Open-access A vigilância da Inquisição sobre a comunidade atlântica: a trajetória de Páscoa Vieira

The Inquisition’s Vigilance over the Atlantic Community: The Trajectory of Páscoa Vieira

La vigilancia de la Inquisición sobre la comunidad atlántica: la trayectoria de Páscoa Vieira

CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte. páscoa vieira diante da inquisição: uma escrava entre Angola, Brasil e Portugal no século xvii. trad. Ligia Fonseca Ferreira e Regina Salgado Campos.R de Janeiro: bazar do tempo, 2020. 280 p.

No início dos anos 1990, o antropólogo brasileiro Luiz Mott trazia a público a história de uma mulher africana oriunda da região da Costa da Mina que, em meados do século XVIII, fora capturada em sua terra, posta em cativeiro e enviada ao Brasil, ainda criança. Depois de anos vivendo como prostituta na capitania de Minas Gerais, foi considerada santa por alguns de seus contemporâneos e acabou processada e presa pela Inquisição, em razão das revelações místicas que publicamente experienciava. Publicada em 1993, a obra Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil marcaria então os estudos inquisitoriais como uma importante biografia de uma mulher africana escravizada e perseguida pelo Santo Ofício, permitindo, naquela altura, uma melhor compreensão dos aspectos comportamentais e religiosos que a Inquisição buscava normatizar na colônia portuguesa na América.

Em 2020, com o livro Páscoa Vieira diante da Inquisição: uma escrava entre Angola, Brasil e Portugal no século XVII - edição brasileira de Páscoa et ses deux maris: une esclave entre Angola, Brésil et Portugal au XVII e siècle, lançado em 2019 na França - a historiadora francesa Charlotte ­Castelnau-L’Estoile traz à luz o enredo da vida de Páscoa Vieira, africana natural da vila angolana de Massangano que, aos vinte e poucos anos, na condição de mulher escravizada, foi vendida por seu senhor e passou a viver como cativa em Salvador, na Bahia. Assim como Mott, a autora busca reconstituir, por meio da documentação inquisitorial, a vida dessa personagem também acossada pelo Santo Ofício; nesse caso, recairia sobre Páscoa a acusação de se casar pela segunda vez no Brasil estando ainda vivo, em Angola, o seu primeiro marido.

Entre os quase trinta anos que separam essas duas obras, um notável desenvolvimento das historiografias especializadas na história da escravidão transatlântica e na Inquisição portuguesa se fez sentir. De lá para cá, a revolução digital e o uso difundido da internet foram decisivos para o avanço investigativo, oportunizando o alargamento do escopo de fontes possíveis de serem acessadas, possibilitando maior apuro no uso das metodologias de pesquisa e fazendo florescer uma renovação criativa das abordagens interpretativas. Mais pontualmente, cabe destacar que as novas gerações dedicadas a estudar a diáspora africana e as facetas da escravidão no Novo Mundo, além da renovação crítica consolidada em fins dos anos 1980, beneficiaram-se largamente do diálogo internacional e da possibilidade de acesso sistemático a fontes seriais. O principal símbolo dessa evolução talvez esteja materializado no projeto Slave Voyages, uma imensa base de dados alimentada de forma colaborativa por historiadores, bibliotecários, cartógrafos e programadores de todo o mundo.1 Esse grandioso e importante projeto trouxe a público, por exemplo, como se configurou o ritmo do tráfico atlântico de escravizados oriundos da África e chegados nas Américas, o que possibilitou a revisão das estimativas anteriores e incentivou a produção de trabalhos inovadores a partir das novas cifras estatísticas. Muitas dessas novas investigações passariam a compreender o Atlântico como espaço de ligação, e não de distanciamento entre as margens continentais (ALENCASTRO, 2000; LOVEJOY, 2002; FERREIRA, 2012).

