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Manolo Garcia Florentino: as histórias do tráfico atlântico de cativos e da escravidão como nexos inevitáveis para compreender o Brasil e a África

Manolo Garcia Florentino: histories of the atlantic slave trade and slavery as necessary connections for understanding Brazil and Africa

Manolo Garcia Florentino: las historias de la trata atlántica de esclavos y la esclavitud como eslabones inevitables para entender Brasil y África

RESUMO

Em homenagem a Manolo Garcia Florentino, o artigo analisa sucintamente sua obra historiográfica com foco nos temas do tráfico atlântico de cativos e da escravidão no Brasil e na África. Salienta-se que suas abordagens sobre estes assuntos comportam valores heurísticos em si mesmos ao mesmo tempo em que lhe deram base para interpretar o Brasil de ontem e de hoje. O homenageado integra uma geração que assistiu ao ensaísmo dar a vez à consolidação do profissionalismo historiográfico, o que foi decisivo para as inovações e impactos de sua obra. Os ineditismos e os legados intelectuais de Manolo Florentino transformaram Em costas negras em um clássico da historiografia brasileira e internacional. Sobre esta obra e sobre A paz das senzalas discorre-se aqui com mais vagar.

Palavras-chave:
Manolo Florentino; homenagem; legado historiográfico

ABSTRACT

In homage to Manolo Garcia Florentino, this article briefly analyzes his historiographical contributions, focusing on the themes of the Atlantic slave trade and slavery in Brazil and Africa. It highlights that his approach to these issues has heuristic value in of itself, while also providing a basis for interpreting Brazil’s past and present.. Florentino is part of a generation that witnessed the transition from essayistic interpretations of history to a consolidated professional historiography, which was important context for the innovations and impacts of his work. The novelties and intellectual legacy of Manolo Florentino turned Em costas negras into a classic of Brazilian and international historiography, and this article will carefully analyze that text, along with another, A paz das senzalas.

Keywords:
Manolo Florentino; homage; historiographical legacy

RESUMEN

En homenaje a Manolo Garcia Florentino, el artículo analiza sucintamente su obra historiográfica como foco en los temas del tráfico atlántico de esclavos y de la esclavitud en Brasil y en África. Se destaca que sus abordajes sobre estos asuntos incorporan valores heurísticos en sí mismos, al mismo tiempo que le dieron base para interpretar el Brasil de ayer y de hoy. El homenajeado integra una generación que observó el ejercicio de dar su turno a la consolidación del profesionalismo historiográfico, lo que fue decisivo para las innovaciones e impactos de su obra. La originalidad y los legados intelectuales de Manolo Florentino transformaron Em costas negras en un clásico de la historiografía brasileña e internacional. Sobre esta obra y sobre A paz das senzalas el artículo se profundiza más.

Palabras Clave:
Manolo Florentino; homenaje; legado historiográfico

Introdução: formação e profissionalização

Premiado com a Comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico em 2009, professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro entre 1989 e 2019, Manolo Garcia Florentino cursou a graduação em História na Universidade Federal Fluminense (UFF) no início dos derradeiros anos da ditadura civil-militar no Brasil, entre 1977 e 1981, e o mestrado em Estudos Africanos, entre 1982 e 1985, no Colégio do México, onde defendeu a dissertação intitulada La Trata Atlántica y las Sociedades Agrárias del Africa Occidental (Ensayo Sobre las Consecuéncias del Tráfico Negrero en la Agricultura del Oeste Africano, c.1450-c.1800). Finalmente consolidou magistralmente a sua trajetória como historiador de sólida formação ao realizar, entre 1986 e 1991, o doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da UFF, no qual defendeu a tese intitulada Em costas negras: um estudo sobre o tráfico de escravos africanos para o porto do Rio de Janeiro. c.1790-c.1835. Esta sua obra magna foi premiada no concurso de monografias do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, em 1993 e publicada por esta mesma instituição em 1995 (FLORENTINO, 1995FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 1995.). A partir deste livro, atualmente na 5ª edição (FLORENTINO, 2020FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. 5. ed. São Paulo: Editora da Unifesp, 2020.), mas ainda sem tradução para outras línguas, fez reconhecer, nacional e internacionalmente, o seu brilhantismo profissional, sendo raro um livro em português tornar-se um clássico internacional.1 1 Entre outras, ver referências a seu livro maior em Eltis (2001, p. 17-46), Eltis e Richardson (2008, p. 11; 54), Curto (2002, p. 383) e Candido (2013, p. 111; 153; 166). A internacionalização do autor também se observa em sua intensa atuação no projeto Slave Voyages. Cf. https://www.slavevoyages.org/ Do mesmo modo, o tráfico de cativos lhe serviu de parâmetro para o grosso de suas pesquisas, que ensinaram que o trato atlântico de humanos é indispensável à compreensão do Brasil e de sociedades africanas dos séculos XVI ao XIX.

Em seu percurso intelectual, Manolo Florentino foi caudatário e/ou vivenciou intensamente ambientes marcados por controvérsias sobre a formação social da economia colonial, tema muito presente na historiografia sobre (e da) América Latina, entre os anos 1960 e 1980, no âmbito de estudos marxistas e/ou cepalinos que deram relevo ao que se denominava de desenvolvimento e subdesenvolvimento.2 2 Sobre influências da teoria da dependência em estudos sobre economia colonial, cf. Cardoso e Brignoli (1983, p. 205). Em seu matiz historiográfico, o desenvolvimento econômico e industrial de países centrais da economia capitalista era, em parte, relacionado aos seus passados de supostas potências colonizadoras que lhes permitiram extrair riquezas (sobretrabalho) das áreas coloniais para realizarem acumulação primitiva de capital. Em contrapartida, o subdesenvolvimento de países ditos periféricos (então designados de Terceiro Mundo) derivava, também, da exploração colonial que sofreram. Logo, desenvolvimento e subdesenvolvimento eram faces da mesma moeda. Predominantemente, acreditava-se, embora houvesse vozes dissonantes, que as economias coloniais seriam praticamente incapazes de acumular riquezas devido à transferência de excedentes às metrópoles em seu perene processo de acumulação primitiva de capital. Evidentemente, no Brasil, tais perspecti­vas, guardadas as devidas proporções, remontavam a estudos de Caio Prado Júnior e ainda são ideias vigentes para alguns estudiosos (PRADO JÚNIOR, 1942PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense , 1942.; FURTADO, 1963FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Editora Universidade de Brasília, 1963., NOVAIS, 1986NOVAIS, Fernando [1979]. Portugal e Brasil na crise do sistema colonial (1777-1808). 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1986. [1979]).3 3 Cf. balanços, para essas ocasiões historiográficas, em Hirano (1988) e Bielschowsky (1995). Explicar a economia colonial era indispensável ao entendimento da divisão internacional do trabalho, da pobreza, da desigualdade e da péssima distribuição de riqueza. Este era o cenário florescente quando Florentino elaborava suas reflexões, no entanto ele se inseriu nesta seara não a partir da análise das relações sociais de produção, mas via tráfico atlântico de cativos.

Pari passu, na historiografia europeia, maiormente, mas não apenas, de matrizes francesa e inglesa, eram recorrentes, entre anos 1950 e 1970, abordagens sobre a transição do feudalismo para o capitalismo, as chamadas crises dos séculos XIV e XVII; acumulação primitiva de capital; origens do capital industrial; racionalidade de sistemas econômicos etc.; como se observa em abordagens, entre outras, de Sweezy, Dobb et al (1977SWEEZY, Paul; DOBB, Maurice et al [1976]. A transição do feudalismo para o capitalismo. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1977.), Brenner (1976BRENNER, Robert. Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe. Past & Present, Oxford University Press, p. 30-75, fev. 1976.), Kula (1979KULA, Witold. Teoria econômica do sistema feudal. Lisboa, Editorial Presença, 1979.), Dobb (1980), O’Brien (1982), O’Brien e Engerman (1991). Na ocasião, a História Econômica era um dos carros-chefes da historiografia internacional, senão o principal (LABROUSSE, 1955LABROUSSE, Ernest. Vois nouvelles vers une histoire de la bourgueoise occidentale aux XVIIIe siècles (1700-1850). In: XCongresso Internazionale di Storiche Roma, 1955.; 1962, p. 340-372; 1973; KULA, 1973KULA, Witold. Problemas y Métodos de la Historia económica. Barcelona: Ediciones Península, 1973.; 1979; DAUMARD, 1985DAUMARD, Adeline. Hierarquia e riqueza na sociedade burguesa. São Paulo: Perspectiva, 1985.), mormente de inspiração marxista e/ou braudeliana, em muitos casos assentada em técnicas seriais de análise (baseada em fontes quantificáveis e que se repetem no tempo) (­GODINHO, 1973GODINHO, Vitorino de Magalhães(coord.) [1967]. A história social. Problemas, fontes e métodos. Lisboa: Cosmos, 1973.; CARDOSO; BRIGNOLI, 1983CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Pérez [1976]. Os métodos da História. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983.). Entre muitos outros, pesquisas em História Econômica sublinhavam temas econômicos dos estados modernos em suas relações com as denominadas colônias americanas e predominavam as teses pautadas na ideia de capitalismo comercial. No caso, esta caracterização do capitalismo que seria vigente na época moderna era, frequentemente, apreendida a partir da (escala da) circulação de mercadorias e não da formação social, nesta incluídas as relações sociais de produção, as modalidades predominantes de trabalho, as relações de poder etc.

