Open-access A heterogeneidade das viagens ao Novo Mundo

The Heterogeneity of Travels to the New World

La heterogeneidad de los viajes al Nuevo Mundo

HUE, Sheila; LESSA DE SÁ, Vivien Kogut. Ingleses no Brasil: relatos de viagem de 1526-1608. São Paulo: Chão, 2020. 303p.

No prefácio à coletânea Ingleses no Brasil: relatos de viagem 1526-1608 (2020), Sheila Hue e Vivien Lessa de Sá destacam que os relatos de viajantes ingleses foram praticamente ignorados pela escrita da história colonial. Dentre os 43 relatos de viagem ingleses conhecidos, apenas o relato de Anthony Knivet foi publicado em língua portuguesa pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) no século XIX (HUE; LESSA DE SÁ, 2020, p. 201). Os textos selecionados, editados e traduzidos pelas organizadoras foram publicados, em sua maioria, pela primeira vez nas coletâneas de Hakluyt e Purchas, editores das duas maiores e mais importantes coletâneas de viagem em língua inglesa. The Principall Navigations, Voyages and Discoveries of the English Nation (1598), editada pelo clérigo e diplomata Richard Hakluyt, e Hakluytus Posthumus or Purchas his Pilgrimes (1625), editada por Samuel Purchas, “igualmente sacerdote da Igreja Anglicana” (HUE; LESSA DE SÁ, 2020, p. 198) abrigam a maior parte dos documentos de viagens de ingleses ao Novo Mundo. Hue e Lessa de Sá tomam como critério a linguagem fluida, a relevância dos eventos relatados para a história colonial e a heterogeneidade dos propósitos das viagens e “dos níveis culturais e sociais” (p. 202) dos viajantes para selecionar as doze narrativas que fazem parte de Ingleses no Brasil. O objetivo da coletânea de Hue e Lessa de Sá é lançar luz sobre esses registros do período colonial brasileiro, que continuam negligenciados pela historiografia nacional.

Ingleses no Brasil é organizada com base na função de cada viajante-narrador. Hue e Lessa de Sá destacam três funções principais: os corsários, viajantes interessados no saque e na pilhagem de acampamentos e embarcações de outros europeus, e de aldeias indígenas; os mercadores, que se interessavam pelas trocas comerciais com indígenas e, principalmente, com outros europeus e mamelucos; e os aventureiros, que vinham ao Novo Mundo pela exploração. Interessava a eles, por exemplo, conhecer os costumes aqui praticados e registrar a fauna e a flora típicas da região. Devido a essas funções, Ingleses no Brasil é composto por três seções: Corsários, Mercadores e Aventureiros. Dentro de cada seção, há uma pequena introdução para cada capítulo, o título original de cada texto e os relatos. Em alguns relatos, também é possível encontrar imagens relevantes à leitura do texto, como mapas, panfletos da época ou a primeira página da primeira edição do relato. O livro ainda contém um posfácio e notas sobre a tradução. Apesar de os textos selecionados condizerem, quase sempre, com a classificação adotada pelas organizadoras, é importante entender que essa mesma classificação pode ser muito redutora. A leitura atenta dos textos selecionados pelas organizadoras revela que as viagens dificilmente podem ser circunscritas a um único objetivo. Isto fica claro, por exemplo, no relato do corsário Richard Hawkins (1593).

O texto de Hawkins foi publicado integralmente pela primeira vez no ano de 1622. Esse relato foi impresso no formato de livro sob o título de The Observations of Sir ­ Richard Hawkins in his Voyage in the ­South Sea Anno 1593 (HUE; LESSA DE SÁ, 2020, p. 81). Uma versão abreviada e anotada do texto integral foi incluída na coletânea Purchas his Pilgrimes (1625). De acordo com Hue e Lessa de Sá (p. 231), o texto de Hawkins chama a atenção por sua prosa elegante, atribuída à formação humanista e à origem nobre do viajante, que era cortesão e cosmógrafo. O interesse de Hawkins pela cosmografia seria uma das razões para a sua viagem à América do Sul. Em 1593, Hawkins teria saído de Plymouth para explorar as rotas marítimas e as regiões que surgissem em seu caminho. De acordo com as organizadoras, o relato de Hawkins contém traços das obras chamadas cosmografias ao tecer ricos comentários sobre a medicina, a zoologia, a etnologia e os indígenas das terras do Sul (p. 81). Porém, não são as explorações cosmográficas o aspecto privilegiado pelas organizadoras, mas sim os saques praticados por Hawkins. É esta a razão para a inclusão do seu texto na seção dos corsários.

