RESUMO
Respondendo em carta de 20 de agosto de 1597 a Filipe II, Rei da Espanha (I de Portugal), que ordenava a expulsão dos franceses do litoral potiguar, ameaçando, assim, a soberania portuguesa sobre esse território, o capitão-mor da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, um dos principais protagonistas no processo de conquista da Capitania do Rio Grande, atual Estado do Rio Grande do Norte, descreve os procedimentos tomados ou a serem tomados para conquistá-lo. Neste artigo, analisamos a referida carta, colocando-a em seu contexto histórico e cotejando seu conteúdo com o de outras fontes documentais contemporâneas, no intuito de verificar, tanto quanto possível, a partir desse documento raro e ainda pouco explorado, confirmações, contradições, interesses e conflitos referentes ao tema.
Palavras-chave:
Feliciano Coelho; conquista; Rio Grande; potiguaras; História do Brasil Colônia
ABSTRACT
Responding in a letter of August 20, 1597 to Philip II, King of Spain (I of Portugal) who ordered the expulsion of the French from the coast of Rio Grande do Norte, so threatening the Portuguese sovereignty on this territory, the captain-general of Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, one of the main protagonists in the conquering process of the Captaincy of Rio Grande, the present State of Rio Grande do Norte, describes the procedures taken or to be taken to achieve it. In this article, we analyze the referred letter by placing it in its historical context and by comparing its content with that of other contemporary documentary sources, to verify, as much as possible and based on this rare and yet little explored document, confirmations, contradictions, interests and conflicts related to the theme.
Keywords:
Feliciano Coelho; Conquest; Rio Grande; Potiguaras; Colonial Brazilian History
RESUMEN
Respondiendo por carta el 20 de agosto de 1597 a Felipe II, Rey de España (I de Portugal) que ordenaba la expulsión de los franceses del litoral potiguar, amenazando de esta forma, la soberanía del territorio, el Capitán Mayor de Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, uno de los principales protagonistas en el proceso de conquista de la Capitanía de Río Grande, actual Estado do Rio Grande do Norte, describe los procedimientos tomados o a ser tomados para conquistarlo. En este artículo, analizamos la referida carta colocándola en su contexto histórico y cotejando su contenido con el de otras fuentes documentales contemporáneas, con la intención de verificar, tanto como sea posible, a partir de este documento raro y todavía poco explorado, confirmaciones, contradicciones, intereses y conflictos referentes al tema.
Palabras clave:
Feliciano Coelho; conquista; Rio Grande; potiguaras; Historia de Brasil Colonia
Em 20 de agosto de 1597, o capitão-mor da Capitania da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, escreveu ao Rei Filipe II da Espanha, Filipe I de Portugal - uma vez que as duas Coroas estavam agora reunidas sob o mesmo soberano, um espanhol - sobre os preparativos para a conquista do Rio Grande, atual Estado do Rio Grande do Norte. Essa carta, interceptada por ingleses, foi traduzida para o inglês e publicada, entre outras edições, em Carvalho (1890, p. 283-290). Trata-se de um documento raro, até onde sabemos pouco ou ainda não explorado pela historiografia local.
O objetivo deste artigo é analisar a referida carta, por nós traduzida para o português1, considerando, à guisa de introdução, o contexto mais amplo em que ela foi escrita, antes de analisá-la em seu contexto imediato. Para isso, dividimos este artigo em quatro momentos: 1. “Do internacional ao local: a Capitania do Rio Grande em disputa”, que aborda o contexto internacional referente às disputas territoriais da América entre Portugal e França, com foco na Capitania do Rio Grande; 2. “Os antecedentes imediatos da conquista”, que têm como base a carta em si; 3. “A conquista do Rio Grande”, ou o empreendimento militar que levou à conquista da referida capitania; 4. “As consequências imediatas da conquista”, ou os primeiros anos de um território recém-conquistado. À guisa de conclusão, confrontaremos essas questões com a carta de Feliciano Coelho, na busca de confirmações, nuances ou contradições contidas nesta última. Essa confrontação representa um aspecto particular que permite lançar nova luz sobre esse evento que está na base do processo de colonização da Capitania do Rio Grande, hoje, Estado do Rio Grande do Norte.
Do internacional ao local: a Capitania do Rio Grande em disputa
Ao longo do século XVI, os conflitos de interesses em escala internacional envolvendo as terras americanas oficialmente pertencentes a Portugal envolviam principalmente as Coroas portuguesa e francesa. Eles remontam, respectivamente, aos reis Dom Manuel I (1469-1521) e Francisco I (1494-1547), e permanecem durante todo o século XVI e início do XVII, para não nos estendermos a períodos posteriores. Os despachos, documentos e acordos firmados entre os dois soberanos, frequentemente desrespeitados por gente como o poderoso armador Jean Ango2, por exemplo, seriam suficientes para demonstrá-lo. A presença francesa na costa brasileira desde 1504, pelo menos3, suscitou inúmeros confrontos de extrema violência com os súditos portugueses, que geravam, por sua vez, ataques punitivos do adversário, reclamações e pedidos formais e oficiais de indenizações recíprocas4. Um exemplo se encontra nas tentativas diplomáticas de D. João III, rei de Portugal, junto a Francisco I, rei da França, para evitar o corso francês a suas possessões na América e na África. Antônio de Ataíde, embaixador de Portugal em Paris, foi orientado em 1531 a lembrar ao Rei da França
quantos motivos de queixa tinham os súditos do rei de Portugal contra os corsários franceses que, desde o início do século, haviam capturado mais de trezentos navios representando um milhão de cruzados, sem contar o prejuízo causado ao tesouro real (Guénin, 1901, p. 92-93)5.
Essa iniciativa diplomática tinha como objetivo revogar a “carta de corso” ou “de marca”6 concedida ao poderoso armador de Dieppe, Jean Ango. A documentação oficial, trocada entre os dois soberanos na primeira metade do século XVI, testemunha as tentativas diplomáticas para evitar conflitos armados entre as duas nações, inclusive por meio da assinatura de acordos que previam, entre outros, a restituição de perdas e danos causados pelos súditos respectivos. Contudo, isso não impediu a continuação de conflitos entre portugueses e franceses nos mares e em terra.
Entre os muitos nomes que nos chegaram de corsários e piratas franceses que atuaram nas plagas brasileiras7, Jean de Fleury foi o grande responsável pelos ataques a navios portugueses e espanhóis na costa do Brasil e em outras partes, ainda na primeira metade do século XVI (Guénin, 1901, p. 17-41). Sobre ele, diz Eugène Guénin (1901, p. 30):
Mas foi contra os portugueses que as empresas de Jean de Fleury deviam se manifestar com mais intensidade. Compartilhando do ódio de seus compatriotas normandos contra esse povo cruel, que atingiu talvez pessoas que lhe eram mais próximas por bárbaras execuções ao longo do litoral brasileiro, ele o perseguiu por sete anos seus navios em todos os mares e se tornou o terror dos marinheiros desta nação (...); conserva-se na Torre do Tombo, em Portugal, o texto das queixas feitas pelo doutor George Nunes, jurisconsulto, representante do governo de João III, delegado oficial no tribunal das capturas composto de juízes franceses e portugueses reunidos em Bayonne em 1539. Algumas dizem respeito a Jean de Fleury de 1521 a 1527. Elas foram redigidas após uma investigação minuciosa em diversas localidades de Portugal8.
Semelhantemente, Cristóvão Jacques, do lado português, que já havia visitado a costa brasileira em 1503 na expedição de Gonçalo Coelho, empreendeu várias incursões militares oficiais no litoral à mando da Coroa portuguesa, entre 1516 e 1527, com o fim de atacar navios franceses e destruir suas feitorias, construídas especialmente para o comércio do pau-brasil com os nativos.
Philippe Bonnichon estudou o que ele chamou de “contribuições recíprocas” entre a França e o Brasil entre os séculos XVI e XVII. Para nos limitarmos ao século XVI, alguns extratos do seu estudo fornecem uma ideia do crescente interesse francês pelas plagas brasileiras:
O ritmo das navegações francesas ao Brasil cresce ao longo do século XVI. Os franceses partem inicialmente dos portos normandos (…); aos normandos se acrescentam os bretões das regiões do Canal da Mancha, depois alguns Provençaux [da área mediterrânea do sudeste da França] (...). No último terço do século XVI, percebe-se uma participação crescente nesse tráfico de gente de Poitou e de La Rochelle (...). De 1504 a 1520 passa-se de alguns pioneiros a uma dezena de viagens (...); ocorrem confrontos no mar ou no litoral brasileiro entre marinheiros da França e de Portugal porque esse país decide então colonizar o Brasil, escala para a rota das Índias (...); a zona costeira brasileira é vasta e as tribos hostis à conquista portuguesa fazem aliança e conseguem apoio pelas armas junto aos franceses que não se instalam pela força, mas se contentam de idas e vindas regulares para o escambo mutualmente lucrativo (...); o Rei de Portugal queria que Francisco I proibisse esse comércio aos seus súditos. Os normandos protestam porque proibir-lhes a Malagueta (costa africana da pimenta) e o Brasil, como eles dizem (vê-se que as navegações estão conectadas dos dois lados do Atlântico) seria “destruir a sua navegação e sua própria existência”; (...) no total, [são] vários milhares, sem dúvida, de navios que vieram da França para o Brasil entre o fracasso de Villegagnon [1560] e o assassinato de Henrique IV [1610] (Bonnichon, 2011, p. 14-16, 18).
Vasco Mariz e Lucien Provençal (2007, p. 15-30) classificam o período de forte presença francesa na costa brasileira em três fases distintas: a) a de aventureiros e negociantes, que se estende até meados do século XVI; b) a fase de colonizadores, até 1614; e c) a dos corsários, até 1714. Os autores citam vários nomes de navegadores que estiveram no litoral brasileiro desde 1503, sua presença marcada por uma série de expedições. Muitos desses navegadores, evidentemente, também estiveram do lado de lá do Atlântico, no litoral africano9, na Índia e em outros lugares, muitos deles a serviço do intrépido Jean Ango, que prestou muitos serviços à Coroa francesa ao armar expedições em todas as direções.
Laurent Vidal (2000) é outro autor que também dedicou uma análise sobre a presença francesa no Brasil colonial durante o século XVI, insistindo sobretudo nos interesses comerciais e geoeconômicos franceses no território brasileiro, que se tornou então um fator de disputa internacional. Entre diversos aspectos de interesse no referido trabalho, ele relaciona uma grande quantidade de embarcações francesas que aportaram no litoral brasileiro desde o início do século XVI, acentuando-se notadamente a partir da segunda metade do referido século, com a intensificação do tráfico. Destaca o período que se estende de 1580 a 1610, e particularmente a vasta região costeira ao norte. O litoral compreendido entre o Cabo de Santo Agostinho, na costa pernambucana, e o Cabo de São Roque, no litoral potiguar - área que inclui o sítio onde seria fundada Natal -, é um desses trechos bastante visitados no período. A Figura 1, a seguir, resume a presença francesa no litoral brasileiro entre 1500 e 1615:
Nesse contexto geral, aqui apenas esboçado, voltamos nosso olhar para a Capitania do Rio Grande. Fica evidente, desde o início, que a ameaça que vem do mar, na perspectiva dos portugueses no que diz respeito aos ataques e interesses franceses no século em questão, estende-se muito além do litoral da Capitania do Rio Grande. Porém, desejamos nos deter nessa porção do território, segundo as delimitações do presente artigo.
