Open-access Tragédia ou a redenção do mulato: contrastes da literatura brasileira e cubana, c. 1830 e c. 1870

Tragedia o redención del mulato: contrastes de la literatura brasileña y cubana entre 1830 y 1870

RESUMO

O artigo compara a literatura antiescravista brasileira e cubana entre 1830 e 1870, destacando o uso de protagonistas mulatos quase brancos para denunciar a escravidão e as hierarquias raciais das sociedades escravocratas. A análise parte do debate teórico sobre Nação (Smith, Brennan e Sommer) e abrange a literatura romântica e realista, demonstrando diferenças temporais e contextuais: entre 1838 e 1841, nas novelas cubanas, a rígida hierarquia social impedia a ascensão dos mulatos; no Brasil, entre 1857 e 1875, a literatura propunha a inclusão desses personagens na aristocracia local. Assim, a literatura antiescravista brasileira abordou a construção da identidade nacional e a aceitação parcial da mestiçagem no Brasil, temas desenvolvidos, bem mais tarde, por Gilberto Freyre e Oracy Nogueira.

Palavras-chave:
literatura; escravidão; mulatos; Cuba; Brasil

ABSTRACT

This paper compares Brazilian and Cuban anti-slavery literature between 1830 and 1870, highlighting the use of almost-white mulatto protagonists to denounce slavery and the racial hierarchies of slaveholding societies. The analysis begins with the theoretical debate on Nation building (Smith, Brennan, and Sommer) and encompasses romantic and realist literature, demonstrating temporal and contextual differences: between 1838 and 1841, in Cuban novels, the rigid social hierarchy prevented the advancement of mulattoes; in Brazil, between 1857 and 1875, literature proposed the inclusion of these characters in the local aristocracy. Thus, Brazilian anti-slavery literature addressed the construction of national identity and partial acceptance of miscegenation in Brazil, themes later developed by Gilberto Freyre and Oracy Nogueira.

Keywords:
Literature; Slavery; Mulattos; Cuba; Brazil

RESUMEN

El artículo compara la literatura antiesclavista brasileña y cubana entre 1830 y 1870, destacando el uso de protagonistas mulatos casi blancos para denunciar la esclavitud y las jerarquías raciales de las sociedades esclavistas. El análisis parte del debate teórico sobre Nación (Smith, Brennan y Sommer), y abarca la literatura romántica y realista, demostrando diferencias temporales y contextuales: entre 1838 y 1841, en las novelas cubanas, donde la rígida jerarquía social impedía el ascenso de los mulatos; en Brasil, entre 1857 y 1875, la literatura proponía la inclusión de estos personajes en la aristocracia local. De esta forma, la literatura antiesclavista brasileña abordó la construcción de la identidad nacional y la aceptación parcial del mestizaje en Brasil, temas desarrollados, mucho más tarde, por Gilberto Freyre y Oracy Nogueira.

Palabras clave:
literatura; esclavitud; mulatos; Cuba; Brasil

Muitos personagens de romances e peças teatrais antiescravistas são mulatos, filhos de pais brancos e mães pretas ou mulatas1. Os negros escravizados não tiveram o mesmo destaque, raramente sendo protagonistas das publicações. Essa evidência baseia-se na análise de produções de autores cubanos e brasileiros, comunidades literárias que não mantiveram contatos ao longo do século XIX. Ainda que seguissem tradições literárias distintas, esses autores estavam imersos em sociedades muito semelhantes: sociedades escravistas compostas por um expressivo contingente de mulatos e negros livres, libertos e escravizados. Essa dinâmica social, promovida pela escravidão, tráfico e imigração, concedia aos literatos inspiração para compor enredos de romances e peças teatrais. A hierarquia racial pouco diferia nesses territórios escravistas tão distantes. Com a entrada de escravizados desde fins do século XVI, a população brasileira era bem mais mestiça, e os pardos formavam o grupo mais destacado no Brasil. Em Cuba, a população escravizada era proporcionalmente bem mais relevante, mas essa evidência não se traduziu em maior destaque dos escravizados na literatura da ilha. A demografia, portanto, não explica o protagonismo dos mulatos na literatura antiescravista, embora o crescimento numérico dos mestiços seja um dado incontornável para entender os conflitos sociais envolvendo o grupo (BERGAD, 2007, p. 64-131).

O artigo analisa romances e textos dramáticos (teatrais) que se inserem no romantismo e no realismo, na primeira fase da literatura antiescravista, quando os mulatos se tornaram protagonistas. Para João Roberto Faria (2022), as estéticas românticas e realistas, em princípio antagônicas, orientaram os dramaturgos e romancistas brasileiros entre 1857 e 1875. Em Cuba, segundo Ivan Schulman (1977), na literatura antiescravista fundiam-se o romantismo, o realismo e o costumbrismo, entre 1838 e 18412. Enfim, para além da defasagem temporal, essas obras empregam os mesmos estilos literários e elegeram os mulatos como protagonistas. Os personagens se destacam pela beleza, por vivenciarem relações abusivas impostas pelos senhores, embora se comportassem de forma civilizada e pacífica, características, segundo os autores, incompatíveis com a dureza do cativeiro. No presente artigo, essa literatura antiescravista ainda nos serve particularmente para analisar como os mulatos se inseriam na nação.

Literatura e nação

Desde o fim do século XVIII, os Estados promoveram três revoluções (administrativa, econômica e cultural) responsáveis por incorporar diversas comunidades, tanto as etnias rurais e urbanas quanto as classes médias e baixas que habitavam o território. As políticas ativas de sociabilização promoveram a criação de nações secularizadas com o apoio do sistema educativo público. Essa política de Estado viabilizou a propagação gradual da cultura étnica aristocrática, que se transformou em uma cultura mais autenticamente nacional, formando uma cultura cívica, étnica e socialmente inclusiva (SMITH, 1990, p. 54-55). A construção do Estado-nacional estava profundamente vinculada à imaginação literária desde o fim do século XVIII. Para Benedict Anderson (2008, p. 71-83), a consciência nacional se consolidou por meio da integração de diversas formas de comunicação, do capitalismo tipográfico, da criação e difusão da língua oficial por meio da imprensa e das escolas, que viabilizavam a reprodução contínua do conhecimento. As tarefas políticas do nacionalismo moderno, segundo Timothy Brennan (1990), direcionaram o curso da literatura, ao recorrer tanto aos conceitos românticos de “caráter popular” e “língua nacional” quanto à compartimentação das “literaturas nacionais”. Assim, a literatura participou da formação das nações por meio da “mídia impressa nacional”. O romance acompanhou historicamente o surgimento da nação, ao buscar forjá-la a partir da fusão de idiomas e costumes locais. A imprensa buscava padronizar a linguagem, incentivar a alfabetização e eliminar a incompreensibilidade mútua. Sua difusão em livros e jornais permitiu que as pessoas imaginassem a nação como uma comunidade especial (BRENNAN, 1990, p. 48-49).

Seguindo esse mesmo viés, mas direcionado à literatura latino-americana, Doris Sommer (1991, p. 7-12) apontou a extraordinária conexão entre os romancistas e os políticos fundadores das jovens nações da América Latina. Em meados do século XIX, os romances e as histórias patrióticas se desenvolveram e juntos promoveram ardentes desejos de felicidade e sonhos de prosperidade nacional, usando paixões privadas com objetivos públicos. Os políticos e os intelectuais não tinham somente a missão de preencher as lacunas de uma história capaz de legitimar o nascimento da nação, mas também de empurrar a história em direção a esse futuro ideal. Na América independente, muitos romancistas participaram ativamente da construção do Estado-nação e, por vezes, buscaram implementar os planos elaborados na ficção. Eram literatos e ao mesmo tempo participavam do legislativo e mesmo de campanhas militares. Vale ainda mencionar como os modelos sociais defendidos nos romances estavam alicerçados nas famílias, pois constituíam uma força estabilizadora, promotora da segurança nacional. Na América Latina, a família e o Estado buscavam mitigar a instabilidade promovida pelo choque entre alianças públicas e privadas. Assim, a construção da nacionalidade tornou-se tema -incontornável da ficção forjada pelos pais fundadores. Eles criaram modelos de sociedade que se contrapunham aos valores civilizacionais da Europa (SOMMER, 1991, p. 30-33).