No posfácio de Ingleses no Brasil, Hue e Lessa de Sá (p. 202) propõem uma divisão das investidas inglesas no Brasil em três fases. A primeira fase seria de exploração das terras brasileiras, a segunda de negociações comerciais com os indígenas, enquanto a terceira seria marcada por tentativas de comércio com os colonizadores ibéricos e atividades de corso. As organizadoras incluíram textos emblemáticos de cada fase em sua coletânea. O relato do corsário Lancaster (p. 45), por exemplo, seria representativo da terceira fase. A viagem de Lancaster é apontada por Hue e Lessa de Sá (p. 238) como uma das visitas ao Brasil mais lucrativas. Em 1595, Lancaster retorna à Inglaterra. Nesse mesmo ano, Henry Roberts, poeta inglês, compôs um panfleto celebrando os feitos do viajante (p. 235). Já o relato dos corsários Withrington e Lister (p. 11), que visitaram a Bahia em 1587, em vez de celebrado, foi fortemente ‘editado’ por Hakluyt. A edição era necessária para encobrir os “elementos disfóricos”, que não combinavam com a imagem idealizada do “caráter nacional inglês”, e as derrotas de uma viagem marcada pelo ­fracasso (p. 225).

Para além das questões debatidas por Hue e Lessa de Sá, os relatos selecionados pelas organizadoras são fontes riquíssimas para pensarmos as tensões presentes no perío­do inicial da colonização no Brasil. O relato do “Minion of London” é representativo da terceira fase do expansionismo inglês. O perío­do de intensificação das atividades comerciais e do corso na costa brasileira coincide com a união das coroas da Espanha e de Portugal, em 1580, e com a proibição do acesso e da permanência de comerciantes ingleses na colônia portuguesa. É nesse contexto que o navio comercial ­Minion of London passa seis anos negociando com habitantes do Brasil no Porto de Santos (p. 217). O relato da viagem do Minion of ­London, ao mesmo tempo em que apresenta um anti-iberismo acentuado, registra a relação comercial entre a tripulação do navio inglês e viajantes ibéricos.

O tema da amizade entre europeu e nativo é frequente nos relatos de viagens do período colonial. É comum encontrarmos um contraste entre a descrição da relação entre ingleses e indígenas e da relação entre ibéricos e indígenas. Nos relatos de viagens ingleses, enquanto os ingleses são apontados como amigos dos nativos brasileiros, os ibéricos são caracterizados como sujeitos ­cruéis. Os relatos da expedição de mercadores “Bárbara of London” (1540) apresenta uma novidade na descrição das relações entre europeus e indígenas. A viagem do “Bárbara of London” foi muito malsucedida. No relato, amplamente revisto/reescrito pelo editor Hakluyt, há um problema no navio inglês e a tripulação é realocada para uma nau espanhola. Nessa viagem, os ingleses não vivem amigavelmente entre os indígenas, mas são devorados pelos nativos brasileiros.

Na seção dedicada aos mercadores, talvez o relato mais relevante seja do viajante William Hawkins. Hue e Lessa de Sá (p. 210) elegem esse relato como emblemático da segunda fase: o início das relações comerciais entre indígenas e ingleses. Hakluyt inclui o relato da viagem de Hawkins como uma breve notícia em Principall Navigations. Essa notícia teria sido ditada por Hawkins e redigida pelo próprio Hakluyt. De acordo com as autoras, o relato de Hawkins serviria para mostrar a atuação comercial inglesa no litoral do Brasil “desde épocas recuadas” (p. 210). Esse relato condiria com o interesse de Hakluyt em romper com o monopólio ibérico. Cito brevemente, ainda, um último viajante classificado como mercador em Ingleses no Brasil. O viajante Thomas Turner (1598) não passa tanto tempo em terras brasileiras quanto os outros viajantes do livro. O relato foi citado, pela primeira vez, em ­Purchas his Pilgrimage (1613). Nessa ocasião, o texto de Turner serviu como um registro dos gigantes da Patagônia. Em 1625, o relato de Turner é publicado em Purchas his Pilgrimes como uma fonte de informação importante sobre o tráfico negreiro praticado pelos europeus na América do Sul.

Inaugurando a seção de aventureiros, encontramos o relato de Roger Barlow, A Brief Summe of Geographiae (1932). Roger Barlow foi o primeiro viajante inglês a escrever um relato sobre o Novo Mundo, e pode ser considerado um autor emblemático da fase de exploração das terras brasileiras. Barlow integrou a frota de Sebastião Caboto, viajante italiano. Um traço interessante das viagens europeias ao Novo Mundo é a presença de sujeitos de diversas origens na tripulação. Nessa viagem, por exemplo, Caboto é um veneziano, Barlow e o piloto Patimer, ingleses, e a frota é espanhola. A Brief Summe of Geographie de Barlow foi uma tradução-adaptação do texto do espanhol Martin Fernandes Enciso (1529), Suma de Geographia. Barlow ainda recorre a obras de Plínio e Heródoto.