Assim como para o restante do vasto litoral brasileiro, há registros da presença francesa no litoral potiguar desde, pelo menos, 1535 (Teixeira, 2009, p. 64). Nesse ano, o rei D. João III concedeu a João de Barros, associado a Aires da Cunha, a capitania cujos limites incluíam o Estado do Rio Grande do Norte e uma parte da Paraíba atuais. Em novembro, partiu de Lisboa uma expedição comandada por Aires da Cunha10, homem de guerra, acostumado aos perigos no mar e na terra, inclusive contra os franceses. A frota era composta por 10 navios e 900 homens, da qual faziam parte os dois filhos de João de Barros, João e Jerônimo de Barros. Após passarem por Pernambuco, onde receberam auxílio do capitão-mor Duarte Coelho, dirigiram-se ao norte, costeando o litoral. Aportaram nas proximidades da foz do rio Baquipe, assim chamado pelos naturais, ou Pequeno, pelos portugueses. Corresponde hoje ao rio Ceará-Mirim, cuja foz se encontra ao norte de Natal. Porto Seguro, que nos traz essa informação, acrescenta que
aí chegou a desembarcar, com a ideia de fundar uma colônia. Encontrou, porém, tão grande oposição dos índios petiguares, unidos a muitos franceses, que com eles se achavam, que, depois de perder alguma gente, resolveu ir tentar fortuna na terra de seu terceiro sócio, Fernando Álvares de Andrade. Fizeram-se, pois, todos ao mar, tomando também consigo alguns dos náufragos de um galeão de D. Pedro de Mendonza [conhecidos por seus feitos no rio da Prata], os quais ainda aí encontraram, havendo outros dos companheiros sido devorados pelos mesmos petiguares (Lyra, 2008, p. 27).
Uma segunda tentativa de ocupação, tão desastrosa quanto a primeira, teve lugar em 1555 (Cascudo, 1955, p. 18). Os filhos do donatário João de Barros requereram, após a morte deste em 1570, uma indenização ao rei por todos os investimentos que seu pai e eles mesmos haviam, em vão, realizado no projeto. A capitania passa, portanto, ao domínio da Coroa, provavelmente após 1580. Ela tornou-se desde então uma capitania real ou capitania d’El-Rei, isto é, ficava subordinada somente ao rei. Seria concedida mais tarde, após a ocupação holandesa, a Manoel Jordão, que faleceu em um naufrágio e nunca tomou possessão. Na realidade, a capitania permaneceu propriedade exclusiva da Coroa.
A presença francesa na capitania e o comércio do pau-brasil com os nativos do litoral são registrados em vários documentos coevos. Jerônimo de Barros, um dos filhos do donatário João de Barros, testemunha essa presença em um requerimento parcialmente transcrito por Câmara Cascudo:
Dize-se [Jerônimo de Barros] possuidor de uma Capitania no Brasil, de cinquenta léguas de costa dos potiguares e vinte e cinco e os franceses todos os anos vem a ela carregar de Brasil por ser o melhor pau de toda a costa. E fazem já casas de pedra em que estão em terra fazendo comércio com o gentio. E os anos passados estiveram nesta Capitania dezessete naus de França a carga e são tantos os franceses que vêm ao resgate que até as raízes do pau-brasil levam porque tinge mais as raízes do pau que nasce nesta Capitania. Adianta que os franceses tinham furtado três mil quintais de pau-brasil cortados e prontos pelos portugueses. E que todos os navios que iam às Antilhas passavam pela costa. Fizesse El-Rei uma fortaleza para defender seu direito, antes que os franceses erguessem a deles, dando maior trabalho e sangue para expulsá-los. Lembra ao Rei que a Capitania é a mais perto terra que há no Brasil a este Reino (Cascudo, 1955, p. 20, grifos nossos).
O requerimento transcrito por Câmara Cascudo não está datado, como também constatou Tavares de Lyra, que o resumiu11. Além da presença cada vez mais ameaçadora dos franceses na costa potiguar, o requerimento chama a atenção para a necessidade da construção de uma fortaleza e para a posição estratégica da capitania em relação a Portugal. Essa importância estratégica é igualmente lembrada, aliás, pelos padres jesuítas que já perambulavam pelo litoral potiguar em fins do século XVI, antes mesmo da fundação de Natal. O padre Francisco Pinto, por exemplo, defendia a construção de uma residência, quase um colégio jesuíta, que serviria de apoio ao trabalho missionário. Os jesuítas defendiam essa instalação na capitania por ela “ser a chave do Brasil e a mais perto de Portugal, pelo muito gentio que se pode ajuntar”12 (grifos nossos). Afirmações como essa expõem a relação do Rio Grande com a metrópole, mas também, por conseguinte, com o mar, único elo entre os dois territórios, antes mesmo da fundação de Natal. Situada ao norte da Paraíba, sua posição estratégica também decorria de servir de ponto de apoio dos franceses para os ataques em direção ao sul, de onde vinham sendo expulsos.
Outros documentos testemunham o interesse dos franceses, sobretudo na exploração do pau-brasil existente no litoral potiguar. Gabriel Soares de Souza (1851), descrevendo a costa da Capitania do Rio Grande em 1587, faz várias alusões a essa presença e a esse tipo de exploração. Diogo de Campos Moreno, por sua vez, em 1612, portanto após a expulsão dos franceses da capitania, confirma a informação de Jerônimo de Barros, segundo a qual até as raízes do pau-brasil eram embarcadas nas naus francesas:
Tem algum pau-brasil fino, mas mui raro a respeito de lhe arrancarem os franceses até as raízes quando ali continuavam, tem jacarandá mais delgado do que o da Bahia, tem pau amarelo para tintas e outras madeiras para obras de toda sorte de embarcações ou casas. Todo gênero de criação multiplica muito, e nos matos há muita casa, e em toda a costa grandes pescarias, e muito âmbar (Moreno, 1949, p. 562)13.
Diversos documentos mencionam a aliança que os franceses estabeleceram com os potiguaras. Expulsos da Paraíba, instalaram-se ao norte, sobretudo na foz do Rio Grande, e em outros lugares ao longo do litoral. Eles tinham portos em Pititinga (Punaú), Ceará-Mirim, Potengi, Pirangi (porto de Búzios), Barra de Tabatinga e de Arapicara (Baía Formosa), na costa oriental do atual Estado. Nesses locais, exploravam o pau-brasil, construíam casas e depósitos, e alguns deles passaram a viver definitivamente entre os nativos. Anthony Knivet (1906, p. 274), o inglês que a visitou a Capitania do Rio Grande em 1601, informa que nela “habita um tipo de canibais, chamados petywares: estes canibais têm traficado há muito tempo com a França, entre eles há muitos que sabem falar francês; são bastardos, nascidos de pais franceses”14.
As boas relações com os potiguaras, como amplamente mencionado nas fontes primárias - a exemplo da declaração de Pierre Crignon (1565, p. 427), para quem os indígenas “amam mais os franceses do que qualquer outra gente que a visite15” -, são uma informação amplamente confirmada na historiografia sobre o assunto, inclusive no que se refere ao Rio Grande16. Diferentemente dos portugueses, os franceses não tinham a intenção de povoar a terra nem de escravizar os nativos, mas principalmente de comercializar com eles, embora algumas tentativas de colonização tenham ocorrido, conhecidas como a França Antártica (1555-1565), no Rio de Janeiro, e a França Equinocial, no Maranhão (1612-1615). Os portugueses, ao que tudo indica, não dispensaram o mesmo trato aos indígenas do litoral. O Alvará de 2 de março de 1561 ilustra bem o modo opressor como os portugueses tratavam os naturais do litoral potiguar:
Eu El-Rei, faço saber a quantos este meu Alvará virem que João de Barros, Feitor das Casas da Índia e Mina, me enviou dizer que El-Rei meu senhor e avô, que santa glória haja, lhe fez mercê de uma Capitania na costa do Brasil nas terras de Santa Cruz, onde se chamam os Pitiguares, para onde fez uma armada haverá vinte anos em que despendeu muito de sua fazenda, e haverá cinco que mandou outra em que foram dois filhos seus a povoar a dita terra, o que não houve efeito por os gentios dela estarem escandalizados assim dos moradores das outras Capitanias como de pessoas deste Reino que vão à dita Capitania fazer saltos e roubos cativando os gentios da terra e fazendo-lhes outros insultos, de maneira que, querendo seus filhos tomar um porto na dita sua Capitania para se proverem do necessário, por os ditos índios estarem escandalizados e de pouco tempo atrás salteados de gente portuguesa, lhe mataram um língua, com outro homem, e lhe feriram outros e trabalharam para matarem a todos, para se vingarem dos males e danos que tinham recebido dos navios com que no dito porto lhe tinham feito saltos (apud Cascudo, 1955, p. 18-19)17.
Além da confirmação das duas expedições feitas pelos filhos de João de Barros à Capitania do Rio Grande, evidencia-se, no alvará, a existência de relações extremamente danosas dos portugueses - tanto os moradores de capitanias vizinhas como os que vinham diretamente do reino para explorar a terra - para com os nativos do litoral. O documento, datado de 1561, demonstra também que, não somente franceses, mas também portugueses já perambulavam com certa regularidade pela costa potiguar. Seja como for, diferentemente do francês, interessado sobretudo no comércio com o indígena, o português “veio para ficar, criando ambiente a sua imagem e semelhança, construindo fortes, plantando cidade, falando em leis, dogmas, ordenações e alvarás” (Cascudo, 1955, p. 21). Eram, em essência, duas atitudes distintas18.
O nome de um dos muitos navegadores franceses que estiveram na costa potiguar chegou até nós. Chamava-se Jacques Riffault, e dele trataremos adiante neste trabalho. Vasco Mariz e Lucien Provençal (2007, p. 29) também incluem Jacques Riffault na lista de nomes de navegadores franceses que visitaram a costa brasileira. Afirmam que entre 1594 e 1596 ele, com três naus, patrulhava a costa entre a Capitania do Rio Grande e o Maranhão. Também mencionam outro conterrâneo, Toussaint Coué de la Villaudière, enviado pelo rei Henrique IV ao Rio Grande, onde se encontrava Riffault, mas que fracassou diante da defesa de um grupo de portugueses. Há registros de alguns franceses que permaneceram na Capitania do Rio Grande, mesmo após o fracasso em suas investidas na região.