Partindo do princípio de que o nacionalismo antecede e fomenta a nação (SMITH, 1990, p. 64), Cuba não era uma nação, mas a identidade cubana, a cubanidad, impulsionava a construção da nação soberana. Quando a América Latina debatia intensamente sua nacionalidade, os cubanos ainda lutavam contra a opressão da metrópole e contra planos de anexação aos Estados Unidos. Conforme o ilustrado José Antonio Saco (apud AGUIRRE, 1990, p. 90-103), a identidade cubana estava baseada na origem comum, na língua, nos usos e nos costumes. Enfim, antes das lutas de independência, Cuba não era uma nação, pois não contava com soberania e governo independente, mas a nação cubana estava em marcha.

Nesse sentido, o advogado, escritor e crítico literário Domingo del Monte organizava, em Havana, na década de 1830, tertúlias destinadas a pensar os destinos da ilha e a produzir narrativas antiescravistas. Eles lutavam não somente pela abolição do tráfico e pela melhoria do cativeiro, mas também por condições mais favoráveis à elite cubana na construção do Estado liberal espanhol. Del Monte incentivava a descrição realista do cotidiano rural e as denúncias das péssimas condições vividas pelos escravizados, influenciado pelo realismo literário francês. A literatura tornava-se não somente um instrumento de combate à escravidão, mas também uma promotora da cubanidad, do conhecimento sobre Cuba, sua natureza, sua língua e seus costumes. Essas narrativas se apoiavam no discurso liberal e se opunham aos traficantes de escravos e plantadores, protestavam indiretamente contra as intervenções autoritárias do governo espanhol (MANZANO, 2009, p. 67-96; LUIS, 1990, p. 28-39; FERRER, 2002).

De todo modo, os escritos delmontinos prestam-se sempre a controvérsias. Em princípio, não defendem o fim da escravidão, mas a sua reforma: melhores condições materiais e o controle da violência imposta aos escravizados. Como proprietários, os romancistas, e sobretudo Domingo del Monte, atenuaram suas críticas ao sistema escravista e destacaram a passividade dos personagens negros e mulatos. Temiam a revolta escrava e a punição do governo espanhol. Eram, sobretudo, defensores de Cuba e entendiam a escravidão como um entrave à modernização. O escritor Félix Tanco seria uma exceção, pois, desde seus primeiros escritos, condenou o cativeiro. Era efetivamente um abolicionista, embora reforçasse a percepção racista dos negros (FIVEL-DÉMORET, 1989). Os cubanos lutavam por maior soberania e enfrentaram a dura repressão, responsável por proibir a publicação de suas obras e por levá-los ao exílio na França e nos Estados Unidos. A produção de romances antiescravistas logo se extinguiu devido à perseguição intensa aos abolicionistas, desencadeada pela repressão contra a Conspiración de la Escalera no início da década de 1840 (REID-VAZQUEZ, 2011; FINCH, 2015). Aliás, devido à repressão e à censura, os romancistas cubanos escreveram seus livros no curto período entre 1838 e 1841. Somente se publicou na Espanha o livro Sab (1841), de Gertrudis Gómez de Avellaneda; os demais vieram a público em Nova Iorque (1880) e Havana (1925), enquanto os brasileiros, a partir da década de 1860. A defasagem dificulta a comparação, mas não a inviabiliza3.

Para Richard Graham (2001), no Brasil, as elites políticas e econômicas promoveram a independência, criaram um Estado capaz de fomentar a nação e manter a ordem social, ameaçada por revoltas populares e escravas. Como Eric Hobsbawm, ele defende que as nações não promoveram os Estados, mas o contrário. Ao seguir esse mesmo princípio, Ilmar de Mattos (1987) entende o Estado não somente como um aparato coercitivo, mas também como agente promotor da cultura, dos valores e da nação. A independência política e o romantismo tiveram impacto decisivo na formação da literatura brasileira. Incentivaram o surgimento de novos gêneros, novas concepções formais para exprimir aspectos da realidade, no âmbito individual, social e natural. Assim, a literatura fazia parte do projeto mais amplo de construção da nação. As ideias românticas buscavam exprimir uma nova ordem de sentimentos e o orgulho patriótico, pois a literatura nacional era a contrapartida às literaturas europeias e à portuguesa. Enfim, cabia aos intelectuais participar da construção nacional (RICUPERO, 2004, p. 110).

No Brasil, os primeiros autores românticos publicaram suas obras na década de 1840 e pretendiam descrever a exuberante natureza, assim como os costumes das comunidades indígenas e luso-brasileiras. Buscavam demarcar as características locais da produção literária brasileira. A partir de 1860, os romances antiescravistas surgiram com mais intensidade, sobretudo após a Guerra do Paraguai (1864-1870), quando passaram efetivamente a debater os destinos do cativeiro (CANDIDO, 2002, p. 21-75). Essas obras não faziam parte de um determinado projeto político, apresentaram abordagens bem distintas da escravidão, circulavam inicialmente nos jornais e seus autores não sofreram repressão governamental, como ocorreu com os cubanos. Antes da década de 1860, nos romances, mulatos e negros não atuavam como protagonistas. Datado de 1859, o livro da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis inaugurou o debate antiescravista na literatura brasileira e forneceu informações valiosas sobre a memória e o cotidiano dos escravizados, mas os protagonistas do romance ainda eram brancos (SILVA; VASCONCELOS, 2020, p. 84-106).

Os principais romancistas exploraram o tema da escravidão somente dez anos após a publicação de Maria Firmina. A essa altura, José de Alencar já discutia o problema em duas peças teatrais: O demônio familiar e Mãi, encenadas entre 1857 e 18604. Aliás, o romance não foi o principal veículo da causa antiescravista; o teatro brasileiro teve papel preponderante. Os dramaturgos enfrentaram o tema sob diversas perspectivas, mesmo sob a censura do Conservatório Dramático, criado no Rio de Janeiro em 1843 (SAYER, 1958, p. 257-312; FARIA, 2022, p. 51-57). Na Cuba oitocentista, a cena teatral era intensa e muito influenciada pela dramaturgia espanhola e europeia. O tema da escravidão era perseguido pela censura, razão para bani-lo da dramaturgia cubana do período. Na comédia, destacavam-se as peças do espanhol Bartolomé Crespo y Borbón. Com o pseudônimo Creto Gangá, ele consagrou o personagem do negrito cubano, responsável por apresentar ao público os costumes e a língua própria dos negros livres e escravizados em Cuba (CRUZ, 1974, p. 59-68). Essa dramaturgia escapava da censura, pois não reivindicava o discurso antiescravista.

A tragédia do mulato

O escritor e poeta Félix Tanco y Bosmeniel escreveu o romance Petrona y Rosalía em 1838, mas sua publicação tornou-se possível somente em 1925; por todo esse tempo o texto permaneceu em manuscrito. A novela conta a história de duas mulheres escravizadas, mãe e filha. Tudo começou quando Doña Concepción desconfiou que sua mucama, a “negra Petrona”, estivesse grávida e comentou com o marido, Don Antonio, sobre a decisão de castigá-la. Ordenou o envio de Petrona à fazenda, onde recebeu castigos e, grávida, passou a trabalhar nos engenhos e lavouras. Don Antonio tentou dissuadir a esposa de aplicar a dura punição, mas a senhora não cedeu. Meses depois, nasceu Rosalía, uma mulata. Ficava evidente que o progenitor da menina era branco. Em poucos anos, Doña Concepción decidiu levar, como um adorno, a bela menina a Havana. Em princípio, Petrona considerou a notícia uma dádiva, pois retornaria à cidade com a filha. Mas isso não aconteceu. Ela permaneceu na rotina árdua da fazenda, enquanto a filha passou a viver com os senhores na cidade e a desfrutar de boas roupas, sapatos e joias. Tornou-se moça bonita e elegante, com “olhos negros e cílios compridos e cheios de viva sedução” (TANCO Y BOSMENIEL, 1980, p. 10-17)5. Passou a viver atormentada pelos galanteios de Don Fernando, filho único e mimado dos senhores. Rosalía cedeu aos desejos do rapaz quando recebeu a promessa do retorno da mãe a Havana. Não tardou para Rosalía engravidar e para Fernando confessar a responsabilidade. Ao tentar o aborto com ajuda do médico da família, Doña Concepción teve a certeza de que Rosalía era filha de seu marido, mas tranquilizou o leitor quando asseverou que Don Antonio não era o pai do seu filho, mas o Marquês de Casanueva. Grávida, Rosalía padeceu do mesmo destino da mãe: dos castigos e trabalho exaustivo na fazenda. Após três meses, Petrona veio a óbito e, em seguida, Rosalía e o filho. Enfim, os mulatos da novela estavam todos mortos.