Já na historiografia dedicada aos estudos acerca da Inquisição portuguesa, desde os anos 1990, uma renovação das abordagens temáticas também se anunciava e vem, até o momento, se consolidando. Continuam vastas as pesquisas sobre os perseguidos pelo tribunal, mas, especialmente nas duas últimas décadas, têm ganhado destaque as investigações sobre o funcionamento institucional da Inquisição, suas redes de agentes nos espaços coloniais e os fluxos de cooperação institucional entre o Santo Oficio e as elites eclesiásticas do Império português (FEITLER, 2007; PAIVA, 2011; RODRIGUES, 2014). A nova geração dos estudos inquisitoriais também tem se beneficiado dos avanços tecnológicos para acesso às fontes, com destaque para o repositório português de pesquisa online, o Digitarq.2 Desde 2008, essa importante iniciativa da Direção Geral de Arquivos em Portugal tem disponibilizado no site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo diversas séries e subséries documentais do Tribunal do Santo Ofício em formato digital, facilitando o acesso aos registros documentais da Inquisição e possibilitando o surgimento de novas investigações em diferentes instituições acadêmicas mundo afora.

É valendo-se desses avanços e dialogando com essas duas profícuas e renovadas historiografias que Charlotte Castelnau-L’Estoile constrói seu estudo sobre Páscoa Vieira. Já há três décadas em amplo diálogo com a historiografia luso-brasileira, a autora estreitou laços acadêmicos com instituições e pesquisadores do Brasil desde seu doutoramento na École des Hautes Études en Sciences Sociales (1999), quando se dedicou a estudar a missão jesuítica na América portuguesa. Além disso, antes de tornar-se, em 2014, professora de História Moderna da Université de Paris, havia sido professora visitante na Universidade Federal Fluminense entre 2010 e 2011. Assim, bastante familiarizada com os estudos sobre o primeiro colonialismo português, a autora faz em seu novo livro um mergulho vertical nos processos de colonização do Brasil e de Angola a partir da narrativa de vida de Páscoa, personagem que transitou por esses espaços, revelando elementos bastante significativos da história da escravidão nas terras do Atlântico Sul, bem como da ação da Inquisição nesses territórios.

Na introdução do livro, Charlotte ­Castelnau-L’Estoile apresenta ao leitor o quadro geral em que se insere a história da personagem, apontando, em especial, qual a dimensão do tráfico atlântico de escravizados e o significado do casamento católico para aquela sociedade. Para reconstituir a história de Páscoa, a autora parte da etapa inicial do processo inquisitorial, isto é, a denúncia feita ao Santo Ofício do alegado crime de bigamia cometido pela personagem. Castelnau-L’Estoile afirma que a vida dessa mulher africana escravizada “é menos excepcional do que exemplar”, o que significa dizer que a personagem biografada representa um caso mais próximo do geral em seu contexto de inserção do que da exceção na história. Vem daí o subtítulo da introdução dado pela autora: “muitas vidas em uma só”.

Nascida na vila de Massangano, na segunda metade do século XVII, Páscoa Vieira cresceu em um ambiente onde se falava língua nativa, o quimbundo, e também a língua do colonizador, o português. Nesse contexto de dominação colonial, foi batizada dentro dos ritos católicos; depois, quando adulta, na condição de cativa e propriedade de um senhor português, se casou com um homem de igual condição, em uma cerimônia católica celebrada por um padre capuchinho italiano que estava em missionação nos sertões de Angola. Cabe destacar que esse enredo será o ponto nevrálgico do argumento da personagem contra os que a acusavam de desrespeitar sacramento do matrimônio: segunda Páscoa, este enlace nupcial teria sido celebrado de forma precária, uma simples “cerimônia de troca de anéis” na qual ela não teria compreendido o que se passava, e que o ritual acontecido não teria todos os elementos de um verdadeiro matrimônio cristão, dentro das regras do Concílio de Trento. Em razão disso, argumentava que esse procedimento não tinha validade aos olhos da Igreja.