Cabe destacar que, além das várias expedições portuguesas ao longo do litoral potiguar, atores de outras nações também o visitaram ao longo do século XVI, em menor número, certamente, mas o suficiente para serem notados. Estamos no contexto da globalização mercantilista, na qual o ambiente de disputa internacional envolvia outras nações, além de franceses e portugueses. Assim, espanhóis, holandeses e ingleses visitaram o litoral do Rio Grande e/ou para além dele, entre os séculos XVI e XVII, pelo menos. Os holandeses chegaram a se fixar no Rio Grande por 21 anos (1633-1654).
O foco deste trabalho, no entanto, diz respeito especificamente à presença francesa por volta da fundação de Natal, e a ela nos atemos neste trabalho. Aliados aos potiguaras, eles representavam a maior ameaça para a soberania da Coroa portuguesa sobre essas terras, que se encontravam efetivamente sob seu controle em 1596. Aparentemente, o lugar iria servir de base para a reconquista dos locais conquistados pelos portugueses, ao sul. Para nossos objetivos, o que interessa realmente são as consequências desse processo extremamente complexo para a conquista da Capitania do Rio Grande, envolvendo esses três atores principais: portugueses, franceses e indígenas. Assim, a construção do Forte dos Reis Magos, iniciada em 6 de janeiro de 1598, e a fundação da cidade de Natal em 25 de dezembro do ano seguinte, são os dois grandes marcos iniciais desse processo, para os quais Feliciano Coelho foi um dos protagonistas principais, como registrado em sua carta endereçada ao Rei Filipe II, datada de 20 de agosto de 1597.
Os antecedentes da conquista: a carta de Feliciano Coelho ao Rei Filipe II
Para efeitos da análise da carta do capitão-mor da Paraíba, propomos uma divisão do seu conteúdo em três grupos de assuntos: 1) “as ameaças” que representava, na perspectiva colonial portuguesa, a aliança entre franceses e indígenas para a conquista do Rio Grande e os conflitos dela resultantes entre os diversos atores envolvidos; 2) “as ordens” ou as medidas de natureza político-administrativa para eliminar essas ameaças; e 3) “as realizações”, o que, das ordens, foi de fato posto em prática ou executado, isto é, seus resultados e suas implicações imediatas.
As ameaças
Em maio de 1591 chegava a Pernambuco “Feliciano Coelho de Carvalho, fidalgo que se criou de moço em África, bom cavalheiro e de bom conselho” para governar a Paraíba, “e achou a cidade posta em tanto aperto com os contínuos assaltos que os potiguares faziam nas suas roças e arrebaldes, que determinou de correr a terra e enxotá-los dela”. Assim o apresenta Frei Vicente do Salvador no 25° capítulo de sua obra. Com a ajuda de Pero Lopes, capitão-mor de Itamaracá, Feliciano Coelho organizou uma força militar composta de “cinquenta homens brancos de pé e de cavalo e trezentos negros”, além de indígenas tabajara. Massacraram uma aldeia dos inimigos potiguaras, com o socorro de Martin Lopes Lobo, filho de Pero Lopes, dois cavaleiros, 20 arcabuzeiros e alguns negros, que se juntaram aos atacantes posteriormente (Salvador, 1918, p. 354-355). Esse episódio inicial mostra o caráter e o ânimo desse personagem, revelado mais ainda em sua carta, de cujo teor tratamos a partir de agora.
Assim, Feliciano Coelho de Carvalho demonstra uma preocupação particular, partilhada, aliás, pelo próprio Rei, como veremos, com a incômoda presença francesa no litoral paraibano e potiguar, agravada por sua aliança com os potiguaras. No dia 3 de julho, um prisioneiro francês o informou que havia
sete grandes naus francesas com homens de guerra ancorados no Rio Grande, e que havia mais 13 navios franceses de guerra que atacaram o forte de Cabedelo e lançaram em terra 350 soldados todos com armadura branca e a artilharia continuou da sexta até a segunda por mar e terra, e que muitos franceses foram mortos além de dois capitães franceses. Do nosso lado, o comandante do forte foi morto e outros dois portugueses ficaram feridos. Não houve outros danos. Havia apenas vinte portugueses no forte, e cinco peças de artilharia. Eles intencionavam tomar o forte e comercializar com os indígenas. Como não puderam conquistar o forte, levantaram vela e se foram para o Rio Grande; totalizam 20 embarcações ancoradas no Rio Grande19.
Ainda segundo o informante, depois de abastecidas e de receberem refrescos (alimentos e água), essas naus ali ficariam até a Páscoa, quando então partiriam para Honduras, mas só depois de queimarem e arruinarem algumas aldeias nas imediações. Jacques Riffault, ou Rifoles, um personagem central nas investidas francesas na região, que estava então na Paraíba, fugiu para o Rio Grande após a derrota em Cabedelo, mas isso não arrefeceu o ânimo dos franceses. Ainda segundo o mesmo informante,
um certo senhor Mifa, um capitão francês, e parente do governador e vice-almirante de Dieppe, na Normandia, teve uma de suas forças destruídas no cerco de Cabedelo; ele partiu do Rio Grande determinado a retornar no próximo ano, no mês de janeiro e habitar nessa terra da Paraíba, que está a 20 léguas de distância de Pernambuco, por causa da grande jazida de prata que eles encontraram ali. (...) Também sou informado de que um nobre francês chamado conde de Vila Dorca pretende vir a esta costa com uma grande armada de La Rochelle. Seria bom que Sua Majestade procurasse obter informação na França para se certificar disso. (...) O francês me informou ainda que todos os canibais potiguaras se juntaram na companhia de alguns franceses, que fugiram em dois navios desta costa. Um desses navios que desertaram era o de Rifoles, e o outro era o deste homem. Os franceses que vieram para esta costa se aliaram àqueles canibais rebeldes, os quais se dividiram em dois esquadrões.
Além do pau-brasil, de outros tipos de madeira, animais silvestres e outros produtos normalmente citados nas fontes, a descoberta de prata também atraía a ganância dos franceses. Além do senhor Mifa, outro francês, de nome Daurmigas, “encontrou grande quantidade de prata em um lugar chamado Copaoba”; “a prata foi testada e fundida, sendo de ótima e fina qualidade, havendo ali em grande quantidade”. Segundo Feliciano Coelho, que confirma a existência dessa jazida, ela ficava a “seis dias de viagem dessa capitania”.
Com efeito, em outro trecho da carta afirma-se que os indígenas “nos informaram sobre as minas de prata que foram descobertas, algo que é muito verdadeiro” e que “os navios franceses que estavam no Rio Grande eram carregados com grande quantidade do minério”. Mascarenhas Homem confirmou a existência das minas de prata e mandou dizer a Feliciano Coelho que ele mesmo lá estivera. Esse contexto levava Feliciano Coelho a alertar o Rei e tomar providências, sem as quais, diz ele, “não se conservará nem se manterá esta terra, com tantas guerras contínuas como temos, e perturbada com tudo”.
As ordens
Em sua carta endereçada ao Rei Filipe II, Feliciano Coelho de Carvalho respondia, na verdade, às ordens desse soberano espanhol, que ordenara a conquista do Rio Grande em duas cartas - uma de 9 de novembro de 1596 e outra de 15 de março de 1597:
Recebi a carta de Sua Majestade datada de 9 de novembro de 1596, pela qual entendo que Sua Majestade determina proceder à descoberta e conquista do Rio Grande, de acordo com a relação de Sua Majestade enviada por Dom Francisco de Souza, governador-geral deste reino do Brasil, juntamente com a cópia de uma carta que Sua Majestade nos enviou, datada de 2 e 20 de março de 1597. Além disso, recebi outra carta de Sua Majestade de 15 de março de 1597, ambas com o mesmo efeito.
Ao tentar cumprir essas determinações régias, o capitão-mor não somente supervaloriza seu esforço, mas acusa os nobres da terra por não fazerem o mesmo. Ele diz que, apesar de serem “tão habilidosos quanto eu”, eles
procuram viver em suas casas apenas para sua satisfação e prazeres e não querem se arriscar nem aventurar seus corpos, vidas e bens, muitas vezes a serviço de Sua Majestade, como eu tenho feito e faço costumeiramente; e guardam seus bens e riquezas e não os despendem nem os gastam como eu tenho feito e faço diariamente com desvelo; e, mesmo sendo gasto no serviço de Sua Majestade, me sinto muito alegre. Pois eu e eles estamos sempre prontos e às ordens de Sua Majestade.
Contraditoriamente, acredita que esses nobres também estão prontos a obedecer ao soberano. Ainda autopromovendo-se, Feliciano Coelho acrescenta que
quanto à ordem de Sua Majestade para que pudesse ajudar na conquista do Rio Grande, embora esta Capitania da Paraíba e a região onde governo careçam de habilidades para essa causa, ainda assim Sua Majestade sempre me achará pronto para servir a Sua Majestade da melhor maneira possível; porque sabe-se muito bem quão disposto eu sempre estive e estou nessa conquista, e ofereço meu socorro, o que, em parte, Sua Majestade sabe pela carta que escrevi para Sua Majestade por meio de meu filho, datada de 19 de março de 1596, pela qual Sua Majestade entende o bom serviço que já prestei, e sempre estarei pronto, dentro de meu poder, para fazer o mesmo, de modo a avançar nessa empresa.
Seu filho havia informado o Rei sobre essa sua disponibilidade em servir em uma carta de 19 de março de 159620. Por meio dela, “Sua Majestade entende o bom serviço que já prestei, e sempre estarei pronto, dentro de meu poder, para fazer o mesmo, de modo a avançar nessa empresa”. Em seguida, Feliciano recomenda ao Rei que um certo Diego Sierna assuma o comando da capitania, “com a expressa ordem que todos os capitães e comandantes, sob pena de morte, lhe obedeçam e estejam prontos em todo o tempo para ajudá-lo e assisti-lo no seu serviço”, caso contrário, não será possível conservar a terra, marcada por guerras e conflitos constantes. Por ser um ótimo soldado, ter boa experiência e, por isso, ser apto a governar a terra,
Sua Alteza também deve encarregá-lo [Diego Sierna], com ordem expressa, para continuar essas guerras; de outro modo, esta terra não será mantida, pois eles estão se rebelando diariamente. Aqui, ninguém mais há de servir Sua Majestade de modo tão correto, pois terá grande cuidado em tudo que disser respeito ao serviço de Sua Majestade relativo ao estado desta terra.
Quanto às “capitanias que Sua Majestade pretende enviar aqui”, elas devem
trazer consigo artilharia, pólvora e todo tipo de armamentos, equipamentos e munição para a defesa e proteção desta terra e para a conquista do Rio Grande, pois não há qualquer tipo de munição em toda esta terra para servir em tal ocasião. Também seria bom que Sua Majestade ordenasse a construção de dois fortes em Cabedelo, pois eles seriam indispensáveis para a defesa contra o inimigo, que guerreia diariamente contra esta capitania.
Ele também escolheu “um homem muito preparado”, o capitão João de Mata (Matias?) Cardoso, como governador de Cabedelo.