A tragédia se repetiu na novela Francisco (1839), de Anselmo Suárez y Romero. Membro do grupo de Del Monte, Suárez frequentou a famosa cátedra de Filosofia em Havana, onde lecionaram Varela, Saco, La Luz e, mais tarde, formou-se em Direito Civil. Desde a juventude, escreveu em periódicos cubanos e ganhou notoriedade no pequeno circuito intelectual com a novela Francisco. Ao contrário dos demais novelistas, Suárez não foi desterrado de Cuba, tampouco daí se ausentou (CALCAGNO, 1878, p. 601-605). Sua novela segue estritamente as diretrizes delmontinas, pois descreve o cotidiano urbano e, sobretudo, rural, narrando o martírio de Francisco, único protagonista negro nos romances antiescravistas cubanos.

O africano escravizado era cocheiro da ilustre e rica família Mendizábal. Ainda que leal, trabalhador e isento de vícios, Francisco se apaixonou pela escravizada Dorotea, “mulata hermosa y honesta”. Ela solicitou a permissão de Doña Dolores Mendizábal para se casar. Recebeu como resposta a negativa e a proibição de se encontrar com Francisco. Mesmo assim, o namoro continuou às escondidas. Como no romance de Tanco, o filho mimado da família tentava seduzir a bela moça, mas ela recusava os galanteios. Ricardo percebeu o interesse da mulata em Francisco e inventou histórias para castigar e enviar o africano à fazenda, longe de Dorotea e do controle de sua mãe. Nos capítulos seguintes, Anselmo Suárez y Romero descreveu, em pormenores, os castigos impostos diariamente a Francisco. Dorotea então decidiu interceder a favor do seu amado. Com a interferência, Ricardo começou a chantageá-la e prometeu suspender as torturas caso o aceitasse como amante. Mais uma vez, ela refutou suas juras de amor. Aliás, a senhora Mendizábal acobertava as investidas libertinas de seu filho, aceitando tacitamente a conduta desregrada.

Depois de muito insistir, ele revelou seus reais sentimentos em relação à Dorotea: “Tu és uma cachorra mulata, minha escrava, e eu sou branco, cavalheiro, e posso fazer de ti o que eu quiser” (SUÁREZ Y ROMERO, 1880, p. 119-125)6. O martírio de Francisco prosseguiu até a decisão de Dorotea de ceder aos desejos de Ricardo. Francisco estranhou o fim dos castigos diários e descobriu a trama urdida pelo Niño. Essa conclusão o deixou abalado. Não podia contar com amigos, pois era escravo negro em terras estranhas. Por fim, ainda se decepcionou com sua amada. Acabou se enforcando em uma árvore. Nem a senhora Mendizábal, nem Dorotea souberam do seu fim trágico. Mesmo assim, a mulata se consumiu pouco a pouco e faleceu alguns anos depois.

Tituladas com nomes de escravos, as novelas cubanas estavam centradas particularmente no cotidiano senhorial, seus desmandos e desvios morais. Esses romances -antiescravistas não narravam os acontecimentos na perspectiva dos escravizados (WILLIAMS, 2006, p. 132). Os senhores atuavam como protagonistas, sobretudo as senhoras e seus filhos mimados. Ao focar na aristocracia cubana, os autores pretendiam não somente denunciar as relações abusivas praticadas pelos senhores, mas também expor sua decadência. Assim, eles apontavam o contraste entre a honestidade dos escravizados e a perversidade dos senhores: os aristocratas eram lascivos, abusivos e pervertidos, enquanto os escravizados aceitavam o martírio sem rebeldias. A polarização era, por certo, um recurso para convencer os leitores da injustiça promovida pela escravidão. A instituição reforçava a impunidade e o autoritarismo. Incentivava o aborto, o adultério e a corrupção, práticas frontalmente contrárias à moral cristã. Originava, enfim, uma sociedade violenta e decadente (LUIS, 1990, p. 53-56). Nesse ambiente adverso, os cativos viviam em um clima infernal, destituídos tanto do suporte familiar quanto da solidariedade dos demais escravizados. Nos romances, eram seres solitários e passivos; restavam-lhes a morte. Anselmo Suárez y Romero escreveu sobre o isolamento de Francisco pouco antes de seu suicídio (SUÁREZ Y ROMERO, 1880, p. 154).

Certamente, a solidão de Francisco também era vivida por Petrona, Rosalía e Dorotea. Ao suportar os castigos, elas não tiveram apoio de seus companheiros, nem dos libertos, tampouco dos escravizados. Ao retornar à fazenda e ao terrível cotidiano da escravidão, Rosalía abraçou a mãe moribunda e expressou a vontade de que Deus a fizesse morrer na hora do parto. Assim se fez: mãe e filho morreram. Nas duas novelas cubanas, os mulatos padeciam da morte social antes de deixar o mundo. No romance de Gómez de Avellaneda, Sab enfrentou o mesmo desterro, sofria pela mesma falta de vínculos sociais: “Eu não tenho pai nem mãe..., sou só no mundo: ninguém chorará minha morte. Não tenho tampouco uma pátria para defender, porque os escravos não têm pátria; não tenho deveres para cumprir, porque os deveres do escravo são os deveres da besta de carga” (GÓMEZ DE AVELLANEDA, 2017, p. 219)7. Enfim, Tanco, Suárez y Romero e Gómez de Avellaneda narraram a tragédia dos escravizados em Cuba, empregaram palavras muito semelhantes e finalizaram seus romances com a morte dos protagonistas - fossem mulatos, fossem negros. Os cativos padeciam da mesma solidão, imposta pela falta de laços sociais, impossibilitados de se incorporar à pátria.

A novela Sab (1841), de Gertrudis Gómez de Avellaneda, é considerada uma obra icônica da ficção cubana do século XIX, celebrada por seu prestígio literário e por sua combinação radical entre ideias antiescravagistas e feministas8. Nascida em Cuba, Gómez de Avellaneda mudou-se muito cedo para a Espanha, onde frequentava salões aristocráticos. Teve uma vida atribulada porque não aceitou as regras sociais impostas às mulheres. Sua prosa dissemina a reação da escritora contra o modelo feminino da aristocracia espanhola. Em sua Autobiografía y cartas (1914), ela registrou sua rebeldia e os escândalos familiares. Sua luta a favor da autodeterminação das mulheres se fundiu à causa antiescravista, particularmente na novela Sab. No entanto, diferentemente dos demais romancistas, Gómez de Avellaneda não fazia parte do Circuito Delmontino; vivia na Espanha e conhecia bem a literatura e os debates antiescra-vistas franceses. A novela, entretanto, guarda paralelos com os intelectuais antiescravistas cubanos e se inscreve na mesma veia ideológica (SELIMOV, 1999; SCHULMAN, 1977).

