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Modernidade, identidade e suicídio: o "judeu" Stefan Zweig e o "mulato" Eduardo de Oliveira e Oliveira

Resumos

O objetivo deste ensaio é trazer ao debate historiográfico o desafio de se enfrentar o tema do racismo e dos racialismos constitutivos da modernidade através do imaginário racial brasileiro, desde os anos 1930. Para este fim, sugiro que a apreensão da ambivalência identitária no Brasil vem se constituindo em importante alternativa para se compreender as especificidades da modernidade brasileira em face dos imperativos identitários da modernidade européia e norte-americana. Pretende-se mostrar, através de dois personagens suicidas, o "judeu" Stefan Zweig e o "mulato" Eduardo de Oliveira e Oliveira, os paradoxos da construção e da representação de identidades étnico-raciais na modernidade brasileira.


The aim of this essay is to bring into the historiographical debate the issues of ambivalence and racialism which are a constitutive part of Brazil's racial imaginary since the 1930's. Bearing this in mind I propose that Brazilian identitary ambivalence is an alternative tool to face European and North-American models of modern identity. Nevertheless, the Brazilian racial ambivalence finds its limits when confronted with the dilemmas of integration of black Brazilians after their emancipation. We aim to show it, through a comparative analysus of two historical figures, the "jew" Stefan Zweig and the "mulato" Eduardo de Oliveira e Oliveira, as examples of the paradoxal condition of Brazilian racial identity.


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  • 1
    Zygmunt Bauman trata densamente esses dilemas identitários da modernidade européia. Ver Bauman, Zygmunt, Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
  • 2
    O impacto da modernidade para os judeus europeus e para a chamada diáspora negra não se constitui ainda em objeto de diálogos sistemáticos entre estudiosos desses dois grupos. Paul Gilroy tem chamado a atenção para a importância crucial desse diálogo, especialmente para uma melhor compreensão da dimensão trágica da modernidade, tanto para judeus quanto para negros. Gilroy, Paul. The black Atlantic: modernity e double consciousness. Cambridge: Harvard University Press, 1993. p. 47. Esse diálogo nos Estados Unidos parece mais evidente. Neste caso, ver Lerner, Michael. West, Cornel. jews and blacks: a dialogue on race, religion and culture in America. New York: Plume, 1996; Salzman, Jack, West, Cornel (Eds). Struggles in the promised land: toward a history of black-jewish relations in the United States. Oxford: Oxford University Press, 1997.
  • 3
    Os anos trinta são considerados, sobretudo a partir da obra de Gilberto Freyre, um divisor de águas entre uma versão pessimista sobre as possibilidades civilizatórias da nação brasileira, cujo estoque racial, ademais miscigenado, a tornava inviável e estéril, e uma outra, que, partindo justamente da constatação da miscigenação racial, vislumbraria de modo otimista um processo civilizatório autêntico e alternativo para a nação brasileira. Ver Skidmore, Thomas. Black into white: race and nationality in Brazilian thought. London: Duke University Press, 1993; Araújo, Ricardo Benzaquen. Guerra e paz, Casa grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994; Schwartz, Lilia. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
  • 4
    Cf. Gilsoy, Paul. Op. cit. Gilroy, Paul. Race ends here. Ethnic and Racial Studies, Special Issue, v. 21, n.1, pp. 838-847, 1998; Appiah, Kwane A. Na casa de meu pai: a África na Filosofia da Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997; West, Cornell. Race matters. New York: Vintage Books, 1993; Birnbaum, Pierre and Katznelson, Ira (Eds.). Paths of emancipation: Jews, states, and citizenship. Princeton: Princeton University Press, 1995; Anderson, Benedict. Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism. Revised edition. London: Verso, [1983], 1994. Galchinsky, M. e Heschel, S. Insider/outsider: American Jews and multiculturalism. Berkeley: University of California Press, 1998. As contribuições das Ciências Sociais para o tratamento do fenômeno racial como constitutivo da modernidade têm sido mais freqüentes. A pesquisa histórica, de um modo geral, não tem promovido debates desvinculados do mainstream dos estudos sobre escravidão. Quanto aos estudos históricos sobre racismo nos EUA, ver Holt, Thomas. Explaining racism in American History. In Molho, Anthony, Wood, Gordon (Eds.). Imagined histories. Princeton: Princeton University Press, 1998, pp. 107-119.
  • 5
    Embora o suicídio de Stefan Zweig e de sua mulher, Elisabeth Charlotte Altmann Zweig,sugira uma espécie de pacto de morte do casal, nenhuma linha ou carta foi deixada por ela. Na declaração deixada por Zweig, nenhuma referência ao suicídio da mulher. Como chama a atenção Spitzer em seu Lives in between, ela permaneceu até na morte uma "mulher silenciosa". Cf. Spitzer, Leo. Lives in between: assimilation and marginality in Austria, Brazil, West Africa 1780-1945. Cambridge: Cambridge University Press, 1989 e Dines, Alberto. Morte no paraíso: a tragédia de Stefan Zweig. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. Há um mal-estar relativo ao significado moral do suicídio de judeus, vítimas do nazismo. Thomas Mann teria dito sobre o suicídio de Stefan Zweig, "Could he concede the archenemy such a triumph?". Hannah Arendt considerava o suicidio dos refugiados do nazismo como "abnormally asocial and unconcerned about general events", exemplos de insensível "kind of selfishness". Como se considerasse esse tipo de suicídio imoral, ela escreve em We refugee": "We are the first non-religious Jews persecuted and we are the first one who, not only in extremis, answer with suicide". Hannah Arendt. We Refugees. In __________. The Jew as pariah. New York: Grove Press, 1944, pp. 58-60.