As realizações
As realizações mencionadas por Feliciano Coelho de Carvalho até aquela data de 20 de agosto de 1597 estavam evidentemente e intimamente relacionadas às ameaças e às ordens régias de que ele tratou. Ao relatar suas realizações militares contra inimigos franceses e indígenas potiguaras, ele destaca o desleixo de outras autoridades coloniais, especialmente do Governador-Geral do Brasil, Dom Francisco de Souza, em apoiar suas iniciativas. Assim, ele diz a Sua Majestade que
de tempos em tempos, eu tenho escrito a Dom Francisco de Souza, governador-geral deste reino, que está na Bahia, sobre os franceses e a guerra; mas ele não me responde, pois lhe escrevo sobre as coisas de que careço, que são artilharia, pólvora, homens e munições, requisitos para o serviço de Sua Majestade e segurança desta capitania. Pois aqui não há artilharia, pólvora nem qualquer outro recurso para nos defender de nossos inimigos; nem nada que se ponha em suas mãos para ajudar a defender esta terra e o serviço de Sua Majestade (...). O governador Souza, por sua vez, gasta a fazenda de Sua Majestade construindo seus engenhos ou moinhos de açúcar.
Adiante, o capitão-mor da Paraíba volta a acusar o Governador-Geral por não tomar as providências que lhe solicitou para a conquista do Rio Grande, o que atrasou o empreendimento:
Se Dom Francisco de Souza tivesse me enviado os 250 soldados que solicitei, que estavam na guarnição do forte do Arrecife sem fazer nada a não ser desperdiçar os recursos e a fazenda de Sua Majestade, e não os tivesse enviado para a Bahia, onde não havia necessidade, essa guerra com os potiguaras teria terminado há tempos e teria poupado a Sua Majestade muitas despesas que foram gastas na conquista do Rio Grande.
Feliciano Coelho também critica o capitão-mor de Pernambuco, Manuel Mascarenhas Homem, embora em tom aparentemente menos rigoroso. Ao saber, através do prisioneiro francês, da presença de sete grandes naus francesas no Rio Grande e de mais 13 navios franceses de guerra em Cabedelo, comunicou essas informações a Mascarenhas Homem,
solicitando-lhe que me mandasse imediatamente os soldados que estavam na guarnição de Pernambuco, para me socorrer e defender esta capitania do inimigo. Porém, os Frades do Convento não consentiram, nem permitiram que me fossem enviados. Fui então forçado a valer-me com apenas aqueles soldados que tinha sob meu governo, os quais levei comigo, marchando até o local onde os inimigos estavam entrincheirados. No domingo de Pentecostes, por volta de três horas da tarde, tendo a companhia de um negro da terra dos potiguaras, que nos serviu de guia, ele nos conduziu até o acampamento onde estava o inimigo; e então eu os ataquei imediatamente, matando muitos deles, queimando as aldeias e lugares daqueles rebeldes que haviam se aliado aos franceses, e levei muitos deles como prisioneiros. Disseram-me então que havia dez grandes naus francesas de guerra ancoradas no Rio Grande.
O motivo dessa atitude dos frades será explicado em momento oportuno. Por enquanto, interessa sublinhar que esse ataque de Feliciano Coelho e seus homens ocorreu no domingo de Pentecostes, isto é, no dia 25 de maio de 1597; outro confronto ocorreria no dia 29 de julho; e o ataque francês ao forte de Cabedelo teve lugar entre os dias 15 e 18 de agosto. Ele volta a criticar Mascarenhas Homem ao saber, por seu informante francês, que os “canibais potiguaras” se uniram aos franceses no Rio Grande. Era preciso atacar os franceses dessa costa, para onde havia fugido Jacques Riffault em um dos navios. Ao saber da notícia, diz Feliciano Coelho:
Imediatamente, enviei uma mensagem a Mascarenhas Homem para que ele me mandasse soldados e munição. Mas ele me respondeu que não os tinha de sobra, que pretendia ele mesmo ir o mais rapidamente possível ao Rio Grande e que ele não estava em condições de se equipar tão bem quanto desejava, nem de trazer seus soldados para o campo [de batalha], devido à falta de artilharia, pólvora e outras munições de que carecia. Assim, mais uma vez, no dia 29 de julho, eu, com meus soldados, marchamos para o acampamento inimigo e ali travamos batalha com os indígenas rebeldes, que haviam se aliado aos franceses, seus líderes. Eu os ataquei e matei muitos deles e trouxe 14 como prisioneiros. Estes deram exatamente as mesmas informações quanto aos navios franceses ancorados em um porto no Rio Grande; e que sua intenção era vir sobre nós e nos atacar, e destruir a terra.
O tom triunfalista, apesar da ameaça constante de revolta e das dificuldades, aparece quando ele dá a entender que, graças às suas ações, conseguiu expulsar definitivamente os inimigos da costa:
Mas, agora, pondo-se em fuga e sendo derrotados, eles não conseguem obter refrescos para abastecer seus navios; por essa causa, ficaram muito prejudicados em seu intento e não ousam mais vir atentar contra nós. E os indígenas estão tão desanimados porque não terão mais qualquer socorro ou ajuda dos franceses. Assim, por questão de necessidade, os indígenas deverão se submeter a nós, considerando que foram devastados e derrotados longamente.
Feliciano Coelho deixou Mascarenhas Homem a par dessas notícias,
desejando que ele preparasse quatro navios e 300 soldados para ocupar o porto do Rio Grande, agora desterrado e esvaziado do inimigo, e examinar a situação do lugar e onde melhor fortificar e construir alguns fortes para a defesa desse rio, onde a necessidade o exigisse.
Mascarenhas Homem informou a Feliciano Coelho que enviaria homens e navios. E, mais uma vez autopromovendo-se, este diz que “Sua Majestade deve dar ordens para que os demais governadores ajudem e assistam nessa guerra; caso contrário, eu sozinho não sou capaz de fazer mais do que já tenho feito para defender a terra contra nossos inimigos, que são muitos”.
Feliciano Coelho termina sua missiva dizendo ser seu “imperioso e humilde dever, e pelo serviço de Sua Majestade e pela tranquilidade desse reino, informar Sua Majestade a verdade sobre tudo”. Ele espera que, “em breve, Sua Majestade imponha boa ordem para atenuar tais conflitos, porque há grande ódio e malícia entre nós. Jesus Cristo preserve e mantenha a real pessoa de Sua Majestade por longos anos e em saúde, como Lhe agrada. Da Capitania da Paraíba neste 20 de agosto de 1597”.
A conquista da Capitania do Rio Grande
Como vimos, a presença de franceses foi marcante ao longo do século XVI no litoral brasileiro e na costa do Rio Grande em particular, intensificando-se a partir de meados daquele século. Esse contexto ameaçador para os interesses luso-espanhóis, que se insere em uma complexa conjuntura internacional - apenas introduzida neste trabalho -, levou o Rei Filipe II da Espanha a ordenar a conquista da capitania, mediante suas cartas de 9 de novembro de 1596 e de 15 de março de 1597. Além da expulsão dos franceses, era necessário construir um forte e fundar uma cidade.
Uma fonte indispensável para esse processo de conquista é a obra clássica de Vicente do Salvador, escrita em 1627. Ele iniciou esse relato em algum ponto posterior ao 25° capítulo e concluiu no 33° do seu livro. Infelizmente, os capítulos do 26° ao 29° se extraviaram. Contudo, a partir de outras fontes e inferências, Capistrano de Abreu, que revisou a obra, descreveu o que pode ter sido relatado nesses capítulos faltosos, que abarcam, segundo ele, um período de cerca de dez anos. Entre outros eventos que marcaram esse período, diz o historiador que
o ano de 1597 correu sobretudo agitado: houve combates renhidos no Pentecostes (25 de Maio) e a 25 de Julho; de 15 a 18 de Agosto Cabedelo foi acometido por treze navios franceses que o atacaram por terra e por mar; constava a existência de outros vinte navios de guerra no Rio Grande. Foram estes naturalmente os que tentaram a interpresa, referida deficientemente no fragmento do cap. 30°. O fato devia ter ocorrido logo depois da carta de Feliciano Coelho, que já em dezembro se punha a caminho do Rio Grande21 (Salvador, 1918, p. 242).
Capistrano de Abreu faz, portanto, referência à carta de Feliciano Coelho. Com efeito, a presença francesa era tal que ameaçava a conquista portuguesa (ou luso-espanhola) da Capitania do Rio Grande naquele final do século XVI. O fragmento do 30º capítulo do livro de Frei Vicente, mencionado por Capistrano de Abreu, cita Jacques Riffault, “de quem temos contado o mal que fez por esta costa”. Esse “comerciante e aventureiro de origem normanda”22 vagueava com suas naus pelo litoral da Paraíba ao Maranhão, e tinha na foz do Rio Grande um de seus pontos de ancoragem e de escambo com os indígenas. Estacionado na Paraíba e inicialmente disposto a enfrentar as tropas de Feliciano Coelho após o cerco frustrado do forte de Cabedelo, mudou de ideia ao ser informado que uma grande força militar, reunindo gente também de Pernambuco, estava se organizando para enxotá-lo dessas paragens. Decidiu então partir para o Rio Grande com seus navios, juntar-se às demais naus ali ancoradas e voltar para a França, de onde esperava trazer reforços para a campanha de conquista. Com sua fuga, os potiguaras, seus aliados locais, “se espalharam pelas suas [terras] cheios de medo da represália portuguesa” (Salvador, 1918, p. 357-358).
Nos capítulos do 31° ao 33°, Frei Vicente do Salvador registrou como se deu a conquista do Rio Grande. Trata-se de uma fonte fundamental e incontornável para qualquer análise sobre esse tema na historiografia. Com base nela, apresentamos um resumo do evento, importante porque dá sequência e situa a carta de Feliciano Coelho e outros documentos coevos a serem analisados em seguida.
Assim, recebendo ordens do soberano, Dom Francisco de Sousa, governador-geral do Estado do Brasil, as transmite aos seus subordinados. Foi organizada uma grande expedição militar, constituída em fins de 1597 e formada por habitantes dos territórios que hoje correspondem à Paraíba e a Pernambuco. A expedição foi comandada pelo capitão-mor de Pernambuco, Manuel Mascarenhas Homem, que recebeu do governador-geral mantimentos, provisões, seis navios e cinco caravelões. Essas forças marítimas, juntamente com três companhias “de gente de pé” e uma companhia de cavalaria, reunidas na Paraíba, dali partiram em direção ao Rio Grande. Entre os religiosos integrantes da expedição, estava o padre espanhol Gaspar de Samperes, “grande arquiteto, e engenheiro, para traçar a fortaleza”. Enquanto Manuel Mascarenhas comandava as forças por mar, Feliciano Coelho, capitão-mor da Paraíba, comandava as tropas terrestres, que contavam com 178 homens “de pé e de cavalo”, noventa “frecheiros” de Pernambuco e 730 da Paraíba, comandados por seus respectivos maiorais (Salvador, 1918, p. 359-360). Foi a formação dessa força militar que afugentou Jacques Riffault da Paraíba e do Rio Grande.