Escravo e mulato, Sab era um jovem alto, com proporções regulares e uma fisionomia particular, pois não parecia um criollo branco, nem era negro, e tampouco descendia dos primeiros habitantes das Antilhas. “Seu rosto apresentava um composto singular em que se descobria o cruzamento de duas raças diversas (....); os traços da casta africana com os da europeia, sem ser não obstante um mulato perfeito” (GÓMEZ DE AVELLANEDA, 2017, p. 104)9. A novela se inicia com o encontro entre o loiro Enrique Otway e Sab. O primeiro chegava à fazenda da noiva, Carlota, quando encontrou o escravizado. A aparência e o comportamento de Sab não denunciavam o cativeiro; ele parecia mais um camponês. Aliás, criou-se como homem livre, tratado como irmão de Carlota, a filha mais velha do senhor da propriedade. Ao perceber o equívoco de Enrique, Sab logo confessou sua condição: “Pertenço - prosseguiu com sorriso amargo - àquela raça desventurada sem direitos de homens... sou mulato e escravo”10. No entanto, sua mãe era livre (sic), uma princesa africana, capturada nas costas do Congo e conduzida a Cuba pelos traficantes de carne humana. Em primeiro plano, a novela narra a devoção de Sab por Carlota, sua irmã de leite e filha do senhor de Sab. O amor platônico se transformou em sofrimento quando o escravo descobriu o noivado de Carlota com Enrique, uma união pautada em interesses pecuniários. Em vários momentos, Sab contribui para a efetivação das bodas e, no momento da cerimônia, encontrou a morte, depois de padecer de tremores e hemorragia interna. A reação passiva de Sab se justificava por sua condição de escravo e mulato, pois considerava que a natureza o havia condenado a uma existência de nulidade e opróbio (GÓMEZ DE AVELLANEDA, 2017, p. 108-109, 118). Para Gómez de Avellaneda, os escravos e as mulheres enfrentavam o mesmo destino: a submissão inconteste ao poder patriarcal.

Para Doris Sommer (1991), a descrição física de Sab, o mulato imperfeito, torna-o a nova encarnação do aborígine cubano. Sua forma híbrida rompe com as categorias raciais promotoras da escravidão e viola a hierarquia racial mantida por senhores e escravos. O personagem diferenciava-se dos cativos tanto na forma física quanto no comportamento. Era escravo e mulato, mas, ao mesmo tempo, tinha maneiras e sentimentos aristocráticos. Sua hibridização rompe a oposição binária entre brancos e negros, divisão necessária para justificar e perpetuar o poder dos colonizadores patriarcais (SOMMER, 1991, p. 118). Ao conceber Sab como um novo autóctone, um novo cubano, Gómez de Avellaneda promovia o nacionalismo crioulo, um importante passo para imaginar Cuba independente. Conforme estudo de Comfort (2003), o personagem Sab (mulato), sua mãe adotiva Martina (indígena) e Carlota (branca e filha dos trópicos) seriam, juntos, o sujeito protonacional. Entretanto, a tríade não poderia vingar enquanto Cuba permanecesse como colônia, pois aí eram oprimidos pelo poder patriarcal. Na novela, mestiços, indígenas e mulheres viviam sob o jugo dos senhores. Gertrudis Gómez de Avellaneda produziu, assim, um discurso contra a hegemonia do homem branco e potencializava as denúncias contra a escravidão, a opressão das mulheres e das comunidades indígenas. O debate vai além, pois a condição para que se neutralizasse o poder patriarcal era a independência de Cuba. Enfim, na novela, encontram-se elementos favoráveis à construção da nação cubana, composta por brancos, índios e mulatos (COMFORT, 2003; DAVIES, 2003, p. 423-444).

A redenção do mulato

Em Mãi (1862), de José de Alencar, a mulata Joana também cometeu suicídio, mas, ao contrário dos personagens cubanos, ela decidiu tomar veneno para permitir que seu filho preservasse a identidade de homem livre e branco. O suicídio foi uma estratégia para apagar o passado e esconder a origem cativa de Jorge, professor de música e estudante de medicina. Ele vivia com sua escrava, a mulata Joana, e a tratava como se fosse sua mãe, pois não conhecera a verdadeira. A peça ganhou outro ritmo quando o leitor tomou conhecimento de que a escrava era, de fato, sua mãe. Em nenhum momento do texto, José de Alencar fez referência à cor da pele do personagem Jorge. Em princípio, ele também era mulato. Mesmo sendo claro, teria características da raça negra. Entretanto, as marcas do cativeiro não estavam em seu corpo ou eram imperceptíveis. A cor da pele não foi abordada na peça, e a única personagem cuja cor foi mencionada era Joana. Em princípio, todos os demais personagens eram brancos, inclusive Elisa, a noiva de Jorge. Enfim, para Alencar, a gradação de cores não era uma referência importante para a classificação social.

Ao se revelar que Joana era sua mãe, Jorge recebeu a pecha de escravo. O casamento com Elisa não era mais possível. Jorge, então, disse ao futuro sogro que se julgava indigno de pertencer à família. Moribunda, Joana tentou reverter a situação. Assim, Alencar deixou claro que os vínculos com a escravidão não se revelavam pela aparência, mas pela origem cativa. Joana temia que seu filho se tornasse escravo por sua maternidade. Aliás, a morte da mulata era também a morte dos vínculos de Jorge com a escravidão. Depois do óbito de Joana, o pai da noiva, que antes reprovara o casamento, disse: “Ela abençoe tão santa união!” (ALENCAR, 1862, p. 140-143). Ou melhor, a morte da escrava e o ocultamento da origem cativa permitiam o branqueamento de Jorge. Portanto, a união entre Elisa e Jorge não mais provocava subversão da ordem escravista. O suicídio preservava sua identidade de homem livre e branco. Enfim, o branqueamento dos corpos tornava viável o apagamento da memória da escravidão. Conforme Alencar, a escravidão era uma etapa para se alcançar a civilização: “Em três e meio séculos, o amálgama das raças se havia de operar em larga proporção, fazendo preponderar a cor branca. Três ou quatro gerações bastam às vezes no Brasil para uma transformação completa” (ALENCAR, 2009, p. 290-296). A escravidão seria então esquecida, assim como o passado cativo de Jorge.

Em O Guarani (1857) e Iracema (1865), José de Alencar também defendeu a origem mestiça do povo brasileiro. A relação entre a nação e o nascimento do filho mestiço está, porém, mais explícita em Iracema, com o nascimento de Moacir, filho do português Martim e da índia Iracema. Após a morte de sua amada, Martim partiu com seu filho e recrutou novos colonos para povoar a região onde sepultara Iracema. Alencar escreveu esse romance para abordar a origem da sociedade brasileira. Asseverou que as guerras e a resistência não geraram essa sociedade. Para Alencar, o povo brasileiro não se forjou com a resistência heroica, mas com a rendição romântica. Sua fundação aconteceu quando os brancos e os índios caíram nos braços um do outro para criar uma prole mestiça (SOMMER, 1991, p. 150). No teatro brasileiro oitocentista, a formação da família mestiça era tema recorrente. Essa dramaturgia não denunciava somente os horrores da escravidão, mas também lançava luz sobre a viabilidade de inclusão social dos descendentes de escravos desde que fossem mulatos claros, quase brancos.

Os mesmos argumentos se encontram na peça Cancros sociais (1865), de Maria Ribeiro. A dramaturga nasceu em Parati e escreveu mais de vinte textos teatrais, um feito notável para uma mulher em meados do século XIX. Suas peças tiveram boa acolhida nos palcos do Rio de Janeiro e, em geral, abordaram a condição feminina. Em Cancros sociais, ela denunciou não somente a opressão contra as mulheres, mas também o flagelo da escravidão. Essas temáticas aproximam-na de Gertrudis Gómez de Avellaneda, embora a cubana tenha publicado seu livro mais de vinte anos antes. Inspirada na peça Mãi, de Alencar, Ribeiro contou a história de Eugênio S. Salvador, um comerciante bem relacionado com a aristocracia do Rio de Janeiro. No dia do aniversário de quinze anos da filha, ele decidiu presenteá-la com a alforria de Marta, sua nova criada. Eugênio era abolicionista e não admitia escravos em sua casa. Antes da festa, ele recebeu Antônio Forbes, um comerciante de cativos, e Marta, uma escrava parda. No momento da compra, Marta descobriu que Eugênio, seu novo senhor, era seu filho desaparecido. Antes de prosseguir a análise, vale destacar que, em poucas ocasiões, a palavra “pardo” é mencionada para descrever personagens da literatura antiescravista cubana e brasileira. Ao abordar os mestiços, era mais frequente empregar “mulato”. Talvez Maria Ribeiro a tenha utilizado para reforçar as boas qualidades de Marta e ressaltar que Eugênio era “perfeitamente branco” (RIBEIRO, 2021, p. 115), partindo do pressuposto de que os pardos estavam mais próximos dos brancos do que os mulatos.