Complementava tal quadro as teorias sobre Estado Moderno que o concebiam como de feição absolutista, a entidade da qual emanavam os elos políticos entre metrópoles e suas colônias. Então, o Estado Moderno Absolutista, representado por suas metrópoles europeias, seria altamente centralizado e seus longos e tentaculares braços políticos controlariam, eficazmente, mesmo à distância, as veias abertas das áreas coloniais, inclusive seus fluxos mercantis, suas formas de trabalho e suas possibilidades de reprodução. Em síntese, as sociedades coloniais americanas eram guiadas por estados absolutistas sediados na Europa que agiam em prol da acumulação primitiva de capital, sob os auspícios, inclusive nos casos da colonização do Brasil e da África, do comércio triangular. Todos os vértices do circuito fechado deste capitalismo comercial triangular seriam controlados pelos capitais europeus. Comércio triangular que, não custa dizer aos iniciantes, implicava, em linhas gerais, em impor uma divisão internacional do trabalho, na qual cabia à Europa o controle via financiamento e fluxos mercantis, à África a oferta de mão de obra escrava e às Américas a produção de matérias-primas.4 4 Ver, sobre Estado Moderno de inspiração hobbesiana, entre outros, Anderson (1985). Sobre teses circulacionistas e economia-mundo, I. Wallenstein (1974, 1980, 1989, 2001), E. Williams (1975 [1944]) e F. Mauro (1988). De uns tempos para cá, novamente com desprezo para com a África, a fixação com o capitalismo circulacionista foi repaginada com o rótulo de Segunda Escravidão, mas não raro atualmente já sob o guarda-chuva de alguma história global. Cf. Tomich (1988), Marquese e Tomich (2009), Muaze e Salles (2015). A vertente designada Segunda Escravidão só enxerga qualquer mudança na escravidão se esta advier do ou confluir para o tal “capitalismo histórico”. Por exemplo, a “primeira” escravidão, “colonial”, entre os séculos XVI e XIX, e a “segunda”, do século XIX, seriam diferentes, mas ambas compõem a “economia-mundo capitalista”. Além disso, há uma grande falha em uma história pretensamente global e supostamente construída em torno de uma totalidade dada pela escravidão. Na verdade, há uma contradição porque desconsidera a África, apesar de adotar uma perspectiva que evoca uma totalidade moldada pela “escravidão atlântica, isto é, os sistemas de exploração do trabalho escravo africano que foram implantados pelos europeus no Novo Mundo” (MARQUESE, 2020, p. 110- 118). Além do teleologismo das análises e do silêncio sobre a África, elas também praticamente ignoram, por exemplo, a maior província escravista do Brasil oitocentista, Minas Gerais, entre outras áreas fora do modelo. Sobre a maior província escravista do século XIX, ver Martins (2018).

Hoje, tudo isso já foi amplamente revisto, mas, com efeito, no que concerne à crítica ao Estado Leviatã hobbesiano que realça negociações e pluralidade institucional nas várias partes das monarquias (reino e suas repúblicas), ela ainda não havia impactado contundentemente a historiografia nos anos 1980, vindo a ser mais propalada a partir dos anos 1990, até se tornar, hoje, hegemônica, a exemplo, entre outros, das inserções de Clavero (1991CLAVERO, Bartolomé. Antídora: antropología católica de la economía moderna. Milão: Giuffrè, 1991.), Pujol (1991PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias europeias dos séculos XVI e XVII. Penélope: Fazer e Desfazer História, n. 6, Lisboa, 1991.), Elliot (1992), Greene (1994GREENE, Jack. Negotiated Authorities: Essays in Colonial Political and Constitutional History, 1994.) e Hespanha (1994HESPANHA, António Manuel de. Às vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal, século XVII. Coimbra: Almedina, 1994.).5 5 Para perspectivas mais recentes sobre o vocabulário político e a natureza das relações entre reino e conquistas, ver, entre outros, Fragoso e Monteiro (2017) e Almeida (2019).

Manolo Garcia Florentino, todavia, em termos de encaminhamento de suas questões, não priorizou as críticas ao Estado Leviatã nem focou o mercado interno colonial, ainda que estivesse bem atento aos debates em torno do segundo. As críticas às teses circulacionistas, já iniciadas nos anos 1970, foram muito latentes nos anos 1980 e deram relevo ao mercado interno das áreas coloniais e sua capacidade de gerar e acumular riquezas nas próprias colônias, não obstante houvesse transferência de excedentes às metrópoles, como se vê nas propostas de Ciro Cardoso (1980CARDOSO, Ciro Flamarion. As concepções acerca do ‘Sistema Econômico Mundial’ e do ‘Antigo Sistema Colonial’: a preocupação obsessiva com a ‘Extração do Excedente’”. In: LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes , 1980. p. 109-132., p. 109-132), Ruggiero Romano (1986ROMANO, Ruggiero. Coyunturas Opuestas: crisis del siglo XVII en Europa y Hispanoamérica. México: Fondo de Cultura Económica, 1986.) e Carlos Assadourian (1982ASSADOURIAN, Carlos Sempat. El sistema de la economía colonial. Mercado interno, regiones y espacio económico. Lima: Instituto de Estudos Peruanos, 1982.), entre outros. Porém, Manolo Florentino não formulou o reexame do comércio triangular a partir da perscrutação do mercado interno em sua capacidade de acumulação. Ao invés disso, mas sem contradizê-la, antes confluindo com a ideia, ele lançou luz sobre o ignorado tráfico atlântico de cativos, o maior negócio do Atlântico Sul, como mecanismo de geração e retenção de capital em áreas coloniais, porém, igualmente, como instância criadora de hierarquia social excludente. Tratava-se de rever uma tradição historiográfica consolidada há décadas. Seguindo a ideia da bilateralidade das relações entre Brasil e África, que em muitos e decisivos aspectos prescindia da Europa, ele abordou o trato atlântico de cativos em sua dimensão político-econômica nas duas costas negras atlânticas, integradas. Do mesmo modo ele deu relevo ao papel dos panos da Índia na compra de cativos, inclusive relacionando tal aspecto à importância do tráfico feito com a costa leste africana, Moçambique. Talvez ele tenha sido um dos primeiros a sublinhar o papel da captura de escravos vindos de Moçambique, portanto, a inserção do tráfico de cativos para as Américas no circuito Índico. Assim, ele abriu uma nova maneira de olhar a reprodução da sociedade na América portuguesa escravista e de sua capacidade de acumulação de capital, mas enfatizando que sem a África, e seus interesses no tráfico, não seria possível ao Brasil realizar tal acumulação. Destarte, o tráfico atlântico de cativos era “afro-americano por definição” (FLORENTINO, 1995FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 1995., p. 104).6 6 A ideia de complementariedade entre África e Brasil já havia sido ressaltada por Pierre Verger (1987), sem, entretanto, se ocupar do tráfico como negócio e sem realçar a dimensão de diferenciação social nas duas margens. Evidentemente, o enfoque de Verger abriu outras portas. Sobre outras abordagens que realçam os vínculos umbilicais entre Brasil e África, ver Rodrigues (1964), Miller (1988), Alencastro (2000), Curto (2000), Silva (2003), Curto e Lovejoy (2004) e Ferreira (2012).

Igualmente, também a partir da conjuntura dos anos 1970 os impactos da denominada 3ª geração dos Annales se faziam sentir através dos seus novos objetos, problemas e abordagens, aos moldes, entre outros, de Le Goff e Nora (1988a, 1988b). Ganhava corpo nos estudos historiográficos objetos afins a grupos sociais específicos, identidades, cotidiano, religiosidades, crianças, mulheres, família, sentimentos etc. etc. etc. Em grande parte, fortes vieses antropológicos, ademais da ciência política, da linguística, da psicanálise, etc., influenciaram este veio historiográfico. Suas perspectivas entraram em cena para agregar e/ou contradizer a designada história estruturalista fortemente associada à História Econômica e à História Demográfica (FLEURY; HENRY, 1965FLEURY, Michel; HENRY, Louis. Nouveau manuel de dépouillement et d’explotation de l’etat civil ancien. Paris: I.N.E.D., 1965.; GOUBERT, 1971GOUBERT, Pierre [1969]. El antiguo régimen. V. 1. Buenos Aires: Siglo XXI Argentina, 1971.), tidas por histórias sem sujeito. Gráficos e séries foram postos na antessala da historiografia, mormente a partir dos anos 1980.

Todavia, persistiam obras sobre história econômica, e Manolo Florentino - sem desprezar as inovações dos Annales, que já não eram tão novas nos anos 1980, e que impactaram, pelo viés antropológico, suas análises sobre família escrava nos anos 1990 - perseguiu seu caminho de brilhante historiador em diálogo com as grandes sínteses e debates sobre História do Brasil e sobre História Econômica da Época Moderna. Talvez por isso mesmo, junto a João Fragoso, seja um dos últimos intelectuais a interpretar e a fornecer uma teorização à história do Brasil, ambos, em O arcaísmo como projeto, atualmente na 4ª edição (FRAGOSO; FLORENTINO, 2001FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2001.), alicerçados na tese do ideário arcaico aristocratizante (que se recusa a conceber a economia sem a política, a cultura, a religião etc.), e de como este ideário, imbricado a estruturas sociais portuguesas redefinidas na América e, no caso de Florentino, africanas, influenciou nossa história, nossa economia, nossa política, nossas relações sociais, nossa desigualdade (FRAGOSO; FLORENTINO, 1993FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2001.). Sem que seja preciso aqui explicar que arcaico no que concerne à África difere da Península Ibérica e da América portuguesa, Manolo Florentino trabalhou em grandes parcerias, mas, certamente, foi o principal intelectual a refletir sobre a produção da desigualdade estrutural brasileira - a hierarquia social excludente - a partir da história do tráfico atlântico de cativos.

Nessa vereda, suas atenções também eram tributárias de importantes obras dos anos 1960 a 1980, quando se sentia, no campo dos estudos sobre tráfico atlântico de cativos, as influências das discussões sobre impactos social, político, demográfico e econômico em sociedades africanas e, no que tange à escravidão nas Américas, versava-se sobre reprodução do sistema escravista, com ênfase na demografia, família escrava, racionalidade do trabalho cativo e a mão de obra escrava conjugada ou não à camponesa etc., tal como se constata, por exemplo, nos enfoques, entre outros, de Genovese (1976GENOVESE, Eugene [1965].A economia política da escravidão. Rio de Janeiro: Pallas , 1976.) e Pinheiro (1984PINHEIRO, Paulo Sérgio(coord.). Trabalho escravo, economia e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1984.).7 7 Esta coletânea redunda de uma conferência realizada em 1975. Evidentemente, a cliometria estadunidense também andava a passos largos a partir dos anos 1970 (FOGEL; ENGERMAN, 1974FOGEL, Robert; ENGERMAN, Stanley. Time on the Cross: the Economics of American Negro Slavery. Boston: Little Brown and Company, 1974.).