Páscoa tinha relações tensas com seu marido e com seu senhor em Angola, tendo praticado fugas até ser vendida a um novo proprietário na cidade de Salvador, no ­Brasil. Após atravessar o oceano, ela chega à cidade baiana em 1687, onde, sob propriedade de um tabelião, rapidamente estabeleceu relações afetivas com Pedro Arda, também cativo do mesmo senhor, tendo com ele se casado. Seu infortúnio na Inquisição começaria sete anos depois, quando um primo de seu senhor, em trânsito entre Angola e a Bahia, a reconhece e relata ao seu dono o casamento que presenciou anos antes na vila africana. Temeroso diante dessa comprometedora circunstância, o próprio senhor de Páscoa a denunciaria a um comissário do Santo Ofício, representante máximo da Inquisição de Lisboa na Bahia, dando início a uma investigação inquisitorial transatlântica para verificar as culpas da acusada.

Chega-se então aos pontos altos da obra: ao estudar a relação de Páscoa com a família de seus senhores na perspectiva dos estudos africanistas e afro-brasileiros, o livro ilustra muito bem a complexidade da qualificação social em sociedades escravistas como Brasil e Angola, apontando como as relações de poder eram atravessadas pela cor, nascimento e condição, aspectos que fomentavam as dinâmicas hierárquicas e os lugares sociais ocupados por brancos, não brancos, senhores, escravos e libertos, como já apontou Stuart Schwartz (1988). No mesmo sentido, a obra colabora para o entendimento de como se edificava, nas brechas da violência senhorial e religiosa, a capacidade de agência de mulheres como Páscoa, que resistiam como podiam, inclusive fazendo uso de expedientes administrativos e formais, como um contrainquérito elaborado pela personagem e por seu companheiro na tentativa de provar sua inocência. Pelo outro vértice, no que tange ao viés inquisitorial, o trabalho da historiadora francesa apresenta de forma meticulosa e apurada os meandros da práxis do Santo Ofício, ao demonstrar em diferentes passagens a prudência procedimental da instituição, bem como as diferenças de rigor investigativo existentes entre a Inquisição e as instâncias episcopais, de caráter mais local. Ao cabo, a obra se destaca pela capacidade da autora de destrinchar e analisar cuidadosamente os estágios da perseguição inquisitorial contra Páscoa Vieira sem perder de vista o enquadramento geral e explicativo da sociedade pesquisada, condição incontornável aos estudos de trajetórias mais rigorosos. Por efeito, Castelnau-L’Estoile apresenta ao leitor aquilo que se espera de uma boa biografia histórica, que é a escrita guiada por uma cronologia alinhavada, mas sem forçar o encadeamento da vida da personagem, passando longe, portanto, de recair em trajetórias falsamente herméticas - aquilo que Bourdieu chamou de “ilusão biográfica” (1996). Assim, o livro faz uma reconstituição primorosa de um inquérito do tribunal do Santo Ofício e, ao promover um bom uso do método de transferência de voz para as fontes, faz da estrutura narrativa um ótimo caminho para explicar como se urdia ação da Inquisição portuguesa.