Diferentemente da mulata Joana, Marta, a parda, não decidiu matar-se para livrar o filho do cativeiro. Como criada, morava na casa do filho e provocava ciúmes na nora, que não imaginava a situação embaraçosa. Em boa parte da peça, Eugênio temia revelar à sua esposa e aos amigos que sua mãe havia sido cativa, pois, dessa forma, ele, um comerciante rico e bem relacionado, se tornaria escravo. Com a ajuda do Barão de Maragogipe e de Matilde, descobriu-se que Marta havia sido alforriada antes do nascimento de Eugênio. Assim, a parda fora injustamente mantida em cativeiro, pois já era liberta. Desse modo, ao aceitar sua mãe, o negociante não corria o risco de perder a liberdade.

Em princípio, a cor de Eugênio não era uma marca incontornável capaz de vinculá-lo ao cativeiro. Na peça, porém, existem duas passagens contraditórias que fazem referência à aparência de Eugênio. O comerciante Forbes, ao descrever o filho de Marta, mencionou que o vendeu no Rio: “Era um mulatinho endiabrado”. Matilde, amiga da família, conhecia Marta muito antes de encontrá-la na casa de Eugênio. Indagada, ela contou que Marta teve um filho, “uma linda criança, perfeitamente branca!”. Embora haja opiniões contraditórias sobre a cor do menino, tudo terminou bem ao se comprovar que a liberdade de Marta havia sido registrada antes do nascimento de Eugênio. Sem as sombras da escravidão, o lar de Eugênio se recompôs, como se a carta de alforria neutralizasse todos os obstáculos impostos à vida dos libertos e seus descendentes. Antes de cair o pano, Maria Ribeiro voltou a exaltar a mãe: “Ao lado da virtude, que se enobrece pelo martírio e pela fé, contempla-se nos benéficos laços da família, e no santo amor de mãe: o quadro da verdadeira felicidade! (Rompe fora o Hino da Independência)” (RIBEIRO, 2021, p. 85, 111, 143). Final feliz para a família e para a nação.

No teatro de José de Alencar e Maria Ribeiro, a cor não diferenciava os brasileiros. Aliás, na Constituição 1824, a escravatura não se baseava nas diferenças naturais ou raciais, pois, independentemente da cor, todos os homens livres eram cidadãos, embora com direitos civis e políticos distintos. Nesse contexto, as classificações e hierarquias raciais tornavam-se irrelevantes para a construção da cidadania (PARRON, 2022, p. 731-739). Os dramaturgos seguiram esse mesmo pressuposto e arrefeceram na ficção a hierarquia racial. Da mesma forma, no romance antiescravista A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães, o passado cativo também se tornou irrelevante no final feliz do romance. Com carta de alforria, Isaura passava a ser branca, bonita, culta, prendada, liberta e noiva de um milionário branco e liberal. Recorrendo a esse romance, Sara Rosell (1997, p. 157-175) defendeu que, no Brasil, o “preconceito da marca” era determinante, enquanto em Cuba predominava o “preconceito de origem”. Em síntese, entre os brasileiros, a aparência era determinante na hierarquia social, enquanto a origem cativa ficava em segundo plano. Para além de Isaura, essa tese também explica o desfecho dos personagens Jorge e Eugênio. Os autores entendiam que, libertos dos vínculos com a escravidão, os mestiços passavam a ser vistos socialmente como homens brancos.

Bernardo Guimarães era poeta, jornalista e uma figura muito conhecida do circuito literário brasileiro. Em A escrava Isaura, o debate sobre o cativeiro é bastante limitado e aborda o drama de uma escrava branca. Os demais escravizados do romance não receberam a devida atenção do autor, exceto a mulata Rosa, antagonista da heroína. O romance destaca a injustiça gerada pelo cativeiro, pois: “uma tão boa e interessante criatura não nasceu para ser escrava”. Como se houvesse criaturas que nascessem para o cativeiro. O racismo do autor vai muito além dessa frase, pois ele emprega vários estereótipos para descrever os negros do romance (GUIMARÃES, 1875, p. 25, 68-69). Em geral, os antiescravistas brasileiros não eram apenas contra o cativeiro, mas também contra os escravizados (HABERLY, 1972), sobretudo quando eram negros. Guimarães não fugiu à regra.

O romance conta a história de Isaura, escrava e filha de uma linda mulata, mucama favorita da esposa do comendador. A distinta senhora lhe deu formação religiosa e ainda lhe ensinou a ler, escrever e coser. Mais tarde, a menina aprendeu desenho, música, dança, italiano e francês. A esposa do comendador “empenhou-se enfim em dar à menina a mais esmerada e fina educação, como o faria com uma filha querida” (GUIMARÃES, 1875, p. 10-12). O comendador não gostava desse capricho e considerava uma caduquice criar “mulatinhas princesas”. Adulta, Isaura era formosa e tinha “uma cor linda, que ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano” (GUIMARÃES, 1875, p. 22-23). Leôncio, filho único e mimado do comendador, a considerava um tesouro, pois ela mais parecia uma andaluza ou napolitana. Seu cunhado Henrique o retrucou e considerou Isaura muito melhor: “é uma perfeita brasileira”. O filho do comendador concordou e asseverou que ela era superior - “aqueles encantos e aquelas dezessete primaveras em uma moça livre, teriam feito virar o juízo a muita gente boa” (GUIMARÃES, 1875, p. 29). Depois de casado, Leôncio passou a frequentar a fazenda e se encantou por Isaura, que refutava seus galanteios. Como não teve sucesso em suas investidas, o filho do comendador passou a usar de violência para ter o consentimento da “escrava princesa”. Ao contrário das mulatas cubanas, Isaura resistiu às investidas do senhor e, talvez por isso, teve um final feliz.

Isaura encantava os homens, mas constantemente refutava seus galanteios, repelindo com heroica energia todas as seduções e ameaças de Leôncio. Aliás, mais de uma vez, a escrava branca considerou sua beleza um tormento. Henrique, cunhado de Leôncio, também se encantou por Isaura. Desejava ter a liberdade e o amor da escrava, pois ela era muito mimosa e linda para permanecer no cativeiro. Tão própria ao “mito da mulata”, a sedução não era um recurso empregado por Isaura para obter vantagens ou o amor de um homem. Menosprezou quase todos os que lhe dirigiram elogios, propostas e chantagens. Ela aceitou somente as juras de amor de Álvaro, seu libertador. Em conversa com um amigo, Álvaro dignificou a escrava ao assegurar que toda a distinção originada do nascimento e da riqueza era vã, pois uma escrava podia valer mais do que uma duquesa. “Nada havia nela, que denunciasse a abjeção do escravo, ou que não revelasse a candura e nobreza de sua alma” (GUIMARÃES, 1875, p. 33, 186-187).

Para escapar da violência, Isaura fugiu da fazenda com a ajuda de seu pai. Por um tempo, viveram no Recife, onde conheceram Álvaro, generoso, abolicionista e rico como um lorde inglês. Em Pernambuco, Isaura passou a se chamar Elvira, mas logo ela e o pai foram descobertos, pois foram alertados por um anúncio de recompensa publicado em jornais. Após encontrar a fugitiva, Leôncio estava falido, havia perdido a fortuna, e Álvaro arrematou suas propriedades, inclusive a escrava Isaura. Nesse romance, o suicídio não acometeu a escrava, mas o senhor. Leôncio arrebentou o crânio com um tiro de pistola. Antes do final trágico, Álvaro dirigiu-se à amada para expressar seu amor: “Pois a despeito de todos os preconceitos do mundo, eu me julgo o mais feliz dos mortais em poder oferecer-te a mão de esposo” (GUIMARÃES, 1875, p. 275). Mais uma vez, na literatura brasileira, o final feliz unia um homem branco e uma mulata liberta, formando uma típica família brasileira, em que o casamento superava solenemente os preconceitos raciais e sociais. Inspiradas no romantismo, as novelas e peças teatrais brasileiras antiescravistas finalizavam com o restabelecimento da harmonia em famílias mestiças ou com o casamento entre indivíduos de diferentes raças, uniões responsáveis por consolidar a nova nação. No papel e nos palcos, vivia-se a democracia racial: todos os natos, livres e libertos eram cidadãos, embora a participação política fosse mais restrita, pois o voto era censitário.

