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Leolinda Daltro: sua dupla viagem ao encontro dos povos indígenas no Brasil central (1896-1900)

Leolinda Daltro: her double journey to meeting indigenous peoples in central Brazil (1896-1900)

Leolinda Daltro: su doble viaje al encuentro de los pueblos indígenas del centro de Brasil (1896-1900)

RESUMO

Foi uma oportunidade inusitada que proporcionou à educadora baiana Leolinda Daltro o contato com um grupo indígena Xerente, em visita ao Rio de Janeiro. Identificada com a missão de educá-los, decidiu acompanhá-los no retorno - realizando dupla viagem - à região do Brasil central. Em sua obra Da catechese dos indios no Brasil (1920) se pode constatar que a massa documental é indissociável da sociedade que a produziu. Nossa intenção foi a de compreender a pluralidade desta atuação e sua articulação com uma extensa rede que ela construiu e que também a constituiu e envolveu.

Palavras-chave:
Leolinda Daltro; dupla viagem; missão laica; causa indígena; Brasil central

ABSTRACT

It was an unusual opportunity that provided to the bahian educator Leolinda Daltro the contact with a Xerente indigenous group, when visiting Rio de Janeiro. Identified with the mission of educating them, she decided to accompany them on their return - making double journey - to the central Brazil region. In her work Da catechese dos indios no Brasil (1920) it can be seen that the mass of documents is inseparable from the society that produced it. Our intention was to understand the plurality of this activity and her articulation with an extensive network that she built and that also constituted and involved it.

Keywords:
Leolinda Daltro; double journey; secular mission; indigenous cause; central Brazil

RESUMEN

Fue una oportunidad inusitada que proporcionó a la educadora bahiana Leolinda Daltro el contacto con un grupo de indígena Xerente, en visita a Río de Janeiro. Identificada con la misión de educarlos, decidió acompañarlos en su vuelta -realizando un doble viaje- a la región del Brasil central. En su obra Da catechese dos indios no Brasil (1920) se puede constatar que el cuerpo documental es indisociable de la sociedad que la produjo. Nuestra intención fue la de comprender la pluralidad de esta actuación y su articulación con una extensa red que ella construyó y envolvió.

Palabras Clave:
Leolinda Daltro; doble viaje; misión laica; causa indígena; Brasil central

Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos, puxo um fio que me aparece solto. / Devagar o liberto, de medo que desfaça entre os dedos. / É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo. / É um rio. / Corre-me nas mãos, agora molhadas. / Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem. / Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o próprio corpo do rio. /... Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro.

José Saramago

A epígrafe que abre este artigo integra o que o escritor português José Saramago chamou de Protopoema. Nele, um adulto resgata do novelo emaranhado da memória as lembranças de sua infância, passada na aldeia Azinhaga, junto ao rio Almonda. O rio em que tinha se banhado e em que havia navegado. É ele que ativa sua memória. Que evoca luz e calor, formas e cheiros, cores e sentidos. Nessas lembranças, o rio e a criança fazem parte da mesma natureza. Sendo um só.

Esta reflexão de Saramago sobre memória(s) e que alude ao universo de referências revisitado por um adulto nos permite agregar a concepção de sentidos da lembrança proposta por Sarlo. “Propor-se não lembrar é como se propor não perceber um cheiro, porque a lembrança, assim como o cheiro, acomete, até mesmo quando não é convocada. [...] Poderíamos dizer que o passado se faz presente” (SARLO, 2007SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007., p. 10).

A expressão “lembranças da memória” empregada por José Saramago e evocada por Beatriz Sarlo nos parece apontar para um viés investigativo na reconstituição da trajetória de Leolinda.1 1 O presente artigo - com modificações - corresponde parcialmente ao primeiro capítulo da tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Eliane Cristina Deckmann Fleck. Trajetória de vida de uma mulher que, apesar de não ter produzido um diário, o que talvez nos oferecesse mais pistas em seus registros, imprimiu em sua obra, a prática de arquivo (FRAIZ, 1998FRAIZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o arquivo de Gustavo Capanema. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 59-87, 1998.). Sob essa perspectiva, a obra que Leolinda organizou deve ser no nosso entendimento, percebida como uma codificação, pois ultrapassou a ação de seleção e de organização, constituindo-se a partir da sua reinterpretação do vivido e a de muitos outros.

Antes de dar início à reconstituição da trama (in)comum que envolveu Leolinda no passado, eu gostaria de relatar o meu encontro - no tempo presente ­- com a protagonista deste artigo. Ele revela a boa surpresa que me esperava na aldeia Porteira da etnia Xerente (Akwen), acontecimento que, provavelmente, determinou que eu continuasse a buscar informações sobre a vida e a obra de Leolinda. Meu encontro com Leolinda se deu quando, na condição de consultora do curso de formação para professores indígenas bilíngues do Tocantins, realizado, naquela ocasião, no município de Tocantínia, tive a oportunidade de acompanhar um grupo de professores Xerente em uma ida à aldeia Porteira. Após conversar com algumas lideranças sobre a educação indígena (na efetiva prática ou não da diversidade de suas demandas e propostas), nos dirigimos à escola e, em seguida, ao Posto de Saúde. Ao adentrar, logo me deparei com uma foto que trazia Leolinda entre os índios Xerente.2 2 Na identificação da foto, um dos objetivos do grupo era “[...] chamar a atenção do governo para a ameaça que os grandes fazendeiros faziam para as terras dos Akwe.” A afirmação se enquadra na longa história de contato e, especialmente, - a partir da missão dos capuchinhos e da colonização em meados do século XIX - tem-se a dimensão da luta que os Xerente enfrentaram com a sociedade não indígena para terem demarcado e homologado, o seu atual território, somente na década de 1990. Esta foto, entre outras, encontra-se também no seu livro Da catechese.

Acreditamos ainda que, ao reconstituir a trajetória de Leolinda, se possa experimentar um “jogo de olhares”, isto é, o olhar contemporâneo sobre os acontecimentos descritos em Da catechese, o olhar retrospectivo de Leolinda e o olhar que eu, enquanto pesquisadora, lanço sobre ambos os processos/tempos. Talvez, por coincidência, no ano em que a obra completa um século da publicação.

Em sua obra Da catechese dos indios no Brasil (1920),3 3 Quanto aos locais de provável circulação da obra encontramos sua referência em âmbito nacional e internacional. No primeiro, a revista A Informação Goyana, na cidade do Rio de Janeiro, cita sua obra em matéria encimada por sua foto (1921). Também Basilio Magalhães cita sua obra na Revista do IHGB (1927). Na esfera internacional, Moisés Bertoni publica suas impressões sobre uma viagem de estudos ao Brasil e nelas inclui: “A fines del pasado siglo, surgió en el Brasil una mujer extraordinária” (1924). Leolinda realizou um exercício da rememoração, ao reunir os testemunhos que colheu durante a viagem que realizou - acompanhada pelo chefe Xerente4 4 Etnia Xerente do grupo Jê central, que vive hoje às margens do Tocantins e do Sono, no município de Tocantínia, atual Estado do Tocantins. Sobre os Xerente e outros povos indígenas no Tocantins, veja-se ­Giraldin (2002). Sobre a estrutura sociopolítica dos Xerente recomenda-se Schroeder (2010). Ainda sobre o povo Akwen e os contatos com os não índios em Goiás, veja-se Silva (2010). capitão Sepé -, às aldeias do então norte de Goiás, região do Brasil central, com o objetivo de atuar como catequista leiga junto àquelas populações indígenas. Contudo, é presumível considerar que pode haver interação e/ou contradição entre os diversos sujeitos sociais, pois estamos atentos, também, às expressões dos indígenas, com os quais Leolinda conviveu, e que se apresentam registradas no livro.

Nas páginas iniciais já se pode constatar que a massa documental é indissociável da sociedade que a produziu. Tal entendimento é fundamental para analisarmos o extenso material codificado (e, não aleatoriamente compilado) na obra de Leolinda. Considera-se que, a proposição investigativa da micro-história5 5 O método nos parece o mais adequado para os objetivos que propomos porque considera a prática investigativa fundamentada na redução de escala de observação, em uma análise microscópica e em um estudo intensivo do material documental, a qual toma o particular como ponto de partida e prossegue à luz de seu contexto específico (LEVI, 1992, p. 136; 154). permite que os documentos reunidos por Leolinda sejam lidos como uma narrativa específica, ainda que não tenham sido produzidos por ela. Cada documento reunido por Leolinda nos oferece um microuniverso de sua atuação. Embora sua fala [autoral], apareça mais incisivamente na sua ‘Explicação necessaria’ (p. xvii-xxvi) e na ‘Memoria’ (p. 547-560), suas ideias e comportamentos são apontados no relato de cada um dos personagens que compõem a ampla rede.

