Mapas e Ficções: séculos XVI a XVIII investiga as interseções entre cartografia e literatura na Europa da Idade Moderna, construindo seu argumento principal a partir da ideia de que os mapas presentes em narrativas ficcionais não são meras ilustrações decorativas, mas dispositivos interpretativos que orientam a experiência de leitura e moldam a relação entre realidade e imaginação. Chartier apresenta sua investigação sobre o tema por meio de uma abordagem cronológica inversa, iniciado com edições do final do século XVIII e recuando até obras editadas no século XVI, articulando-se como um percurso que se constrói por meio da busca por manifestações cada vez mais recuadas do uso de representações cartográficas nos relatos de ficção. Inserida na longa linhagem de estudos de História Cultural que investigam a materialidade do texto - campo em que o próprio Chartier se destaca - a obra ora em análise dialoga com autores como Franco Moretti (1997; 2005), Hannah Stahl (2016) e Isabelle Pantin (2019) ao explorar como as representações visuais moldam a recepção desses mesmos textos em que estão inseridas.
Chartier distingue essencialmente dois tipos de mapas: aqueles criados simultaneamente à publicação original e os produzidos posteriormente, como suplementos interpretativos das narrativas às quais se encontram apensados. Para ele, essa distinção é fundamental para compreender como os mapas expandem ou reconfiguram os relatos ficcionais, e por isso mesmo propõe uma genealogia histórica dessas representações cartográficas da Idade Moderna europeia entre os séculos XVI e XVIII, a fim de investigar como tais imagens funcionavam como dispositivos culturais que estabeleciam uma tensão constante nas tênues fronteiras entre fato e ficção naquele contexto.
A tensão entre a liberdade imaginativa e o desejo iluminista de fixar a narrativa em um espaço concreto é explorada em profundidade no primeiro capítulo, “Don Quixote de la Mancha, 1780 e 1797”, que examina duas edições espanholas ilustradas do romance de Miguel de Cervantes (1547-1616) datadas de 1780 e 1797, que introduziram mapas para localizar as aventuras do cavaleiro da triste figura. Antes da edição de 1780, impressa por Joaquín Ibarra (1725-1785) para a Real Academia Espanhola, por exemplo, a geografia de Dom Quixote permanecia exclusivamente textual, permitindo aos leitores imaginar os espaços percorridos. O mapa, desse modo, conferia uma nova dimensão à experiência de leitura, ao materializar visualmente as aventuras do cavaleiro andante. Chartier ressalta a intenção de conferir credibilidade ao relato ficcional por meio da precisão cartográfica, destacando a participação de José de Hermosilla (1715-1776), engenheiro militar e arquiteto real, que realizou observações no terreno para a confecção do mapa da edição de Ibarra. Chartier ressalta a ironia dessa operação, uma vez que Cervantes frequentemente subvertia a lógica cartográfica em sua narrativa, utilizando recorrentemente o recurso da écfrase como meio para ampliar a ambiguidade entre o real e o imaginário, o que se constituía em um dos “feitiços” do itinerário quixotesco, ao apresentar espaços concretos e imaginários em justaposição. Nesse sentido, a inclusão dos mapas nas edições setecentistas do livro de Cervantes, para Chartier, não apenas visava reafirmar a credibilidade da narrativa, mas também transformar a experiência de leitura em uma jornada visual. Mais do que isso, esses mapas seriam expressões de um projeto intelectual mais amplo do Iluminismo: organizar e controlar o mundo, mesmo quando se tratava de uma obra ficcional.
No segundo capítulo, “Genealogia inglesa”, Chartier explora a relação entre mapas e ficção em três obras fundamentais da tradição literária inglesa: As Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift (1667-1745), Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe (c. 1660-1731), e Mundus Alter et Idem (1605), de Joseph Hall (1574-1656)1. Chartier destaca como, ao contrário do que ocorreu com Dom Quixote de Cervantes, que recebeu mapas apenas em edições lançadas quase dois séculos após sua publicação original, essas narrativas foram originalmente publicadas com ilustrações cartográficas. Para Chartier, os mapas nessas obras de origem britânica reforçam a verossimilhança de seus relatos, criando um vínculo entre a narrativa ficcional e a exploração colonial. Em As Viagens de Gulliver, por exemplo, os mapas não só situam as terras imaginárias em um contexto geográfico real, mas também ironizam a pretensão de exatidão cartográfica. Em Robinson Crusoé, os mapas reforçam a lógica imperialista ao inserir a aventura do protagonista em rotas comerciais reais, enquanto em Mundus Alter et Idem, a cartografia satírica questiona os valores morais e culturais europeus.