Em “Uma história de quilombolas” (1900 [1871]), Bernardo Guimarães concebeu como protagonistas um casal mulato, característica única entre os romances antiescravistas. Concebida antes de A escrava Isaura, a “mulatinha” Florinda possuía alguns traços da mais famosa escrava da literatura brasileira, pois tinha tez clara, era escravizada, bonita e “quase de pureza caucasiana”. Embora fosse casta e fiel, Florinda despertava os homens com “curvas moles e graciosas, que são próprias das mulatas”. Seu amado, o mulato Anselmo, era forro desde a pia batismal e muito próximo do governador de Minas. Era também de tez clara, cabelos negros e crespos; suas formas acusavam o “sangue africano nas veias”. Seu semblante era risonho, expressivo, transmitia “a felicidade em toda sua plenitude” (GUIMARÃES, 1900, p. 11, 22, 26). Anselmo se apaixonou por Florinda e prometeu-lhe alforria e casamento.

O cabra Matheus também nutria grande paixão por Florinda. Era muito novo, “bonito e reforçado, porém de má catadura”; um semblante que traduzia sua má índole. Ao perceber o encanto da moça por Anselmo, o cabra decidiu fugir da fazenda e se juntar a outros escravizados em um quilombo localizado na serra de Itatiaya. Ele tinha planos de beber o sangue dos brancos, mas, particularmente, planejava raptar Florinda e levá-la para morar no quilombo comandado por Zambi Cassange. Segundo o cabra, Anselmo era “capixaba, um diabo de um mulato pachola”. Prometida ao inimigo, Florinda foi capturada e conduzida no meio da noite até o quilombo, embrenhado nas matas e nos rochedos (GUIMARÃES, 1900, p. 4-14).

O vilão Matheus não recebeu a denominação de mulato. Talvez, para diferenciá-lo de Anselmo e Florinda, ele fosse chamado de cabra, alguém de pele mais escura que um mulato, denominação ainda mais pejorativa (REIS, 1989, p. 85). Por causa de Matheus, Florinda não foi resgatada, e Anselmo teve de fazer um acordo com Zambi, que livrava o quilombo da intervenção da guarda do governador. Esse acordo foi denunciado por Matheus, e Anselmo teve de enfrentar um julgamento que o condenou à morte. Mas o chefe do quilombo conseguiu inocentar Anselmo e livrá-lo da morte. Enquanto o casal mulato se casava na igreja, o cabra enfrentava a morte no Morro da Forca (GUIMARÃES, 1900, p. 142). E o final se repetia: formava-se mais uma família mestiça.

Os impedimentos à formação da família mestiça são debatidos na peça teatral de Paulo Eiró. O dramaturgo paulista defendeu a mestiçagem e alertou sobre os riscos iminentes provocados pela população heterogênea, bem como pela falta de unidade na nação. No prefácio, comentou: “Não é somente a diferença de homem livre para escravo; são as três raças humanas que crescem no mesmo solo, simultaneamente e quase sem se confundirem” (EIRÓ, 2006, p. 308). A peça teatral Sangue limpo (1861) tem como par romântico Aires e Luiza, e trata do amor impossível entre o jovem fidalgo e a bela mestiça. Eiró estudou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e escreveu várias peças, conhecidas apenas pelo título, pois foram destruídas pelo autor. Ele vivia solitário, desaparecia da cidade e voltava tempos depois, como se fosse um mendigo (PRADO, 1996, p. 165-170). Sangue limpo sintetizou vários temas tratados na literatura dedicada aos mulatos. Abordou os segmentos sociais, os matizes da cor da pele e a origem cativa, sem descuidar dos impedimentos e regras inerentes ao casamento. O teatro de Paulo Eiró é precioso para analisar a exclusão social e racial na formação da nacionalidade brasileira.

No Pátio do Colégio, centro histórico da cidade de São Paulo, a personagem Luísa apreciava a variedade de gente reunida para ouvir a banda de música e o hino constitucional de 1820. Os acontecimentos narrados antecederam em alguns dias o Sete de Setembro de 1822. Na multidão, as roupas e as pessoas se esbarravam. A bela moça nunca tinha visto “semelhante mistura de pobres e ricos, de velhos e crianças”. Luiza era trigueirinha, resultado da “mistura mais deliciosa da raça branca com o tipo indiano” (EIRÓ, 2006, p. 317-321). O autor descreveu sua família como originada de brancos: seu irmão era pardo, sua avó, mulata, e seu pai, escravo. Os irmãos Luísa e Rafael Proença não receberam a denominação de mulatos, mas eram a representação da síntese racial da população brasileira. Logo nos primeiros diálogos, Eiró mencionou as querelas entre brasileiros e portugueses. Os últimos ofendiam os brasileiros quando os chamavam de mestiços, filhos de pais incógnitos. Na disputa com um militar português, o sargento Rafael Proença mencionou que os portugueses fizeram da América um pelourinho. Como não obtiveram sucesso ao tentar obrigar os índios a cultivar a terra, procuraram no ultramar servos mais obedientes (EIRÓ, 2006, p. 326).

A trigueirinha Luiza se apaixonou por Aires Saldanha, filho do fidalgo português D. José. Para a moça, o amor era impossível, pois Aires era nobre “demais para ser meu esposo (...); e eu muito honesta para ser sua amante”. Para Rafael, contra essa união existia o impedimento da cor: “A sorte de um homem pardo é tão miserável! O pobre pode chegar à fortuna; o plebeu pode alcançar honras e glórias: mas o homem que traz em si o selo de duas raças diversas e inimigas, o que pode fazer ele?”. O personagem indicou de forma clara os limites da ascensão social para os mestiços em sociedades escravocratas. Para o nobre D. José, o entrave para a realização do casamento não era a pobreza da família da moça, tampouco a cor, mas a origem cativa dos irmãos: “Que importa uma ligeira modificação do sangue?... mas deixar pesar sobre a minha família uma nódoa indelével... Sargento Proença, seu pai era escravo?”. Rafael confessou que sua avó paterna era mulata e escrava e acrescentou: “Sou filho de um escravo, e que tem isso?... onde está a mancha indelével... O Brasil é uma terra de cativeiro” (EIRÓ, 2006, p. 393-395). Nesses diálogos, Paulo Eiró abordou o tema da hierarquia social e racial próprias do Brasil colonial. Escrita por volta de 1860, a obra de Eiró acreditava que a independência enfraqueceria a hierarquia racial forjada pelos colonizadores lusitanos. A sociedade brasileira, regida pela Constituição de 1824, não mencionou a hierarquia entre as raças nem diferenciou os brasileiros livres, libertos, brancos, mulatos, índios e negros (PARRON, 2022). Na lei, todos eram cidadãos, mas, na prática, ainda sobrevivia a exclusão social denunciada pelo sargento Rafael Proença em conversa com o fidalgo português.

Após o embate com o sargento, D. José se recusou a aceitar o matrimônio do filho, raptou-o e separou o casal. Para vigiar Aires, ele comprou o escravo Liberato, descrito pelo autor com os piores predicados. O filho não permaneceu no cárcere, e sua fuga provocou a ira do pai. No momento de castigar o negro escravizado, D. José foi assassinado por Liberato. Movido pelo destino, o mocinho fidalgo encontrou Luísa e obteve do irmão o consentimento para casar-se. Antes da fatalidade, Rafael considerava Aires Saldanha “um filho de outra pátria”. No entanto, com os avanços do processo de independência e a morte do pai, ele perdia a pátria e a família. O sargento então asseverou: “Quando tinhas tudo isso, eras para mim um inimigo. Hoje, que nada tens, estendo-te a mão e digo: queres aceitar a minha pátria e a minha família” (EIRÓ, 2006, p. 423). O escravo Liberato, portanto, viabilizou a integração de Aires à pátria e à família Proença. Assim como o grito do Ipiranga promoveu o nascimento da nação brasileira, a morte do fidalgo português permitiu o casamento de Aires e Luísa. Antes de cair o pano, os personagens gritaram “independência, ou morte” e exaltaram Sua Alteza. Enfim, a peça é favorável à mestiçagem, à formação da nação e da família brasileira.

