Nas últimas décadas, os estudos sobre revistas se transformaram em um dos pilares da história intelectual latino-americana. Objetos durante muito tempo de usos instrumentais para a crítica ou a história literária, as revistas se converteram em matéria de estudo por seu próprio significado, sobretudo como meios de intervenção de grupos na arena político-cultural (Tarcus, 2015). Dessa maneira, essas publicações deixaram de ser tratadas somente como fontes e reservatório de dados e adquiriram o caráter de objetos de investigação. Hacer cosas con revistas (2022), resultado de um trabalho coletivo realizado pela equipe de pesquisa do Centro de Documentación e Investigación de la Cultura de Izquierdas (CeDInCI), debruça-se sobre esses já consagrados objetos da história intelectual latino-americana. O livro reúne dez estudos sobre publicações periódicas latino-americanas vinculadas às culturas das esquerdas no século XX.
A obra apresenta diversas abordagens de pesquisa sobre revistas, mas todas se alinham à premissa de estudar essas publicações periódicas a partir de sua materialidade e da sua capacidade de intervir na esfera pública, conformar redes de sociabilidade intelectual e articular movimentos culturais e políticos. Há um deslocamento da dimensão textual para a material, da produção à recepção, do autor ao leitor, do individual ao coletivo, do nacional ao continental e internacional, do substancial ao relacional (Tarcus, 2020). Desse modo, pensar em “redes revisteriles”, como proposto por Horacio Tarcus (2020), permite abordar esses objetos de investigação de maneira relacional, e não isoladamente. Afinal, como afirmou o historiador argentino:
Uma revista não pode ser cabalmente entendida em sua singularidade, mas deve ser inscrita em um campo de forças onde lutou por seu reconhecimento estabelecendo relações sincrônicas de alianças, competição e rivalidade com outras revistas contemporâneas, ao mesmo tempo que instituindo linhagens diacrônicas de legitimação. (…) A tendência das investigações contemporâneas em exceder os estudos monográficos parte da suspeita de que a identidade de uma revista não pode ser decifrada por si mesma, indagando meramente sua singularidade. A tendência é, cada vez mais, reconhecendo o aporte da sociologia bourdiana, estabelecer as identidades das revistas em termos relacionais, como produto de um jogo de poder, reconhecimento e prestígio no interior de um campo de revistas em um dado momento (Tarcus, 2020, p. 23-78).1
Assim, a história intelectual se sobrepõe à imagem dominante do criador individual e aborda as diversas formas que a produção coletiva dos intelectuais assume. Entre as formas de agência desses sujeitos coletivos, Hacer cosas con revistas retoma, ainda, os escritos de Raymond Williams para demonstrar como essas publicações periódicas são espaços fundamentais de disputas pela hegemonia. Assim, as revistas culturais são abordadas como porta-vozes de grupos que se propõem a postular uma agenda e desenvolver uma política cultural mediante uma intervenção no campo intelectual que adota a forma de um jogo de disputas e alianças com outras revistas pelo reconhecimento, o prestígio e a legitimidade (Tarcus, 2020).
Natalia Bustelo abre a obra com um capítulo sobre a trama do conjunto de publicações que acompanhou a Reforma Universitária na Argentina. Bustelo reconstrói o trajeto de circulação do Manifiesto liminar, evidenciando os diferentes sentidos da Reforma Universitária. Margarita Merbilhaá se debruça sobre a materialidade da revista argentina Los Pensadores (1922 - 1926). A autora demonstra como o desenho das capas, as publicidades e a diagramação participam ativamente do sentido dos textos publicados e dizem muito sobre as condições e o contexto de publicação. Assim, evidencia-se como os aspectos materiais das revistas localizam o projeto em seu contexto editorial, cultural e histórico.