Em decorrência desta percepção, optamos por, efetivamente, conceder relevo às repercussões da experiência de missão de Leolinda, entre os povos indígenas do Brasil central, na região entre os rios Araguaia e Tocantins6 6 Rios interestaduais que formam a região Hidrográfica Tocantins-Araguaia. Atualmente, além do potencial energético, a região se destaca pela agropecuária e mineração. (confiram-se os Mapas), e sua articulação com uma ampla rede de personagens da sociedade regional e nacional. Ou seja, sua atuação entre uma sociedade que se considerava moderna e civilizada, fundamentada nas discussões positivistas e cientificistas, e as populações indígenas que deveriam ser instruídas, protegidas e incluídas na nova nação republicana.

Nesse sentido, reiteramos que nosso objetivo foi o de analisar a trajetória de Leolinda, sem dissimular todas as tensões, contradições e angústias por ela vivenciadas.7 7 Levi, em entrevista a Barriera (1999), propõe que o relevo do papel do historiador está em tornar-se protagonista da investigação, tanto como da realidade investigada. Nossa intenção foi a de compreender a pluralidade de sua atuação e sua articulação com uma extensa rede (LIMA, 2006LIMA, Henrique Espada R. Questões de escala: Giovanni Levi. In: LIMA, Henrique Espada R. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 225-276.) que ela construiu e que também a constituiu e envolveu (GINZBURG; PONI, 1989GINZBURG, Carlo; PONI, Carlo. O nome e o como: Mercado historiográfico e troca desigual. In: GINZBURG, Carlo et al. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Rio de Janeiro: Difel; Bertrand Brasil, 1989. p. 169-178.).

Para atingirmos estes objetivos, nos dedicamos à reconstituição da viagem que Leolinda empreendeu durante quatro anos, “refazendo” o itinerário que ela percorreu, passando por lugarejos e cidades e adentrando os sertões, tanto por terra, quanto por água, com o intuito de identificar qual a realidade social (LEVI, 2000LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.) destas regiões que ela nos apresenta na obra que escreveu. Colocamos propositadamente entre aspas o termo “refazendo”, porque não pretendemos aqui dar nossa última versão para esta questão. Refazer o itinerário destas viagens exigiu longo e dedicado tempo de pesquisa, já que, para destacar um exemplo, os topônimos das cidades do final do século XIX nos exigiram atentas e repetidas leituras de suas anotações e da fala dos testemunhos pelos lugares que percorreu.8 8 Após reconstituir o itinerário - do Rio de Janeiro até o norte de Goiás - com auxílio da bibliografia e da documentação, encaminhei-o para o geógrafo Prof. Dr. Antonio Teixeira Neto (2012), que elaborou os Mapas do itinerário terrestre e fluvial de sua viagem pelos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Tocantins.

Adiantamos que Leolinda fez uma dupla e temerária viagem. Tal reconstituição nos permite acessar suas lembranças (e, evidentemente, os esquecimentos) e, também, seus conflitos interiores, no registro que Leolinda faz sobre seus filhos, sobre os “seus índios”, sobre aqueles que considerou seus inimigos e sobre os amigos que fez, sobre a imprensa [que, a um só tempo, a enaltece e a ridiculariza] e, ainda, sobre o poder público.

É plausível supor que nem todas as experiências que Leolinda teve foram registradas. Uma mulher, mesmo acompanhada de um de seus filhos, deve ter vivido situações que, por constrangimento ou, então, outra razão, optou por não relatar. Sendo assim, a ênfase ao apoio que recebeu da rede social, a ausência do Estado em apoio ao seu projeto de catequese laica são as nossas opções para desenvolver a trama que envolveu a realidade social de diferentes indivíduos e grupos nas cidades e nos sertões. Iremos indicar também, contudo, não de forma aprofundada, o estranhamento entre Leolinda e os missionários católicos que já atuavam na catequese dos índios em Goiás.

Em sintonia com as tendências da historiografia das últimas décadas, que relativizou os conceitos de cronologia e de linearidade no estudo das experiências do cotidiano dos indivíduos e dos grupos a que pertencem, não pretendemos fazer desse artigo um texto que dê a ilusão de um formato acabado e todo coerente à vivência de Leolinda.

Entendemos que o/a historiador/a, ao analisar um documento, tem o papel de desmontá-lo e de desconstruí-lo para analisar as condições de produção de um dado documento-monumento, para, assim, compreendê-lo enquanto testemunho de um poder polivalente (LE GOFF, 2003ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, Rio de Janeiro/RJ. Serviço de Documentação Escrita. Fundo Câmara Municipal: Série Instrução Pública.). Assim, somos remetidos a uma dimensão histórica que não se restringe aos indígenas catequizados ou à rede de personagens ilustres e comuns que apoiavam Leolinda, tanto no Rio de Janeiro, quanto nos sertões. Pode-se sugerir que este documento construído por dezenas de mãos, inclusive aquelas que a ridicularizavam, permite apreender a sociedade que o produziu, segundo as relações de força e poder que ali existiam.

No ‘Album’,9 9 Termo empregado por Leolinda. Preserva-se a ortografia do documento nas expressões como ‘Memoria’, ‘catechista leiga’, ‘selvicolas’, dentre outras. seu companheiro inseparável de viagem, também encontramos abaixo-assinados, atestados, recorte de periódicos, suas cartas abertas ao público e também de seus filhos e amigos. Nestes documentos, mais do que os lamentos em relação à dureza e aos conflitos que caracterizavam a vida nos sertões de Goiás, os índios aparecem como aqueles que pedem instrução para si e seus descendentes, justificando a missão de catequista de Leolinda.

Para a reconstituição da sua trajetória, acreditamos que seja importante também verificar como Leolinda se envolveu com a causa indígena após seu retorno ao Rio de Janeiro.10 10 Apresentada na segunda parte da obra: ‘A minha acção pelos autóchtones na Capital Federal’. Veja-se Cunha dos Santos (2016). Na capital, ela continuou o registro de sua atuação através das entrevistas para jornais, enfim, de uma intensa movimentação pelas instituições (inclusive o IHGB) e pelos congressos que debatiam sobre a proteção dos índios e o local que habitavam voltadas para um duplo objetivo, o de criar uma Associação de proteção e auxílio aos silvícolas, e o de retornar à Goiás para cumprir sua ‘missão’. Leolinda, obstinada em cumprir seu duplo objetivo, fez exaustiva circulação pública, entretanto, sempre se fazia acompanhar pelos índios para os quais ministrou aulas em sua própria casa, aplicando parte de seu projeto de civilização. Duas das ocasiões registram as ideias e as demandas dos próprios indígenas. A primeira, quando o grupo participou da sessão magna da União Cívica Brasileira (1907), na tentativa de sensibilizar os sócios ali presentes para a necessidade de jubilamento [aposentadoria] de Leolinda. Porpipó leu o discurso: “Caraó de nascimento, eu aqui represento essa tribu, [...] restitui aos nossos sertões a nossa Uassi-Zauré [Estrela D’alva], [para a] felicidade de milhares de almas que pedem escolas e officinas [...]” (apudDALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 500). A segunda, por ocasião da (re) instalação da Associação de Proteção e Auxílio aos Silvícolas, o Xerente Prasé leu esta saudação: “Permiti que um representante humilde dos selvicolas brasileiros faça ouvir a sua voz nesta illustre assembléa para consagrar o facto memoravel da installação desta associação humanitaria, [...]” Jornal do Brasil, 26/9/1909 (apudDALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 541).

Percebemos em sua postura um protagonismo independente em relação às políticas oficiais adotadas para o indígena. Pois, Leolinda compreendia e defendia a necessidade e a continuidade da obra de civilização e que previa que somente através do trabalho e da instrução ela poderia ser efetivamente concretizada.11 11 Como veremos, ao longo do texto, no seu programa de catequese. Contudo, Leolinda defendia uma proteção associada à “educação racional dos selvicolas” em seus próprios territórios, visando torná-los cidadãos da República. Entendemos que o sentido de cidadão será por ela ressignificado, traduzindo-se na defesa do direito ao sufrágio a ser concedido ao índio, o que o tornaria cidadão da República.