Ou seja, os mapas presentes em tais obras não são apenas ilustrações complementares, mas elementos centrais na construção da verossimilhança e na crítica social, eles atuam como dispositivos de poder, orientando a leitura e moldando a percepção do mundo ficcional: Chartier deixa claro que, ao articular o imaginário geográfico com a representação literária, essas obras revelam as tensões entre o real e o fictício, entre a exploração colonial e a crítica cultural.
É no terceiro capítulo, “O mapa de lugar nenhum: a Utopia, 1516”, que Chartier aborda a obra fundante da literatura utópica, livro que não apenas inaugurou o gênero, mas também estabeleceu padrões narrativos seguidos por muitos de seus sucessores e congêneres. Chartier analisa como a narrativa de Thomas More (1478-1535) se apoia em um jogo de tensões entre ficção e realidade, onde o mapa, junto à correspondência preliminar trocada entre More, Peter Giles e Jerome van Busleyden, engendra um aparato documental que valida a existência da ilha e das conversas que teriam gerado a narrativa sobre aquela terra fictícia. Tal estratégia, segundo Chartier, busca engajar o leitor em uma suspensão da incredulidade, ao mesmo tempo em que ressalta a natureza fantasiosa do relato de More. Assim, o mapa de Utopia, peça central na representação da ilha, constituiu-se para Chartier em um elemento paradoxal, pois embora ofereça uma visualização concreta de um espaço fictício, reforça a irrepresentabilidade do “lugar nenhum”, pois mesmo oferecendo sua visualização concreta, a própria natureza e descrição do lugar como um “não-lugar” torna essa representação uma farsa.
Traçando a evolução desse dispositivo visual ao longo das edições de Utopia, Chartier observa que a ausência da representação cartográfica em traduções vernaculares reforça a compreensão da utopia como um espaço discursivo, não passível de concretização visual, ou seja, a tensão entre materialidade e abstração no mapa de More é lida por Chartier como um gesto paradoxal que encena a impossibilidade de representar o ideal utópico. Desse modo, a análise de Chartier alinha-se a estudos clássicos sobre a tradição utópica, como os de Quentin Skinner (1967) e J. C. Davis (1983), destacando como as utopias funcionam como espaços discursivos que questionam as normas sociais e políticas vigentes.
O quarto capítulo, “Na França, preciosismo e mística”, inicia destacando a relação entre a cartografia alegórica e as tradições culturais e intelectuais da França do século XVII, apontando como os mapas alegóricos, como o “Mapa de Ternura” inserido em Clélia: história romana (1654) de Madeleine de Scudéry (1607-1701), refletem o preciosismo francês e os ideais do salão literário. Dialogando com Joan Dejean (1991), Chartier argumenta que tais mapas, ao representarem sentimentos e paixões em forma de paisagens, transformam conceitos abstratos em territórios imaginários.
Ao contrastar o “Mapa de Ternura” com o “Mapa da Subida ao Monte Carmelo”, de Frei João da Cruz (1542-1591), Chartier evidencia como esses dispositivos cartográficos articulam esferas profanas e espirituais em uma linguagem comum. Tais mapas, portanto, funcionariam como dispositivos de codificação cultural, refletindo as tensões entre a sociabilidade secular e a transcendência religiosa, ao mesmo tempo em que exemplificam duas expressões de um mesmo fenômeno cultural: a tendência barroca de traduzir experiências interiores em representações espaciais. A originalidade da análise de Chartier reside justamente em demonstrar como essas representações cartográficas operam em múltiplas camadas: são simultaneamente registros estéticos, ferramentas pedagógicas e dispositivos de crítica social.