Em síntese, foi em meio a um vigoroso ambiente intelectual e as questões postas por ele entre os anos 1960 e 1980, e sempre tendo como parâmetro o tráfico atlântico de cativos, que Manolo Florentino ofereceu uma chave de leitura para conhecer a História do Brasil e as de sociedades africanas conectadas, mutuamente influenciadas, e como uma totalidade.

Tráfico atlântico de cativos: negócios e poder

Sobre tráfico atlântico de escravos, havia um ponto controverso entre estudiosos da ­África, economistas, historiadores da história econômica, da história agrária, da história demográfica e do próprio tráfico. Debatia-se se a demanda por trabalho escravo nas Américas guiou a oferta de cativos africanos ou, ao contrário, se a oferta foi a grande responsável por instituir a mão de obra escrava, logo, instituir a escravidão nas Américas; fosse uma oferta conduzida pelo capital mercantil europeu ou, mais timidamente, a partir de perspectivas de sociedades africanas. Então, por exemplo, valer-se da demografia para aferir razões de sexo (proporção de homens e de mulheres na população) dos traficados e do contingente escravo fazia diferença, uma vez que a preferência por cativos adultos de sexo masculino requeridos pelas lavouras brasileiras, de preços mais elevados que as mulheres nas Américas, significaria que a demanda do continente americano prevaleceu sobre e orientou a oferta africana. Mas, por outro lado, salientar a preferência em reter mulheres e exportar homens também era visto como controle do fluxo demográfico a partir da oferta.8 8 Entre outras abordagens, estas questões podem ser aferidas, por exemplo, em Curtin (1969), Klein (1978) e Alencastro (2000). Esta última obra foi, inicialmente, defendida como tese de doutorado em 1985. Para esta interlocução, ver Florentino (1995, p. 67-68).

No entanto, a tese do domínio da oferta sobre a demanda era tida, fundamentalmente, como obra do capital mercantil europeu, pois vigia a noção de que o tráfico de cativos, além de ser um grande nicho de capitalismo comercial moderno, tornava as sociedades escravistas americanas e africanas dependentes do capital, do crédito e do fornecimento de cativos por negociantes europeus, considerados os verdadeiros donos do mercado. O capital europeu conduzia cativos da África para as Américas e na torna-viagem da América à Europa, para ligar as linhas do triângulo, os navios iam apinhados de mercadorias produzidas por braço escravo. A transferência de excedentes da África e da América, destarte, tinha no tráfico um mecanismo indispensável.9 9 Ver Williams (1975). Fernando Novais seguiu os passos de E. Williams para afirmar que é “a partir do tráfico negreiro que se pode entender a escravidão africana colonial, e não o contrário” (NOVAIS, 1986, p. 105). Para outra visão contraposta a esta, ver, igualmente, Schwartz (1988). No capítulo Uma geração exaurida, nota-se que a escravidão de origem africana só vigorou plenamente na Bahia seiscentista depois que a exploração e as doenças ceifaram as populações indígenas, impedindo-as de atender a demanda agrária. Então, a demanda precede a oferta. Para o caso paulista, ver Monteiro (1994). Sobre como a montagem e a expansão dos engenhos fluminenses em plena crise europeia, nela incluída a portuguesa, no século XVII, assentaram-se em instâncias coloniais de acumulação, cf. Fragoso (2001; 2015). Era essa a ideia hegemônica na historiografia nacional e internacional.

Então, a África era concebida, quase mecanicamente, como mera fornecedora de cativos e o Brasil, em particular, e as Américas em geral, como um quintal provedor de matérias-primas. Evidentemente, o controle dos fluxos e de capitais nas mãos de mercadores europeus, ademais de tornar sociedades americanas e africanas subordinadas, teria efeito multiplicador na Europa, na medida em que, por exemplo, estimularia o desenvolvimento da indústria naval, de cidades portuárias, da manufatura; enfim, o tráfico atlântico de cativos da era moderna, direta ou indiretamente, teria contribuído, desde o século XVI, decisivamente para a tal acumulação primitiva de capital, futura e teleologicamente, apesar da longa espera, aplicado na Revolução Industrial setecentista.10 10 As interpretações anacrônicas e evolucionistas que dão sentido ao passado a partir do porvir persistem. Mas não são novas e mimetizam o que Dobb (1980) chamou de development of capitalism.

Fosse demanda ou oferta os vetores determinantes, cabia aferir que certos fatores controlavam os fluxos mercantis de cativos tão necessários à continuidade, no longo prazo, do sistema escravista atlântico; logo, era uma questão de compreender as próprias condições de reprodução das sociedades americanas com base no trabalho escravo, uma vez que havia um consenso segundo o qual a escravidão nas Américas se reproduziu, em termos demográficos, basicamente pelo tráfico atlântico de cativos; salvo os EUA calcados no crescimento vegetativo positivo da população escrava. No Brasil, o tráfico atlântico de cativos, aliado à alta mortalidade da população escrava, ao desequilíbrio sexual da escravaria (com poucas mulheres), e mesmo às alforrias, era imprescindível para a continuidade da reprodução ampliada da escravidão.

Resumidamente, este era o estado da arte quando Manolo Florentino adentrou suas pesquisas sobre comércio atlântico de cativos. Atento a estes debates internacionais, aqui apresentados como grandes linhas de tendência, em sua profissionalização ele também vivenciou de perto o núcleo de estudos de história agrária na UFF, capitaneado por Maria Yedda Linhares e por Ciro Flamarion Cardoso, seu orientador de doutorado, embora seu grande interlocutor tenha sido João Fragoso, na medida em que suas análises se complementavam.11 11 Esta avaliação é do próprio Ciro Cardoso: “Florentino nunca precisou de verdade de um orientador - embora eu lhe possa ter sido útil, talvez, como interlocutor. Mesmo quanto a isto, porém, é mister reconhecer que seu interlocutor-mor, seu interlocutor por excelência durante o longo processo de preparação da tese de que resultou este livro foi João Luís Ribeiro Fragoso. Esta constatação nos conduz à primeira originalidade do trabalho. As teses de Manolo e de João Luís se desenvolveram em contraposto, em diálogo constante, o que as torna complementares e, se bem que cada uma marcada pelo perfil específico de seu autor, indissoluvelmente ligadas a um projeto maior comum: esclarecer segundo certas premissas o funcionamento e a dinâmica da sociedade colonial brasileira” (CARDODO, 1995, p. 17). Ver também Cardoso (1993). Este núcleo, como outros, fortemente responsável pela profissionalização do ofício de historiador no âmbito dos programas de pós-graduação que então se consolidavam no Brasil, debatia intensamente questões sobre história agrária e sobre formação social do Brasil (CARDOSO, 1975CARDOSO, Ciro Flamarion. O modo de produção escravista colonial na América. In: SANTIAGO, Théo (org.). América colonial. Rio de Janeiro: Pallas, 1975.; 1980CARDOSO, Ciro Flamarion. As concepções acerca do ‘Sistema Econômico Mundial’ e do ‘Antigo Sistema Colonial’: a preocupação obsessiva com a ‘Extração do Excedente’”. In: LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes , 1980. p. 109-132., p. 109-132; 1982CARDOSO, Ciro Flamarion. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1982.; 1988CARDOSO, Ciro Flamarion(org). Escravidão e abolição no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.). Ciro Cardoso era um dos principais expoentes das controvérsias sobre assunto, ao lado de Fernando Antônio Novais e Jacob Gorender (GORENDER, 1988GORENDER, Jacob [1978]. O escravismo colonial. 5. ed. São Paulo: Ática , 1988. [1978GORENDER, Jacob [1978]. O escravismo colonial. 5. ed. São Paulo: Ática , 1988.]), entre outros. Grosso modo, apesar das diferenças, Ciro Cardoso e Jacob Gorender evocavam a tese de que a formação social brasileira se pautava sobre o modo de produção escravista colonial, ao passo que Celso Furtado (1963FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Editora Universidade de Brasília, 1963.) e Fernando Novais ([1979] 1986), ainda que de forma distinta, seguiram a trilha das teses do capitalismo comercial que remontavam a Caio Prado Júnior (1942PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense , 1942.). Por sua vez, Gorender também pactuava a ideia de que o tráfico atlântico de cativos era de predomínio do capital mercantil europeu. Em meio a este debate, formulou-se a pergunta sobre se havia algum modo de produção peculiar que não se realimentava por si mesmo, posto que incapaz de se autofinanciar.12 12 Cf. os termos postos pelo próprio Florentino (1995, p. 76-80). Nomeadamente, a questão implicava em definir que agentes controlavam o capital e as demais condições necessárias para aceder e reproduzir, também, o fator trabalho, isto é, o tráfico atlântico de cativos.

Faltava a todos, porém, salvo os que replicavam (e os que ainda replicam sob nova roupagem) as teses circulacionistas inspirados em I. Wallenstein (1974WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System I. Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. New York: Academic Press , 1974.; 1980WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System II: Mercantilism and the Consolidation of the European World-Economy, 1600-1750. New York: Academic Press , 1980.; 1989WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System III: the Second Era of Great Expansion of the Capitalist World-Economy, 1730-1840s. New York: Academic Press, 1989.; 2001WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. São Paulo: Contraponto, 2001.) e E. Williams (1944), uma percepção mais larga sobre o funcionamento do tráfico atlântico de cativos e sobre as supostamente passivas sociedades africanas e seus contributos para a estruturação da história econômica e social do Brasil colonial e imperial e das próprias sociedades africanas. Reside aí, não apenas no preenchimento de uma lacuna, mas, na formulação de uma nova interpretação, a grande inovação de Manolo Florentino: trazer à luz o tráfico atlântico de cativos como componente estrutural do e para a explicação do Brasil e de sociedades africanas.