  • 6
    Conta-se que esse livro teria sido sugerido por Getúlio Vargas, numa espécie de trocapela permanência do escritor no Brasil. Seus biógrafos, contudo, negam essa versão. Ver Dines, Alberto. Op. cit.
  • 7
    Zweig, Stefan. Brasil: país do Futuro. Rio de Janeiro: Edit. Guanabara, 1941, pp. 231232.
  • 8
    Do círculo de amigos de Stefan Zweig que viviam na Europa central e escolheram o suicídiocomo "solução final" para a perseguição nazista da qual eram vítimas preferenciais, temos: Egon Friedell, Otto Pick, Ernst Weiss entre outros. Os números relativos a suicídios de judeus na Europa antes e durante a Grande Guerra são bastante reveladores. Segundo Lucy Dawidowicz, "Among some Jews who had stacked their whole existence on identity with Germany, despair led to suicide. Between 1932 and 1934, nearly 350 Jews commited suicide, a rate 50 percent higher than in the rest of the population." Depois da famosa Kristallnacht em 1938, conta-nos Hannah Arendt, "suicides accounted for more than half the Jewish burials", cf. Dawidowicz, Lucy. The war against the Jews, 1933-1945. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1975. pp. 232, 264 e 292 e Arendt, Hannah. The Jews as pariah. New York: Grove Press, 1978. pp. 58-59 apud Spitzer, Leo. Lives in between. Op. cit., p. 236.
  • 9
    Apud Spitzer, Leo. Vidas de entremeio. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2001, p.195.
  • 10
    Peter Fry relatou-me a história trágica desse professor de sociologia da Universidade de São Carlos e estudante de Otávio Ianni na USP, a quem ele havia conhecido na década de 70. Em nossas conversas, Peter Fry lembraria o crescente afastamento dos amigos de Eduardo de Oliveira (seu verdadeiro nome) diante de sua obsessão pela má consciência dos que não assumiam a "raça" como identidade.
  • 11
    Baseio-me em depoimentos de Peter Fry e José de Souza Martins que conheceram mais diretamente Eduardo de Oliveira e Oliveira. Saliento, todavia, que a referência à Eduardo de Oliveira e Oliveira não tem pretensões de resgate biográfico. A referência a seu suicídio é de ordem simbólica. Interpreto-o, livremente, como exemplo trágico em mundo de obsessão racial. Não me ocupo em desvendar as "reais" razões de seu suicídio. O desconforto com a mulatice que busco explorar aqui em dimensão subjetiva me é sugerido por seu texto "O mulato: um obstáculo epistemológico". Argumento, jan., 1974.
  • 12
    Um modesto acervo que reúne cartas, alguns escritos acadêmicos, peças de teatro e o bjetos está na Universidade Federal de São Carlos.
  • 13
    Depoimento de José de Souza Martins, amigo e contemporâneo na USP de Eduardo de Oliveira e Oliveira.
  • 14
    Eduardo de Oliveira e Oliveira. O mulato: um obstáculo epistemológico. Argumento, jan. 1974.
  • 15
    Degler, Carl. Neither black, nor white: slave and race relations in Brazil and the United State. Madison: The University of Wisconsin Press, 1971.
  • 16
    Franz Fanon (1925-1961), psicanalista e filósofo social, nasceu na Martinica, estudouna França e trabalhou em vários países na África. Fortemente influenciado por J. P. Sartre e Aimé Césaire, Fanon é mais conhecido por seus escritos sobre racismo e colonialismo. Seus trabalhos mais conhecidos são Peau noire, masques blancs, de 1952, e Les damnés de la terre, de 1961.
  • 17
    Oliveira, Eduardo de Oliveira e. O mulato: um obstáculo epistemológico. Argumento, jan. de 1974, p. 73.
  • 18
    Bauman, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
  • 19
    __________. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 88.
  • 20
    Oliveira, Eduardo de Oliveira e. Op. cit.
  • 21
    Taylor, Charles. Multiculturalism: examining the politics of recognition. New Jersey: Princeton University Press, 1994; Gilroy, Paul. The black Atlantic: modernity and double consciousness. Cambridge: MA, Harvard University Press, 1993.
  • 22
    Gilroy, Paul Race ends here. Ethnic and Racial Studies, Special Issue, v. 21, n.1, pp. 838847, 1998.
  • 23
    Costa, Sérgio. A construção sociológica da raça no Brasil. 2001 (mimeo).