Muito depois da produção das narrativas antiescravistas cubanas, o advogado e jornalista porto-riquenho Eduardo Ezponda publicou o panfleto La mulata: estudio fisiológico, social y jurídico (1878) com base em sua vivência em Cuba. Conforme Ezponda, a pele da mulata herdava a degradação da “raça escrava”. Sem contar com refinamento social, “sem educação religiosa, moral e instrutiva, guiada por noções confusas de certo e errado”, as mulatas aprenderam apenas o ofício de costureira ou de outro ofício mecânico. Tampouco cultivavam sua mente, nem dispunham de estímulos para serem honradas. Essa mulata raramente se casava, uma vez que seu destino não se alterava ao lado do mulato. “Ingênua, libertina ou serva, sucumbe facilmente às primeiras insinuações aduladoras que lhe dirigem” (EZPONDA, 1878, p. 17-18)11. Ezponda descreveu mulheres que guardavam poucas características da mulata concebida pela literatura romântica e realista. Nessa concepção, as mulatas ainda não apresentavam a luxúria e a sedução das personagens da literatura naturalista. Estas são sedutoras, impulsivas e independentes, enquanto as romântico-realistas são passivas, vítimas do patriarcalismo e da escravidão. Em Cuba, os literatos criaram as mulatas para denunciar a perversidade das famílias dos escravocratas. A beleza de Rosalía e Dorotea aguçava o desejo dos senhores. Sob intensa pressão, elas cederam sua castidade aos senhores para salvar a mãe Petrona e o amado Francisco. Sem rebeldias, aceitaram os castigos e a morte. Tampouco a mulata de Ezponda possuía as qualidades das heroínas Isaura, Joana, Luísa, Marta e Florinda. Ainda que fossem belas, as mulatas romântico-realistas brasileiras guardavam a castidade ou viviam para os filhos. Eram mulatas casadoiras e predestinadas a formar parte da nação brasileira.

Aliás, a sociedade brasileira não se formou somente a partir da família composta por portugueses e índios, conforme o romance de Alencar, mas também por mulatos claros. A inclusão dos mulatos no seio da família brasileira é tema recorrente desde as primeiras manifestações contra o cativeiro na literatura. Por essa razão, talvez os mulatos tenham se tornado os protagonistas das narrativas antiescravistas. Os romancistas cubanos também elegeram os mulatos como protagonistas de seus romances antiescravistas, mas sua inclusão como parte da nação cubana mostrava-se inviável.

Primórdios do mito da democracia racial

No romance cubano das décadas de 1830 e 1840, as fronteiras sociais eram bem delimitadas para negros, mulatos e brancos, tornando pouco provável a ascensão do mulato ao mundo dos brancos. Quarenta anos depois, os mulatos quase brancos jamais eram confundidos com os brancos nos romances de Cirilo Villaverde e Ramón Meza (GUEVARA, 2005). A mesma rigidez hierárquica é rara na literatura brasileira. Em romances e peças de teatro, os filhos de mulatas escravizadas eram aceitos, confundidos com brancos ou mesmo integravam a aristocracia local, como Eugênio Salvador de Cancros sociais. Os dotes físicos e intelectuais de Isaura eram insuperáveis: a escrava era retratada como a mais perfeita das mulheres, jamais tendo as brancas recebido os mesmos elogios. A quase caucasiana Florinda, mulata escravizada, encantava os homens com sua beleza e honestidade. Nos romances, a mestiçagem entre brancos e negros/mulatos podia originar brancos, e a origem africana nem sempre era o motivo da exclusão social. Por isso, as classificações eram instáveis, e os matizes de cores estavam subordinados ao contexto do romance ou à relação entre os personagens. A cor somente se tornava determinante quando o autor pretendia vinculá-la ao caráter: quanto mais brancos, mais honestos e fisicamente perfeitos. O vilão Mateus era “cabra”, mulato mais escuro, enquanto Anselmo era mulato claro. Assim, os mestiços eram denominados quase brancos, pardos, mulatos ou cabras.

Curiosamente a abordagem dos mulatos na literatura antiescravista nos remete ao debate sociológico brasileiro das décadas de 1940 e 1950. Quase cem anos depois, os mesmos temas foram analisados pelo sociólogo paulista Oracy Nogueira, que confrontou a exclusão social baseada na origem e na marca, ou seja, na raça e na aparência. No primeiro tipo de preconceito, comum nos Estados Unidos, o indivíduo não precisa externar nenhuma característica da raça inferior para ser tratado como tal, pois sua classificação social se baseia na origem de seus ancestrais. O “preconceito de marca” não tinha a mesma rigidez: “a concepção de branco e não-branco varia, no Brasil, em função do grau de mestiçagem, de indivíduo para indivíduo, de classe para classe, de região para região” (NOGUEIRA, 2006, p. 294). Quanto mais escuro o indivíduo, mais sofre a exclusão social; quanto mais rico e educado, menor o impacto do preconceito racial. A probabilidade de ascensão social é inversamente proporcional às marcas, ou seja, a pobreza escurece enquanto a riqueza clareia, “ficando o preconceito de raça disfarçado sob o de classe” (NOGUEIRA, 2006, p. 303). Enfim, o personagem Eugênio Salvador, de Cancros sociais, e Jorge, de Mãi, conseguiam se passar por brancos não somente pela cor da pele, mas também pela instrução, poder econômico e circuito de amizades.

Oracy Nogueira ainda forneceu outro dado precioso para a compreensão dessa literatura. Ele defendeu que, no Brasil, “há uma expectativa de que o negro e o índio desapareçam, como tipos raciais, pelo sucessivo cruzamento com o branco” (NOGUEIRA, 2006, p. 297). Aliás, desde o século XIX, o branqueamento era apontado como a melhor solução para atenuar a heterogeneidade racial do povo brasileiro. Filho bastardo de escravizada parda com o Visconde, Eugênio Salvador se passava por branco e, como ele, muitos poderiam se beneficiar do branqueamento. Assim, o “preconceito de marca” atuava como ideologia responsável por apagar o passado escravista e a identidade africana, promovendo, ao mesmo tempo, o branqueamento da nação brasileira. Enfim, a Constituição de 1824 permitia a ascensão social de homens livres, libertos, negros e mestiços, desde que acumulassem rendimentos e patrimônio (PARRON, 2022). Nessa condição, eles poderiam passar de cidadãos passivos a ativos e participar da vida política. A classificação social, estribada no “preconceito de marca”, também viabilizava a ascensão social de indivíduos mestiços, desde que fossem claros e prósperos.

Nos romances cubanos, todos os mulatos encontraram a morte. Seus frutos eram proibidos e não deveriam se reproduzir na Cuba colonial. Sob o jugo espanhol, não escapavam da tragédia. Nos romances brasileiros analisados, as mulatas se distanciavam do cativeiro, casavam-se e formavam família com brasileiros brancos ou mulatos. Tornavam-se cidadãos, incluíam-se na nação. Assim como Alencar romanceou a união entre Martim e Iracema, os demais romancistas, ao abordar a escravidão, procuraram a redenção dos mulatos e escreveram finais felizes para personagens ameaçados pelo cativeiro. Certamente, a “história” desses mulatos servia de modelo para a História do Brasil, fazendo parte do processo de branqueamento da população. Os quase brancos não deveriam ser cativos, mas incluídos na nação, sendo introduzidos pelo casamento. Assim, os romancistas cumpriam a missão de preencher as lacunas de uma história construída para forjar a nação e empurrá-la em direção ao futuro ideal. Essa era uma possível mensagem transmitida pelos jornais e livros aos cidadãos brasileiros.