Em resumo, a trajetória que levou à proposição teórica de Manolo Florentino se fez na encruzilhada de questões em torno da história econômica moderna, do debate sobre a formação social do Brasil colonial/imperial, da econometria estadunidense, da história demográfica, da história agrária, da controvérsia em torno do tráfico atlântico de cativos e da reprodução da escravidão nas Américas. Mais relevante, quaisquer que fossem as vertentes explicativas, havia a perspectiva de fornecer explicações gerais, isto é, construir teorizações sobre as sociedades observadas a fim de formular hipóteses que pudessem servir de modelo. Mergulhado no ambiente intelectual de sua época, mas também por escolha própria, as perguntas centrais formuladas por Manolo Florentino foram: quem pagou a conta da reprodução do tráfico atlântico de cativos, vetor maior da reprodução da sociedade escravista no Brasil, o maior recebedor de escravos africanos das Américas entre 1700 e 1850? Que papel fundamental (estrutural) o tráfico desempenhou em sociedades escravistas americanas e africanas?

Com tais indagações, Manolo Florentino, como bolsista pela Unesco, partiu para a realização, ainda entre 1982 e 1985, do seu mestrado no Colégio do México, então o principal centro de estudos sobre África na América Latina. Conviveu com seu orientador, Carlos Sempat Assadourian, um estudioso do tráfico atlântico de cativos e do mercado interno nas Américas (ASSADOURIAN, 1965ASSADOURIAN, Carlos Sempat. El tráfico de esclavos en Córdoba, 1588-1610: según las actas de protocolos del Archivo Histórico de Córdoba. Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, Instituto de Estudios Americanistas, 1965.; 1982ASSADOURIAN, Carlos Sempat. El sistema de la economía colonial. Mercado interno, regiones y espacio económico. Lima: Instituto de Estudos Peruanos, 1982.), objetos afins à seara temática de Florentino. Desde então, constatando a precariedade, quando havia, de estudos relacionados ao tráfico de cativos no Brasil, Manolo Florentino preocupou-se em colocá-lo no centro dos fatores explicativos da sociedade escravista brasileira, mas, sem, em momento algum, desvinculá-lo da história da África porque se tratava de um negócio “afro-americano”, não apenas por envolver as duas margens atlânticas, mas, essencialmente, porque o comércio de cativos moldou as duas “costas negras”.

Nessa trilha, perspicazmente - e em uma época em que não havia PDF, redes sociais e que computador doméstico era para poucos (é sempre bom lembrar) - Manolo Florentino elegeu como foco essencial de sua análise a comunidade traficante da praça mercantil do Rio de Janeiro durante o período compreendido entre 1790 e 1830, ainda que também se reportasse a outros momentos do século XVIII. A escolha teve suas razões. Em primeiro lugar, o Rio de Janeiro era, na ocasião, o maior porto recebedor de escravos africanos das Américas, a partir de meados do século XVIII. Mas na época nem todos os historiadores sabiam disso, o que se tornou “fato” conhecido, principalmente, a partir da abordagem de Florentino. E por isso hoje é rara uma obra séria sobre escravidão no eixo Sul-Sudeste do Brasil que não se refira ao tráfico de cativos no século XVIII com base em Em costas negras.

Também se sabia muito pouco sobre as procedências africanas dos cativos desembarcados no Rio de Janeiro de antanho. Familiarizado com a melhor historiografia sobre comércio atlântico de cativos disponível à época de seu doutorado, a qual propicia ainda hoje grande parte do fundamental sobre o assunto13 13 A exemplo de Birmingham (1966), Curtin (1969; 1975), Meillassoux (1975; 1996 [1986]), Klein (1978), Lovejoy (1983), Eltis (1987) e Miller (1988). , Manolo Florentino, porém, não se ateve apenas a esta constatação empírica, também indagou os motivos pelos quais o continente africano se dispôs a fornecer cativos às Américas durante mais de três séculos. Descartando como resposta, de imediato, uma maldade atávica à África, mas igualmente rejeitando a vitimização construída por qualquer historiografia independentista, ou por qualquer ideia “politicamente correta” avant la lettre (FLORENTINO, 1985, p. 80), ele visou perceber o fenômeno como componente essencial à compreensão de sociedade africanas. Afinal, “na África, o comércio negreiro não poderia reduzir-se a uma mera indução exterior. Ali, ele certamente deveria desempenhar um importante papel nos processos de constituição e reconstituição das relações sociais e econômicas”. Mas, em termos historiográficos, quando autores reconheciam a “participação africana no tráfico”, não viam “nela um elemento estrutural” (FLORENTINO, 1985, p. 22; 81).

Florentino também intuiu que para perscrutar o tráfico de cativos como negócio era preciso saber as origens de seu capital, suas formas de funcionamento, sua lucratividade e, não menos importante, como fatores extraeconômicos (a política, principalmente) o condicionaram, haja vista que o comércio de cativos não era redutível a um mercado smithiano calcado em leis autoreguláveis. O tráfico de cativos era um mercado que fazia confluir sociedades arcaicas (orientadas pela política e pela cultura) nas duas costas negras, cada uma a seu modo.

E Portugal? Não foi esquecido, mas o débil capital mercantil português reinol, de mentalidade arcaica aristocratizante, não era prioritariamente reinvestido na mercancia traficante e muito menos desembocou no setor produtivo. Assim, ele só foi dominante no tráfico atlântico de cativos antes do boom desta atividade no século XVIII, a partir de quando se tornou incapaz de responder à demanda americana.14 14 Em tempo, a debilidade do capital mercantil português reinol que abriu portas ao capital colonial residente se viu, igualmente, na Bahia, ou melhor, na Carreira da Índia: “Numa época [séculos XVI ao XVIII] em que o rápido declínio português tirava inteiramente àquele país a possibilidade de ter uma certa hegemonia sobre o Atlântico e o Índico, partilhados que estavam sendo os mares, as ilhas e os continentes pela expansão colonial de outros países mais poderosos [...] a Carreira da Índia não conseguiu subsistir sobre o controle português, como magra rota mantenedora comercial e militar do império ultramarino. A sua permanência foi possível entretanto graças às novas riquezas que, sobretudo através da Bahia, vieram engrossar-lhe a circulação, logrando assim manter seus interesses comerciais, através da conquista de novos mercados atraídos pelos novos produtos” (LAPA, 1968, p. 301). Lembro que capital residente não é, como talvez se possa erroneamente supor, sinônimo de capital e de historiografia nacionais. No lugar do frágil capital mercantil português metropolitano, Manolo Florentino constatou que a comunidade traficante carioca (residente) foi hábil em se converter em fonte principal de crédito para o funcionamento do tráfico atlântico de cativos como negócio. Ela foi capaz de alugar e comprar embarcações, produtos de escambo (cachaça, fumo, material bélico e, sobretudo, têxteis indianos), montar companhias de seguro etc. A elite mercantil carioca, da qual os traficantes atlânticos eram parte substancial, investia, logo também de onde capitalizava recursos, em imóveis urbanos, apólices de seguro, títulos de dívida pública, mercado interno de alimentos, etc. Ela era dona dos setores mais lucrativos da economia colonial, enfim (FLORENTINO, 1995FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 1995.; FRAGOSO; FLORENTINO, 1993FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de Janeiro: Diadorim , 1993.; FRAGOSO, 1992FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Miscigenação e exclusão no Rio de Janeiro, c.1800-1850. Revista Oceanos, Lisboa, v. 44, p. 100-110, 2000.). Economia na qual os baixos custos dos fatores econômicos fundamentais de sociedades agrárias (trabalho, terra e alimentos) contribuíam para a reprodução do sistema (FRAGOSO; FLORENTINO, 1993FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de Janeiro: Diadorim , 1993.). Trabalho, leia-se, oriundo da produção social do cativo em sociedades africanas, mas uma produção africana barata porque era fruto da violência. A etapa violenta da produção de cativos em África coube às próprias sociedades africanas a partir de suas razões, que, conforme Florentino, advinham de motivações políticas, econômicas e sociais: fortalecer elites, gerar riquezas e estabelecer hierarquia social.

Com efeito, o capital mercantil carioca residente era o ponto de partida e a grande fonte de crédito da cadeia de adiantamento-endividamento que fazia o trato negreiro girar, tornando comunidades mercantis em portos africanos dependentes do capital residente carioca, mas a cadeia se estendia às áreas interioranas de apresamento de cativos. Apesar disso, Manolo Florentino salientou que a produção social do escravo em África antecedia sua chegada às Américas. Em suas palavras, era imprescindível “indagar sobre o significado da demanda carioca para a esfera da oferta, já que ao consumo do escravo precede um movimento típico da face africana do tráfico, o da produção social do cativo”. A partir daí, munido da historiografia internacional sobre o assunto, considerou que a “oferta africana tinha, pois, que ser uma oferta elástica e barata de homens” (FLORENTINO, 1995FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 1995., p. 66; 84-85), já que a posse de cativos no Brasil, ainda que concentrada, também era amplamente disseminada entre diferentes segmentos sociais.

Dessa maneira, somente voltando os olhos aos motivos da produção de escravos em África seria possível explicar o papel estrutural do tráfico para as sociedades africanas que dele participaram. Perseguindo esse objetivo, Manolo Florentino salientou que “as guerras conformavam o instrumento básico [não exclusivo] por meio do qual os homens eram transformados em escravos e vendidos no litoral”. Vender homens no litoral “lhes permitia acesso a diversos tipos de mercadoria e material bélico. Deste modo, aumentava sua capacidade de produzir mais escravos e, por conseguinte, de controlar os bens envolvidos no escambo”. (FLORENTINO, 1995FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 1995., p. 66; 84-85).15 15 Não obstante a ênfase atual recair sobre outras formas de escravização em sociedades africanas, teses afins à escravização militar persistem. Sobre formas judiciais, ver Ferreira (2012) e Candido (2011; 2013). Sobre guerra e escravização, Miller (1988), Thornton (1983; 1988; 1999), Stilwell (2004; 2014), Sparks (2014) e Carvalho (2014; 2020).