Ainda tratando do contexto francês, o quinto capítulo, intitulado “Na França, querela de prioridade e polêmica”, começa com uma discussão sobre a disputa acerca da precedência na criação de mapas alegóricos na França do século XVII. Essa querela envolvia o “Mapa de Ternura”, o “Mapa do Reino das Preciosas”, o “Mapa do Reino do Amor” e o “Mapa do Reino da Coqueteria”, além das representações do País da Jansênia. Cada um deles, em diferentes formas e contextos, representava sentimentos, comportamentos sociais e valores culturais sob a perspectiva alegórica. Tais mapas, para Chartier, tiveram uma importância significativa na consolidação de um gênero literário e iconográfico que traduzia as experiências sociais em paisagens simbólicas. O “Mapa de Ternura”, por exemplo, associado à Madeleine de Scudéry, emerge como o exemplo mais conhecido, mas não o único. A discussão da precedência, segundo Chartier, revela as dinâmicas de autoria e apropriação cultural que caracterizavam a produção intelectual do período.
Nesse sentido, tais mapas franceses do século XVII não podem ser vistos apenas como meras curiosidades intelectuais para Chartier, mas devem ser analisados como instrumentos eficazes de crítica social, moral e política, ao mesmo tempo em que cumprem uma função paradoxal: fornecem tanto uma chave de leitura moral, como também estimulam o prazer estético e o jogo intelectual. Em síntese, para ele a disputa de prioridade entre essas representações cartográficas fictícias refletia as tensões culturais e políticas mais amplas da França do Antigo Regime, em que a alegoria funcionava como ferramenta crítica e estratégica de intervenção no debate público.
No sexto e último capítulo, “Primeiros mapas”, o historiador francês se debruça sobre “fragmentos de mapas” presentes nas gravuras que ilustram a edição veneziana do Orlando Furioso de Ludovico Ariosto (1474-1533), publicada em 1556, bem como pelo mapa que permite acompanhar a peregrinação de Petrarca (1304-1374) em busca de sua amada Laura, em outra edição veneziana, datada de 1525. Nas ilustrações de Orlando Furioso, por exemplo, o leitor podia visualizar os deslocamentos dos personagens, situando-os em um espaço geográfico reconhecível. As pranchas xilográficas dessa edição não eram, assim, apenas ilustrações, mas verdadeiros diagramas narrativos que organizavam os eventos em planos sucessivos, criando uma sensação de profundidade e movimento. Já sobre a edição de Os Triunfos, de Petrarca, em que se incluiu um mapa alegórico com a jornada das virtudes e dos vícios, Chartier argumenta que essa ilustração não era um guia geográfico no sentido convencional, mas uma representação simbólica que ajudava o leitor a compreender a progressão temática do texto, e sua inclusão em edições posteriores da obra refletiria uma tendência de associar representações visuais à organização do pensamento e da moralidade na literatura renascentista. Chartier enfatiza que esse exemplo demonstra como os mapas podiam servir tanto a propósitos instrutivos quanto à valorização estética do livro impresso.
Por fim, na breve conclusão do livro, “Écfrase e suplemento”, Chartier reflete sobre a relação entre écfrase e cartografia, argumentando que os mapas em narrativas ficcionais são simultaneamente suplementos e dispositivos de imaginação. Ele enfatiza que esses mapas não apenas ilustram as narrativas, mas também ampliam e tensionam suas fronteiras, criando um diálogo contínuo entre texto, imagem e realidade.
Para sintetizar suas considerações, Chartier identifica três funções principais para as representações cartográficas inseridas em obras ficcionais: primeiramente, tais imagens localizam as sátiras em “mundos pelo avesso”, onde os vícios e comportamentos criticados na sociedade real são apresentados de forma hiperbólica e caricatural, e exemplos desse uso estão presentes em obras como Mundus Alter et Idem, em que a cartografia não apenas ilustra o mundo imaginário, mas também acentua o tom moral e pedagógico da narrativa; em segundo lugar, tais mapas fornecem uma referência comum para experiências compartilhadas, como as trajetórias espirituais e os jogos sociais, e, no caso de cartografias como a do “Mapa de Ternura”, organizam um espaço simbólico onde os caminhos para a amizade e o amor são traçados com precisão, permitindo aos leitores uma experiência imersiva que combina ficção e realidade; e por fim, a terceira função dos mapas seria produzir um “efeito de realidade” que borra as fronteiras entre o texto e a experiência do leitor, já que ao apresentar territórios fictícios com o rigor visual dos mapas geográficos, essas narrativas criam a ilusão de que tais espaços de fato existem, um dispositivo estético e discursivo que permitia aos leitores se tornarem “companheiros de viagem”, suspendendo a incredulidade e participando ativamente do universo ficcional.