Indícios para a reconstituição da trajetória de vida de Leolinda: a rememoração da experiência de uma catequista leiga

A protagonista que ora apresentamos ao/à leitor/a, Leolinda de Figueiredo Daltro, possui uma trajetória marcante, por ter sido, a um só tempo, uma mulher arrojada e frágil; uma mãe dedicada aos seus filhos, que costumavam acompanhá-la nas suas experiências incomuns; uma mulher de muitos e influentes amigos, aos quais sempre expressou gratidão, mas também de alguns inimigos, que chegaram a ameaçar sua própria existência.

Foi esta sua condição tão singular que motivou inúmeras referências ao seu nome e ao seu projeto de catequese leiga nas colunas dos principais jornais das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, ainda nos anos finais do século XIX - tanto a partida de Leolinda, quanto o retorno da viagem serão divulgados. Duas referências em jornais fluminenses nos chamaram a atenção. No Jornal do Commercio de 13 de dezembro de 1900, encontramos: “A excursionista acaba de chegar, e sentimos não poder dar com toda a minuciosidade a narração que nos fez de sua temeraria empreza” (apudDALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 347). Também O Dia de 25 de maio de 1901 apresenta uma matéria com uma chamada inusitada - “Em busca do desconhecido” -, e anuncia que “iniciará brevemente a publicação da aventurosa viagem da brazileira D. Leolinda Daltro, no cumprimento espontaneo de uma missão heroica e abnegada nestes tempos de indiferença tão egoista que chega às vezes a parecer criminosa.” Ao mesmo tempo em que avulta a disposição e a coragem de Leolinda, “[mulher] do proselitismo esclarecido”, disposta a catequizar os indígenas, “que continuam analphabetos, refractarios a toda a civilisação” e, assim, enfrentar toda a sorte de perigos (apudDALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 361).

O/a leitor/a da obra de Leolinda tomará contato com estas matérias jornalísticas elogiosas ao seu projeto, apresentado como uma missão civilizadora e patriótica - na primeira parte de sua obra - ‘Noticias e documentos’, através da qual podemos reconstituir o exercício de rememoração da experiência vivida (SARLO, 2007SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.), na sua trajetória como catequista entre os índios dos sertões de Goiás.

Nessa primeira parte, também encontramos algumas cartas de membros da sociedade regional, nas quais Leolinda chega, até mesmo, a ser comparada à Joana d’Arc. Contudo, nos deparamos, também, com a alcunha de anticristo, dentre outras, cuja procedência, segundo Leolinda, é oriunda dos missionários, os quais não desejavam compartilhar sua seara religiosa com uma mulher, que pretendia a prática de um programa de catequese laica aos povos indígenas do norte de Goiás.12 12 Gagliardi (1989) fez estudo pioneiro do programa laico de Leolinda ao identificar o seu engajamento efetivo na causa indígena, no período que permaneceu em Goiás, assim como em suas ações no retorno ao Rio de Janeiro, e que visavam à criação de um órgão que assegurasse proteção à população indígena. Em nenhum momento, pretendemos aqui considerar o discurso na obra de Leolinda “como verdade” e sim como representação e dimensão subjetiva construída por ela, seus amigos, admiradores, apoiadores de sua causa, e até mesmo por seus desafetos, como finaliza sua ‘Explicação necessaria’:

O que fui, o que sonhara ser, o que tenho feito, deixo atravéz destas paginas, affirmado pelo testemunho, até mesmo dos meus proprios inimigos. Não pudesse eu exibir provas mais concretas e bastaria o odio delles para estereotypar a verdade do meu esforço. Pairando acima da calumnia - essa expiã que me seguiu pari-passu - se tive muita vez de enfrental-a e reprimil-a, é bem verdade tambem que o estimulo encontrei no desinteressado apoio de consciencias immaculadas. A esses a homenagem de minha eterna gratidão (DALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. xxvi).

Leolinda constitui-se uma personagem instigante e plural. Era natural da Bahia,13 13 Leolinda teria nascido em Nagé, na Bahia, em c.1859, e falecido no Rio de Janeiro, em 1935, em conse­quência de um atropelamento em uma das principais ruas da capital (ROCHA, 2002). e migrou para a então capital do Império, o Rio de Janeiro, acompanhando seu segundo marido Appolonio de Castilho Daltro, que era funcionário da Fazenda da Província da Bahia, na capital Salvador, e foi transferido para o Rio de Janeiro. Ainda, segundo as informações de seu neto Othon de Castilho Daltro, seu primeiro marido chamava-se Gustavo Pereira de Figueiredo e com ele Leolinda teve seus dois primeiros filhos, Alcina e Alfredo.14 14 Entrevista concedida à pesquisadora em jun. 2011. Como tantas outras mulheres da classe média do período, ela tinha formação católica e exercia o magistério. Sua chegada ao Rio se deu exatamente no momento de maior tensão da crise política da Monarquia, o que proporcionou a ela o contato com um novo cenário sociopolítico e com novos significados dados aos conceitos de nação e de cidadania divulgados pelos republicanos.

Imaginemos Leolinda, ainda no final do século XIX, como uma mulher que circula nas redações dos jornais das duas principais cidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro. Consideram-se, aqui, os jornais como espaços de acesso e circulação da palavra que, em certa medida, modelavam a esfera pública e eram modelados por ela. Pode-se inferir destas suas incursões que Leolinda torna-se uma “mulher pública”, em uma sociedade que estabelecera o espaço público como prioritariamente ocupado por homens. A historiadora Michelle Perrot nos fala sobre as “mulheres públicas”, propondo uma reflexão elucidativa sobre as formas de circulação da palavra pública feminina a partir do século XIX: “Sem o poder, como as mulheres ganharam influência nas redes durante tanto tempo dominadas pelos homens? Primeiro, pela correspondência, depois pela literatura e, por fim, pela imprensa” (PERROT, 1998PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: EDUNESP, 1998., p. 10-11). Essa ponderação nos permite propor um questionamento: por que uma proposta de educação laica para os indígenas, na virada do século XIX para o XX, movimentou intensamente a opinião pública?

No livro Da catechese, na primeira parte, Leolinda não apenas registra atos de sua vida pública, mas, também, o amor dedicado aos seus cinco filhos - Alcina, Alfredo, Oscar, Leobino e Aurea - e aquele que eles sentiam por ela, “aos quaes julgo deixar a minha gloria symbolisada numa corôa de espinhos.” Pode-se indicar nessa linguagem, apresentada como escrita de si,15 15 Consciente dos riscos do historiador ao se deparar com tal documentação, situaremos aqui como questão norteadora a memória individual entendida como uma das práticas culturais dos registros de uma “produção de si” (GOMES, 2004). o uso de uma linguagem com conotação religiosa cristã, em certa medida, advinda de sua formação católica e, tantas vezes, evocada pela autora e também por seus testemunhos e, registrada em seu ‘Album’, a saber, “no meu martirológio”, “à causa santa que desinteressada e gratuitamente defendia”, “sagrada missão”, “mais uma vez traída”, “obstinada luta em prol de um projeto humanitário”. Por outras vezes, a linguagem vitimizada e ao mesmo tempo elogiosa de sua trajetória, também a identifica como vítima de traições, ciladas, humilhações, enfrentando grandes perigos, ridicularizações, friezas, indiferenças, o que pode significar uma afirmação do eu perante as imposições da vida, das redes sociais que a envolviam e de si mesma.

Leolinda inicia o livro com um pedido de perdão ao seu filho Alfredo, que a acompanhou em sua missão, após tentar sem êxito dissuadi-la. Ele era praticante nos Correios, em São Paulo, o que, certamente, foi um dos motivos para que Leolinda fizesse sua primeira parada nessa cidade. “Dentre todos os meus filhos que muito perderam e soffreram com a minha ausencia, o teu soffrimento por se ter prolongado até hoje, tem sido muito maior, [...] Perdoa-me!” Alcina, sua primeira filha, dedica a ela uma poesia, por ocasião do seu aniversário em 14 de julho: “Minha adorada e santa mãe, [...] De vossa filha ditosa / Acceitae, por esta data, / A affeição mais pura e grata, / Oh! Doce mãe extremosa”, Jornal do Brasil (apudDALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 457). Encontramos, também, cartas que lhe foram endereçadas por seus dois filhos menores, Oscar e Leobino. Numa delas, consegue-se dimensionar a saudade que sentiam da mãe: “Minha querida Mamãe / Tenho tantas saudades da senhora! O Dr. Horace Lane nos anima muito [...] Quantos dias de viagem? Como nós desejamos ir tambem, [...] Mas eu não me esqueço do Dr. Herculano [...] da mulher delle, que até nos deitava no collo, como a senhora fazia” (apudDALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 101).