Partindo no dia 17 de dezembro de 1597 da Paraíba, ou seja, quase quatro meses depois da carta de Feliciano Coelho, datada de 20 de agosto, as forças assim organizadas encontraram no caminho aldeias queimadas de indígenas inimigos em retirada. Muitos nativos, tanto inimigos quanto os da expedição, morreram de “bexigas, que é peste do Brasil”, motivo pelo qual Feliciano Coelho teve de retornar à Paraíba com seus homens para recompor suas forças. Jerônimo de Albuquerque e Mascarenhas Homem continuaram a jornada por mar, percurso durante o qual viram sete naus francesas no frequentado porto de Búzios a traficar com os potiguaras. Ao verem a armada portuguesa, lançaram velas e partiram, mas não foram perseguidos, diz Frei Vicente, “por ser tarde, e não perder a viagem”.
No dia seguinte pela manhã mandou Manuel Mascarenhas dois caravelões descobrir o rio [Potengi], o qual descoberto, e seguro entrou a armada à tarde guiada pelos marinheiros dos caravelões, que o tinham sondado, ali desembarcaram, e se trincheiraram de varas de mangues para começarem a fazer o forte, e se defenderem dos potiguares, que não tardaram muitos dias que não viessem uma madrugada infinitos, acompanhados de 50 franceses, que haviam ficado das naus do porto dos Búzios, e outros que aí estavam casados com potiguares, os quais, rodeando a nossa cerca, feriram muitos dos nossos com pelouros e flechas, que tiravam por entre as varas, entre os quais foi um capitão Rui de Aveiro no pescoço com uma flecha, e o seu sargento, e outros, com o que não desmaiaram antes como elefantes à vista de sangue mais se assanharam, e se defenderam, e ofenderam os inimigos tão animosamente que levantaram o cerco, e se foram (Salvador, 1918, p. 361-362).
Após esse recuo dos atacantes, um natural chamado Surupiba veio ardilosamente propor a paz. Era na verdade uma cilada, mas não obteve sucesso. Ocorreu então um segundo ataque à cerca feita de varas de mangues pelos soldados de Mascarenhas Homem “para começarem a fazer o forte”. Os montes ficaram “cobertos da infinidade” desses nativos, que foram rechaçados novamente. Certamente motivados por eternas rixas entre eles e os potiguaras, como era de costume entre diferentes povos indígenas, os tabajaras que compunham as forças de Mascarenhas Homem e Jerônimo de Albuquerque se lançaram ao ataque, perseguindo e matando muitos inimigos potiguaras. Mesmo assim, os ataques continuaram e os soldados tinham dificuldade em buscar água fora da cerca. O socorro veio pelo mar, por meio de Francisco Dias de Paiva que, a mando do rei, chegou em uma urca (grande embarcação) com “artilharia, munições e alguns outros provimentos para o forte, que se fazia”. Em 30 de março de 1598, Feliciano Coelho, tomando conhecimento dos apertos dos que estavam no forte, também retorna ao Rio Grande, desta vez com apenas três companhias: uma de 24 homens a cavalo, e duas a pé, com trinta arcabuzeiros cada uma. No caminho, encontra apenas “aldeias despejadas” (abandonadas), e informa-se junto aos espias inimigos que consegue capturar que, a “uma légua do forte, que se fazia, estava uma aldeia grande e fortemente cercada, donde saíam a dar assalto aos nossos”. Pretendendo atacá-la de surpresa, ele a encontrou, porém, “despejada”, e a aproveitou para ali instalar o seu pessoal (Salvador, 1918, p. 362-364).
No dia seguinte, compareceu Mascarenhas Homem a essa aldeia abandonada para tratar com Feliciano Coelho sobre o forte, “porque tinha ainda grandes entulhos e outros serviços a fazer”. Organizou-se a força de trabalho por meio de companhias de indígenas, cada uma com seus respectivos intérpretes portugueses. Alguns nativos, acompanhados de “alguns brancos filhos da terra” - talvez moradores portugueses já vivendo na região antes mesmo da conquista - e designados para fazer rondas na região, descobriram uma aldeia
onde mataram mais de quatrocentos potiguares, e cativaram oitenta, pelos quais souberam que estava muita gente junta, assim potiguares como franceses, em seis cercas muito fortes, para virem dar sobre os nossos, e os matarem, e se já o não tinham feito era porque adoeciam e morriam muitos do mal de bexigas (Salvador, 1918, p. 364-365).
A persistência dos franceses revelou-se quando Pero Lopes, que veio a mando de Feliciano Coelho desde a Paraíba para trazer novos suprimentos para os que estavam construindo o forte, avistou novamente, no porto de Búzios, uma nau francesa “lançando gente em terra”. Avisado, Mascarenhas Homem dirigiu-se ao local com uma tropa e, atacando “as choupanas em que os potiguares estavam já comerciando com eles”, matou 13 indígenas, “cativaram” (capturaram) sete indígenas e três franceses - os demais fugindo nos bateis (pequenas embarcações) e outros a nado. Como não dispunha de barcos para persegui-los, Mascarenhas Homem armou então uma cilada para capturar os franceses fugitivos. Deixou um deles ferido como isca na praia e fingiu ter ido embora, com o intuito de capturar os que retornassem para resgatá-lo. De fato, eles voltaram, mas, ao perceberem a cilada, correram de volta para o batel e fugiram desesperadamente, retornando à nau, que finalmente largou velas e partiu. Apenas um francês, que não conseguiu escapar, foi capturado.
Acabado o forte do Rio Grande, que se intitula dos Reis, o entregou Mascarenhas Homem a Jerônimo de Albuquerque dia de São João Batista, era de mil quinhentos e noventa e oito, tomando-lhe homenagem, como se costuma, e deixando-lhe muito bem fornecido de gente, artilharia, munições, mantimentos e tudo o mais necessário, se veio no mesmo dia com a sua gente dormir na aldeia do Camarão, onde Feliciano Coelho estava com seu arraial aposentado, e no dia seguinte partiram todos para a Paraíba com muita paz e amizade (Salvador, 1918, p. 366).
O retorno à Paraíba e a Pernambuco não foi tão pacífico assim, pois ainda encontraram outras aldeias com suas cercas características, que atacaram de surpresa, pois haviam matado os espias que poderiam advertir os inimigos. Mortes, choro de mulheres e crianças, “atos de bravura” de um nativo aliado chamado Tavira e a menção a um capitão espanhol, João de Padilha, fazem parte desse relato. Vários outros elementos dignos de nota poderiam ser discutidos sobre esse processo de conquista23, mas não serão explorados, tendo em vista as limitações do presente artigo.
As consequências imediatas da conquista
Além da expulsão dos franceses e da construção de um forte, era preciso fundar uma cidade, segundo as determinações régias. Para isso, foi preciso estabelecer um acordo de paz com os potiguaras, para o qual concorreu grandemente a ação dos missionários Pero Rodrigues, Francisco de Lemos, Gaspar de Samperes e Bernardino das Neves. Esse acordo foi assinado em 11 de junho de 1599 na Paraíba, com a presença de vários maiorais indígenas como Pau Seco, Zorobabe, Braço de Peixe e outros, além dos capitães-mores Feliciano Coelho, da Paraíba, e de Mascarenhas Homem, de Pernambuco, do ouvidor-geral Braz de Almeida e outras pessoas. E, uma vez
feitas as pazes com os potiguares, como fica dito, se começou logo a fazer uma povoação no Rio Grande uma légua do forte, a que chamam a cidade dos Reis, a qual governa também o capitão do forte que El-Rei costuma mandar cada três anos (Salvador, 1918, p. 372).
Com efeito, a construção do forte e a fundação da cidade de Natal são as principais consequências imediatas da conquista. Porém, a relação entre os portugueses e os indígenas potiguaras, habitantes do litoral, não foi tão amigável assim após o acordo de paz, como, aliás, era de se esperar. Afinal, os potiguaras sofreram as consequências mais danosas no processo de conquista. Massacrados nessas refregas iniciais, quando não morreram por doenças trazidas pelos brancos, sua população deve certamente ter começado a diminuir desde então. É suficiente lembrar a estimativa que fez Jacques de Vau de Claye em 1579, para quem somente entre os seus aliados havia dez mil indígenas24. Anthony Knivet (1906, p. 242), muito provavelmente exagerando, estimou que as forças provenientes de Pernambuco tiveram que enfrentar pelo menos 40 mil homens em 1601.
Tendo em vista a data do relato do aventureiro inglês Anthony Knivet, fica evidente que o acordo de paz celebrado em junho de 1599 não garantiu a paz, pelo menos não imediatamente. Ele conta que Mascarenhas Homem teve que retornar à capitania em 160125 para socorrer Feliciano Coelho e seus homens, que ali estavam, diante da ameaça indígena. Foi organizada uma expedição militar formada por 400 portugueses e 3 mil nativos, que promoveu grande matança nos adversários, muito mais numerosos. As consequências não somente para a conquista e ocupação, mas também econômicas, se manifestaram em mais essa batalha:
Feita a conquista, o nosso capitão-mor Mascarenhas construiu dois possantes fortes perto da cidade, à margem do rio, e solicitou de Pernambuco quarenta peças de ferro fundido, colocando vinte em cada forte. Muitos soldados ganharam com essa conquista muitas pedras preciosas, diamantes, rubis e uma grande quantidade de safiras azuis, em algumas aldeias que se localizam perto do mar. Encontramos âmbar cinzento em grande quantidade, que os indígenas chamam Pirapoun Arepoty. Aqui a sorte me foi favorável, porque ganhei mais de quinhentos crownies nessa jornada. Depois dessa conquista, Manuel Mascarenhas retornou a Pernambuco (Knivet, 1906, p. 242)26.
Entre os documentos primários consultados, este é o único que menciona a construção de dois fortes às margens do rio Potengi. Em seu estudo sobre o Forte dos Reis Magos, Adler Homero Fonseca de Castro (2013, p. 43) concluiu que o forte inicial, construído às pressas em 1597 diante dos ataques, coexistiu com o definitivo, iniciado em 1598 e em condição de uso parcial em 1608. Porém, Anthony Knivet menciona “dois possantes fortes”, armados com peças de ferro, o que não condiz com as conclusões de Adler Castro.