Mas este fenômeno foi, sobretudo, realizado a partir de fins do século XVII, e intensificado no seguinte. O boom aurífero setecentista no Brasil, aliado à debilidade do arcaico capital mercantil português reinol, ou o desenvolvimento dos complexos açucareiros da Bahia e Caribe a partir de meados do século XVII, criou ou estimulou aquele movimento de produção de cativos via guerras no continente africano voltado a atender à demanda americana. Por isso, na África Ocidental, os séculos XVII e XVIII assistiram ao “apogeu dos grandes Estados interioranos da Baixa Guiné (Daomé, Oyo, Ardra, Ashante etc.), os quais, por meio das rotas que do interior alcançavam a costa, dominaram o fluxo de cativos para a América”. Então, reinos costeiros foram conquistados por Estados interioranos ou estes desenvolveram “meios próprios de comercialização”. Por estes mecanismos, a África Ocidental remeteu às Américas, entre 1650 e 1850, cerca de “cinco milhões de cativos, a maior parte vendida na Costa do Ouro e na baía do Benin”. O papel estrutural do tráfico de cativos foi, em suma, alterar relações de poder e fortalecer Estados em África, produzir hierarquia política e diferenciação social (FLORENTINO, 1995FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 1995., p. 93-96).

Processo muito similar se deu na África Central Atlântica, região congo-angolana, onde o Estado português até que tentou, nos séculos XVI e XVII, tomar as rédeas do negócio. Mas em Angola seiscentista a tentativa de colonização nos moldes produtivos do Brasil fracassou, não porque uma política metropolitana, atendendo ao “‘sentido’ da colonização mercantilista”, quisesse impor ali apenas uma atividade complementar (o tráfico) à estrutura produtiva brasileira. Florentino discordava da ideia de que o tráfico atlântico de cativos era um instrumento de afirmação do poder metropolitano que, por meio dele, fazia confluir os interesses dos colonos, dobrando-os, aos da metrópole (ALENCASTRO, 2000ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos viventes. Tráfico de escravos e paz lusitana no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.). Seria supor que o tráfico atlântico de cativos, conduzidos pelo capital mercantil europeu, teria sido capaz de infligir a escravidão nas Américas. Se fosse o caso de adotar tal perspectiva, Florentino repetiria, novamente, a velha mania de conceber a África e a América como sociedades historicizadas pelo capitalismo comercial. Daí que Manolo Florentino seguiu por outra trilha que ele próprio abriu.

Visava-se, na verdade, compreender, a partir do arcaísmo, a debilidade do capital mercantil português metropolitano e a fragilíssima ocupação lusa em Angola, aliás, até o século XIX. Assim, “ensaiava-se uma situação inusitada para os parâmetros originais do Sistema Colonial, pois a colônia brasileira transformava-se, na prática, na grande intermediária entre Portugal e Angola”, com contornos “mais nítidos a partir do século XVIII”. Setecentos, aliás, que foi a fase áurea do tráfico pela África Central Atlântica, “especialmente no período 1760-1830”. Ainda entre 1701 e 1800 a África Central Atlântica exportou dois milhões de cativos, aquém, é fato, dos três milhões e meio remetidos pela África Ocidental, mas um volume “três a quatro vezes maior do que as exportações da própria África Central nos cem anos anteriores” (FLORENTINO, 1995FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 1995., p. 99-101). Recrudesceu ainda mais na primeira metade do século XIX, sobretudo entre o pós-Independência do Brasil em 1822 e a Lei Eusébio de Queiróz em 1850.

Mas nada disso seria possível se as costas negras não estivessem visceralmente ligadas, pois a demanda americana impactou decisivamente a demografia do tráfico e as estruturas sociais africanas. Por exemplo, referido em Joseph Miller (1988MILLER, Joseph C. Way of Death. Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Wisconsin, Wisconsin University Press, 1988.), Florentino realçou que a competição por recursos gerava grande pressão demográfica na África Central Atlântica por causa de suas condições ecológicas, com secas periódicas etc., “cujos reflexos sociais e econômicos eram contundentes”. Tais condições ecológicas internas e as demandas americanas por cativos “tornavam mais contundentes os enfretamentos entre Estados, etnias, classes sociais e grupos domésticos, e com eles se aumentava a oferta de africanos”. Paulatinamente, “os Estados Bantus tenderam a se afirmar como instância de poder acima das linhagens - ainda que delas dependentes” (FLORENTINO, 1995FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 1995., p. 99-102). Como resultado, “sem deixar de contar com os ciclos ecológicos favoráveis, a produção de homens assumia uma natureza econômica que cada vez mais se justificava por si mesma. O tráfico energia como mais eficiente mecanismo de acumulação de homens e recursos, acentuando e/ou cristalizando a diferenciação social” na África.

É neste ponto que Brasil e África interagiram umbilicalmente pelo comércio atlântico de cativos. Em síntese, nas palavras de Manolo Florentino:

A demanda americana de escravos, em particular a brasileira, detonou ou, dependendo da região considerada, simplesmente incentivou o desenvolvimento da produção e circulação inicial dos cativos na África, onde estas duas variáveis incorporavam diversos tipos de elementos independentes (econômicos, sociais, políticos e militares), constituindo um contexto de interações sem o qual a demanda americana jamais poderia ser atendida.

A compreensão da dinâmica da oferta africana nos obrigará a tomar o tráfico atlântico enquanto mecanismo que, além de reproduzir estruturalmente a força de trabalho na América, também desempenhava um papel estrutural na África. Chega-se a esta conclusão quando se considera um simples dado: a oferta africana perdurou por mais de três séculos e meio, sem que, no fundamental, fosse necessário que os traficantes europeus e americanos produzissem diretamente o escravo, ou seja, que o apresassem ou que o exigissem como tributo. Aliás, o exemplo português mostra que, quando se tentou, através de guerras, uma maior produção direta dos escravos, desestabilizaram-se as rotas que secularmente alimentavam de braços os portos do Atlântico.

Esse dado, por sua vez, remete à relação entre o comércio negreiro e as contradições internas africanas, fossem estas pré-existentes ou não à migração forçada. Daí que a análise da dinâmica interna da oferta passe, necessariamente, por desvendar a natureza estrutural do comércio negreiro na África. Destacar esse aspecto implica em repensar articulação entre a economia escravista colonial e as diversas formações africanas envolvidas no tráfico, inserindo estas últimas no quadro geral dos elementos estruturais para viabilização e permanência da escravidão no Brasil. O tráfico atlântico passa a ser afro-americano por definição, não porque significa uma migração forçada de africanos para a América, mas sim principalmente o que desempenha funções estruturais nos dois continentes (FLORENTINO, 1995FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 1995., p. 104).

Palavras finais: um historiador cativo do tráfico atlântico de escravos

Fazendo-se voluntariamente cativo analítico do tráfico atlântico de cativos, Manolo ­Florentino também se serviu dele para perscrutar a escravidão no Brasil pelo viés da demografia, do parentesco, da infância, da alforria e da miscigenação.

Em termos demográficos e de parentesco, aquando de suas pesquisas sobre população escrava no Brasil, o consenso em linhas gerais era o de que (e ainda é até hoje), embora houvesse variações regionais e temporais, o contingente mancípio era incapaz de se reproduzir continuamente e de forma ampliada pelo crescimento vegetativo positivo por causa, principalmente, ainda que não apenas, das altas taxas de mortalidade e do desequilíbrio sexual em favor dos homens. Daí que a população escrava era aberta, ampliando-se pelo fluxo migratório forçado a partir do tráfico atlântico de cativos, necessário à perenidade da sociedade escravista. O tráfico revertia a tendência de decréscimo da população escrava (FLORENTINO, 1995FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 1995., p. 32-35).

No entanto, nada disso significou, na perspectiva de Manolo Florentino, ausência de parentesco escravo e de reprodução natural da escravaria. Para ele, tinham “razão muitos historiadores quando supõem que a família escrava era uma realidade estrutural da sociedade de então”, provavelmente um “um fenômeno de longa duração” (FLORENTINO; GÓES, 1997FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto Pinto de. A paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, c.1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1997., p. 22). A família escrava, destarte, não era nenhuma novidade entre historiadores, mas o que Florentino fez, em parceria com José Roberto Pinto de Góes, foi explicar o parentesco escravo a partir do desembarque de cativos africanos e da demografia escrava, politizando-o. O constante fluxo de cativos africanos estrangeiros trazidos pelo comércio atlântico forçou a socialização parental escrava, tornando-a estrutural não necessariamente no sentido demográfico, mas político. Para construir tal perspectiva, Florentino dialogou muito com as mudanças historiográficas em estudos sobre escravidão intensificados nos anos 1980 e com as influências da antropologia mais ou menos relacionadas aos Annales.

De fato, a virada dos anos 1980 para os anos 1990 foi particularmente profícua em inovações em pesquisas sobre escravidão no e sobre o Brasil, mas também alhures, algumas delas já iniciadas a partir dos anos 1970, seguindo uma tendência historiográfica internacional.16 16 Especialmente sobre família escrava no Brasil, as referências fundamentais eram Genovese (1974) e ­Gutman (1976). Grahan (1979, p. 41-59) havia, no entanto, aludido à família escrava no Brasil. Refiro-me ao modo de caracterizar a ação dos escravos na história da escravidão, e hoje não se pode deixar de dizer, também, a ação das escravas - ignorando, claro, o bom português porque o primeiro termo em sua flexão masculina e na forma plural, escravos, não é excludente e contempla o segundo, escravas; mas o inverso não é verdadeiro. Se bem que, no caso das famílias escravas vistas por Florentino, prevaleceu mesmo a ação dos homens sobre a das mulheres. Adianto-me. Para Florentino, não é porque as mulheres eram minoritárias na escravaria que se pode supor que elas “estivessem em condições privilegiadas na escolha do parceiro, como se o acasalamento entre os cativos fosse um mero problema matemático” (FLORENTINO; GÓES, 1997FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto Pinto de. A paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, c.1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1997., p. 154-155).