Ao destacar as tensões entre écfrase e cartografia, portanto, Chartier sugere que a relação entre texto e imagem é ao mesmo tempo complementar e irreconciliável. Embora os mapas ofereçam uma visibilidade que o texto não alcança, eles também encerram segredos que escapam à compreensão total, deixando entrever as limitações de nossa tentativa de reconstruir o imaginário passado. Essa reflexão final sintetiza a tese central do livro: a interação entre mapas e ficção na modernidade revela tanto a capacidade humana de inventar mundos quanto os limites inerentes à representação de realidades ausentes. Mais que isso, Chartier demonstra como, longe de ser apenas uma extensão do texto situando a ação que nele se desenrola, o mapa se constitui, nas obras analisadas, em um elemento essencial da própria ficção literária.
Escrito durante o lockdown da COVID-19, talvez um dos grandes méritos de Mapas e Ficções seja despertar no leitor o desejo de revisitar todos os textos que são analisados em suas páginas. Sem dúvida, esta obra de Chartier é mais uma que se destaca por sua erudição e por articular análises literárias e históricas, circunscrita aos temas mais caros ao professor emérito do Collège de France - onde foi responsável pela cadeira “Écrit et cultures dans l’Europe moderne” entre 2007 e 2016 -, a história da leitura e da edição dos livros, incluindo sua materialidade. No entanto, é preciso destacar a ausência de uma articulação com as discussões mais recentes do campo historiográfico, como as abordagens decoloniais ou as implicações ideológicas dos mapas na formação do imaginário colonial, dado o recorte temporal delimitado pelo autor. Nos séculos XVI a XVIII, as obras abordadas interagiam com um universo editorial repleto de representações cartográficas dos espaços coloniais, enquanto o casamento do mapa com a ficção foi um fenômeno relativamente discreto e limitado. Tais fontes se prestam ainda, de maneira significativa, ao debate sobre os giros linguístico, espacial e iconográfico no que se refere à modernidade, e uma discussão mais ampliada, que abordasse tais intercessões, seria muito bem vinda e daria um alcance bem maior ao escopo da obra.
-
1
O panfleto, publicado originalmente em Frankfurt, foi traduzido para o inglês pela primeira vez como The Discovery of a New World or A Description of the South Indies (“A descoberta de um novo mundo ou uma descrição das Índias do Sul”) em 1609, e embora credite o texto a um certo “Mercurius Britannicus”, Thomas Hyde (1636-1703), bibliotecário da Bodleian Library, em Oxford, atribuiu-o a Hall em 1674 (McCabe, 1982, p. 331-339).
Referências
- CHARTIER, Roger. Mapas e ficções: séculos XVI a XVIII. Tradução de Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ed. Unesp, 2024.
- DAVIS, James Colin. Utopia and the Ideal Society: A Study of English Utopian Writing, 1516-1700. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
- DEJEAN, Joan. Gender Geographies: Women and the Origins of the Novel in France. Nova York: Columbia University Press, 1991.
- McCABE, Richard A. Joseph Hall, a Study in Satire and Meditation Nova York; Oxford: Clarendon Press; Oxford University Press, 1982.
- MORETTI, Franco. Atlante del romanzo europeo, 1800-1900 Torino: G. Einaudi, 1997.
- MORETTI, Franco. Graphs, Maps, Trees: Abstract Models for a Literary History. Londres; Nova York: Verso, 2005.
- PANTIN, Isabelle. Inventer, visualiser, dessiner des mondes. In: FERRÉ, Vincent; MANFRIN, Frédéric (org.). Tolkien: voyage en Terre du Milieu. Paris: Bibliothèque nationale de France; Christian Bourgeois, 2019. p. 43-48.
- SKINNER, Quentin. More’s Utopia. Past & Present, v. 38, n. 1, p. 153-168, dez. 1967.
-
STAHL, Hanna. Imaginary Maps in Literature and Beyond. Library of Congress Blogs - Worlds Revealed: Geography & Maps at the Library of Congress, Washington, 25 mai. 2016. Disponível em: https://blogs.loc.gov/maps/2016/05/imaginary-maps-in-literature-and-beyond-introduction/ Acesso em: 21 fev. 2025.
» https://blogs.loc.gov/maps/2016/05/imaginary-maps-in-literature-and-beyond-introduction/
-
Editora responsável: Silvia Liebel
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
25 Fev 2025 -
Aceito
10 Abr 2025