No mais, todo o processo de conquista está envolto fundamentalmente em interesses de exploração primária, com vistas a algum benefício econômico, típico da mentalidade mercantilista da época. As diversas fontes documentais disponíveis evidenciam esse interesse, e, apenas a título de exemplo, podemos citar, entre outros documentos, tanto franceses27 quanto portugueses28, a “Relação das praças fortes, povoações e cousas de sua importância que Sua Majestade tem na costa do Brasil”, escrita pelo sargento-mor Diogo de Campos Moreno em 160929. A relação traz diversas informações sobre a Capitania do Rio Grande apenas 10 anos após a fundação de Natal: menciona a conquista do território contra os franceses, sua localização geográfica estratégica, descreve sucintamente a cidade de Natal e faz diversas considerações sobre sua fortificação, ambas fundadas por ordem real; trata da importância de se pro-teger o porto, descreve as condições de navegabilidade do rio Potengi, aborda as diversas produções da terra, tanto na criação (gado e seus derivados, como leite; porcos, galinhas, perus e outros) quanto no plantio (mandioca, arroz, milho, cana-de-açúcar, frutas diversas e legumes) e na pesca, além da exploração da madeira, mostrando, assim, a abundância local. Também cita animais silvestres. Chama a atenção o fato de que
a 23 léguas pela terra dentro na direitura deste rio [o Potengi] descobriu em dois de agosto de 608 o dito Jerônimo de Albuquerque grande quantidade de minas de ferro, com muita comodidade a se beneficiarem, tanto pela navegação deste rio, como porque vêm as ditas minas por terra a estar muito perto da povoação e fortaleza do Rio Grande e se poderá por aquela banda negociar por terra (Moreno, 1984, p. 188).
Diogo de Campos Moreno dá a entender uma relação mais amena entre os colonos e os potiguaras do litoral, após anos de destruição e morte. Diz que os indígenas trazem “papagaios mansos” para os moradores, “a troco de um anzol ou de uma faca”. Afirma haver na capitania sete aldeias “a cargo dos padres da Companhia”, totalizando de “oito a dez mil almas”; eles “são de paz, mui domésticos e mui preguiçosos”. Esses nativos vivem das frutas que a natureza oferece, mas também plantam e pescam. Fazem farinhas e vinhos, com os quais “ajudam no sertão a sustentar os brancos quando vão a algum efeito”. Há moradores espalhados ao longo do caminho que liga o Rio Grande à Paraíba, que ajudam os viajantes a atravessar os rios. Esses moradores vivem “em grande paz com os gentios”.
À guisa de conclusão: a carta de Feliciano Coelho à luz de outras fontes documentais sobre a conquista Capitania do Rio Grande
As considerações apresentadas por Feliciano Coelho dão à sua carta um caráter de veracidade histórica, pois ela não apenas confirma, mas também é confirmada dialeticamente pelo que outros documentos mais conhecidos desvendam sobre o episódio. Por outro lado, ao confrontá-la com outras fontes primárias coevas, há algumas nuances que precisam ser destacadas.
Comecemos pelas concordâncias, as mais evidentes. Feliciano Coelho apresenta um contexto amplamente confirmado por outras fontes, que podemos resumir nos seguintes pontos: 1. A presença francesa no litoral potiguar (e paraibano, limitando-nos a essas regiões específicas) e a ameaça que essa presença representava para a soberania luso-espanhola na região; 2. A aliança dos franceses com os potiguaras, habitantes do litoral; 3. O interesse dos “invasores” franceses na exploração dos recursos naturais existentes, desde minérios até madeira e outros; 4. A preocupação da Coroa, partindo do próprio Rei, Filipe II, com a salvaguarda da região, por meio de ordens para a expulsão dos franceses dessas paragens; 5. Os conflitos existentes não somente contra os franceses, mas também contra os potiguaras, seus aliados, pelo controle da capitania.
A dinamicidade da presença francesa no Rio Grande e na Paraíba transparece em um dado simples, registrado na própria carta do capitão-mor: o número de embarcações francesas que, em diferentes momentos, estiveram ancoradas nessas paragens. O informante francês afirmou haver “sete grandes naus francesas com homens de guerra ancorados no Rio Grande, e que havia mais 13 navios franceses de guerra que atacaram o forte de Cabedelo”. Após a tentativa frustrada de tomada desse forte, os franceses “levantaram vela e se foram para o Rio Grande; totalizam 20 embarcações ancoradas no Rio Grande”. No domingo de Pentecostes, 25 de maio de 1597, Feliciano Coelho e sua tropa atacaram e destruíram aldeias de “rebeldes” indígenas, aliados dos franceses. Nessa ocasião, ele foi informado de que havia “dez grandes naus francesas de guerra ancoradas no Rio Grande”. Durante o trajeto em direção ao Rio Grande, como vimos, a expedição militar que seguia por mar encontrou naus francesas em Búzios, no litoral potiguar, as quais lançaram velas ao ver aproximar-se a expedição. Gabriel Soares de Souza atestou a presença dessas naus em vários pontos da costa potiguar em seu Tratado descritivo do Brasil, de 1587.
No contexto mercantilista, o interesse maior das Coroas europeias nas terras conquistadas ou por conquistar estava na descoberta de minérios, principalmente ouro e diamantes. Já em 8 de junho de 1535, o rei D. João III concedia a João de Barros e a dois outros capitães-donatários, Aires da Cunha e Fernão Álvares de Andrade, o direito sobre as minas de ouro que eventualmente encontrassem em suas respectivas capitanias30. Aliás, essa concessão foi um dos motivos da primeira expedição fracassada ao Rio Grande, levada a cabo no mesmo ano pelos dois filhos do primeiro donatário, João e Jerônimo de Barros, como já mencionado. Tema pouco explorado na historiografia do Rio Grande do Norte para aquele momento, justamente por sua raridade, há indícios de sua exploração desde cedo. No mapa de Jacques de Vau de Claye, de 1579, afirma-se que “os portugueses (...) encontram ouro mais é proibido pelo Rei de Portugal disto fornecer, qualquer coisa, com medo dos franceses manter negócio com o português”31. Anthony Knivet também constatou a existência de “muitas pedras preciosas, diamantes, rubis e uma grande quantidade de safiras azuis, em algumas aldeias que se localizam perto do mar”. São, porém, afirmações que devem ser encaradas com certa reserva, pelo menos para aquele momento. A constatação de Anthony Knivet, por exemplo, é estranha, dadas as circunstâncias belicosas de então, a menos que se trate de butim de guerra extorquido dos indígenas derrotados.
Também há indícios de exploração da prata e do ferro. Segundo o informante francês da carta de Feliciano Coelho, os franceses exploravam grande quantidade de prata, que era carregada nos navios ancorados no Rio Grande. A mina ficava, contudo, em Copaoba, região serrana localizada em território paraibano32. Em determinado ponto da carta, afirma-se que “Mascarenhas me mandou dizer que quando ele ali foi, ele confirmou o que lhe havia sido reportado quanto às minas de prata”, frase situada em um contexto referente ao Rio Grande. Seriam, porventura, minas de prata encontradas também nessa capitania? De qualquer modo, sua exportação a partir dela ocorria, provavelmente, porque essa terra estava até então virtualmente sob o domínio francês.
Os holandeses também parecem ter explorado minas de prata na capitania, embora não tenham encontrado outros minérios, segundo nos informa Gaspar Barléu, historiador do período holandês, em sua obra publicada em 1647:
foram mandados ao sertão do Cunhaú Alberto Schmient e Paulo Semler, que auxiliados por índios e portugueses, procuraram ali minas e encontraram uma de prata. Pareceu ela opulenta, mas posteriormente enganou a expectativa. Havia também outras, as célebres de Albuquerque. Corria a fama de ter ele mesmo extraído delas grande quantidade de metais, mas não haviam sido ainda descobertas pelos nossos. Andavam igualmente na boca dos portugueses as minas da Copaoba e as do Cabo de Sto. Agostinho (Barléu, 1974, p. 48-49)33.
Na mesma carta de 20 de junho de 1734, já citada acima, o capitão-mor João de Barros Braga afirma ter se informado, junto a “pessoas práticas” e “veteranas” da capitania, sobre a existência de uma mina de prata no Jacu,
distante desta cidade quatro dias de viagem, e que se dizia ser de esmeraldas na paragem chamada Pituassu distante desta cidade oito dias de viagem sem regresso; com estas notícias me pus no descobrimento das ditas minas, esperando ocasião de chuvas para poder seguir viagem (...) e dando o lugar das minas que se deviam haverem nelas tirado prata os holandeses no tempo que senhorearam este estado (grifos nossos)34.
A existência desse minério, indicada no relato de Feliciano Coelho e nessas outras fontes posteriores, foi confirmada em um parecer do Conselho Ultramarino, de 21 de setembro de 1714, que atestava haver notícias de uma mina de prata na região entre as capitanias do Rio Grande e da Paraíba35. Quanto ao ferro, explorado por Jerônimo de Albuquerque já em 1608, segundo Diogo de Campos Moreno, desconhecemos outras fontes sobre tais minas no Rio Grande. As “célebres” minas de Albuquerque não foram encontradas pelos desbravadores holandeses, conforme nos informa Gaspar Barléu. Contudo, o ferro foi abundantemente utilizado, por exemplo, nas edificações.
Quanto a outros minérios, o capitão-mor João de Barros Braga, escrevendo em 20 de junho de 1734, cita locais na capitania onde se haviam descoberto esmeraldas, pedras de cor carmesim claro e outras azuis. Semelhantemente, a carta do provedor da fazenda do Rio Grande do Norte, Dionísio da Costa Soares, menciona a descoberta do ouro na Ribeira do Apodi em uma carta de 23 de abril de 175736. Ainda em 23 de maio de 1808, numa memória reunindo um plano detalhado de defesa do litoral da capitania em face de eventual ataque estrangeiro, dizia o capitão-mor José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (1864, p. 245), que ela “tem minas de preciosos metais e pedras preciosas”, sem especificá-las nem localizá-las.
Contudo, a riqueza da terra foi, durante muito tempo, calcada principalmente na exploração da agricultura, da pesca, da pecuária e do extrativismo vegetal - mais do que no mineral. A análise do documento da Repartição de Terras do Rio Grande, por exemplo, datado de 1614, revela que as atividades nele produzidas, tanto de subsistência quanto com fins econômicos, limitavam-se à criação de gado, ao plantio de roçados, à madeira - especialmente, mas não somente, o pau-brasil -, ao sal, encontrado nas salinas naturais do litoral, e a um ou dois engenhos de açúcar (Teixeira, 2014). Foi especialmente a pecuária que ensejou o processo de ocupação do interior e a formação de assentamentos urbanos, nos séculos XVII e XVIII. À luz dessas e de outras considerações, somos levados a concluir que a exploração mineral não foi o fator preponderante no processo de conquista, ocupação e colonização da Capitania do Rio Grande. Embora a descoberta de ouro, prata, ferro e outros metais preciosos tenha de fato ocorrido, não se compara, nem de longe, ao que se produziu nas regiões de mineração do Brasil colonial entre o fim do século XVII e o VIII, especialmente nas Minas Gerais.
Assim, o relativo desconhecimento sobre a existência de minérios nos primórdios da colonização levou franceses e portugueses a se voltarem para outros produtos encontrados na natureza. O pau-brasil, que aparece em documentos com o nome de “pau de tinta”, ou “o pau amarelo para tintas e outras madeiras”, como diz Diogo de Campos Moreno (1949, p. 562), está entre os mais explorados. Há outros itens, com destaque para o âmbar cinzento, de alto valor comercial, encontrado nas praias do litoral potiguar e citado por várias fontes (Moreno, 1949, p. 562; Vau de Claye, 1579; Knivet, 1906, p. 242; Brandão, 2010, p. 177, 180, 264).