Retornando àquela a mudança de perspectiva historiográfica sobre escravidão, em linhas gerais ela atentou para as várias formas de manifestação das ações escravas, suas possibilidades de negociação dentro da ordem escravista, suas fugas reivindicatórias para dentro, não de negação da ordem escravista, o que se chamava de “resistência cotidiana, sistemática e mais poderosa, com que por vezes se lograva reordenar alguns cânones da escravidão” (FLORENTINO, 2005FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Migrantes portugueses, miscigenação e alforrias no Rio de Janeiro Imperial. In: FLORENTINO, Manolo(org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2005a. p. 367-388., p. 350). Pretendia-se trazer à luz, o que teve grande êxito, o papel dos escravos com sujeitos ativos na história, rompendo de vez com a ideia de escravo objeto e dando lugar ao escravo negociador, que não era nem um Zumbi e nem um Pai João. Esta acepção ganhou grande estatura na virada daqueles decênios. Então, resistência e autonomia escravas, por exemplo, eram palavras-chave em obras sobre escravidão de antanho, noções aplicadas para abarcar múltiplas e muito distintas ações escravas17 17 Por exemplo, Machado (1988), Reis e Silva (1989) e Lara (1988). Os dois últimos livros são citados por Manolo Florentino na primeira edição de Em costas negras. - talvez por isso mesmo na época não se aludia aos escravos na voz passiva (escravizados), e também era um momento historiográfico em que os escravos arrancavam a alforria de seus senhores e não se aludia à suposta liberdade precária que lhes subtrai a racionalidade - Afinal, talvez indagasse Florentino: para quê comprar a alforria para ser reescravizado?

Assim, vivenciando aquele ambiente de novos horizontes no contexto da redemocratização do país, Manolo Florentino, em parceria com José Roberto Pinto de Góes, aferiu a agência escrava expressa no parentesco. É verdade que atentar para a demografia associada ao parentesco já era uma preocupação timidamente manifestada pelo autor em Em costas negras (FLORENTINO, 1995FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 1995., p. 63-66), e mesmo antes, em um periódico dedicado à família escrava de fins dos anos 1980 (FLORENTINO; FRAGOSO, 1987FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 1995.).18 18 Em alusão a inventários post-mortem manuseados para analisar relações de parentesco escravo, afirmou em Em costas negras, Florentino afirmou: “O grosso destas fontes está em análise no bojo de uma reflexão acerca das relações parentais entre os escravos, junto com o professor José Roberto Góes” (FLORENTINO, 1995, p. 43). Então, José Roberto Góes (1993) desenvolvia dissertação de mestrado sobre compadrio e comunidade escrava. Ver também, do mesmo autor, Escravos da paciência (GÓES, 1998). Porém, o desenvolvimento do tema floresceu plenamente no início da década seguinte, redundando na publicação, em 1997, de A paz das senzalas, trabalho, que, se mal lido, ou lido de má vontade, pode passar a impressão de ausência de conflito. Longe disso, porque a “demografia da escravidão” manifestava “um cenário conflitivo por definição” (FLORENTINO; GÓES, 1997FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto Pinto de. A paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, c.1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1997., p. 174). Por isso mesmo, a paz (relativa estabilidade política) foi organizada pelas regras do parentesco escravo e provém de uma potencialidade de conflito inerente à escravaria.

Baseado em Marshall Sahlins, Manolo Florentino asseverou que o conflito era em grande parte instituído pelo tráfico de cativos que, constantemente, renovava as senzalas com escravos estrangeiros. O comércio de cativos trazia dessemelhantes, desavenças, potencialidade de guerra, mas nas senzalas lutava-se “contra a guerra” e se buscava a “paz, consoante a experiência da virtualidade da primeira” (FLORENTINO; GÓES, 1997FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto Pinto de. A paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, c.1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1997., p. 32). Desse modo, o “cativeiro assentava-se na contínua produção social do estrangeiro (isto é, antropologicamente falando), de um indivíduo desprovido de laços parentais e não estava nas mãos do senhor interromper o mecanismo que continuamente instaurava a diferença em seu plantel”. Afinal, para um senhor, não “era possível prescindir desse mercado para tocar suas fazendas e, por isso, de certo modo, também ele estava condenado a ser um estrangeiro em meio aos homens que comprava”. Daí que os “cativos faziam e refaziam o parentesco, enquanto o mercado produzia e produzia mais uma vez o estrangeiro” (FLORENTINO; GÓES, 1997FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto Pinto de. A paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, c.1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1997., p. 36).

Em contraposição à estraneidade imposta pela constante entrada de cativos nas escravarias no Brasil, o parentesco escravo que engendrava a paz das senzalas - e tudo que a ele dizia respeito (tipos de família, idade das uniões sexuais/afetivas entre os cônjuges, casados ou não, procriação, intervalo genésico, controle dos homens mais velhos, etc.) - impedia, entre os próprios escravos, a guerra de todos contra todos. Deste modo, os cativos foram artífices da paz, porque precisavam regrar sua própria comunidade política. Ao mesmo tempo, o parentesco os socializava, quer dizer, transformava os cativos estrangeiros em escravos. Era como se os cativos fossem, a partir de sua organização parental, protagonistas de sua própria escravidão.

Um bom exemplo da socialização parental se dava pelos modos de procriar. As mulheres escravas tendiam a começar a parir cedo, “um a três anos antes da mulher livre colonial”, mas, em contrapartida, seus intervalos genésicos (períodos entre as concepções) eram espaçados por causa do aleitamento materno, expressando “mais um padrão africano, onde o prolongamento do período de lactação poderia adiar por até três ou quatro anos uma nova concepção” (FLORENTINO; GÓES, 1997FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto Pinto de. A paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, c.1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1997., p. 135-136). Se o intervalo genésico prolongado contrabalançava a primeira gravidez precoce, reduzindo a urgência em procriar, por outro lado as mulheres cativas estendiam ao máximo sua fecundidade, pois suas idades quando da última procriação podiam atingir o limite máximo por volta, em média, dos 38 anos de idade, altíssimo para os padrões de época. Assim, “o alvo desta incessante busca do ventre gerador era recriar e tornar mais complexo, junto, o parentesco. Porque este fazia a paz” (FLORENTINO; GÓES, 1997FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto Pinto de. A paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, c.1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1997., p. 140). Em suma, procriava-se e aparentava-se para estabelecer normas de convívio, a paz das senzalas.

Mas não teria sido tudo isso, basicamente, obra senhorial? Absolutamente.

Os senhores também eram estrangeiros impossibilitados de uma conduta patriarcal e paternalista, posto que suas escravarias, com altíssimos índices de mortalidade, eram constantemente renovadas pela chegada de estrangeiros trazidos pelo tráfico. Não obstante, eles auferiram uma renda política indireta advinda da paz engendrada pelo parentesco escravo, mesmo que seus cativos aparentados tivessem menos valor monetário de mercado. Perdiam recursos econômicos, mas desfrutavam da estabilidade política que impedia a instauração da anomia social. Frise-se bem que nada disso quer dizer que os senhores conduziram o parentesco escravo para controlar politicamente a escravaria. Eles apenas desfrutaram, indiretamente, a renda política construída pelas normas parentais forjadas pelos escravos, sem ingerência sobre elas. Note-se bem, portanto, que Casa Grande, que seria uma metáfora para os senhores, não faz parte do título do livro, mas senzalas, sim. Afinal de contas, aos cativos também interessava a paz porque reduzia suas tensões internas e outras agruras da vida em escravidão.

Como se nota, muito atento à revisão da historiografia brasileira nos estudos sobre escravidão a partir dos anos 1980, a ação política escrava foi percebida por Manolo Florentino por via da abordagem da demografia e do parentesco, fatores que, no entanto, foram decisivamente moldados pelo impacto do tráfico atlântico de cativos.

Nos momentos em que os desembarques de cativos no Brasil se intensificavam, recrudescia também a urgência da socialização parental, quer pela procriação, pelo estabelecimento de uniões sexuais, sancionadas ou não pelas normas canônicas etc. Por exemplo, nos picos de desembarques, relaxavam-se certas normas vigentes na escravaria para regular o acesso ao bem escasso (a mulher cativa), posto que nas grandes escravarias (metaforizadas nas senzalas) o desequilíbrio demográfico era maior em favor dos homens. Nessas ocasiões, os cativos tinham que refazer suas regras. Mas, em conjunturas de estabilidade do tráfico de cativos, um fator muito crucial de estabilidade política relativa se manifestava no modo como os muitos homens do cativeiro dividiam as poucas mulheres, reproduzindo um padrão africano. Então:

Os cativos mais velhos, os mais curtidos pela escravidão, constituem um poder que ordenava a vida e a vida da comunidade - Isto é, eram reconhecidos pelos demais escravos como tal. A singular posição que ocupavam no mercado matrimonial sugere isso. Eles exerciam uma espécie de monopólio sobre as mulheres mais jovens [...]. Africano ou crioulo, não importa, quanto mais velho o cativo, maior a diferença etária entre ele sua esposa - escolhida quase sempre, aliás, entre as mais jovens (FLORENTINO; GÓES, 1997FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto Pinto de. A paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, c.1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1997., p. 176).

Porém, “não se pense que tudo era paz naquela comunidade”. Na realidade eram precários “os acordos apesar do esforço dos homens mais velhos”. Havia limites estreitos porque “a escravidão era muito sovina afinal”. Ela só podia “se recriar um tempo de forma tão previsível se tivesse sempre a enfraquecer o pouco poder conseguir amealhado pelo escravo” e o tráfico cumpria muito bem “esse papel” ao pôr em xeque “as regras arduamente construídas pelos cativos, obrigando a refazê-las mais uma vez”. Neste movimento de criação e recriação de regras exigia dos escravos sempre “renomear o mundo” para suportar a escravidão. Assim, nas fases altas dos desembarques de cativos estrangeiros o mais premente era aparentar-se para manter a paz das senzalas porque “à escravidão apenas importava ferir a humanidade do cativo o suficiente para conservá-lo escravo, mais que isso era tolice”, porque “Deus só imporá a cada alma o que ela puder suportar” (FLORENTINO; GÓES, 1997FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto Pinto de. A paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, c.1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1997., p. 178).

