menção) pode ser incluída na educação escolar indígena.

Nessa ação formativa, particularmente nas suas duas primeiras edições, entre os anos de 2015 e 2016, Guerola atuou como supervisor5 5 Usamos a terminologia da ASIE para nos referirmos às funções dos participantes no programa, marcando em itálico esses termos. , com funções de coordenação pedagógica, sob a coordenação geral da professora e antropóloga Maria Dorothea Post Darella, numa equipe interdisciplinar junto a outras formadoras não indígenas. Essa experiência possibilitou desenvolver simultaneamente sua participação observante, com base numa metodologia etnográfica, para o seu trabalho de doutoramento, orientado por Lucena. Nosso lugar de fala, portanto, não é de lideranças nem de intelectuais indígenas; somos intelectuais brancas que trabalhamos, em parcerias solidárias (HELLER; McELHINNY, 2017HELLER, M.; McELHINNY, B. (2017).Language, capitalism, colonialism: toward a critical history. Toronto: University of Toronto Press., p. 21), para tecermos reflexões acadêmicas em relação à linguagem e ao universo educacional indígena e também para complexificarmos “representações simplificadas sobre povos indígenas” (HELLER; McELHINNY, 2017, p. 257).

O resultado desse trabalho de campo foi um corpus bruto de 116 horas, 47 minutos e 3 segundos de filmagens e gravações de áudio, tanto de todas as intervenções dos/as participantes durante os quatro primeiros grandes encontros em cada um dos três contextos étnicos quanto de reuniões exclusivas com os/as orientadores/as de estudo, os/as professores/as indígenas com ensino superior e em exercício escolhidos/as em seleção pública para serem responsáveis pela organização das atividades da ASIE-SC nas suas regiões. Nas semanas de intervalo entre os grandes encontros, os/as orientadores/as de estudo foram responsáveis por orientar os/as professores/as cursistas no desenvolvimento de atividades nas suas respectivas aldeias, junto às suas turmas e alunos/as, sob simultânea orientação dos mais velhos/as, a partir das discussões e dos projetos desenvolvidos nesses macroencontros. E dizemos macroencontros porque os mesmos chegaram a reunir, na mesma aldeia e final de semana, mais de 250 participantes.

Programas voltados à educação escolar e formação docente em contextos indígenas no Brasil, embora tenham tido consideráveis avanços, especialmente nas décadas de 2000 e 2010, têm tido um papel marcadamente controverso (SANTOS, 1975SANTOS, S. C. D. (1975). Educação e sociedades tribais. Porto Alegre: Movimento.; SOUZA, 2009SOUZA, L. M. T. M. (2009). Relatório sobre Educação Indígena Diferenciada, Intercultural e Bilíngue no Brasil. In: LÓPEZ, L. E. e HANEMANN, U. (Orgs.). Alfabetización y multiculturalidad: Miradas desde América Latina. Guatemala: UIL-UNESCO, PACE-GTZ. p. 99-128.). Tanto a linguagem como as ideologias a seu respeito tiveram um papel crucial no histórico desses programas, e ainda hoje impõem neles um papel controverso e pouco isento de conflitos e desavenças. Conforme nos lembra Souza (2009SOUZA, L. M. T. M. (2009). Relatório sobre Educação Indígena Diferenciada, Intercultural e Bilíngue no Brasil. In: LÓPEZ, L. E. e HANEMANN, U. (Orgs.). Alfabetización y multiculturalidad: Miradas desde América Latina. Guatemala: UIL-UNESCO, PACE-GTZ. p. 99-128.), apesar das mudanças e propostas alavancadas pela guinada que a Constituição de 1988 deu à abordagem dos direitos dos povos indígenas brasileiros, as ideologias linguísticas com maior enraizamento no âmbito educacional institucional (como, por exemplo, o grafocentrismo) permeiam também a modalidade da educação escolar indígena diferenciada. Ainda que as propostas apontem para a valorização das narrativas orais, as ideias e crenças com base em padrões de escrita têm permanecido em grande medida inalteradas e incontestadas até hoje.

Esse caráter continuísta das ideologias e práticas de linguagem e de letramento da escolarização eurocentrada ortodoxa se perpetuam na educação escolar indígena diferenciada, em grande parte, porque as escolas indígenas respondem perante instâncias superiores que as supervisionam (nomeadamente, em Santa Catarina, Gerências Regionais de Educação - GEREDs, e, acima delas, a Secretaria de Educação do Governo do Estado - SED). Nessas instâncias, os cargos comissionados e técnicos que lidam diretamente com elas raramente são ocupados por indígenas oriundos das comunidades, e, na maioria das ocasiões, os profissionais em exercício carecem de formação específica para atuação nesses contextos.