  • 24
    Sérgio Costa resume apropriadamente esse ponto: "Parece evidente que o desejo de sobrepor a força do progresso sobre o passado opressivo e a construção de uma identidade voltada para o futuro próprios ao iluminismo francês e não a ênfase na ancestralidade comum dos românticos alemães que marcam a reconfiguração da nação brasileira a partir dos anos 30". Idem, p. 7.
  • 25
    Idem.
  • 26
    Carta a Friderike Zweig de 26 de agosto de 1936. In Zweig, Stefan and Friderik. Their correspondence,1912-1942. Nova York, 1954. p. 290 apud Spitzer, Leo. Op. cit., p.194.
  • 27
    O programa de pesquisas sobre relações raciais no Brasil, patrocinado pela Unesco nos anos 50, pode ser considerado um marco de desconstrução de um Brasil ainda auto-indulgente com sua dinâmica de relações raciais. Sobre esse tema, ver Maio, Marcos Chor. O Projeto Unesco e a Agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 14, n. 41, out. 1999.
  • 28
    A obra de Gilberto Freyre, Ordem e Progresso (1959), escrita no final da década de 50, é, segundo o autor, parte da trilogia que começa com Casa grande & senzala (1933) e continua em Sobrados & mocambos(1936). O trabalho que ele não pôde completar, e que seria também incluído é Covas rasas & jazigos.
  • 29
    Freyre, Gilberto. Ordem e progresso. Rio de Janeiro: José Olympio. 1959, p. xxi.
  • 30
    Idem. p. xxx-xxxi.
  • 31
    O capítulo "A República de 89 e o progresso da miscigenação no Brasil", de Ordem e progresso, é o que trata mais diretamente essa questão.
  • 32
    Freyre, Gilberto. Op. cit., p. xxiv.
  • 33
    Araújo, Ricardo Benzaquen. Op. cit., p. 30.
  • 34
    Oracy Nogueira (1917-1996), antropólogo, aluno de Donald Pierson na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo e doutor pela Universidade de Chicago. Participou da pesquisa da Unesco no início dos anos 50. Seu acervo encontra-se hoje no IFCS/UFRJ.
  • 35
    Nogueira, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. Anhembi, 1955. p. 195.
  • 36
    Idem, p. 284.
  • 37
    Idem, p. 285.
  • 38
    Idem, p. 285.
  • 39
    Idem, p. 298.
  • 40
    Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed. São Paulo: Ática, 1978, p. 408.
  • 41
    Embora Discriminação e desigualdades raciais, de Carlos Hasenbalg, represente um momento de inflexão na historiografia dos estudos raciais por sua discordância de Florestan Fernandes quanto ao preconecito racial como resquício da escravidão, em outra perspectiva eles partilham a mesma aversão ao que consideram o culturalismo freyreano. Ver Hasenbalg, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
  • 42
    Fernandes, Florestan. Op. cit., p. 7.
  • 43
    Ver Hasenbalg, Carlos, Silva, Nelson do Valle. Estrutura social, mobilidade e raça. São Paulo: Vértice/Iuperj, 1988.
  • 44
    Turra, Cleusa, Venturi, Gustavo. Racismo cordial. Folha de S. Paulo/Datafolha. São Paulo: Ática, 1995.
  • 45
    Cardoso, Fernando Henrique. Construindo a democracia racial. Brasília: Presidência da República, 1998.
  • 46
    Turra, Cleusa, Venturi, Gustavo. Op. cit., p. 13. As 12 perguntas elaboradas eram: "Eu vou dizer algumas coisas que as pessoas costu-mam falar e gostaria que você dissesse se concorda ou discorda de cada uma, totalmente ou em parte: 1) "negro bom é negro de alma branca"; 2) "uma coisa boa do povo brasileiro é a mistura de raças"; 3) "as únicas coisas que negros sabem fazer bem são músicas e esportes"; 4) "toda raça tem gente boa e gente ruim, isso nao depende da cor da pele; 5) "negro, quando não faz besteira na entrada, faz na saída"; 6) "se pudessem comer bem e estudar, os negros teriam sucesso em qualquer profissão"; 7) "se Deus fez raças diferentes, é para que elas não se misturem"; 8) "alguns estudos recentes afirmam que, por natureza, negros e brancos são diferentes em relação ao nível de inteligência. Na sua opinião existem diferenças de inteligência entre brancos e negros? Se sim de modo geral, quem são mais inteligentes os brancos ou negros?" 9) "você votaria ou já votou alguma vez em um político negro?" 10) "se no seu trabalho você tivesse um chefe negro, você não se importaria; ficaraia contrariado, mas procuraria aceitar; ou não aceitaria e mudaria de trabalho?" 11) "se várias famílias negras fossem morar em sua vizinhança, você não se importaria; ficaria contrariado, mas procuraria aceitar; ou não aceitaria e mudaria de casa?" 12) "e se um filho ou uma filha sua se casasse com uma pessoa negra, você não se importaria; ficaria contrariado, mas procuraria aceitar; ou não aceitaria o casamento?"
  • 48
    Turra, Cleusa, Venturi, Gustavo. Op. cit., p. 17.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2002
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