Crianças cativas, no entanto, suportaram arduamente a dura demografia da escravidão. Tão alta era a mortalidade escrava, mas só um pouco acima da população em geral - uma típica mortalidade de antigo regime na escravidão, em que se nascia muito e se morria às pencas (GOUBERT, 1971GOUBERT, Pierre [1969]. El antiguo régimen. V. 1. Buenos Aires: Siglo XXI Argentina, 1971.) -, que os infantes crioulos, isto é, nascidos no Brasil, feneciam ainda em tenra idade e também cedo viam seus pais e irmãos partirem para o mundo do além. Destarte, a infância escrava também foi vista por Manolo Florentino a partir dos impactos do tráfico de cativos, crianças inclusive africanas trazidas em proporções jamais vistas entre 1810 e 1850 (FLORENTINO; VILLA, 2016FLORENTINO, Manolo; VILLA, Valência. Abolicionismo inglês e tráfico de crianças escravizadas para o brasil, 1810-1850. História(São Paulo), v. 35, p. 1-20, 2016.). Suscetíveis ao choque microbiano, as populações escravas sucumbiam, também, pelo próprio regime demográfico imposto pelo comércio de cativos. Mais da metade das crianças escravas nascidas no Brasil não chegava aos 12 anos de idade, e morria-se mais nas fases de alta de desembarque de africanos. Igualmente, os índices de orfandade eram altíssimos. Contudo, nas morfologias da infância escrava, a comunidade se encarregava de socializar crianças órfãs via arranjos parentais. Tios, primos, padrinhos e madrinhas, entre outros afins, se encarregavam de não tornar solitária a vida de meninos crioulos. Logo, não era “tão fácil uma criança escrava ficar insuportavelmente só” (FLORENTINO; GÓES, 2005FLORENTINO, Manolo(org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2005b., p. 217).

Entretanto, cedo o trabalho alcançava as crianças e lhes transmutava em escravos. Entre os “quatro e os 11 anos” aprendiam-se “um ofício e a ser escravo” porque o “trabalho era o campo privilegiado da pedagogia senhorial” (FLORENTINO; GÓES, 2005FLORENTINO, Manolo(org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2005b., p. 218). Ademais, o “adestramento da criança também se fazia pelo suplício”, não as punições exemplares reservadas aos seus pais, mas o “suplício do dia-a-dia, feito de pequenas humilhações e grandes agravos” (FLORENTINO; GÓES, 2005FLORENTINO, Manolo(org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2005b., p. 218). Crescendo neste ambiente, os crioulos, que nunca eram estrangeiros, tornaram-se, em consequência, escravos mais impacientes e até podiam desprezar os africanos. O crioulo via a escravidão com muito mais má vontade porque muitos libertos eram nascidos no Brasil, e entre a população livre miscigenada abundavam egressos do cativeiro.

Em meio à construção socialmente compartilhada da miscigenação, aliás, crianças escravas crioulas nem sempre eram geradas por pais escravos, posto que, muitos pais eram livres com antepassado escravo ou alforriados, fossem estes últimos libertos africanos ou crioulos, cujas modalidades de alforria (pagas, gratuitas ou condicionais) também eram largamente condicionadas pelo volume de desembarques de cativos na cidade do Rio de Janeiro. A mesma escravidão e o mesmo tráfico de cativos que produziram hierarquização e diferenciação social excludente não foram avessos à mobilidade social expressa, entre outros aspectos, na alforria (FLORENTINO, 2005bFLORENTINO, Manolo(org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2005b.), mas também na posse de escravos entre os de antepassado escravo e libertos. Emergiu uma população livre oriunda da escravidão, mas também composta de portugueses pobres, que inevitavelmente propiciou intercursos sexuais entre homens livres e forros e mulheres escravas; homens que frequentemente, na verdade na imensa maioria das vezes, não eram seus senhores. Redunda daí a larga miscigenação na vigência da escravidão brasileira, também edificada por mulheres livres e forras. Em suma, a sociedade escravista foi, também, um grande criatório de mestiços nascidos livres ou escravos vindos de matrizes variadas.

Nisso, Manolo Florentino foi tributário de Gilberto Freyre, mas excluindo deste a ideia de que a miscigenação foi fruto, principalmente, das interações violentas entre casa-grande e senzala.19 19 Segundo Freyre, para além da sifilização ladear a civilização, o que “a negra das senzalas fez foi facilitar a depravação com sua docilidade escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não: ordem”. No “senhor branco o corpo quase que se tornou exclusivamente o membrum virile [...] o sexo arrogante e viril. Em contraste com os negros - tantos deles gigantes enormes, mas pirocas de menino pequeno” (FREYRE, 1987 [1933], p. 450; 429). Tem razão José Góes ao afirmar que Freyre “sexualizou o passado ao trabalhar intensamente com a idéia de desejo” (GÓES, 1988, p. 65). Quando pensava tais assuntos, Florentino se recusava a aderir à ­explicação fácil, indo muito na contramão, no Brasil, dos ecos, ainda hoje muito altos, de teses uspianas sobre escravidão que tendiam (e ainda tendem) a moldar a maior parte das análises distorcidamente críticas sobre as interpretações de Gilberto Freyre20 20 “Engendrou-se [...] um dos grandes mitos de nosso tempo: o ‘mito da democracia racial brasileira’. Admita-se, de passagem, que esse mito não nasceu de um momento para o outro. Ele germinou longamente, aparecendo em todas as avaliações que pintavam o jugo do escravo [...] sendo suave, doce [...]. Todavia, tal mito não possuiria sentido na sociedade escravocrata e senhorial. A própria legitimação da ordem social [...] repelia a idéia de uma ‘democracia racial’” (FERNANDES, 1978, v. I, p. 52-57; 152). Continua-se a ler Freyre mal e de má vontade. Ainda há os que não sabem diferenciar a interpretação que Tannenbaum fez de Casa-grande e senzala e a própria abordagem Gilberto Freyre: “Reconhecer esse dado empírico [as alforrias] das realidades do passado escravista das Américas não significa necessariamente esposar as teses de Freyre e Tannenbaum sobre uma suposta democracia racial que todos sabemos nunca ter passado de um mito” (MARQUESE, 2020, p. 223-224). , a quem foi imputada a iniciativa de ter gestado o mito da democracia racial brasileira, ideia elaborada, na verdade, a partir da e pela crítica ao autor pernambucano. No dizer de Manolo Florentino: “[...] o mito de que Freyre seria a fonte da democracia racial brasileira” é um “equívoco que se nutre, em grande medida, do desconhecimento da obra de um dos melhores intérpretes do Brasil por parte de inúmeras gerações universitárias. Óbvio, há exceções [...]”. Florentino não jogou a criança junto com a água porque percebeu que discriminação e miscigenação caminhavam e caminham juntas e de mãos dadas (FLORENTINO, 2007FLORENTINO, Manolo. Da atualidade de Gilberto Freyre. In: FRY, Peter; MAGGIE, Ivone; MAIO, Marcos Chor; MONTEIRO, Simone; SANTOS, Ricardo Ventura (orgs.). Divisões perigosas. Políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007., p. 92). Outrora a miscigenação fora obra de libertos, libertas, escravos e escravas, de homens e mulheres mestiços nascidos livres, de portugueses, de pardos e pardas, de mulatos e mulatas; e de escravas e homens livres que não eram seus senhores, fundamentalmente (­FLORENTINO; MACHADO, 2000FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Miscigenação e exclusão no Rio de Janeiro, c.1800-1850. Revista Oceanos, Lisboa, v. 44, p. 100-110, 2000.; 2002aFLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Ensaio sobre a imigração portuguesa e os padrões de miscigenação no Brasil (séculos XIX e XX). Portuguese Studies Review, Trent - Canadá, v. 10, n. 1, p. 58-84, 2002a.; 2002bFLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Imigração portuguesa e miscigenação no Brasil nos séculos XIX e XX: Um ensaio. In: LESSA, Carlos(org.). Os lusíadas na aventura do Rio Moderno. V. 11, p. 91-116. Rio de Janeiro: Record, 2002b., p. 91-116; 2005FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Migrantes portugueses, miscigenação e alforrias no Rio de Janeiro Imperial. In: FLORENTINO, Manolo(org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2005a. p. 367-388., p. 367-388; FLORENTINO; GÓES, 2013FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto Pinto de. Padrões de mobilidade e miscigenação racial no Brasil escravista (Rio de Janeiro, século XIX). America Latina en la Historía Económica, v. 20, p. 5-27, 2013., p. 5-27). Explicar o Brasil requeria, em suma, assumir que discriminação e miscigenação são irmanadas. Foram e são construções coletivas socialmente compartilhadas. O tráfico de cativos, portanto, deixou marcas na sociedade brasileira perceptíveis para poucos, porém os que tentam compreender a hierarquização excludente brasileira assoberbados nos pés de barro das dicotomias analíticas apenas reproduzem lugares comuns. Manolo Florentino, entretanto, nunca se baseou nos lugares comuns. Ele e seu legado são extraordinários.

Uma inevitável nota pessoal

Resisti o quanto pude a finalizar esta homenagem sem uma nota pessoal dirigida a meu amigo e professor, o historiador Manolo Garcia Florentino. Porém, fui seu aluno em disciplinas que ministrou na graduação, seu bolsista de iniciação científica entre 1992 e 1996 e seu orientando de monografia de fim de curso. Também cursei disciplinas de pós-graduação que ele ofereceu e, ao longo dos anos em que convivemos, mais ou menos próximos, trocamos vários textos, documentos, conversas e ideias. Em termos profissionais, foi ele quem me ensinou a pesquisar e me estimulou, quando eu ainda era graduando, nos idos de 1990, a ir a arquivos para fazer história com base em documentos e em diálogos historiográficos. Por sua influência me enveredei pela área de escravidão no Brasil e um pouco pela História da África pré-colonial. De personalidade forte, controversa, excentricamente incomum para os dias atuais, mas sempre afável para com os que prezava, ele moldou, pelos menos nos passos iniciais, uma geração de historiadores e de professores que hoje atuam em universidades e em escolas do ensino básico no Brasil e no exterior. Assim, por si ou pelos que ajudou a formar, ele projetou a historiografia brasileira no mundo. Por tudo isso, eu não pude deixar de registrar aqui esta nota pessoal repleta de imensa gratidão, de inevitável admiração intelectual, de respeito, de amizade e de saudade. Tento fazer jus à dedicatória que, há quase um quarto de século, ele me ofereceu na ocasião do lançamento de A paz das senzalas: “Pro amigão Guedes, com cuja amizade sempre contarei. Manolo 9/12/97”.