Em decorrência dessa conjuntura político-institucional, os/as orientadores/as de estudo da ASIE-SC solicitaram insistentemente que, nos grandes encontros, estivessem também presentes representantes da SED e das GEREDs, para que eles/as também fossem público-alvo da formação. Durante os grandes encontros, os/as protagonistas seriam os/as mais velhos/as das comunidades, que eram convidados/as e permaneciam, durante o final de semana, ao longo do dia, palestrando e escutando outras falas durante as sessões de trabalho, e, à noite, no caso guarani, na Casa de Reza. Não foi incomum a referência por parte dos/as Guarani à necessidade desses profissionais abrirem seu coração às palavras dos mais velhos/as.

A presença desses/as gestores/as e técnicos/as durante a formação não foi, contudo, tão frequente quanto desejado pelos/as professores/as e lideranças indígenas6 6 As justificativas para a ausência de gestores/as e técnicos/as foram variadas: os encontros serem em finais de semana, indisponibilidade de diárias e transporte, falta de agenda, chuvas, etc. . Por esse motivo, nas ocasiões avulsas em que os/as mesmos/as se fizeram presentes, eles/as se tornaram alvo predileto das intervenções dos/as participantes, que aproveitaram essas oportunidades para se embrenharem em embates por longo tempo aguardados e que, com certeza, nunca tinham ocorrido com uma presença tão maciça de professores/as indígenas como a ASIE-SC propiciou.

O dado sobre o qual nos debruçamos nas páginas vindouras foi enunciado por Kerexu Yxapyry, liderança mbya-guarani da TI Morro dos Cavalos (Palhoça/SC), dirigente do Centro de Formação Tataendy Rupa, e que, à altura da escrita deste texto, atuava como Coordenadora da Comissão Guarani Yvyrupa (comissão nacional de lideranças guarani) e Coordenadora Executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Filha de Adão Karai Tataendy Antunes, professor pioneiro na escrita de narrativas guarani em português (ANTUNES, 2008ANTUNES, A. K. T. (2008). Palavras de xeramõi. Holambra/SP: Cuca Fresca.), à época da geração dos dados, Kerexu já era uma professora com mais de dez anos de experiência escolar e anos também de experiência na liderança da sua aldeia, o tekoa Itaty. Kerexu é formada pela Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da UFSC, no âmbito da qual defendeu, em 2015, seu trabalho de conclusão de curso sobre o currículo diferenciado nas escolas indígenas guarani da Grande Florianópolis e o sistema de educação (ANTUNES, 2015).

O texto analisado no que segue é a retextualização (transcrição e tradução intergêneros) de uma intervenção de Kerexu na escola Itaty, realizada no dia 11 de julho de 2015, durante a primeira reunião da equipe de formadoras da UFSC com os/as orientadores/as de estudo à frente da organização dos grandes encontros da ASIE-SC nas aldeias guarani. Nela, Kerexu buscava exemplificar e justificar a necessidade da presença dos/as técnicos/as e gestores/as da rede estadual diretamente envolvidos/as no contexto escolar indígena nos grandes encontros da ASIE-SC. Todos os trechos incluídos na análise compunham, no seu modo oral original, um texto de cinco minutos e onze segundos, registrado em gravação de áudio.

3. “A GENTE NÃO MUDOU NADA! A GENTE SÓ FEZ UMA CAPA PRA ESSE PAPEL AÍ. E COMO MUDOU AS COISAS!”: GÊNEROS TEXTUAIS E PODER DE COERÇÃO

Nas relações entre os/as Guarani e a SED e GEREDs, processos de inclusão e exclusão funcionam tanto pela escolha da língua utilizada nas práticas (uma vez que as interações ocorrem necessariamente em português), como pela escolha de gêneros textuais, recursos a que se atribui valor, que protagonizam processos e pautam consequências nesses processos (cf. HELLER, 2011HELLER, M. (2011).Paths to post-nationalism: A critical ethnography of language and identity. Oxford: Oxford University Press.). Cabe salientar que a negociação para o acesso a gêneros textuais específicos é, para Kerexu, a “maior dificuldade” atravessada na empreitada de diferenciação da escola guarani, isto é, na luta para que, na escola guarani, seja possível acolher e reproduzir práticas da educação tradicional indígena, tais como a participação em cerimônias e rituais, atividades de ensino-aprendizagem no rio ou no mato, preparação de alimentos, participação em mutirões, mobilizações políticas, etc.:

Qual foi a nossa maior dificuldade? Eu também trabalhei lá, no projeto político pedagógico [da aldeia] de Biguaçu, e aqui no Morro dos Cavalos. [...] Quando - eu lembro, que nunca saiu da minha cabeça - foi aonde parece que deu um estalo pra mim entender o que que é a Secretaria de Educação do sistema de educação - quando, na época, o [cacique] Hyral pegou e a Secretaria veio e cobrou de nós por que que a gente tinha dia, quando tinha cerimônia, lá na Casa de Reza, a gente ia pra cerimônia e no outro dia ninguém ia pra escola porque a gente amanhecia na Casa de Reza. Depois, no outro dia, ninguém ia pra escola, os professores, os alunos, e isso a gente tava o tempo todo falando na escola. Quando foi um dia a Secretaria de Educação chegou lá em Biguaçu, não tinha ninguém lá na escola, tava todo mundo dormindo. A gente tava dormindo, a gente tinha amanhecido na cerimônia. E aí a Secretaria veio pra cima do Hyral e falou “é isso, isso”.

Kerexu, que já havia se envolvido diretamente em dois processos de elaboração de PPPs, exemplifica o modo como a instituição educacional deslegitimou, repreendeu e buscou fazer valer sua autoridade (“a Secretaria veio e cobrou de nós”, “a Secretaria veio pra cima [...] e falou ‘é isso, isso’”) em relação a práticas e espaços que a comunidade privilegia enquanto práticas e espaços educacionais (“a gente tava o tempo todo falando na escola”, “a gente ia pra cerimônia e no outro dia ninguém ia pra escola porque a gente amanhecia na Casa de Reza”) e que podem ser efetivamente consideradas escolares de acordo com o arcabouço jurídico que fundamenta a educação escolar indígena diferenciada. Não podemos deixar de chamar a atenção para o “estalo” que levou Kerexu a entender que talvez tais órgãos governamentais tenham naturezas e funções diferentes das que é possível esperar inicialmente: poder-se-ia esperar talvez que órgãos como esses teriam como principal serventia o auxílio às escolas, e não atravancar ou obstaculizar suas práticas pedagógicas socioculturalmente referenciadas reconhecidas na lei enquanto direito escolar.

Acontece que agências e conselhos governamentais de educação favorecem a limitação das possibilidades de ação através do estabelecimento de procedimentos de controle de formas e discursos. Sirva como exemplo para nossa discussão o Art. 4 da Resolução Nº 3 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, que fixou, em 14 de dezembro de 1999, dentre as diretrizes nacionais para o funcionamento das escolas indígenas, a seguinte exigência:

as escolas indígenas, respeitados os preceitos constitucionais e legais que fundamentam a sua instituição e normas específicas de funcionamento, editadas pela União e pelos Estados, desenvolverão suas atividades de acordo com o proposto nos respectivos projetos pedagógicos e regimentos escolares. (MAGALHÃES, 2005MAGALHÃES, E. D. (org.). (2005). Legislação Indigenista Brasileira e normas correlatas. Brasília: FUNAI/CGDOC., p. 486

A exigência de textos onde estejam propostas as atividades escolares em gêneros textuais específicos como “projetos pedagógicos” ou “regimentos” não é inócua: gêneros da esfera institucional da gestão da educação formal (e, portanto, do Estado) refletirão necessariamente as “condições específicas e as finalidades” dessa esfera nos seus temas, estilos e estruturas (BAKHTIN, 1997, p. 279). Isso acarreta que os discursos possíveis dentro dessas formas estarão antes à serviço das finalidades da esfera governamental (e do Estado, em última análise) do que a serviço das finalidades da esfera educacional das próprias comunidades (apenas gêneros próprios da esfera educacional das comunidades poderiam servir, em primeiro lugar, às finalidades da mesma).

Embora nem sempre conhecedores/as das especificidades epistemológicas e culturais das populações indígenas com que trabalham, os/as técnicos/as e gestores/as de gerências e secretarias de educação são bem conhecedores/as dos procedimentos de controle do discurso articulados em instâncias superiores (como as câmaras e conselhos aqui citados), necessários para limitar a ação dos indígenas dentro de suas escolas:

E aí o [cacique] Hyral falou “não, mas na lei tal fala que a gente tem direito, lá no artigo tal, tal”. [Ao que a técnica da Secretaria respondeu:] “Vocês têm o direito de vocês, só que sistematizem, coloque no papel, coloque no papel dizendo que a escola quer que isso aconteça e isso faz parte da escola”.