Dr. Horace M. Lane, citado por seus filhos, foi um dos maiores incentivadores e patrocinadores da sua ‘missão’ como catequista leiga. As informações que tinha sobre missionárias que atuavam junto a populações indígenas nos Estados Unidos, certamente, levaram-no a ser um encorajador da ‘missão’ de Leolinda. Médico e educador, Horace foi também diretor da Escola Americana e primeiro presidente do Mackenzie College (MENDES, 2007), instituição em que os filhos de Leolinda permaneceram até seu retorno dos sertões. Inúmeras foram as críticas que Leolinda recebeu por ter transferido seus filhos do Colégio Universitário, do Rio de Janeiro, dirigido por Dr. Herculano de Lima, para um colégio ‘protestante’ [presbiteriano] e paulista.

Segundo outra informação de seu neto Othon Daltro, entre os principais motivos que a levaram a separar-se de seu segundo marido, estava o fato de que ao retornar ao Rio de Janeiro (após estar em Uberaba-MG), a fim de receber seus vencimentos, ela teria encontrado seus dois filhos menores, Oscar e Leobino, trabalhando em atividades do comércio, por ordem de seu pai Appolonio.16 16 Entrevista à pesquisadora em jun. 2011. Acredita-se que esse incidente tenha levado Leolinda a tomar a decisão de transferi-los do colégio em que estudavam, no Rio, para o Mackenzie, em São Paulo, antes de sua viagem definitiva a Goiás. Leobino e Oscar, também de acordo com seu neto Othon, formaram-se no Mackenzie, nos cursos de Engenharia e Direito, respectivamente.

Sua filha mais nova, Aurea, provavelmente com três anos de idade, natural da cidade-capital, também aparece nas cartas. Ela ficaria aos cuidados de seu padrinho, o republicano histórico Quintino Bocaiúva, que empregou todos os recursos, incluindo a ameaça de não mais cuidar de sua filha Aurea, para fazer Leolinda desistir e retornar de Uberaba, em Minas Gerais, quando ela se dizia perseguida pelos ‘frades’ [dominicanos].

Nessa passagem chamam-nos a atenção as boas relações que Leolinda mantinha com um dos representantes da elite republicana, o que parece apontar para o apoio que deve ter recebido de uma ala dos republicanos para a implantação de um projeto de instrução laica para os indígenas no interior do Brasil, em consonância com o ideário positivista.17 17 Entre as cartas selecionadas por Leolinda para integrar a primeira parte da obra está uma em que o Mal. Cândido Rondon escreveu para ela. Sobre Rondon veja-se a pesquisa do jornalista estadunidense Rohter (2019). Apesar disso, sua ‘missão’ de catequista entre os índios de Goiás não recebeu qualquer apoio dos poderes públicos e não foi remunerada, tendo sido concedida somente uma licença, de um ano, pelo Conselho Municipal, “unico favor que apenas me foi possivel alcançar” (DALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 404).18 18 No Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro encontramos um requerimento de Leolinda dirigido ao prefeito municipal do Distrito Federal, solicitando licença por três meses com todos os vencimentos, a fim de seguir com urgência para Goiás com o capitão Sepé e montar escola de catequese para os Xerente. Contudo, ela menciona que já havia requerido ao Conselho Municipal [de Instrução] dois anos de licença, para o qual ainda estava aguardando decisão.

Considerando este contexto, parecem ficar evidentes as razões que a levaram a agradecer ao povo paulista e à ‘independente imprensa da paulicéa’, aos quais também dedica seu livro, quando se dirige à redação do jornal A Platéa de 29 abril de 1897:

[...] para poder continuar a missão a que me impuz de “catechista leiga” dos indios cherentes, [...] venho manifestar a esta illustrada redacção o meu sincero agradecimento, que peço, pela publicação destas linhas tornal-o extensivo ás demais redacções e á nobre sociedade da paulicéa (apudDALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 89).

Com essas palavras, Leolinda agradece àqueles que apoiavam seu projeto de forma material e moral, especialmente, aos beneméritos Dr. Horace Lane e Marie Rennotte, como se pode constatar na dedicatória: “À memoria dos amigos brasileiros e estrangeiros [...] interessados todos em amparar e encorajar a mulher que se atirára a uma missão arriscada, [...] de servir á Patria Brazileira” (DALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. ix).

No parágrafo inicial da carta dirigida a A Platéa, encontramos bem delineado o seu propósito de atuar como “catechista leiga” entre os índios Xerente, apesar de estar consciente de que a catequese - que era atribuição dos governos provinciais - vinha sendo confiada, desde a década de 1840, aos religiosos, especificamente aos capuchinhos, na Província de Goiás.

Aqui, consideramos importante situar a pedagoga e médica belga Marie Rennotte na rede social de Leolinda (DE LUCA, Leonora; DE LUCA, João Bosco, 2003DE LUCA, Leonora; DE LUCA, João Bosco. Marie Rennotte, pedagoga e médica: subsídios para um estudo histórico-biográfico e médico-social. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 10, n. 2, p.703-25, maio / ago., 2003.). A imprensa paulistana noticiaria que, Marie Rennotte [também uma “mulher só”] apoiava publicamente a proposta de Leolinda de catequese laica para os índios em Goiás, assunto que já se tornara tão polêmico na capital federal. Provavelmente, a postura de Marie diante dos acontecimentos e sua campanha pela efetiva educação da mulher, divulgada na imprensa feminina paulistana, como a forma mais viável para alcançar sua emancipação, tenham corroborado para a firme decisão de Leolinda de prosseguir com sua missão. Talvez com Marie, Leolinda tenha aprendido a recorrer à imprensa quando se tratava de afirmar convicções e/ou defesas diante da opinião pública a respeito do projeto no qual acreditava.

Embora o projeto de catequese para os indígenas de Leolinda estivesse em consonância com o ideário positivista de instrução laica, assim como a defesa dos direitos destes povos (GAGLIARDI, 1989GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a república. São Paulo: Hucitec, 1989.),19 19 Para quem o Apostolado Positivista tornou pública a defesa dos povos indígenas, assim como os territórios que habitavam, ainda no final do século XIX, período em que os índios foram mortos por representarem um impedimento ao “progresso”, especialmente para os colonos imigrantes ou nacionais que pretendiam desenvolver a agricultura e/ou a pecuária, sem contar os “aventureiros”, que pretendiam ocupar e explorar as terras dos sertões. como mencionamos, não compartilhamos da perspectiva de análise que considera o positivismo como fator preponderante na proposta de Leolinda (ROCHA, 2002ROCHA, Elaine P. Entre a pena e a espada: a trajetória de Leolinda Daltro (1859-1935) - patriotismo, indigenismo e feminismo. Tese (Doutorado em História Social) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.).

Pode-se ampliar este ponto de vista ao levar em conta que a viagem de Leolinda ocorreu durante os quatro anos finais do século XIX, momento em que se tornaram mais acirrados os debates travados entre intelectuais e indianistas vinculados a diversos órgãos e instituições, em torno do cumprimento da legislação indigenista e da garantia de proteção aos índios em todo o território nacional. Cabe lembrar que essas discussões em torno de uma política indigenista irão resultar na criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), posteriormente, o SPI, mas somente em 1910.

Sabe-se que existia, entre os intelectuais republicanos - positivistas ou não -, a ideia de fazer valer uma legislação que pudesse amparar uma política de “proteção” e “civilização indígena”. No entanto, para entender a proposta de Leolinda e seu envolvimento com a causa indígena, é preciso considerar também a experiência prévia de aldeamento e a capacidade de organização e de agência dos próprios Xerente, que durante as incursões à capital, as quais podiam durar de quatro a seis meses, incluíam entre seus objetivos, para além de buscar sementes e ferramentas, o título para [regularizar] as terras que habitavam e a instrução20 20 Tudo indica que essas demandas já eram solicitadas desde a época do imperador D. Pedro II (A Tribuna, dez. 1901, apud DALTRO, 1920, p. 366). para seus descendentes e, assim, estabelecendo, a oportunidade de contatar com os não índios e com as suas formas de mobilização. O Paiz publica, em 9 de julho de 1896, as declarações de Sepé: “[...] Eu faço o que posso... não sei escrever, não posso ensinar os pequenos que vão nascendo, me dóe o coração de ver tanta gente sem ser aproveitada!” (apudDaltro, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 2).