Outro ponto que suscita comentários complementares na carta de Feliciano Coelho diz respeito ao seu tom triunfalista, pois já em agosto de 1597 ele diz ter subjugado e derrotado os franceses da região. Embora, de fato, ele tenha participado, como bom militar, de vários embates contra aqueles e contra seus aliados indígenas, e tenha demonstrado preocupação com potenciais insurreições, a derrota definitiva dos franceses só ocorreu quase quatro meses depois, com a grande expedição militar que se dirigiu ao Rio Grande e envolveu muito mais gente, munição, víveres e embarcações, da qual ele também participou como um de seus comandantes.
Também é digno de menção o fato de que os nativos potiguaras, aliados dos franceses e inimigos dos portugueses, depois de verem muitas de suas aldeias destruídas e muitos de sua gente mortos, tiveram que finalmente se curvar ao invasor português, assinando um acordo de paz. O sargento-mor Diogo de Campos Moreno, escrevendo em 1609, afirma que os sobreviventes, reunidos nas aldeias dirigidas por padres jesuítas, passaram a conviver e a dar sinais de colaboração com o processo colonial. O mesmo sargento-mor, escrevendo em 1612, também insinua a imposição da força militar para essa paz, ao afirmar que eles antes “comiam os hóspedes que aqui chegavam, e hoje com paz e quietação grande a respeito da fortaleza ajudam e encaminham todos os que por mar e por terra aqui chegam como experimentou o Governador Dom Diogo de Menezes” (Moreno, 1949, p. 559). Ou seja, a presença da fortaleza parece dissuadi-los de qualquer reação. Certamente, foram obrigados a se submeter à colonização contra a qual se haviam rebelado após tanto sofrimento, perseguição e morte. Contudo, continuavam os conflitos. Os autos da repartição de terras do Rio Grande registraram conflitos pontuais por terra entre colonos e indígenas nas redondezas de Natal entre 1605 e 1608 (Teixeira, 2014, p. 113). Esses conflitos seriam muito mais intensos com os Tapuias do interior durante a ocupação holandesa do Rio Grande (1633-1654) e principalmente durante a chamada Guerra dos Bárbaros (c. 1683-1720), mas esse é um tema que foge aos objetivos deste artigo.
Feliciano Coelho não menciona as ordens do Rei Filipe II sobre a necessidade de construção de um forte e fundação de uma “povoação”, isto é, uma cidade, em complemento à expulsão dos franceses do Rio Grande. Porém, outras fontes, como Frei Vicente do Salvador (1918, p. 359), explicitam as três determinações. Ele certamente tinha isso em mente, por exemplo, ao informar Mascarenhas Homem para, ao chegar ao Rio Grande ou Potengi, “examinar a situação do lugar e onde melhor fortificar e construir alguns fortes para a defesa desse rio, onde a necessidade o exigisse”. Aliás, algo pouco explorado nos estudos a respeito, a carta de Feliciano Coelho, corroborada pelo relato de Anthony Knivet, atesta que o capitão-mor da Paraíba e demais comandantes participaram de outros combates em território potiguar além da grande expedição de dezembro de 1597.
Quanto aos autoelogios que caracterizam sua carta, esse era um recurso muito utilizado no período colonial. As autoridades, em especial, faziam uso desse expediente para conseguir algum benefício da Coroa ou para acessar cargos ainda mais importantes. No que se refere às críticas aos colegas, elas surpreendem à primeira vista, pois estão ausentes em outras fontes disponíveis sobre a conquista do Rio Grande. Pelo contrário, a empreitada parece bem coordenada e harmoniosa entre os diversos comandantes, dentre os quais Feliciano Coelho, Mascarenhas Homem, Jerônimo de Albuquerque e o próprio Dom Francisco de Souza, governador-geral que, da Bahia, forneceu parte indispensável dos recursos para aquele empreendimento. Aliás, tudo parece ter seguido recomendações expressas pelo próprio Feliciano Coelho.
A própria carta fornece, no entanto, a razão para o tom claramente virulento, principalmente contra Dom Francisco de Souza, pois discorre sobre um conflito de interesses envolvendo o capitão-mor e os frades do monastério de Santo Antônio quanto ao governo das aldeias indígenas da Paraíba. O governador-geral, juiz do caso, deu um veredito desfavorável ao capitão-mor, acompanhando uma sentença igualmente contrária, proferida pelo Reverendo Pai Custódio, Prior de Santo Antônio do Brasil37. Por isso, a animosidade de Feliciano Coelho também se dirigia aos religiosos, como vimos, quando ele alegou que Mascarenhas Homem foi impedido de lhe enviar os soldados que estavam na guarnição de Pernambuco para lhe “socorrer e defender esta capitania do inimigo”, porque os frades do convento não permitiram.
Enfim, o capitão-mor da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, foi uma figura central no processo de conquista da Capitania do Rio Grande, um dos seus “heróis” segundo a perspectiva colonial - não indígena e não francesa, evidentemente. Com todos os exageros e interesses típicos de sua época, sua missiva é um documento que não pode ser negligenciado no estudo desse momento tão crucial da conquista e ocupação inicial do território do Rio Grande do Norte, como parece ter sido até agora, em grande parte.
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1
Na eventualidade de ser encontrado o documento original em português, de 1597, diferenças formais inevitáveis serão naturalmente identificadas em relação à nossa tradução, cujo conteúdo é o mais fiel possível à versão em inglês do documento original.
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Por meio de sua grande frota de navios e de seus vários navegadores experientes e intrépidos, Jean Ango (1480-1551) era um terror para a Coroa portuguesa, mas também espanhola, nos mares e ao longo da costa das Américas e da África (Gaffarel, 1889, p. 3).
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Chegando pela primeira vez ao Brasil ao porto da Bahia, e entrando pelo rio Paraguaçu, ali os franceses “fizeram seus resgates e tornaram com boas novas” à França, de onde retornaram depois três naus ao mesmo local. Foram então surpreendidas por “quatro naus da armada de Portugal e queimaram-lhe duas naus e outra lhe tomaram com o matar de muita gente, alguma da qual todavia escapou em uma lancha e achou na ponta de Itapuama 4 léguas da baia uma nau dos seus que se tornou para a França, e nunca mais tornaram à baia até agora (...); os franceses não desistiram do comércio do Brasil e o principal foi no Cabo Frio e Rio de Janeiro” (Jhus, 1844, p. 412-413). Paul Gaffarel (1889, p. 23-24), que também menciona esse documento, vai além, citando uma tradição segundo a qual Jean Cousin teria chegado à costa brasileira em 1488. Está mais convicto ao afirmar que outro francês, o capitão normando Paulmier de Gonneville, chegou às terras brasileiras em 1503, levando inclusive indígenas na sua viagem de retorno à França. O documento deixado por Gonneville dá a entender, continua o autor, que ele teria sido precedido por outros da mesma nação. Gonneville fez uma segunda viagem ao Brasil.
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4
Para um estudo mais detalhado desses diversos aspectos, cf. Gaffarel (1889, p. 59-72).
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5
Trad. livre do autor: “Combien de motifs de plaintes avaient les sujets du roi de Portugal contre les corsaires français, qui, depuis le commencement du siècle, avaient capturé plus de trois cents bâtiments représentant un million de cruzades, sans compter le préjudice causé au trésor royal”.
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6
Documento pelo qual o Rei autorizava armadores de sua nação a atacar e pilhar navios e localidades de outro soberano.
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7
Só na primeira metade do século XVI, Paul Gaffarel encontrou, na documentação disponível, os seguintes nomes e seus respectivos navios: em 1523, Jacques de Saint-Maurice; em 1539, Nicolas Guimestre, no Madeleine; em 1541, Guillaume Houzard, no Perrine; Richard Buisson, no Madeleine; Jean Laurens, no Marye; Jean Hardis, no Fleurye; Geoffry Penne, no Bonne adventure; Martin Cavalier, no Marie; Gérard Mallet, no Loyse; Robert Michel e Christophe Lyoneys, no Catherine; em 1544, Olivier Vasselin, no Autruche; em 1546, Nicolas Lemarinier, no Bonne Adventure; em 1549, Rogné e Jean Féré, no Salamandre; Thomassin Auber, no Trinité; e Morel, no Blanche. Esses homens eram originários de Honfleur, Rouen, Dieppe e outras cidades francesas. Paul Gaffarel (1889, p. 27-28) acrescenta a essa lista a constatação de que “seria fácil acrescentar outros nomes, mas nós só poderíamos confirmar o que acabamos de avançar, isto é, que o Brasil era, nos primeiros cinquenta anos desse século, frequentado por nossos compatriotas mais do que qualquer outra região americana”.
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Trad. livre do autor: “Mais c’est contre les Portugais que les entreprises de Jean Fleury devaient se manifester avec le plus d’activité. Partageant la haine de ses compatriotes normands contre ce peuple cruel, atteint -- peut-être dans ses proches, certainement dans ses amis et dans ses intérêts par de barbares exécutions à la côte du Brésil, il poursuivit pendant sept ans ses navires sur toutes les mers et devint la terreur des marins de cette nation (…) on conserve dans les archives de Torre do Tombo, en Portugal, le texte des réclamations rédigées par le docteur George Nunes, jurisconsulte, représentant du gouvernement de Jean III, délégué officiellement au tribunal des prises composé de juges français et portugais réunis à Bayonne en 1539. Certaines ont trait aux captures faites par Jean Fleury de 1521 à 1527. Elles ont été rédigées après une enquête minutieuse dans les diverses localités du Portugal”.
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9
Diogo de Campos Moreno (1949, p. 518-562), escrevendo em 1612, deveria estar se referindo aos franceses quando afirma que, na Capitania do Rio Grande, os corsários “vinham aqui do resgate da Mina a sarar das enfermidades da Guiné, e consertando suas naus, o fornecendo de mantimentos, água e lenha, que lhes davam os índios nesta parte, aportavam depois onde lhes parecia, o que hoje não podem fazer com tanto cômodo por razão desta fortaleza [dos Reis Magos]”. Evidencia-se, nessa declaração, que esses corsários faziam a travessia do Atlântico entre a África e a costa potiguar.
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Alguns historiadores negam que Aires da Cunha tenha estado no litoral potiguar (Cascudo, 1955, p. 17-18).
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Porém, Tavares de Lyra (2008, p. 31, grifos nossos) transcreve apenas a frase inicial, levemente modificada: “de cinquenta léguas ao longo da costa dos pitiguares e vinte e cinco na boca do Maranhão”.
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12
Autor anônimo. Parece obra de algum padre espanhol, talvez Gaspar de Samperes, segundo Leite (1938, t. 1, p. 527-529).
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A referência aos franceses, “quando ali continuavam”, confirma que eles já haviam sido expulsos da Capitania do Rio Grande naquele ano.