No entanto, dois contos de Machado de Assis contrariam essa tendência. As escravizadas Virgínia e Mariana encontraram a morte, vítimas da sociedade escravista e patriarcal. A primeira era negra e foi vítima do próprio pai, que pretendia livrá-la do defloramento tramado pelo filho do fazendeiro. A segunda era mulata, “cria da casa”, apaixonada pelo branco Coutinho. O amor impossível a levou ao suicídio. Como as mulatas brasileiras e cubanas, as escravizadas dos contos machadianos se comportavam como moças brancas: recatadas, pudicas e vítimas do poder patriarcal (VITAL, 2012, p. 65-96). Nesse sentido, Machado não recorreu ao estereótipo nem ao mito da mulata, tão comum na literatura naturalista.

A peça Calabar (1858), de Agrário de Menezes, também contraria o otimismo da dramaturgia brasileira. No teatro, o personagem histórico das guerras pernambucanas recebeu outros contornos. Na obra de Menezes, a traição contra os portugueses era justificada pelo sentimento de inferioridade do protagonista, por ser mulato e pela rejeição da amada, apaixonada por um oficial português. Como desfecho, a tragédia do mulato se repetiu: Calabar foi castigado na forca e gritou antes de morrer: “Pátria! Pátria! Conquista a liberdade!” (MENEZES, 1858, p. 166). De todo modo, esses exemplos não invalidam o contraste entre os mulatos nas literaturas cubana e brasileira. Em Cuba, o casamento com brancos não era uma alternativa viável para as mulatas, como se observa no icônico romance Cecilia Valdés (1882). Os intelectuais do Circuito Delmontino ainda não podiam imaginar a nação nos romances (CONFORT, 2003).

Enfim, os mulatos na literatura antiescravista brasileira remetem a tema muito caro a Gilberto Freyre: o mito da democracia racial no Brasil (COSTA, 1999, p. 365-366). Em 1947, o sociólogo publicou uma série de conferências proferidas nos Estados Unidos, nas quais sintetizava suas teses sobre as relações interétnicas no Brasil. Destacam-se aí dois aspectos de seu pensamento, relevantes para entender a dramaturgia antiescravista. Inicialmente, menciono sua visão sobre a hierarquia racial: “a distinção entre raças é uma distinção de posição ou de classe mais do que de cores”. Em seguida, destaco como o impacto da mestiçagem promoveu o desaparecimento rápido dos negros, “fundindo-se com os brancos”. A fusão de três raças e três culturas permitiria ainda “um tipo imperfeito de democracia social” (FREYRE, 2001, p. 195-198). A tese do sociólogo repete os mesmos argumentos da literatura antiescravista, particularmente das obras de José de Alencar. Ao valorizar a mestiçagem, alguns literatos oitocentistas atenuavam a exclusão baseada na cor e na raça. O silêncio sobre a cor dos personagens, os recorrentes casamentos mistos entre mulatas e brancos e sua inclusão na família branca e na nação antecedem em quase cem anos a visão de Freyre sobre a sociedade brasileira e sua defesa da “democracia racial”.

Para Flora Süssekind (1982, p. 54-55), o abrandamento da escravidão, a docilidade dos escravizados e a inclusão pacífica dos negros na sociedade senhorial são interpretações comuns nas obras de Alencar e Freyre. Vale ainda mencionar que esses literatos brasileiros eram homens e mulheres brancos (BROOKSHAW, 1983, p. 23-47). Talvez sua cor e posição social possam ser determinantes para explicar o otimismo em relação ao branqueamento dos mulatos. Eles minimizavam a hierarquia racial, enquanto os literatos negros denunciavam amplamente a exclusão baseada na cor. Para Antônio Pereira Rebouças, Maria Firmina dos Reis e Luiz Gama, os escravizados, libertos e livres de cor sofriam todo tipo de exclusão e até mesmo enfrentavam a possibilidade de voltar ao cativeiro. Gama não era apenas abolicionista, mas também ativista político em defesa da liberdade e da integração digna de homens marcados pela escravidão. Sua luta não se limitava à extinção legal do cativeiro; ele pretendia resgatar a identidade africana, fazer valer a Constituição e fortalecer relações mais democráticas em uma sociedade escravista (GRINBERG, 2002; AZEVEDO, 1999).

Enfim, o protagonismo dos mulatos na literatura antiescravista cubana e brasileira era uma forma de aproximar a experiência dos escravizados aos leitores. Sob o jugo de senhores furiosos e libidinosos, a escrava quase branca promovia a compaixão dos leitores, sobretudo em uma sociedade escravocrata e racista. A literatura também pretendia debater o absurdo de escravizar pessoas brancas, submeter os filhos mestiços dos senhores ao árduo trabalho e às punições. Denunciava ainda a promiscuidade promovida por senhores sem os limites da lei, que recorriam ao uso e abuso de chantagens, martírios e estupros. A literatura brasileira ainda recorreu aos mulatos para incluir os mais claros na nação, promovendo casamentos mistos e o apagamento da origem cativa. Não raro, os testemunhos defendiam que a raça branca era determinante, e os negros desapareceriam casso fosse incentivada a mestiçagem, o branqueamento. Os romancistas e dramaturgos planejavam a redenção dos mulatos, particularmente quando eram quase caucasianos. Por fim, vale mencionar que essa propaganda antiescravista não tinha o intuito de denunciar as terríveis condições dos cativos negros, crioulos ou africanos. Exceto o romance Francisco (1839), de Anselmo Suárez y Romero, as demais narrativas não se ativeram aos verdadeiros protagonistas, à multidão trazida da África para o inferno dos trópicos americanos. Essa escolha de protagonistas mulatos quase brancos nos remete à hierarquia racial, ao racismo inerente às sociedades escravocratas.

  • 1
    Sobre o mulato como categoria social, cf. Freyre (1985); Fredrickson (2005); Bantum (2010); e Stolcke (2017).
  • 2
    Sobre os estilos literários, cf. Prado (1996, p. 143-198); Faria (2022, p. 77-78); Schulman (1977, p. 356-367); e Ferrer (2002, p. 325-326).
  • 3
    A comparação entre a literatura antiescravista cubana e brasileira encontra-se em importantes livros. Cf. Sommer (1991) e Rosell (1997), entre outros.
  • 4
    Cf. Diário do Rio de Janeiro, 2 out. 1857, p. 2; e 14 abr. 1860, p. 1.
  • 5
    Trad. livre do autor: “ojos negros y largas pestañas llenos de una viveza seductora”.
  • 6
    Trad. livre do autor: “Tú eres una cachorra mulata, mi esclava, y yo soy blanco, caballero, y puedo hacer de ti lo que me dé la gana”.
  • 7
    Trad. Livre do autor: “Yo no tengo padre ni madre..., soy solo en el mundo: nadie llorará mi muerte. No tengo tampoco una patria que defender, porque los esclavos no tienen patria; no tengo deberes que cumplir, porque los deberes del esclavo son los deberes de la bestia de carga”.
  • 8
    Sobre o romance Sab, cf. Sommer (1991, p. 114-137); Luis (1998, p. 175-186); Kirkpatrick (1989, p. 131-164); e Gomariz (2009, p. 97-118).
  • 9
    Trad. livre do autor: “Su rostro presentaba un compuesto singular en que se descubría el cruzamiento de dos razas diversas (...); los rasgos de la casta africana con los de la europea, sin ser no obstante un mulato perfecto”.
  • 10
    Trad. livre do autor: “Pertenezco - prosiguió con sonrisa amarga -, a aquella raza desventurada sin derechos de hombres... soy mulato y esclavo”.
  • 11
    Trad. livre do autor: “raza esclava”; “sin educación religiosa, moral e instructiva; guiándose por confusas nociones acerca del bien y del mal”; “Ingenua, libertina, o sierva, sucumbe fácilmente a las primeras insinuaciones aduladoras que le dirigen”.

Agradecimentos

Para a pesquisa deste artigo, tive o financiamento do David Rockefeller Center for Latin American Studies (Harvard University), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Agradeço a colaboração de Sidney Chalhoub, Renato Venancio, Karoline Carula, Beatriz Venancio e Maria Eduarda de Castro Ronda.

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  • Editoras responsáveis:
    Luiza Larangeira da Silva Mello e Silvia Liebel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2023
  • Aceito
    08 Dez 2023
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