Virginia Castro, cujo objeto é a revista Argentina (1930 - 1931), ressalta a importância dos arquivos dessas publicações. Quando disponíveis, eles permitem acessar aspectos das publicações que, de outro modo, estariam vedados ao pesquisador. De maneira similar à Merbilhaá, Castro se debruça sobre a materialidade da revista e aponta para a necessidade de reconstruir os arquivos dessas publicações em sentido amplo, abarcando documentos como correspondências entre os colaboradores, atos de publicidade, diários dos colaboradores mais frequentes, números elaborados mas não publicados, atas de reuniões do comitê editorial etc. Assim, a autora trabalha com dois eixos de análise: um a partir da própria revista, seu sumário, seus conteúdos e sua “geografia humana”, e outro a partir do arquivo. Já Lucas Domínguez Rubio argumenta que a análise das revistas produz uma interpretação da história da filosofia muito diferente daquela concentrada nos livros, evidenciando como essas publicações periódicas, em muitos casos, funcionaram como “laboratórios de ideias”. Karina Jannello aborda as revistas produzidas por Benito Milla no Uruguai e estuda a ainda pouco investigada trajetória desse intelectual. A autora enfoca a rede de revistas do período da Guerra Fria cultural, evitando a análise de uma publicação de maneira isolada.
Os cinco últimos capítulos abordam a trajetória política e intelectual da Nova Esquerda, com foco, claro, na intensa produção de revistas por distintos grupos. Adrián Celentano explora as relações entre os intelectuais e a política, bem como os espaços de resistência cultural constituídos pelas revistas Posta (1977-1978), Nudos (1978-1992) e Punto de Vista (1978-2008) durante a última ditadura militar argentina (1976-1983), evidenciando a repressão estatal a organizações políticas revolucionárias. Afinal, a construção da figura de um inimigo interno por parte do governo militar argentino teve como alvo o campo cultural, as universidades e o sistema educacional, visando o combate à “ameaça vermelha” e à “subversão marxista”. Ana Trucco Dalmas, por sua vez, detém-se na também argentina Nuevo Hombre (1971-1976), revista de política que permitiu o diálogo entre marxismo, sindicalismo combativo, peronismo revolucionário etc. A publicação articulava reflexões sobre cultura e revolução e passou por várias mudanças durante seus anos de publicação, mas sempre se mantendo vinculada a um amplo espectro de ideias de esquerda. A partir de 1976, muitos de seus colaboradores foram perseguidos, assassinados, torturados, presos, desapareceram ou foram para o exílio.
Vera Carnovale se debruça sobre Militancia (1973-1974), revista de intervenção política vinculada ao universo peronista revolucionário. Carnovale explora principalmente o público leitor da publicação, evidenciando seu caráter pedagógico-formativo, visto que ela se destinava à militância e almejava modelá-la, representá-la e interpelá-la. A partir de seu número 24, a revista contou inclusive com um suplemento chamado Cuadernos de Base, pensado como espaço de formação teórica. Sandra Jaramillo Restrepo realiza um estudo atento à materialidade e às redes intelectuais conformadas ao redor de Cuadernos Colombianos (1974-1979), interessante observatório do processo de profissionalização das Ciências Sociais na Colômbia. Jaramillo Restrepo analisa fatores como as publicidades veiculadas, o valor relativo da publicação, seu público leitor, o diálogo com outras revistas da época, suas condições de edição, impressão, produção e circulação. Demonstra-se, assim, que Cuadernos Colombianos congregou boa parte da intelectualidade democrática do momento e contesta-se a historiografia que vincula a nova esquerda latino-americana somente à influência da Revolução Cubana e da luta armada.
Por fim, Mariana Bayle encerra a obra com um estudo que objetiva evidenciar, a partir de publicações periódicas, transformações relevantes no campo cultural das esquerdas mexicanas após 1968. A partir da análise das revistas Punto Crítico (1971-1987) e Cuadernos Políticos (1974-1990), a autora aborda a relação entre as esquerdas e o nacionalismo revolucionário no México. Bayle ressalta como essas publicações são espaços privilegiados para se observar as dinâmicas do debate político-intelectual. Além disso, sublinha-se a dimensão relacional das revistas, que raramente atuam isoladamente. A autora, assim, enfoca os antagonismos e as filiações que ajudam a compreender o significado dos diferentes projetos intelectuais. As redes intelectuais estudadas por Bayle foram responsáveis por uma considerável difusão de ideias de orientação socialista no México a partir dos anos 1970.