A Secretaria de Educação colocou como um obstáculo a ser superado para a efetivação de direitos, conforme descreve Kerexu, a não sistematização pelos grupos indígenas das suas práticas socioculturais e religiosas. Essa sistematização consistiria em escrever a respeito dessas práticas em um suporte específico (“coloque no papel”), embora “papel” possa ser entendido também, metonimicamente, como uma referência ao modo escrito como um todo, independentemente do suporte. Além disso, essa sistematização, fundamentada no privilégio grafocêntrico a que nos referimos páginas atrás, pareceria garantir poder de coerção aos agentes envolvidos na prática; como se, simultaneamente, fosse a não enunciação através do modo escrito o único empecilho para a materialização do direito. De fato, na visão de Kerexu, conforme ela declarou, dando seguimento ao seu discurso:

A partir do momento que colocou no papel, e tá lá no projeto político-pedagógico, e alguém da Secretaria chegar aqui e me cobrar, eu vou dizer assim: “tá aqui, ó, eu escrevi aqui no papel e a minha escola tá acontecendo desse jeito. Você não questionou, agora tá aqui, então não tem como questionar” [...] Você sabe que você tem esse direito, que Santa Catarina tem um sistema aberto, mas não tem um papel que tá lá dizendo pra ele que a tua escola é assim. E aí isso a gente tem o dever, e o Estado também tem a obrigação, de tar promovendo pra que um dia a gente pare as escolas indígenas e faça o nosso currículo de escola [...] Sistematizar a proposta de cada escola. Que a gente não teve essa capacitação pra isso, pra fazer isso de fato.

Compreendamos aqui, com Bakhtin (2006[1929]), que o texto em análise faz parte de uma corrente dialógica composta por outros textos aos quais dá resposta, direta ou indiretamente, dentre os quais, inclusive, a própria Resolução Nº 3 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, anteriormente citada. É através dessa noção que podemos compreender, com Kerexu, que a metonímia “papel” faz referência a gêneros específicos, como o macro-gênero “Projeto Político Pedagógico”, que costumeiramente inclui, dentro de si, o gênero “currículo escolar”.

Quem acompanha as lutas indígenas nos últimos anos, particularmente no relacionado à educação escolar, sabe que o Projeto Político Pedagógico (ou simplesmente projeto pedagógico), PPP, tem se constituído como gênero textual predileto exigido pelas Secretaria de Educação e suas ramificações como chave para que a educação escolar indígena de fato possa acontecer nos moldes da lei. Isto é, na visão dessas agências, se em algumas escolas há um hiato entre as expectativas colocadas nelas e como a educação escolar realmente acontece nas mesmas, isso ocorre porque, para além do que a legislação específica estabelece como diferenciado na educação escolar indígena, é necessário ainda que esse diferenciado conste num texto, num gênero específico. Assim, o que pode parecer um simples gênero, ou um simples texto, acaba se constituindo, no âmbito da educação escolar indígena, particularmente em Santa Catarina, como uma frente de batalha ligada ao letramento e às regras e exigências complexas e pesadas que polícias discursivas buscam impor para conjurar os poderes e perigos dos discursos em relação à educação escolar que os/as indígenas desejam. Os procedimentos do controle do discurso, neste caso, fazem com que apenas a enunciação em gêneros específicos garanta a eficácia das palavras dos/as professores/as e lideranças indígenas, seus efeitos sobre seus destinatários/as e seu valor de coerção (“tá aqui, ó, eu escrevi [...] agora tá aqui, então não tem como questionar”).

Contudo, precisamos ressaltar que nosso argumento principal neste trabalho não é que um gênero textual específico seja uma frente de batalha e que, vencida tal batalha, os/as professores/as e lideranças indígenas terão realmente reconhecidos seus direitos educacionais constitucionais. O que argumentamos é que gêneros textuais podem ser instrumentalizados enquanto procedimentos do controle do discurso que buscam obstaculizar recursivamente a efetivação de certos direitos mais do que estabelecer rigor quanto à adequação a padrões textuais referentes a temas, estruturas e estilos verbais específicos. Ousamos prever que, uma vez que o texto no gênero solicitado for enunciado, outro gênero virá a ser colocado como necessário para a materialização de práticas educacionais diferenciadas, tais como autorizações de pais, mães ou responsáveis, planos de aula, diários de classe, lista de assinaturas etc. (cf. GUEROLA, 2017GUEROLA, C. M. (2017). “Se nós não fosse guerreiro nós não existia mais aqui”: ensino-aprendizagem de línguas para fortalecimento da luta Guarani, Kaingang e Laklãnõ-Xokleng. Tese (Doutorado em Linguística) - Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. ).