Como se pode constatar ao longo de sua obra, a rede social que Leolinda constituiu não se restringiu aos adeptos do positivismo e/ou do regime republicano, pois envolveu pessoas de uma rede social heterogênea, incluindo algumas lideranças indígenas e as suas estratégias, em se tratando de ideais, concepções e atuações na esfera pública. É muito provável que a decepção que Leolinda teve, após a luta de quase uma década pela causa indígena (1900-1910) e ao não ver atendidas as expectativas de garantir aos “seus índios” o direito de se tornarem cidadãos da República, tenha direcionado seu engajamento político para outra causa, como a luta pela emancipação da mulher e por seu direito à cidadania.

Acreditamos que ela estava convencida, já naquela ocasião, da necessidade de promover a criação de ‘um partido organisado’, com a fundação do Partido Republicano Feminino (PRF) em dezembro de 1910, do qual Leolinda viria a ser a primeira presidente (HAHNER, 1980HAHNER, June E. Feminism, Women’s Rights, and the Suffrage Movement in Brazil, 1850-1932, Latin American Research Review, v. 15, n. 1, p. 65-111, 1980.).21 21 Veja-se, também, Karawejczyk (2013). Atuação que é tida como decisiva para alavancar o longo percurso do seu movimento pela igualdade política entre homens e mulheres e pelo sufrágio feminino. O mais significativo é constatar que ela é reconhecida, ainda no presente, como uma das brasileiras que tiveram atuação singular em prol dos direitos das mulheres.22 22 A Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) concede, desde 2004, o diploma Mulher-Cidadã Leolinda de Figueiredo Daltro àquelas mulheres que tenham contribuído na defesa dos direitos da mulher e nas questões de gênero. Ainda, a Fundação Biblioteca Nacional, produziu o catálogo da exposição Brasil Feminino (2011), na qual Leolinda aparece ao lado de Gilka Machado, como as primeiras sufragistas do século XX. Por fim, o Centro Cultural Câmara dos Deputados e a Secretaria da Mulher apresentam a exposição Lugar de mulher é na Tribuna (2020), em que Leolinda é evidenciada como fundadora do PRF.

Por sua condição de catequista leiga, Leolinda dará início a sua viagem sem o apoio do Estado ou da Igreja (BEOZZO, 1992BEOZZO, José O. A Igreja frente aos Estados liberais: 1880-1930. In: DUSSEL, Enrique. (org.). Historia Liberationis. 500 anos de história da Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 177-222.),23 23 O autor faz uma análise do papel da Igreja frente ao Estado liberal (1880-1930). assumindo a função de missionária independente: “Na Capital Federal [...] o governo, a imprensa, todos enfim, acharam grandioso o meu gesto, depois, tudo me fôra negado, não tendo eu conseguido, sequer, o auxilio official que me foi promettido e que me deveria ser dado” (DALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 90). Sabe-se que, encontrando-se ainda em Uberaba, Leolinda recebeu uma carta, junto à qual havia um telegrama de seu compadre Quintino Bocaiúva, que dizia: “De Goyaz volte. Conselho [Municipal de Instrução] não prorroga licença” (apudDALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 106).24 24 As cartas são respectivamente dos meses de abril e maio de 1897 e indicam que Leolinda saiu de Uberaba-MG em direção aos sertões. A viagem prosseguiu, portanto, sem que Leolinda pudesse contar também com os salários de professora.

Em busca do desconhecido: os indígenas entre os rios Araguaia e Tocantins e a dupla viagem de Leolinda

Nas reflexões que faz sobre relatos de experiências de viagens (LEITE, 1996LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: EDUFMG, 1996.), ressalta que a viagem deve ser percebida como um rito de passagem, na medida em que o viajante, mais do que perceber e conhecer o “outro” - elaborando o seu conceito sobre a diferença - conhece-se a si mesmo, constituindo sua própria identidade. A viagem de Leolinda teve um começo e um final, entretanto, foi na travessia, no diálogo com diferentes atores sociais, que ela teve a chance de conhecer o outro e, afinal, encontrar-se a si mesma.

Nesse tópico, apresentamos dois mapas do itinerário da viagem de Leolinda ao então norte de Goyaz. Neste trajeto, os perigos naturais que enfrentou, tanto no percurso fluvial através das águas do Araguaia, quanto na passagem que se denomina ‘Tauiri’25 25 ‘Tau iri’ ou ‘hiri’ é uma designação dos autóctones às extensões do Tocantins em que este rio se divide em muitos canais, criando um labirinto entre ilhas e pedras, designação que também se associa a uma ideia de perigo ou dificuldade (CARVALHO, 2011). , no rio Tocantins, foram, provavelmente, em muito suplantados pelas inúmeras ameaças a sua própria vida, provocadas pela intolerância de alguns missionários das ordens dos capuchinhos e dos dominicanos, aqueles instalados na região, como nos referimos, desde os meados do século XIX.

Acreditamos que foi este estranhamento com os missionários já instalados na região, que temiam dividir a catequese nos aldeamentos indígenas com uma catequista leiga, que permitiu que o reverendo William Cook se juntasse a sua comitiva e a acompanhasse a partir de Leopoldina (GRIGÓRIO, 2012GRIGÓRIO, Patrícia C. A professora Leolinda Daltro e os missionários: disputas pela catequese indígena em Goiás (1896-1910). Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.). Desceram junto o rio Araguaia, passaram pelo presídio de Santa Maria26 26 A instalação de presídios militares [próximos aos aldeamentos], a partir da segunda metade do século XIX, ao longo do Araguaia e do Tocantins, em Goiás. Estes tinham finalidades estratégicas, como a de garantir a segurança das fronteiras, o livre comércio e a ocupação das margens destes rios por colonos e, consecutivamente, livres de ‘problema de índio’. Eis a política indigenista de Goiás: ‘civilizar’ ou expulsar (ou até exterminar). Consultar Karasch (2003, p. 403-406); e Carneiro da Cunha (2003, p. 137-141). e aí visitaram muitas aldeias dos Karajá, seguindo, depois, até uma das aldeias dos Xerente, provavelmente a aldeia Providência do chefe Sepé, à margem do rio Tocantins.

Em carta endereçada à Leolinda, do dia 15 de agosto de 1900,27 27 No ‘Album’ a maioria dos atestados emitidos por pessoas da região sobre sua idoneidade moral consta a mesma data. Provavelmente, Leolinda confere a valoração de ‘Atestados’, porque os testemunhos confirmam sua ‘dupla viagem’ e, especialmente, “sua conduta idônea na missão de catequizar os selvagens que habitam as margens do Araguaia e Tocantins.” na forma de atestado, o reverendo Cook aponta os motivos pelos quais Leolinda não poderia levar avante sua missão de estabelecer uma escola nas aldeias dos Xerente. Dentre os motivos, ele destaca a falta de recursos, o que a obrigava a costurar e a fazer ramalhetes de flores de papel para vender e, assim, poder se sustentar. Contudo, como principais entraves para a execução de seu projeto estavam frei Ganges e seus adeptos, os quais tentavam por todos os meios expulsá-la do “seu reino” (apudDALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 317-319).

Segundo o reverendo Cook, que deixará evidente sua posição, os Xerente se encontravam espalhados por toda a parte, em uma condição social e moral pior do que antes de terem tido “a felicidade” de conhecer os “virtuosos” freis.

Figura 1:
Mapa do itinerário da primeira viagem de Leolinda Daltro

A primeira parte de seu itinerário é terrestre, como se observa no Mapa, iniciando-se no Rio de Janeiro, passando por São Paulo e pelas cidades de Uberaba e Araguari, no Estado de Minas Gerais. Foi realizado de trem, pela Estrada de Ferro Central do Brasil. A partir desse ponto, seguiu o caminho que era feito pelas tropas e pelos Correios - certamente, em lombo de cavalo ou de mula ou a pé, como eram feitos os deslocamentos dos indígenas, diante da inviabilidade da primeira alternativa - até a Cidade de Goiás. Daí, o trajeto continuava por via terrestre até o porto de Leopoldina. A partir de Leopoldina, os viajantes costumavam descer o Araguaia até as cidades de Santa Maria e Conceição do Araguaia, esta já no Estado do Pará, trajeto que, provavelmente, foi o da segunda viagem de Leolinda.