Os diferentes estudos presentes em -Hacer cosas con revistas indicam caminhos de pesquisa possíveis e frutíferos àqueles que se interessam por essas publicações, levando a organizadora do livro a defini-lo como um “muestrario de quehaceres”. Ainda assim, ressalta-se que “não existe esse deslumbrante momento de descobrimento ao que se seguiria uma interpretação definitiva guiada pelas ferramentas metodológicas mais precisas, reunidas de antemão” (Fernández Cordero, 2022, p. 15)2. As metodologias mais eficazes são construídas ao longo de cada investigação. As ferramentas de análise utilizadas ao longo dos capítulos, por sua vez, não se restringem à historiografia, mas assumem um caráter transdisciplinar a partir dos atravessamentos entre História, Letras, Sociologia, Filosofia etc. (Fernández Cordero, 2022)
A obra permite, ainda, uma reflexão sobre as relações entre o discurso intelectual, a intervenção política e as revistas culturais latino-americanas de esquerda do século XX. Os estudos publicados em Hacer cosas con revistas demonstram como essas publicações periódicas possuíam a intencionalidade de intervir na esfera e na opinião públicas a partir de discursos contra hegemônicos, visando à transformação social. Ressalta-se, assim, como as revistas, e aqueles que as elaboram, estão sempre em diálogo estreito com seu tempo presente, confirmando a já célebre afirmação de Beatriz Sarlo (1992, p. 9) de que “nada é mais velho que uma revista velha”.3
Publicado como segundo livro da série iniciada por Las revistas culturales latinoamericanas: giro material, tramas intelectuales y redes revisteriles (2020), Hacer cosas con revistas fornece uma sólida base metodológica para as pesquisas sobre essas publicações periódicas na América Latina do século XX. Os estudos reunidos foram constituídos a partir do arquivo digital do projeto AméricaLee4 e de profícuos debates e diálogos promovidos pela equipe do CeDinCi nos Seminários de História Intelectual, que ocorrem mensalmente (Fernández Cordero, 2022). A obra é uma referência fundamental para o estudo das revistas latino-americanas, sobretudo as localizadas em posições à esquerda no espectro político, e instiga reflexões valiosas pela qualidade de suas pesquisas.
-
1
Trad. livre da autora: “Una revista no puede ser cabalmente entendida en su singularidad, sino que debe ser inscripta en un campo de fuerzas donde luchó por su reconocimiento estableciendo relaciones sincrónicas de alianzas, competencia y rivalidad con otras revistas contemporáneas, al mismo tiempo que instituyendo linajes diacrónicos de legitimación. (…) La tendencia de las investigaciones contemporáneas a exceder los estudios monográficos parte de la sospecha de que la identidad de una revista no puede decifrarse por sí sola, indagando meramente en su singularidad. Se tiende cada vez más, reconociendo el aporte de la sociología bourdiana, a establecer las identidades revisteriles em términos relacionales, como producto de un juego de poder, reconocimiento y prestigio al interior de un campo de revistas en un momento dado.”
-
2
Trad. livre da autora: “no existe ese deslumbrante momento del descubrimiento al que le seguiría una definitiva interpretación guiada por las herramientas metodológicas más precisas, reunidas de antemano.”
-
3
Trad. livre da autora: “nada es más viejo que una revista vieja.”
-
4
Disponível em: https://americalee.cedinci.org/. Acesso em: 23 ago. 2025.
Referências
- FERNÁNDEZ CORDERO, Laura (org.), Hacer cosas con revistas: publicaciones políticas y culturales del Anarquismo a la Nueva Izquierda. Temperley: Tren en Movimiento, 2022.
- SARLO, Beatriz. Intelectuales y revistas: razones de una práctica. América. Cahiers du CRICCAL, Paris, n. 9-10, p. 9-16, 1992.
- TARCUS, Horacio. Las revistas culturales latinoamericanas: giro material, tramas intelectuales y redes revisteriles. Temperley: Tren em Movimiento, 2020.
- TARCUS, Horacio. Una invitación à la Historia Intelectual. Palabras de apertura del II Congreso de Historia Intelectual de América Latina. Pléyade, n. 15, p. 9-25, 2015.
-
Editoras responsáveis:
Luiza Larangeira da Silva Mello e Silvia Liebel
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
26 Jun 2024 -
Aceito
07 Mar 2025