Ao longo de sete capítulos, além do epílogo, o enquadramento da vida da personagem na obra vai ganhando dimensão transcontinental, e o trabalho da autora segue na mesma esteira que a historiografia especializada tem trilhado nos últimos anos: observar as histórias coloniais sob perspectiva atlântica, em conexão. É verdade que há algumas imperfeições a se lamentar em uma obra tão apurada, compreensíveis por não ser a autora uma especialista na história do Santo Ofício, como ela mesma faz questão de pontuar. O primeiro aspecto que se destaca é a carência de um melhor enquadramento do processo inquisitorial de Páscoa nos dados mais gerais acerca das vítimas da Inquisição, como, por exemplo, o número geral de processados pelo crime de bigamia e um possível comparativo desse montante com a quantidade de cativos africanos acusados de cometer o mesmo delito; caberia ainda uma comparação percentual de pessoas em condições análogas às de Páscoa frente a pessoas brancas e livres processadas. Um diálogo aproximado com o trabalho de Isabel Drummond Braga, que levantou os processos de bigamia para o Santo Ofício português (BRAGA, 2003), seria de grande valia e sua ausência é notada. Aliás, também em outras passagens, o livro merecia uma interação mais articulada com trabalhos produzidos por estudiosos da Inquisição, de modo a oferecer uma composição mais refinada no tocante à estrutura de funcionamento da instituição. Os estudos de Felipa Silva (2004), Grayce Souza (2014) e Aldair Rodrigues (2014), por exemplo, colaborariam para um melhor dimensionamento da rede de agentes inquisitoriais disponíveis na Bahia, na América e na África ao longo do período de tramitação processual de Páscoa. Em outros momentos, a relação colaborativa entre as dioceses ultramarinas e a Inquisição poderia ser apresentada de forma mais rica se se recorresse aos trabalhos de José Pedro Paiva sobre a temática (2011). Ainda no campo das faltas sentidas, detecta-se algumas imprecisões na nomenclatura dos cargos de agentes inquisitoriais atuantes nas colônias, como em certa passagem em que se nomeia os escrivães das diligências investigativas como tabeliães da Inquisição (p. 83), e não pelo nome correto do cargo: notários do Santo Ofício; ou ainda, quando se identifica um comissário da Bahia como Inquisidor (p. 162), cargo que nunca existiu na América portuguesa.

A despeito das possibilidades de melhoramentos e das raríssimas incorreções, Páscoa Vieira diante da Inquisição: uma escrava entre Angola, Brasil e Portugal no século XVII traz importantes colaborações para as historiografias dedicadas à escravidão e ao Santo Ofício. Reconstituindo a história de Páscoa Vieira, esse trabalho coloca-se como obra fundamental e valiosa ao trazer a público a trajetória de uma personagem transatlântica, materializando muito bem aquilo que a própria autora nomeou como história das circulações. Desse modo, o livro possibilita ao leitor observar mais de perto e em movimento aquilo que Roquinaldo Ferreira denominou como comunidade atlântica (2012), espaço transcultural, configurado por conexões suprafronteiriças e vigorosamente marcado pelas circulações do comércio ultramarino, pelo tráfico atlântico de escravizados e também, como bem demonstra Charlotte Castelnau-L’Estoile, pela teia de comunicações institucionais movida para vigiar e disciplinar a vida de quem vivia nos domínios coloniais de Portugal.

Referências

  • ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • BRAGA, Isabel Drumond. A bigamia em Portugal na Época Moderna Lisboa: Hugin, 2003.
  • BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina (orgs). Usos e abusos da História Oral Rio de Janeiro: FGV, 1996.
  • CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte. Páscoa Vieira diante da Inquisição: uma escrava entre Angola, Brasil e Portugal no século XVII. Trad. Ligia Fonseca Ferreira e Regina Salgado Campos. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
  • FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil: Nordeste 1640-1750. São Paulo: Alameda; Phoebus, 2007.
  • FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the Era of the Slave Trade. New York: Cambridge University Press, 2012.
  • LOVEJOY, Paul. Escravidão na África: uma história de suas transformações. Trad. Regina Bhering e Luiz Guilherme Chaves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
  • MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.
  • PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750). Coimbra: Ed. Universidade de Coimbra, 2011.
  • RODRIGUES, Aldair Carlos. Igreja e Inquisição no Brasil: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social, século XVIII. São Paulo: Alameda, 2014.
  • SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
  • SILVA, Felipa Ribeiro. A Inquisição na Guiné, nas ilhas de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Revista Lusófona de Ciência das Religiões, n. 5-6, p. 157-173, 2004.
  • SOUZA, Grayce M. B. Para remédio das almas: comissários, qualificadores e notários da Inquisição portuguesa na Bahia Colonial (1692-1804). Vitória da Conquista: Edições UESB, 2014.
  • 1
    Para conhecer a base de dados do projeto, ver: https://www.slavevoyages.org/. Acesso em: 3 out. 2021.
  • 2
    Para navegar no repositório do Digitarq, ver: http://digitarq.arquivos.pt/. Acesso em: 3 out. 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Nov 2021
  • Aceito
    08 Set 2022
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