Figura 2:
Mapa do itinerário da segunda viagem de Leolinda Daltro

Por este itinerário, o da segunda viagem, como se pode ver no mapa, somente recorrendo a caminhos secundários, se pode atravessar o sertão do Araguaia ao Tocantins até a cidade de Pedro Affonso. De Pedro Affonso chegava-se a outras cidades através do rio Tocantins - casos de Boa Vista, atual Tocantinópolis; Piabanha, atual Tocantínia, terra dos Xerente; Porto Nacional; Peixe; Palma (hoje Paranã). De Porto Nacional chegava-se à Cidade de Goiás, ponto de partida da viagem, passando por Natividade, Conceição do Norte, Palma, Arraias, Cavalcante, São José do Tocantins, Pirenópolis e Jaraguá.

Na primeira viagem, Leolinda partiu da Cidade de Goiás no mês de novembro de 1897, em direção às aldeias do povo Xerente, onde permaneceu pelo período de um ano, o que fica atestado em cartas dos meses de outubro e novembro de 1898, nas quais relata seu regresso. Nelas, Leolinda conta que foi forçada a sair em fuga “para escapar aos assassinos a soldo do frei Antonio [de Ganges]” (DALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 366), então diretor28 28 Carneiro da Cunha (1987) expressa que no Regulamento das Missões, os missionários não teriam o governo das aldeias, atribuído aos diretores. Entretanto, na Província de Goiás as normas do Regulamento não se concretizavam na história de contato de freis capuchinhos com os povos indígenas. dos índios Xerente, em Piabanha. Por isso, passa a utilizar os caminhos alternativos, inclusive andando a pé pela mata, trocando de nome e até separando-se de seus companheiros da missão de catequese, na tentativa de garantir sua própria sobrevivência.

Em uma das cartas reunidas no ‘Album’, encontramos menção à viagem que Leolinda faz às aldeias dos índios Krahô, na região do Muquém, com a intenção de reuni-los com os Xerente, em lugar já por ela escolhido e, com o apoio do governo de Goiás, abrir uma oficina de ferreiro e uma escola.

Em seu ‘Album’ encontramos outras correspondências entre a população regional ou sertaneja, o que demonstra que Leolinda as preservou certamente como prova testemunhal29 29 Para Sarlo (2007), a retórica (ou discurso) testemunhal sobre o passado torna a se atualizar no presente. de sua missão. O testemunho é de Francisco Coelho Guimarães, assinado em nov. 1898:

[...] moça ainda, bonita a valer, [...] se atreve a atravessar estes inospitos sertões, semi-núa, pois que, o vestido de brim grosso que mal lhe cobre o corpo, já está em farrapos, pés inchados e sangrados pelas pedras do caminho [...] e uma caixa inseparável, onde leva os apetrechos para fazer flores nos povoados por onde passa. [...] Perguntando-lhe se não estava arrependida, respondeu-me que sim, mas, somente pelas saudades que tinha de seus filhinhos (apudDALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 239-240).

Na segunda viagem,30 30 Leolinda faz sua segunda viagem possivelmente após ter sido informada do estado de saúde ou da morte do frei Ganges, em 24 março de 1899, de acordo com Magalhães (1927) e Vianna (1927), mês em que sai para sua segunda viagem de Leopoldina-GO. Leolinda saiu do porto de Leopoldina, no rio Araguaia, no mês de março de 1899, com a firme intenção de recolher assinaturas e testemunhos junto à sociedade regional - na forma de abaixo-assinados e atestados -, muitos dos quais foram registrados em cartório, a fim de comprovar sua idoneidade moral durante a viagem que realizou com o propósito de oferecer educação e instrução aos indígenas e de “angariar os meios de cultivarem essas gigantescas e ferteis regiões, que incessantemente pedem cerebros preparados e mãos possantes que as explorem” (DALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 405).

O/a leitor/a deve estar se perguntando como Leolinda conseguiu recursos materiais para concretizar sua dupla viagem e, afinal, cumprir seu intento? A confirmação nos chegou através de uma valiosa fonte documental.31 31 Semanario Official de Goyaz, 1900. Nele encontramos, também, o Despacho favorável do Requerimento de Leolinda “pedindo pagamento da quantia de 750$000 que lhe mandou pagar o Sr. Presidente por ter condusido desta capital brindes aos Indios Cherentes, [...]”, Acervo da Fundação Educacional Frei Simão Dorvi - FECIGO. Trata-se de ofício do Presidente do Estado ao Secretário de Finanças, que deveria entregar à Leolinda, representada por seu então procurador, João Baptista Xavier Serradourada,32 32 Intendente da Cidade de Goyaz, na ocasião da primeira viagem de Leolinda. Consta em Da catechese as suas cartas de recomendação à Leolinda enviadas às autoridades e amigos da região. a quantia de 750$000, valor restante da de 3:000$000, que lhe foi concedida pela Lei Orçamentária do Estado de Goyaz.33 33 Lei n. 151, de 31 jul. 1897, Art. 5º § 29 Catechese. Lei, ainda em vigência, citada no Semanario Official de Goyaz, 1899. Por essa prática de investigação, consideramos que estas fontes documentais nos dão indícios que Leolinda não obteve recursos para a sua 1ª viagem que é realizada, como mostra o Mapa, no período de 1897-1898. Pode-se constatar, aqui, o poder público regional como uma rede de influências em suas relações sociais, a partir de duas dezenas de atestados recolhidos entre as autoridades políticas civis e militares, e que comprovam sua dupla viagem em prol de humanitária missão, a exemplo do Desembargador Coriolano Augusto de Loyola, membro do Tribunal de Justiça de Goiás. Além destes, localizamos dezenas de outros testemunhos que atestam seu humanitário projeto de catequizar os índios, com grande sacrifício, enfrentando perigos naturais e até risco de vida. Infelizmente, na maioria deles não encontramos os motivos que levaram Leolinda a, naquele momento, não dar continuidade ao seu projeto de civilização. Quando os atestados fazem referência aos obstáculos que Leolinda encontrou, informam apenas: “por motivos superiores a sua vontade.”

Em sua extensa e arrojada travessia pelos ínvios caminhos dos sertões do norte de Goiás, Leolinda colheu e inseriu em seu ‘Album’ o testemunho de viajantes, comerciantes, tropeiros, enfim, de homens e mulheres comuns com os quais teve a oportunidade de compartilhar experiências. Mas ela também buscou apoio junto ao poder público e de pessoas com poder de mando na região, incluindo as famílias de coronéis, juízes e desembargadores. Isto, provavelmente, se deveu a, no mínimo, quatro razões. A primeira, como acima exposto, para assegurar os recursos para sua ‘missão’. Lembremos que ao final de sua primeira viagem, e alguns dos testemunhos reunidos no álbum confirmam isto, ela teria sido encontrada vestida em “farrapos”, e em péssimas condições físicas. A segunda se deveu, muito possivelmente, à consciência de que ao se aproximar daqueles setores, que juridicamente representavam a lei, eles poderiam conferir legitimidade - através dos atestados de idoneidade moral - ao seu propósito de catequizar os ‘selvicolas’ da região. A terceira razão tem relação com o que já foi assinalado em relação à primeira viagem, quando Leolinda precisou comprar um barco e, certamente, teve que pagar barqueiros acostumados a navegar pelas águas não tão tranquilas do Araguaia e do Tocantins. Já a última razão implica reconhecermos que os contatos interétnicos não ocorrem sem troca, o que nos leva supor que ela se deparou com esta prática nas aldeias por onde passou e com os grupos étnicos com os quais pôde conviver, levando-a a demandar não apenas a proteção das famílias mais influentes, mas, também, recursos para se inserir nas práticas correntes nestas comunidades indígenas.34 34 Sobre tais práticas de trocas com os povos indígenas que têm sua origem no período colonial com os jesuítas, veja-se Oliveira e Freire (2006).