Muitas lideranças indígenas como Kerexu observam que o que está em jogo não é a produção de textos em gêneros específicos e sim uma incompatibilidade histórica de projetos socioculturais, educacionais e econômicos entre indígenas e grupos de poder capitalistas. Elas reconhecem que padrões de adequação referentes a temas, estilos e estruturas de gêneros textuais respondem a ideologias linguísticas e entendem, consequentemente, que é a própria instituição que tem que fornecer a “capacitação” ideológica para que as enunciações na esfera possam ser, de fato, coercitivas, e não possam ser rejeitadas pela própria polícia discursiva que as demanda (“o Estado também tem a obrigação de tar promovendo pra que um dia a gente pare as escolas indígenas e faça o nosso currículo de escola”). Segundo Kerexu, a situação de rejeição de textos por parte da polícia discursiva é a que mais teria acontecido:

Outra coisa que a gente teve dificuldade na época: a gente colocou no papel, a gente fez montoeiras de papel colocando tudo. Mas aí o que aconteceu? A Secretaria de Educação, quando a gente chegava com esse papel lá dentro da Secretaria, entregava pra Secretaria como se fosse um relatório, colocando tudo que a escola quer, o que a escola não quer, o que a escola faz, o que a escola não faz, qual a dificuldade, colocando tudo isso, mas em forma de relatório. Aí o que que a Secretaria faz pra eles? Não é oficializado, não é um documento tipo oficial, não é no modelo de projeto. Ele tá escrito ali. Então, pra ele não vale isso. Ele só pega como mais um papel, tal, lê, acha bonito, coloca ali, mas não tá validado, porque é... simples papel. O que aconteceu? Quando a gente, de novo, brigava, “não, a gente já escreveu, a gente já mandou, a gente já fez isso daí”. Mas sempre chegava lá e, de repente, ele falava: “tá lá, a gente mandou o papel”, e a Secretaria falava: “não, não achei”, já tinham perdido o papel! Mas era papel, simples papel escrito com tudo isso.

Esse trecho da narrativa de Kerexu mostra como, na visão das lideranças, o que está em jogo não são apenas modos de enunciação (“Ele tá escrito ali. Então, pra ele não vale isso”) ou suportes (“era papel, simples papel escrito com tudo isso”), mas também gêneros ou “modelos” textuais (“Não é oficializado, não é um documento tipo oficial, não é no modelo de projeto”). Contudo, mesmo quando observadas as exigências referentes a suporte, modo e gênero, por parte das lideranças, a rejeição dos textos, por parte da polícia discursiva, pode ocorrer também com base em alegações aleatórias, alheias a padrões, tais como “não achar” ou “ter perdido o papel”, o que pode revelar a natureza ficcional desses padrões.

Compreendendo, em termos próprios, o procedimento de controle do discurso implementado pela autoridade institucional, Kerexu questiona “a lógica vigente de legitimação pela norma” (SIGNORINI, 2006SIGNORINI, I. (2006). Questão da língua legítima na sociedade democrática: um desafio para a Linguística Aplicada contemporânea. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola. p. 169-189., p. 171), sendo a compreensão crítica da lógica institucional o que possibilitou à liderança guarani encontrar meios para subvertê-la, num jogo discursivo do “faz de conta” que desarma essa lógica e a coloca a serviço dos próprios interesses:

O que a gente fez? A gente voltou pra escola de novo, fizemo uma capa, formal, como um projeto, como se a gente fosse apresentar um TCC, que tem lá: margem, sabe? Essa burocracia que existe hoje dentro do mundo juruá7 7 Palavra guarani-mbya para branco, não indígena. . Fizemo uma capa bem bonita, fizemo lá uma folha de rosto, tudo, coloquemos um sumário, tudo ali dentro do projeto político-pedagógico, e mandamo pra Secretaria. Quando a Secretaria pegou esse papel falou assim: “Gente! A escola do Morro dos Cavalos, a escola de Biguaçu, conseguiram fazer um projeto político pedagógico!” A gente não mudou nada! A gente só fez uma capa pra esse papel aí. E como mudou as coisas! Eles nem olham que que tá escrito lá dentro. A capa já diz tudo: é um projeto político-pedagógico da escola.