A Brief Summe of Geographie suscita um novo questionamento sobre as molduras, dadas aos textos pelo título e pelas seções, da coletânea organizada por Hue e Lessa de Sá. O título Ingleses no Brasil estabiliza conflitos-chave da literatura de viagem como a noção de autoria dos relatos e a noção de um país originário unívoco, a partir do qual fosse possível definir a identidade confessional, os alinhamentos políticos ou a formação intelectual dos viajantes. O relato de Barlow é um bom exemplo para ilustrar a complexidade das viagens ao Novo Mundo. Como definir como inglesa a viagem feita por uma tripulação tão heterogênea quanto a de Caboto? Como atribuir a autoria de A Brief Summe of Geographie ao inglês Barlow, se o texto é uma tradução-adaptação de um texto espanhol e conta com influências latinas? Assim como o texto de Barlow, a maior parte dos relatos contidos na coletânea escapam aos limites impostos pelo título. A premissa de que os ingleses estiveram no ­Brasil parece pressupor que as viagens tinham propósitos bem delineados pela coroa, e que os viajantes eram apenas representantes da rainha da Inglaterra no além-mar. Contudo, a leitura cuidadosa dos relatos selecionados para essa coletânea revela heterogeneidade das origens, desejos e atitudes de cada viajante. Além disso, também aparecem as dificuldades das viagens marítimas, da vida em terras brasileiras e os atritos da relação entre europeu-europeu e entre europeu-indígena.

Há ainda dois relatos de aventureiros no livro. O relato de William Davies (1608) demonstra a pluralidade da origem dos viajantes, mencionada acima. Davies viajou ao Amazonas em uma frota italiana. Portanto, não participou de uma expedição organizada por ingleses. Sua viagem era composta por diferentes sujeitos, com “a participação de ingleses em momentos chave da viagem” (p. 245). É tanto mais importante a publicação desse texto em língua portuguesa, uma vez que, como explicam as organizadoras, as viagens italianas são pouco comentadas pela historiografia brasileira. O segundo aventureiro é Peter Carder (1577), que saiu da Inglaterra com o objetivo de circum-navegar o globo. Em seu relato, Carder não conta sobre uma boa vida entre os indígenas, ao contrário, fala das dores de se viver em meio aos selvagens. Seu relato traz descrições etnográficas singulares marcadas pelo discurso do maravilhoso, do estranho e do novo (p. 214).

A seleção de textos feita por Hue e Lessa de Sá faz de Ingleses no Brasil uma grande contribuição para a literatura de viagem em geral e para a literatura sobre o Brasil em particular. Isto porque cada texto retrata períodos distintos, enfoca traços específicos do Brasil colonial e remonta a uma história de publicação e recepção própria, como tentei argumentar ao longo desta resenha. Em diversos trechos da coletânea, Hue e Lessa de Sá reiteram que o seu objetivo central é tornar acessível aos leitores brasileiros textos de viagem ingleses ignorados por tanto tempo pela historiografia brasileira. Ingleses no Brasil, além de textos inéditos, traz notas, imagens e um posfácio de fácil compreensão para qualquer leitor interessado na história da expansão europeia e no Brasil do século XVI.

Referências

  • BARLOW, Roger; TAYLOR, Eva (eds.). A Brief Summe of Geographie Londres: Hakluyt Society, 1932.
  • CARDER, Peter. The Relation of Peter Carder, of Saint Verian in Cornwall, within Seven Miles of Falmouth which went with sir Francis Drake in his Voyage about the World, begun 1577 In: PURCHAS, Samuel. Hakluytus Posthumus or Purchas his Pilgrimes in Five Books The Fourth Part. Londres: William Stansby; Henry Featherstone, 1625. p. 1.187-1.190.
  • DAVIES, William. Miserable Captivities of William Davies, Barber-surgion of London Londres: Thomas Snodham, 1614.
  • HAKLUYT, Richard. The Principal Navigations, Voiages and Discoveries of the English Nation….Londres: George Bishop; Ralph Newsberie, 1589.
  • HAWKINS, Richard [1622]. The Observations of Sir Richard Hawkins in his Voyages into the South Sea. Anno 1593 Londres: The Hakluyt Society, 1867.
  • HUE, Sheila; LESSA DE SÁ, Vivien Kogut. Ingleses no Brasil: relatos de viagem de 1526-1608. São Paulo: Chão, 2020.
  • PURCHAS, Samuel. Hakluytus Posthumus or Purchas hil Pilgrimes in Five Books Londres: William Stansby; Henry Featherstone, 1625.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Maio 2022
  • Aceito
    02 Mar 2023
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