Um articulista do Jornal do Commercio comenta que verificou “372 Atestados” (apudDALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. 347)35 35 Entendemos que entre este número também estavam os testemunhos registrados ao longo de seu ‘Album’, além de outros documentos comprobatórios, como cartas e abaixo-assinados. do trabalho de catequese que Leolinda desenvolveu junto às diversas ‘tribus’ de Goiás. Foi a partir da análise destes atestados, que não foram valorizados adequadamente por Corrêa (2003), que pudemos reconstituir o itinerário das viagens que Leolinda fez pelos sertões, confirmando, especialmente, a realização de sua dupla viagem, a partir da Cidade de Goiás, que, conforme os mapas, foi o seu ponto de partida e de chegada.

Contrariando o Estado e, até mesmo, os seus amigos republicanos positivistas, Leolinda aventurou-se pelos sertões de Goiás, antes mesmo da nomeação de diretores e de professores para os aldeamentos indígenas que viriam a ser propostos após 1910, pelo SPI.

Leolinda: testemunho e memória de sua missão em tempos e espaços múltiplos

Leolinda, com certeza, sentiu, pensou e viveu experiências simultâneas e, por vezes, díspares - entre a sua atuação política em defesa da causa indígena e da emancipação da mulher -, que a colocaram como uma testemunha de tempos e espaços múltiplos nos anos que sucederam à instauração da República.

Todo o esforço de reconstituição e, sobretudo, de comprovação de sua dupla viagem parece-nos elucidar seu projeto, que previa seu regresso para fundar escolas e, até mesmo, demarcar uma área com matas virgens e terras ricas em minerais, às margens do Araguaia, uma Colônia indígena, que pudesse reunir algumas das diversas etnias com que esteve em contato, especialmente, Xerente e Krahô. Leolinda viu diante de si a possibilidade de concretizar seu desejo de retornar e incorporar os índios nos mais diversos ramos do trabalho, como o da agricultura e o da indústria. Para concretizar tal intento, contava com o apoio de chefes indígenas, e o prestígio de dois valentes sertanejos [possivelmente seus defensores José Dias e Leão Leda]. Leolinda entende a civilização do índio, para além da instrução, ou seja, com o direito ao trabalho em diversas atividades, para, assim, torná-los cidadãos ‘uteis’. E afinal, ver concretizado um de seus ideais - uma colônia indígena.

Eis o núcleo do programa de catequese e civilização dos índios idealizado por Leolinda: delimitar um território indígena; oferecer proteção; promover a educação racional e laica; facilitar os meios para que possam desenvolver suas aptidões; organizar escolas agrícolas e industriais; oportunizar o emprego da força de trabalho dos indígenas.36 36 Apresentado como Moção à Comissão de Etnografia, no 1º Congresso Brasileiro de Geografia (1909), e publicado em 1911, nos Anais.

Tais desafios, a serem abraçados pelo governo republicano - que ainda mantinha indefinida sua política indigenista - poderiam, segundo Leolinda, promover gradualmente os hábitos civilizados entre os índios brasileiros, e, talvez, num futuro próximo, garantir a transformação social destes povos. Leolinda, portanto, tinha como principal objetivo a incorporação dos índios brasileiros à civilização.37 37 Aproximando-o também de um projeto de caráter protecionista e/ou assimilacionista, que se consolidaria com a criação do SPI.

A ‘missão’ de Leolinda pode parecer, inicialmente, algo insignificante e com pouca repercussão. Entretanto, ela assume proporções gigantescas na medida em que suscitou opiniões e demandou posicionamentos efetivos na sociedade tanto regional, quanto nacional. A sua dupla viagem, o longo caminho que percorreu - em meio aos obstáculos de toda ordem - da capital federal até os sertões, o contato amistoso ou não com a diversidade de populações indígenas, a passagem por diversos municípios da então região norte de Goiás, a oposição que fez aos interesses locais, acostumados com a exploração do trabalho indígena e a apropriação de terras dos aldeamentos, tudo isto parece apontar para o ineditismo de uma proposta de instrução leiga aos ‘selvicolas’ levada a efeito por uma mulher na passagem do século XIX para o XX.

Afinal, Leolinda conseguiu consolidar a sua proposta? Esta não era a função de uma mulher. É a justificativa que a própria Leolinda deu às negativas que recebeu às inúmeras tentativas que fez para obter recursos junto ao Estado com o objetivo de retornar à Goiás e colocar em prática o seu programa de catequese. Enfim, ela era uma mulher e leiga, que pretendia catequizar índios em meio aos missionários que por décadas vinham se dedicando à catequese na região.

Em sua obra ficam evidentes os ressentimentos, aqueles que a impulsionaram a ressaltar a incomparável viagem que empreendeu para conhecer, pesquisar e educar e a enaltecer os resultados da ‘missão’ que realizou, apesar das traições e das ciladas que lhe aplicaram seus maiores opositores.

As razões para a publicação tão tardia - 20 anos depois da experiência entre os Xerente - certamente, teve relação com a realidade de frieza e indiferença da sociedade carioca que Leolinda encontrou ao retornar ao Rio de Janeiro e, parecem estar expostas na ‘Explicação necessaria’:

Grande parte das minhas “Memorias” já se acham escriptas, porém, repito, minha saúde se faz precaria e doe-me a idéa de que os meus patricios e a posteridade guardem de mim uma lembrança falsa, uma memoria de ridiculo, com que, ainda depois de morta, possa magoar meus filhos (DALTRO, 1920DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil. (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF., p. xx).

O itinerário que optamos e procuramos elucidar ao/à leitor/a tem relação com o destaque que demos à dupla viagem que Leolinda fez. Aquela que teve como origem e destino a Cidade de Goiás, e se deu através das águas do Araguaia e do Tocantins, em busca dos sertões e dos índios ainda desconhecidos. E a de seu “retorno” ao Rio de Janeiro, que se completa com a viagem que os indígenas de Goiás fizeram ao Rio de Janeiro e aquelas que Leolinda fez com eles pela cidade-capital. Um itinerário que, de certa forma, a levará novamente ao ponto de início da viagem que fez ao encontro de si mesma. Desta nova experiência resultará a Leolinda feminista, a que após ter vivido junto aos índios Xerente de Goiás, passará a se dedicar à causa do sufrágio feminino.

Fontes documentais

  • ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, Rio de Janeiro/RJ. Serviço de Documentação Escrita. Fundo Câmara Municipal: Série Instrução Pública.
  • DALTRO, Leolinda. Da catechese dos indios no Brasil (Noticias e documentos para a Historia) 1896-1911. Rio de Janeiro: Typ. da Escola Orsina da Fonseca, 1920. Biblioteca da UnB, Brasília/DF.
  • SEMANARIO Official de Goyaz. Secretaria de Finanças. Goyaz, 20 fev. 1899. Fundação Educacional Frei Simão Dorvi - FECIGO - Goiás/GO.
  • SEMANARIO Official de Goyaz. Actos do Governo. Goyaz, 15 fev. 1900. FECIGO- Goiás/GO.
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Referências