De forma crítica e estratégica, a eficácia, os efeitos e o poder de coerção do texto foram, por fim, atingidos, na versão de Kerexu, pelo cumprimento aparente e superficial das regras e exigências de polícias discursivas (“burocracia do mundo juruá”), principalmente no que diz respeito à formatação do texto (“margem”) e elementos pré-textuais (“capa”, “folha de rosto”, “sumário”), elementos da estrutura composicional do gênero projeto 8 8 Nos cursos de graduação no Brasil, particularmente nos bacharelados, mas também nas licenciaturas, existe a práxis de que monografias ou trabalhos de conclusão de curso (TCCs) sejam precedidos pela elaboração de projetos de pesquisa que pautarão seu desenvolvimento, momento em que os/as estudantes aprendem as “burocracias” dos mesmos. . O exemplo mostra a instrumentalização que pode ser feita, em esferas institucionais, de suportes (“papel”) e gêneros (“modelo de projeto”) específicos, assim como a compreensão crítica e estratégica dessa instrumentalização por parte da liderança: perspicazmente, o PPP foi produzido com sucesso pela comunidade indígena através de uma adequação ficcional (“A gente não mudou nada”) a supostos padrões de adequação ou “exigências complexas e pesadas”, nas palavras de Foucault (1970FOUCAULT, M. (1970) A ordem do discurso. [s.l.]: Sabotagem, 2004., p. 13-14), cuja observação, por si só, pareceu garantir a eficácia suposta das palavras (“Eles nem olham que que tá escrito lá dentro”).

A eficácia é atingida através de uma adequação ficcional subversiva porque o julgamento da polícia discursiva não ocorre com base em critérios linguístico-discursivos estritos e sim com base nas “posições e identidades dos falantes e de sua língua numa dada ordem sociocultural e política” (SIGNORINI, 2006SIGNORINI, I. (2006). Questão da língua legítima na sociedade democrática: um desafio para a Linguística Aplicada contemporânea. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola. p. 169-189., p. 170). Nessa ordem sociolinguística em pauta, o poder de coerção é conquistado discursivamente pelos/as guarani através da subversão ficcional dessa ordem. Ou seja, o grupo indígena procede, efetivamente, interpretando “a comunicação em sentido amplo”, nos termos de Signorini (2006SIGNORINI, I. (2006). Questão da língua legítima na sociedade democrática: um desafio para a Linguística Aplicada contemporânea. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola. p. 169-189., p. 170), quem recorre a Rancière (1995RANCIÈRE, J. (1995). O Desentendimento. São Paulo: Editora 34., p. 37) para afirmar que

há ordem na sociedade porque uns mandam e outros obedecem. Mas para obedecer uma ordem, pelo menos duas coisas são necessárias: é preciso compreender a ordem e é preciso compreender que é preciso obedecê-la. E para que isso ocorra, é necessário ao que obedece já ser um igual ao que lhe dá a ordem. É essa igualdade que corrói toda ordem natural.

Para além de serem discutíveis, no caso em tela, as noções de “igualdade” e “ordem natural” com que é construída essa afirmação, a obediência, com base no dado aqui em análise, pode ser compreendida não como corrosão e sim, como insubmissão, estratégia e criatividade. A distinção entre subversão e obediência é muito mais de ordem ideológica do que da ordem dos fatos. Estaria Kerexu obedecendo ideologias linguísticas institucionais, compreendendo-as e compreendendo a necessidade de sua obediência e, portanto, se tornando “igual” àqueles/as que lhe deram a “ordem” de escrever um PPP? Ou ela está, pelo contrário, fazendo cultura, através de atos de “criação, recriação e decisão”, dinamizando seu mundo, humanizando-o e dominando-o (FREIRE, 1967FREIRE, P. (1967). Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 43)? Com base nessa última alternativa, não está Kerexu, subversivamente, fazendo valer os propósitos educacionais da comunidade à qual representa, em detrimento dos propósitos do projeto hegemônico capitalista? Não está ela, através da linguagem e de uma prática de letramento de reexistência (SOUZA, 2011), praticando a subversão através da instrumentalização crítica e parcial da obediência a certos padrões e exigências? Não são esses padrões referentes a suportes, modos e gêneros textuais tão ficcionais quanto a possível obediência a eles?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme lemos nas palavras de João Maria dos Santos e Kerexu Yxapyry, a “caneta” e o “papel”, e, consequentemente, a linguagem, particularmente através do modo escrito e seus gêneros, são “armas” através das quais grupos de poder capitalistas “cortam” e “tiram os direitos indígenas”, como o direito à educação escolar diferenciada. Usar essas armas já é, de alguma maneira, submeter-se a elas. Do mesmo modo, usá-las para fins contrários aos inicialmente postulados para elas (“pra se preparar pra competir com eles”) é também subvertê-las. Haveria uma fronteira tangível, no caso que nos ocupa, entre a subversão e a obediência? Estaríamos perante um caso de obediência subversiva? Perante um modo de insubmissão, resistência e (re)existência?