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  • 1
    Entre outras, ver referências a seu livro maior em Eltis (2001, p. 17-46), Eltis e Richardson (2008, p. 11; 54), Curto (2002, p. 383) e Candido (2013, p. 111; 153; 166). A internacionalização do autor também se observa em sua intensa atuação no projeto Slave Voyages. Cf. https://www.slavevoyages.org/
  • 2
    Sobre influências da teoria da dependência em estudos sobre economia colonial, cf. Cardoso e Brignoli (1983, p. 205).
  • 3
    Cf. balanços, para essas ocasiões historiográficas, em Hirano (1988) e Bielschowsky (1995).
  • 4
    Ver, sobre Estado Moderno de inspiração hobbesiana, entre outros, Anderson (1985). Sobre teses circulacionistas e economia-mundo, I. Wallenstein (1974, 1980, 1989, 2001), E. Williams (1975 [1944]) e F. Mauro (1988). De uns tempos para cá, novamente com desprezo para com a África, a fixação com o capitalismo circulacionista foi repaginada com o rótulo de Segunda Escravidão, mas não raro atualmente já sob o guarda-chuva de alguma história global. Cf. Tomich (1988), Marquese e Tomich (2009), Muaze e Salles (2015). A vertente designada Segunda Escravidão só enxerga qualquer mudança na escravidão se esta advier do ou confluir para o tal “capitalismo histórico”. Por exemplo, a “primeira” escravidão, “colonial”, entre os séculos XVI e XIX, e a “segunda”, do século XIX, seriam diferentes, mas ambas compõem a “economia-mundo capitalista”. Além disso, há uma grande falha em uma história pretensamente global e supostamente construída em torno de uma totalidade dada pela escravidão. Na verdade, há uma contradição porque desconsidera a África, apesar de adotar uma perspectiva que evoca uma totalidade moldada pela “escravidão atlântica, isto é, os sistemas de exploração do trabalho escravo africano que foram implantados pelos europeus no Novo Mundo” (MARQUESE, 2020, p. 110- 118). Além do teleologismo das análises e do silêncio sobre a África, elas também praticamente ignoram, por exemplo, a maior província escravista do Brasil oitocentista, Minas Gerais, entre outras áreas fora do modelo. Sobre a maior província escravista do século XIX, ver Martins (2018).
  • 5
    Para perspectivas mais recentes sobre o vocabulário político e a natureza das relações entre reino e conquistas, ver, entre outros, Fragoso e Monteiro (2017) e Almeida (2019).
  • 6
    A ideia de complementariedade entre África e Brasil já havia sido ressaltada por Pierre Verger (1987), sem, entretanto, se ocupar do tráfico como negócio e sem realçar a dimensão de diferenciação social nas duas margens. Evidentemente, o enfoque de Verger abriu outras portas. Sobre outras abordagens que realçam os vínculos umbilicais entre Brasil e África, ver Rodrigues (1964), Miller (1988), Alencastro (2000), Curto (2000), Silva (2003), Curto e Lovejoy (2004) e Ferreira (2012).
  • 7
    Esta coletânea redunda de uma conferência realizada em 1975.
  • 8
    Entre outras abordagens, estas questões podem ser aferidas, por exemplo, em Curtin (1969), Klein (1978) e Alencastro (2000). Esta última obra foi, inicialmente, defendida como tese de doutorado em 1985. Para esta interlocução, ver Florentino (1995, p. 67-68).
  • 9
    Ver Williams (1975). Fernando Novais seguiu os passos de E. Williams para afirmar que é “a partir do tráfico negreiro que se pode entender a escravidão africana colonial, e não o contrário” (NOVAIS, 1986, p. 105). Para outra visão contraposta a esta, ver, igualmente, Schwartz (1988). No capítulo Uma geração exaurida, nota-se que a escravidão de origem africana só vigorou plenamente na Bahia seiscentista depois que a exploração e as doenças ceifaram as populações indígenas, impedindo-as de atender a demanda agrária. Então, a demanda precede a oferta. Para o caso paulista, ver Monteiro (1994). Sobre como a montagem e a expansão dos engenhos fluminenses em plena crise europeia, nela incluída a portuguesa, no século XVII, assentaram-se em instâncias coloniais de acumulação, cf. Fragoso (2001; 2015).
  • 10
    As interpretações anacrônicas e evolucionistas que dão sentido ao passado a partir do porvir persistem. Mas não são novas e mimetizam o que Dobb (1980) chamou de development of capitalism.
  • 11
    Esta avaliação é do próprio Ciro Cardoso: “Florentino nunca precisou de verdade de um orientador - embora eu lhe possa ter sido útil, talvez, como interlocutor. Mesmo quanto a isto, porém, é mister reconhecer que seu interlocutor-mor, seu interlocutor por excelência durante o longo processo de preparação da tese de que resultou este livro foi João Luís Ribeiro Fragoso. Esta constatação nos conduz à primeira originalidade do trabalho. As teses de Manolo e de João Luís se desenvolveram em contraposto, em diálogo constante, o que as torna complementares e, se bem que cada uma marcada pelo perfil específico de seu autor, indissoluvelmente ligadas a um projeto maior comum: esclarecer segundo certas premissas o funcionamento e a dinâmica da sociedade colonial brasileira” (CARDODO, 1995, p. 17). Ver também Cardoso (1993).
  • 12
    Cf. os termos postos pelo próprio Florentino (1995, p. 76-80).
  • 13
    A exemplo de Birmingham (1966), Curtin (1969; 1975), Meillassoux (1975; 1996 [1986]), Klein (1978), Lovejoy (1983), Eltis (1987) e Miller (1988).
  • 14
    Em tempo, a debilidade do capital mercantil português reinol que abriu portas ao capital colonial residente se viu, igualmente, na Bahia, ou melhor, na Carreira da Índia: “Numa época [séculos XVI ao XVIII] em que o rápido declínio português tirava inteiramente àquele país a possibilidade de ter uma certa hegemonia sobre o Atlântico e o Índico, partilhados que estavam sendo os mares, as ilhas e os continentes pela expansão colonial de outros países mais poderosos [...] a Carreira da Índia não conseguiu subsistir sobre o controle português, como magra rota mantenedora comercial e militar do império ultramarino. A sua permanência foi possível entretanto graças às novas riquezas que, sobretudo através da Bahia, vieram engrossar-lhe a circulação, logrando assim manter seus interesses comerciais, através da conquista de novos mercados atraídos pelos novos produtos” (LAPA, 1968, p. 301). Lembro que capital residente não é, como talvez se possa erroneamente supor, sinônimo de capital e de historiografia nacionais.
  • 15
    Não obstante a ênfase atual recair sobre outras formas de escravização em sociedades africanas, teses afins à escravização militar persistem. Sobre formas judiciais, ver Ferreira (2012) e Candido (2011; 2013). Sobre guerra e escravização, Miller (1988), Thornton (1983; 1988; 1999), Stilwell (2004; 2014), Sparks (2014) e Carvalho (2014; 2020).
  • 16
    Especialmente sobre família escrava no Brasil, as referências fundamentais eram Genovese (1974) e ­Gutman (1976). Grahan (1979, p. 41-59) havia, no entanto, aludido à família escrava no Brasil.
  • 17
    Por exemplo, Machado (1988), Reis e Silva (1989) e Lara (1988). Os dois últimos livros são citados por Manolo Florentino na primeira edição de Em costas negras.
  • 18
    Em alusão a inventários post-mortem manuseados para analisar relações de parentesco escravo, afirmou em Em costas negras, Florentino afirmou: “O grosso destas fontes está em análise no bojo de uma reflexão acerca das relações parentais entre os escravos, junto com o professor José Roberto Góes” (FLORENTINO, 1995, p. 43). Então, José Roberto Góes (1993) desenvolvia dissertação de mestrado sobre compadrio e comunidade escrava. Ver também, do mesmo autor, Escravos da paciência (GÓES, 1998).
  • 19
    Segundo Freyre, para além da sifilização ladear a civilização, o que “a negra das senzalas fez foi facilitar a depravação com sua docilidade escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não: ordem”. No “senhor branco o corpo quase que se tornou exclusivamente o membrum virile [...] o sexo arrogante e viril. Em contraste com os negros - tantos deles gigantes enormes, mas pirocas de menino pequeno” (FREYRE, 1987 [1933], p. 450; 429). Tem razão José Góes ao afirmar que Freyre “sexualizou o passado ao trabalhar intensamente com a idéia de desejo” (GÓES, 1988, p. 65).
  • 20
    “Engendrou-se [...] um dos grandes mitos de nosso tempo: o ‘mito da democracia racial brasileira’. Admita-se, de passagem, que esse mito não nasceu de um momento para o outro. Ele germinou longamente, aparecendo em todas as avaliações que pintavam o jugo do escravo [...] sendo suave, doce [...]. Todavia, tal mito não possuiria sentido na sociedade escravocrata e senhorial. A própria legitimação da ordem social [...] repelia a idéia de uma ‘democracia racial’” (FERNANDES, 1978, v. I, p. 52-57; 152). Continua-se a ler Freyre mal e de má vontade. Ainda há os que não sabem diferenciar a interpretação que Tannenbaum fez de Casa-grande e senzala e a própria abordagem Gilberto Freyre: “Reconhecer esse dado empírico [as alforrias] das realidades do passado escravista das Américas não significa necessariamente esposar as teses de Freyre e Tannenbaum sobre uma suposta democracia racial que todos sabemos nunca ter passado de um mito” (MARQUESE, 2020, p. 223-224).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2021
  • Aceito
    22 Nov 2021
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