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  • VIANNA, Urbino. Akuen ou Xerente. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 101, v. 155, p. 33-48, 1927.
  • 1
    O presente artigo - com modificações - corresponde parcialmente ao primeiro capítulo da tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Eliane Cristina Deckmann Fleck.
  • 2
    Na identificação da foto, um dos objetivos do grupo era “[...] chamar a atenção do governo para a ameaça que os grandes fazendeiros faziam para as terras dos Akwe.” A afirmação se enquadra na longa história de contato e, especialmente, - a partir da missão dos capuchinhos e da colonização em meados do século XIX - tem-se a dimensão da luta que os Xerente enfrentaram com a sociedade não indígena para terem demarcado e homologado, o seu atual território, somente na década de 1990.
  • 3
    Quanto aos locais de provável circulação da obra encontramos sua referência em âmbito nacional e internacional. No primeiro, a revista A Informação Goyana, na cidade do Rio de Janeiro, cita sua obra em matéria encimada por sua foto (1921). Também Basilio Magalhães cita sua obra na Revista do IHGB (1927). Na esfera internacional, Moisés Bertoni publica suas impressões sobre uma viagem de estudos ao Brasil e nelas inclui: “A fines del pasado siglo, surgió en el Brasil una mujer extraordinária” (1924).
  • 4
    Etnia Xerente do grupo Jê central, que vive hoje às margens do Tocantins e do Sono, no município de Tocantínia, atual Estado do Tocantins. Sobre os Xerente e outros povos indígenas no Tocantins, veja-se ­Giraldin (2002). Sobre a estrutura sociopolítica dos Xerente recomenda-se Schroeder (2010). Ainda sobre o povo Akwen e os contatos com os não índios em Goiás, veja-se Silva (2010).
  • 5
    O método nos parece o mais adequado para os objetivos que propomos porque considera a prática investigativa fundamentada na redução de escala de observação, em uma análise microscópica e em um estudo intensivo do material documental, a qual toma o particular como ponto de partida e prossegue à luz de seu contexto específico (LEVI, 1992, p. 136; 154).
  • 6
    Rios interestaduais que formam a região Hidrográfica Tocantins-Araguaia. Atualmente, além do potencial energético, a região se destaca pela agropecuária e mineração.
  • 7
    Levi, em entrevista a Barriera (1999), propõe que o relevo do papel do historiador está em tornar-se protagonista da investigação, tanto como da realidade investigada.
  • 8
    Após reconstituir o itinerário - do Rio de Janeiro até o norte de Goiás - com auxílio da bibliografia e da documentação, encaminhei-o para o geógrafo Prof. Dr. Antonio Teixeira Neto (2012), que elaborou os Mapas do itinerário terrestre e fluvial de sua viagem pelos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Tocantins.
  • 9
    Termo empregado por Leolinda. Preserva-se a ortografia do documento nas expressões como ‘Memoria’, ‘catechista leiga’, ‘selvicolas’, dentre outras.
  • 10
    Apresentada na segunda parte da obra: ‘A minha acção pelos autóchtones na Capital Federal’. Veja-se Cunha dos Santos (2016).
  • 11
    Como veremos, ao longo do texto, no seu programa de catequese.
  • 12
    Gagliardi (1989) fez estudo pioneiro do programa laico de Leolinda ao identificar o seu engajamento efetivo na causa indígena, no período que permaneceu em Goiás, assim como em suas ações no retorno ao Rio de Janeiro, e que visavam à criação de um órgão que assegurasse proteção à população indígena.
  • 13
    Leolinda teria nascido em Nagé, na Bahia, em c.1859, e falecido no Rio de Janeiro, em 1935, em conse­quência de um atropelamento em uma das principais ruas da capital (ROCHA, 2002).
  • 14
    Entrevista concedida à pesquisadora em jun. 2011.
  • 15
    Consciente dos riscos do historiador ao se deparar com tal documentação, situaremos aqui como questão norteadora a memória individual entendida como uma das práticas culturais dos registros de uma “produção de si” (GOMES, 2004).
  • 16
    Entrevista à pesquisadora em jun. 2011.
  • 17
    Entre as cartas selecionadas por Leolinda para integrar a primeira parte da obra está uma em que o Mal. Cândido Rondon escreveu para ela. Sobre Rondon veja-se a pesquisa do jornalista estadunidense Rohter (2019).
  • 18
    No Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro encontramos um requerimento de Leolinda dirigido ao prefeito municipal do Distrito Federal, solicitando licença por três meses com todos os vencimentos, a fim de seguir com urgência para Goiás com o capitão Sepé e montar escola de catequese para os Xerente. Contudo, ela menciona que já havia requerido ao Conselho Municipal [de Instrução] dois anos de licença, para o qual ainda estava aguardando decisão.
  • 19
    Para quem o Apostolado Positivista tornou pública a defesa dos povos indígenas, assim como os territórios que habitavam, ainda no final do século XIX, período em que os índios foram mortos por representarem um impedimento ao “progresso”, especialmente para os colonos imigrantes ou nacionais que pretendiam desenvolver a agricultura e/ou a pecuária, sem contar os “aventureiros”, que pretendiam ocupar e explorar as terras dos sertões.
  • 20
    Tudo indica que essas demandas já eram solicitadas desde a época do imperador D. Pedro II (A Tribuna, dez. 1901, apud DALTRO, 1920, p. 366).
  • 21
    Veja-se, também, Karawejczyk (2013).
  • 22
    A Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) concede, desde 2004, o diploma Mulher-Cidadã Leolinda de Figueiredo Daltro àquelas mulheres que tenham contribuído na defesa dos direitos da mulher e nas questões de gênero. Ainda, a Fundação Biblioteca Nacional, produziu o catálogo da exposição Brasil Feminino (2011), na qual Leolinda aparece ao lado de Gilka Machado, como as primeiras sufragistas do século XX. Por fim, o Centro Cultural Câmara dos Deputados e a Secretaria da Mulher apresentam a exposição Lugar de mulher é na Tribuna (2020), em que Leolinda é evidenciada como fundadora do PRF.
  • 23
    O autor faz uma análise do papel da Igreja frente ao Estado liberal (1880-1930).
  • 24
    As cartas são respectivamente dos meses de abril e maio de 1897 e indicam que Leolinda saiu de Uberaba-MG em direção aos sertões.
  • 25
    ‘Tau iri’ ou ‘hiri’ é uma designação dos autóctones às extensões do Tocantins em que este rio se divide em muitos canais, criando um labirinto entre ilhas e pedras, designação que também se associa a uma ideia de perigo ou dificuldade (CARVALHO, 2011).
  • 26
    A instalação de presídios militares [próximos aos aldeamentos], a partir da segunda metade do século XIX, ao longo do Araguaia e do Tocantins, em Goiás. Estes tinham finalidades estratégicas, como a de garantir a segurança das fronteiras, o livre comércio e a ocupação das margens destes rios por colonos e, consecutivamente, livres de ‘problema de índio’. Eis a política indigenista de Goiás: ‘civilizar’ ou expulsar (ou até exterminar). Consultar Karasch (2003, p. 403-406); e Carneiro da Cunha (2003, p. 137-141).
  • 27
    No ‘Album’ a maioria dos atestados emitidos por pessoas da região sobre sua idoneidade moral consta a mesma data. Provavelmente, Leolinda confere a valoração de ‘Atestados’, porque os testemunhos confirmam sua ‘dupla viagem’ e, especialmente, “sua conduta idônea na missão de catequizar os selvagens que habitam as margens do Araguaia e Tocantins.”
  • 28
    Carneiro da Cunha (1987) expressa que no Regulamento das Missões, os missionários não teriam o governo das aldeias, atribuído aos diretores. Entretanto, na Província de Goiás as normas do Regulamento não se concretizavam na história de contato de freis capuchinhos com os povos indígenas.
  • 29
    Para Sarlo (2007), a retórica (ou discurso) testemunhal sobre o passado torna a se atualizar no presente.
  • 30
    Leolinda faz sua segunda viagem possivelmente após ter sido informada do estado de saúde ou da morte do frei Ganges, em 24 março de 1899, de acordo com Magalhães (1927) e Vianna (1927), mês em que sai para sua segunda viagem de Leopoldina-GO.
  • 31
    Semanario Official de Goyaz, 1900. Nele encontramos, também, o Despacho favorável do Requerimento de Leolinda “pedindo pagamento da quantia de 750$000 que lhe mandou pagar o Sr. Presidente por ter condusido desta capital brindes aos Indios Cherentes, [...]”, Acervo da Fundação Educacional Frei Simão Dorvi - FECIGO.
  • 32
    Intendente da Cidade de Goyaz, na ocasião da primeira viagem de Leolinda. Consta em Da catechese as suas cartas de recomendação à Leolinda enviadas às autoridades e amigos da região.
  • 33
    Lei n. 151, de 31 jul. 1897, Art. 5º § 29 Catechese. Lei, ainda em vigência, citada no Semanario Official de Goyaz, 1899. Por essa prática de investigação, consideramos que estas fontes documentais nos dão indícios que Leolinda não obteve recursos para a sua 1ª viagem que é realizada, como mostra o Mapa, no período de 1897-1898.
  • 34
    Sobre tais práticas de trocas com os povos indígenas que têm sua origem no período colonial com os jesuítas, veja-se Oliveira e Freire (2006).
  • 35
    Entendemos que entre este número também estavam os testemunhos registrados ao longo de seu ‘Album’, além de outros documentos comprobatórios, como cartas e abaixo-assinados.
  • 36
    Apresentado como Moção à Comissão de Etnografia, no 1º Congresso Brasileiro de Geografia (1909), e publicado em 1911, nos Anais.
  • 37
    Aproximando-o também de um projeto de caráter protecionista e/ou assimilacionista, que se consolidaria com a criação do SPI.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2020
  • Aceito
    09 Fev 2021
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