A chave para a obediência subversiva apontada pelo texto de Kerexu foi observar crítica e estrategicamente elementos superficiais (associados à formatação, principalmente) do “projeto”. Esse gênero textual e seus padrões foram mobilizados pela polícia discursiva institucional como procedimento de controle do discurso com base em ideologias linguísticas, no intuito de afetar dinâmicas interacionais e de mobilidade da comunidade.

Contudo, os Guarani sempre compreenderam - embora essa compreensão tenha sido acelerada e aguçada a partir da segunda metade do século XX, quando o desmatamento e a ocupação da totalidade do seu território os encapsulou em pequenos assentamentos, muitos deles à margem das rodovias (GALLOIS, 2000GALLOIS, D. T. (2000). Sociedades indígenas em novo perfil: alguns desafios. Travessia - Revista do Imigrante, n. 36, p. 5-10.; DARELLA, 2004DARELLA, M. D. P. (2004). Ore roipota yvy porã “Nós queremos terra boa”: Territorialização guarani no litoral de Santa Catarina - Brasil. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.) - que podem revidar os ataques de instituições capitalistas se apropriando de alguns dos seus recursos de maneira crítica e estratégica. Cientes dos processos de estratificação e categorização que organizam e legitimam a desigualdade no capitalismo através da linguagem (HELLER, 2011HELLER, M. (2011).Paths to post-nationalism: A critical ethnography of language and identity. Oxford: Oxford University Press.), das ideologias linguísticas que hierarquizam a oralidade como modalidade inferior à escrita e seus gêneros, sem mudar o conteúdo do seu projeto pedagógico, os Guarani deram a volta por cima para não serem impossibilitados de oferecer o modelo alternativo de escola que querem para si mesmas/os. Nas palavras de Kerexu:

Agora, quando a gente vem trabalhar aqui, que a Secretaria chega e cobra da gente, a gente fala “tá no projeto político pedagógico” e aí eles não podem mais reclamar, porque eles aceitaram o nosso projeto político pedagógico. Então são várias coisinhas que acontecem lá dentro dessa Secretaria que a gente tem que tá também aprendendo a manobrar. Que nem eu falei: o Estado tem essa obrigação da gente pedir - a gente liderança, nós professores, todo o mundo: a gente tem que pegar, fazer um documento, mandar e exigir que a gente tenha esse tempo de sentar e montar a proposta de cada escola [...] da gente parar e colocar dentro, fazer uma capa bonita, chegar lá, entregar pra Secretaria... a Secretaria vai tar aceitando.

A subversão de recursos e padrões textuais, em prol das próprias lutas e interesses, perante polícias discursivas de instituições capitalistas que instrumentalizam a linguagem e gêneros textuais como procedimentos de estratificação e categorização, organização e legitimação da desigualdade, possibilita textos eficazes e coercitivos (“tá no projeto político pedagógico e aí eles não podem mais reclamar”). Observar e “obedecer” parcialmente as regras, de maneira crítica, criativa e subversiva (“A gente não mudou nada! A gente só fez uma capa pra esse papel aí. E como mudou as coisas!”) pode, como buscamos aqui exemplificar, garantir vitórias em lutas metadiscursivas através de práticas de letramento de reexistência.

Nesse sentido, vale a pena destacar que, com base nas reivindicações das lideranças indígenas de receberem orientações sobre como escrever os PPPs - muitas delas colocadas nos encontros da ASIE-SC -, a partir de 2016 e 2017, a SED começou a construir e divulgar orientações específicas para a elaboração desses documentos. Inclusive, por motivo da escrita deste texto, em novembro de 2020, ao fazermos a pesquisa com a palavra-chave PPP no site oficial da SED, surpreendeu-nos ver que, entre os primeiros 12 resultados de uma lista de 55, 10 fossem PPPs de escolas indígenas ou documentos com orientações sobre como construi-los. Textos como “Pensando o projeto político pedagógico da escola indígena”, “Sugestão de estrutura do projeto político pedagógico para a educação escolar indígena” ou “Projeto político-pedagógico - educação escolar indígena de Santa Catarina” foram disponibilizados, de acordo com o site oficial da SED, após novembro de 2016. Ou seja, foram colocados à disposição após a enunciação do dado em análise, que ocorrera quinze meses antes, e do desenvolvimento dos primeiros meses de trabalho da ASIE-SC da mão de professores/lideranças guarani, kaingang e laklãnõ-xokleng como Kerexu. A disponibilização de tais orientações deve-se em parte, sem sombra de dúvida, às discussões e reivindicações levantadas pelas lideranças indígenas nesse âmbito de formação de professores e à sua obediência subversiva.