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Trad. livre do autor: “Here inhabit a kinde of Canibals, called Petywares: these Canibals have had trafficke along time with France, and amongst them there are many that can speake French, which are Bastards, begotten of Frenchmen”.
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Trad. livre do autor: “Quelli della terra (…) amano più li Francesi che qualunque altra gente che qui pratichi”. O discurso é muito provavelmente datado de 1535.
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“Essa cordialidade de relações dava-se com quase todas as tribos, não porque os franceses fossem mais hábeis do que os portugueses, mas porque, sem outro intuito que não fosse encontrar facilidade no contrabando, se abstinham de empregar a violência, de usar da força. Não pretendiam colonizar e, por isso, serviam-se de processos diferentes, não movendo guerra aos indígenas: esforçavam-se, pelo contrário, em agradá-los, para tê-los sempre ao seu lado” (Lyra, 2008, p. 33).
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17
Sobre os “insultos” dos colonos portugueses contra os nativos, este Rei, que era então D. João III, devia receber informações de gente como Duarte Coelho, donatário da Capitania de Pernambuco. Escrevendo de Olinda em 20 de dezembro de 1546, ele pede a esse soberano que não mande mais degredados para a sua capitania, pois “nenhum fruto nem bem fazem na terra, mas muito mal e dano (...) e temos perdido crédito que até aqui tínhamos com os índios, porque o que Deus e a natureza não remediou, como eu posso remediar, Senhor, senão com cada dia os mandar enforcar (...) são piores aqui do que peste, pelo que peço a Vossa Alteza, pelo amor de Deus, que tal peçonha por aqui não me mande” (Mello; Albuquerque, 1997, p. 102).
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18
Contudo, Pero Rodrigues, um dos jesuítas que atuou no processo de conquista da Capitania do Rio Grande, afirma, em carta datada de 19 de dezembro de 1599, que houve tempos em que os potiguaras “comerciavam com os Portugueses, com muita paz e proveito de ambas as partes”, mas que foram provocados por alguns deles, que “com muitos cativeiros, se vieram a levantar e fazer cruel guerra, matando os Índios, que estavam em paz” (Leite, 1938, t. 1, p. 514).
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19
Devido às várias transcrições da carta, evitamos as referências constantes à fonte. Para todas elas, cf. Carvalho (1890, p. 283-290). Também não incluímos o texto original, em inglês, para não alongarmos sobremaneira o presente artigo.
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Essa carta é citada na missiva de Feliciano Coelho, mas não há qualquer registro documental conhecido a respeito.
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A menos que tenha acontecido mais de um ataque em datas muito próximas, acreditamos que o segundo ataque aconteceu no dia 29 de julho, como citado na carta de Feliciano Coelho, e não no dia 25, como menciona Capistrano de Abreu. O ataque a Cabedelo também aconteceu pouco antes da carta, pelas datas que o historiador mesmo cita, e não depois. A carta menciona inclusive esse ataque.
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Ele que foi “o primeiro a formular um projeto para a ocupação francesa do norte do Brasil, em 14 de maio de 1594 partiu no comando de três navios com o objetivo de efetuar as primeiras conquistas”. Cf. JACQUES RIFFAULT. In: BRASILHIS data base. Redes pessoais e circulação no Brasil durante o período da Monarquia Hispânica (1580-1640). Disponível em: https://brasilhis.usal.es/pt-br/node/1916. Acesso em: 31 dez. 2023.
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As muitas referências ao “forte dos Reis”, concluído e “inaugurado” no dia 24 de junho, dia de São João Batista, de 1598; a visão de usurpadores que os portugueses tinham dos franceses, já que aqueles se consideravam os donos legítimos da terra, ou ainda o envolvimento de súditos espanhóis no empreendimento de conquista da capitania em razão da união das duas Coroas.
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24
VAU DE CLAYE, Jacques de. [Carte de la côte du Brésil] Jacques de Vau de Claye m'a faict en Dieppe l'an 1579. Dieppe, 1579. 1 mapa, color. Bibliothèque Nationale de France. Disponível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b550026193/f1.item. Acesso em: 2 jan. 2024.
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Feliciano Coelho deixou o governo da Paraíba em 1600, e esse episódio ocorreu por volta de setembro de 1601. Teria ele permanecido na capitania por mais algum tempo?
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Trad. livre do autor: “This conquest being ended, our Captaine General Mascarenhas presently built two strong Forts hard by the Towne, on the River side, and sent to Pernambuco for forty cast Peeces of Iron, placing twenty in either Fort, many soldiers got at this conquest very rich stones, both Diamonds, Rubies, and great store of blue Saphires, in some small villages that stood by the Sea side. We found great store of Ambergreece which the Indians call Pirapoun Arepoty, here fortune was somewhat favourable unto me, for I got above five hundred Crownes in this journey. After this conquest was ended, Manuel Mascarenhas returned again to Fernambuquo” .
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27
A exemplo do mapa de 1579, feito em Dieppe por um cartógrafo francês, Jacques de Vau de Claye, intitulado [Carte de la côte du Brésil] Jacques de Vau de Claye m'a faict en Dieppe l'an 1579. Esse mapa, juntamente com outro que o mesmo cartógrafo fez do Rio de Janeiro, eram destinados à malograda expedição organizada por Catarina de Médici, rainha da França, e seu primo Philippe Strozzi para conquistar terras do Brasil. Em 1582, a frota de Strozzi foi atacada e desbaratada por navios espanhóis nos Açores (França; Hue, 2014, p. 166). Entre várias informações de interesse, o texto inserido no mapa mostra que, além da exploração intensa do pau-brasil, os franceses se interessavam por outros produtos, como o âmbar cinzento, o ouro - que se alega ser encontrado por portugueses - e aves silvestres.
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A exemplo do Tratado descritivo do Brasil em 1587, de autoria de Gabriel Soares de Souza, que descreve as diversas investidas de navios ao longo da costa potiguar, várias delas identificadas como francesas, que aqui vinham em busca da exploração do “pau de tinta” (Souza, 1851).
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Cf. Moreno (1984, p. 177-244). Segundo introdução ao documento, de José Antônio Gonçalves de Mello, a relação foi feita a mando do governador-geral Diogo de Menezes, por sua vez cumprindo ordens do Rei Filipe II de Portugal. “A relação” se constituiu na versão preliminar do Livro que dá razão do Estado do Brasil, de 1612, do mesmo Diogo de Campos Moreno (1949), que contém acréscimos e modificações em relação a essa versão inicial (cf. Moreno, 1984, p. 179-180).
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30
“Doação das minas de ouro e prata das respectivas capitanias de João de Barros e outros”, registrada em “2 ANTT, Chancelaria de D. João III, Liv. 21, fl. 64” (apud Pereira, 2021, p. 30).
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31
VAU DE CLAYE, Jacques de. [Carte de la côte du Brésil] Jacques de Vau de Claye m'a faict en Dieppe l'an 1579. Dieppe, 1579. 1 mapa, color. Bibliothèque Nationale de France. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b550026193/f1.item. Acesso em: 2 jan. 2024.
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Foi local de batalhas entre portugueses e potiguaras em novembro de 1585, logo após a fundação da cidade de Nossa Senhora das Neves, atual João Pessoa, em agosto do mesmo ano (Salvador, 1918, p. 302-305). Fica a cerca de 130 km da capital paraibana.
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33
Sobre o conhecimento e a tentativa de exploração da mina de Cunhaú pelos holandeses, inclusive com citação de outras fontes coevas, cf. o estudo de Medeiros Filho (1989, p. 33-38).
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34
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Lisboa. Parecer [do Conselho Ultramarino] sobre a nomeação de pessoas para o cargo de provedor da Fazenda Real do Rio Grande do Norte. Anexo: aviso; despacho e parecer do Conselho Ultramarino; requerimento e documentos de serviço de Dionísio da Costa Soares. Rio Grande do Norte, cx. 6, doc. 366, 22 fev. 1753. O nome citado - Jacu - nos leva a supor que se trata de uma região próxima ao litoral ou pelo menos se inicia nele. O atual rio Jacu, cuja nascente está na Paraíba, deságua no litoral oriental, na lagoa Guaraíra, ao sul de Natal e que se conecta ao mar.
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ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Lisboa. Parecer do [Conselho Ultramarino] sobre o relato de Francisco Ponce de Leon, acerca da existência de uma mina de prata entre as capitanias do Rio Grande do Norte e Paraíba, e da conveniência de mandar examiná-la pelo mineiro Manuel Cruz Santiago. Anexo: aviso. Rio Grande do Norte, cx. 1, doc. 79, 21 set. 1714.
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ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Lisboa. Parecer [do Conselho Ultramarino] sobre a nomeação de pessoas para o cargo de provedor da Fazenda Real do Rio Grande do Norte. Anexo: aviso; despacho e parecer do Conselho Ultramarino; requerimento e documentos de serviço de Dionísio da Costa Soares. Rio Grande do Norte, cx. 6, doc. 366, 22 fev. 1753; ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Lisboa. Carta [do provedor da Fazenda Real] do Rio Grande do Norte, Dionísio da Costa Soares, ao rei [D. José] sobre o exame e vistoria ordenados pelo governador de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva, às minas de ouro achadas no Serrote do “Cabelo Não Tem”, na Ribeira do Apodi. Anexo: auto de exame e vistoria (certidão). Rio Grande do Norte, cx. 7, doc. 402, 23 abr. 1757. A Ribeira do Apodi, no alto sertão, é bem distante do litoral, diferentemente das primeiras explorações dos tempos da conquista, obviamente próximas à costa.
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O governador ordenou que Feliciano Coelho restaurasse as aldeias e casas que ele havia destruído nos últimos conflitos, inclusive a aldeia de São Agostinho. O governador diz que “o senhor terá de construí-las com seus próprios recursos e fazenda; pois os frades alegam que essas aldeias lhes foram concedidas por decreto a eles enviados pelo Papa Pio Quinto, que os ditos frades devessem governar e regular sobre elas”. O capitão-mor, após argumentar que no temporal era ele que tinha a incumbência de punir os que se revoltavam contra Sua Majestade, a quem pertenciam “aquelas aldeias, povoações e vassalos”, e entre outros pontos, justifica ter queimado aldeias indígenas “nessa última rebelião”, porque “se Sua Majestade não mantiver a ordem nesta terra e examinar esses casos, isso vai gerar grande dissensão e revolta entre nós, e ficaremos prontos para cortar as gargantas uns dos outros em pouco tempo”.
Agradecimento
O presente artigo é, com alterações e acréscimos, parte de um dos capítulos de um livro, ainda a ser publicado, produto da Bolsa PQ/CNPq n° 304305/2019-7 (vigência 2020-2022), referente à pesquisa intitulada “A ameaça que vem do mar: A ocupação do litoral potiguar a partir dos conflitos potenciais ou reais relacionados ao mar (séc. XVI-XX)”.
Referências
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Editoras responsáveis:
Hanna Sonkajärvi e Silvia Liebel
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
22 Jan 2024 -
Aceito
11 Jun 2024


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