Procuramos, neste estudo, mostrar como lideranças indígenas, particularmente guarani, resistentes em relação ao lugar periférico que lhes é imposto no sistema capitalista, subvertem gêneros textuais e práticas de letramento ao lidarem com processos de categorização e de exclusão em esferas institucionais, contestando, através da linguagem, uma ordem que é estabelecida, também, através da linguagem.

Alinhados com Heller (2011HELLER, M. (2011).Paths to post-nationalism: A critical ethnography of language and identity. Oxford: Oxford University Press.), procuramos discutir “as consequências desses processos, quem controla o acesso a recursos, quem lhes atribui valores e quem ganha com sua valorização” (HELLER, 2011HELLER, M. (2011).Paths to post-nationalism: A critical ethnography of language and identity. Oxford: Oxford University Press., p. 39). Focamos em uma situação que, na nossa análise e interpretação, revela como uma liderança indígena faz cultura e letramento de reexistência através da observação ficcional de padrões textuais que são também ficcionais.

É por isso que podemos encerrar nosso texto reafirmando nossa contribuição para este dossiê: nas práticas linguísticas dos processos de estratificação e categorização, organização e legitimação da desigualdade no capitalismo, a linguagem e a obediência podem ser subversivas; a subversão pode ser feita através da linguagem e da obediência estratégica. Em lutas de natureza político-ideológica, os padrões de adequação linguística que são impostos por polícias discursivas são tão ficcionais quanto a sua possível obediência.

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    Agradecemos, aos editores deste dossiê pelas suas contribuições em modo de ideias, sugestões, questionamentos, reflexões e comentários feitos em versões preliminares deste texto. Agradecemos a Kerexu Yxapyry pela sua liderança, pela sua caminhada, por compartilhar com seus parentes indígenas e nós interlocutores não indígenas seu conhecimento e suas ideias tão refletidas e sinceras.
  • 2
    Para se atualizar quanto às denúncias das violações mais recentes, visite o site da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB (https://apiboficial.org) ou confira os últimos relatórios de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, elaborados anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário - CIMI (https://cimi.org.br/observatorio-da-violencia/edicoes-anteriores/). No relatório de 2018, apontava-se que “a maior violência contra os povos indígenas é a destruição de seus territórios” (cf. https://cimi.org.br/2019/09/a-maior-violencia-contra-os-povos-indigenas-e-a-apropriacao-e-destruicao-de-seus-territorios-aponta-relatorio-do-cimi/). No contexto pandêmico da Covid-19, o atual presidente do Brasil já foi alvo de uma queixa-crime direcionada ao Plenário do Supremo Tribunal Federal por crime de genocídio “em razão do veto, em um projeto de lei editado para o combate à pandemia da covid-19, a dispositivo que previa o acesso universal à água potável nos territórios indígenas e nas comunidades quilombolas, tradicionais e de pescadores artesanais” (cf. https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/plenario-do-supremo-vai-julgar-queixa-crime-que-atribui-a-bolsonaro-genocidio-de-indigenas-e-quilombolas-na-pandemia/).
  • 3
    Saiba mais em: https://museu.ufsc.br [Acesso em: 22 abr. 2021]
  • 4
    Saiba mais sobre o programa e as publicações dele derivadas em https://saberesindigenas.ufsc.br [Acesso em: 15 fev. 2021]
  • 5
    Usamos a terminologia da ASIE para nos referirmos às funções dos participantes no programa, marcando em itálico esses termos.
  • 6
    As justificativas para a ausência de gestores/as e técnicos/as foram variadas: os encontros serem em finais de semana, indisponibilidade de diárias e transporte, falta de agenda, chuvas, etc.
  • 7
    Palavra guarani-mbya para branco, não indígena.
  • 8
    Nos cursos de graduação no Brasil, particularmente nos bacharelados, mas também nas licenciaturas, existe a práxis de que monografias ou trabalhos de conclusão de curso (TCCs) sejam precedidos pela elaboração de projetos de pesquisa que pautarão seu desenvolvimento, momento em que os/as estudantes aprendem as “burocracias” dos mesmos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2021
  • Aceito
    14 Jun 2021
  • Publicado
    18 Jun 2021
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