ALTAMIRANO, Carlos. A invenção de nossa América: obsessões, narrativas e debates sobre a identidade da América Latina. Tradução: Gênese Andrade. São Paulo: Edusp, 2023. 224 p.
Influente pesquisador no campo da História Intelectual, o professor argentino Carlos Altamirano redigiu La invención de nuestra América. Obsesiones, narrativas y debates sobre la identidad de América Latina, obra publicada em 2021 pela editora Siglo XXI. O livro chegou ao público brasileiro em 2023 por meio da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), com tradução de Gênese Andrade, integrando uma prestigiosa coleção de estudos sobre a América Latina reunida pela editora paulista. Nos sete capítulos de A invenção de nossa América: obsessões, narrativas e debates sobre a identidade da América Latina, encontram-se as considerações de Altamirano oriundas de ensaios e debates realizados a partir de 2013 em torno da História Intelectual e da História da América Latina. A obra transita pelos séculos XIX, XX e XXI, traçando um interessante panorama das múltiplas interpretações da identidade latino-americana por diversos grupos sociais, como literatos, intelectuais e criollos. A abundância de documentos e a riqueza de referências situam A invenção de nossa América como um livro referencial para estudiosos que buscam se aprofundar nas peripécias e inconclusões que permeiam os debates - sempre contemporâneos - sobre a originalidade e a identidade da América Latina. Carlos Altamirano visou percorrer as constantes preocupações e obsessões provocadas pela busca da identidade latino-americana, reunindo em sete capítulos os debates e as narrativas mais relevantes que identificou.
A invenção de nossa América insere-se em uma crescente corrente de pesquisas - na qual se encontrariam os trabalhos de Antonio Annino e François-Xavier Guerra (2003) e Marco A. Pamplona e Don H. Doyle (2008) - que considera que as identidades formadas na América Latina a partir do século XIX resultaram de construções conscientemente forjadas por projetos políticos que almejavam estabelecer modelos ideais de cidadania. Esses escritores divergem de uma historiografia nacionalista que tradicionalmente havia considerado que as instituições e as identidades latino-americanas surgiram espontaneamente a partir das forças naturais. Os debates de A invenção de nossa América, assim, visam demonstrar que, além do atributo de invenção, as identidades latino-americanas foram continuamente discutidas e reelaboradas com base nos interesses dos grupos dominantes e/ou nas demandas de outros setores sociais. Embora não tenha formação acadêmica na área da História, Altamirano analisou rigorosamente diversos documentos e construiu um interessante livro que, apesar de algumas lacunas, converte-se em uma importante leitura para os estudiosos da América Latina. Em consonância com outras obras de sua autoria - como os volumes da prestigiada coleção Historia de los intelectuales en América Latina (2008) e o livro Para un programa de historia intelectual y otros ensayos (2005) -, os sete capítulos de A invenção de nossa América compreendem relevantes contribuições de Altamirano para a História Intelectual latino-americana.
O primeiro capítulo da obra, intitulado “Um longo desvelo”, foi originalmente redigido para compor uma comunicação nas Jornadas Interescolas de História, realizadas em 2013. O excerto situa-se como um preâmbulo da obra, no qual seus conceitos e ideias fundamentais são apresentados de forma sumária e panorâmica. Altamirano traça uma breve genealogia das investigações sobre a identidade latino-americana, abordando as inquietações das elites criollas emancipadoras, passando pelo anti-imperialismo de Ariel e chegando aos debates do desenvolvimentismo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Embora o autor admita que seja impossível determinar um marco zero para tais reflexões, reconhece que a busca pela essência da América Latina tornou-se significativamente mais frequente a partir da “grande crise política, social e cultural que o processo da independência do domínio espanhol significou” (ALTAMIRANO, 2023, p. 24). A crescente recorrência desse debate no alvorecer do século XIX inauguraria persistentes preocupações entre os setores intelectuais, cujas minúcias interpretativas ganham destaque nos capítulos seguintes da obra, nos quais o autor aprofunda seu balanço das interpretações sobre a originalidade latino-americana. Em “Um longo desvelo”, por sua vez, Altamirano reservou-se a introduzir a ideia de que as oscilações verificadas na interpretação da identidade da América Latina foram reflexo das mudanças políticas e ideológicas que permearam os indivíduos e grupos que forjaram suas visões de “nossa América”. Essa hipótese de uma correlação entre os discursos dos intelectuais e os eventos históricos será o “fio condutor” que conduzirá as demais reflexões de A invenção de nossa América. Percebe-se, desde já, que a proposta de Altamirano não objetiva estabelecer uma nova resposta para a longeva indagação “O que é a América Latina?”, mas analisar - a partir da História Intelectual e da História das Ideias - como diversos escritores tentaram respondê-la.
No capítulo subsequente, nomeado “Que América somos? Debates e peripécias de uma denominação”, Altamirano reúne argumentos expostos nos cursos universitários ministrados em 2014 e 2015. Nele, o autor realiza uma longa abordagem sobre a gênese do nome “América Latina”, buscando mapear a trajetória que culminou na oficialização dessa nomenclatura em detrimento das demais, como Hispano-América ou Ibero-América. Para tanto, foram retomadas as considerações de José María Torres Caicedo, Michel Chevalier, Francisco Bilbao e Félicité Robert de Lamennais, a fim de identificar as múltiplas origens da consciência latina. Altamirano valeu-se das análises de Arturo Ardao, John Leddy Phelan, Miguel Rojas Mix e Vicente Romero para recordar as reminiscências daqueles escritores e suas correlações históricas com seus contextos de produção. Torres Caicedo, Chevalier, Bilbao e Lamennais foram fundamentais para a criação e a difusão da ideia de América Latina, fosse por meio de uma aspiração anti-imperialista resultante da expansão norte-americana ou mediante um panlatinismo gestado nas ambições napoleônicas do século XIX. A oposição entre a herança latina meridional e o legado saxônico nórdico seria, com ressalvas às especificidades das teses, o alicerce originário daquela ideia. A despeito desses esforços, Altamirano não deixa de citar outros estudiosos que discordaram do título “América Latina”, retomando Mauricio Tenorio-Trillo, José Carlos Mariátegui e Víctor Raúl Haya de la Torre. Nessa análise da trajetória de uma nomenclatura que aspirava construir uma unidade identitária, vislumbramos os esforços do autor em demonstrar que, além da identidade latino-americana ter sido inventada, o próprio nome desse território foi fruto de uma construção conscientemente moldada.
A seguir, “Condição criolla, identidade americana” e “Representações da consciência criolla” - terceiro e quarto capítulos, respectivamente - dialogam conjuntamente sobre a gênese discursiva da identidade criolla na América Latina. Lidos em conjunto, os dois capítulos fornecem um rico panorama acerca dos interesses políticos que instigaram a invenção de uma possível consciência criolla a fim de legitimar a emancipação americana do jugo colonial espanhol. Para alcançar tal objetivo, Altamirano retoma a retórica das elites criollas do século XIX, buscando demonstrar como a narrativa historiográfica daquela centúria foi conscientemente moldada para engendrar possíveis origens e individualidades nacionais. Ele mapeia nesses textos a iniciativa de fixar uma superior identidade criolla, que justificasse sua concentração de poder nas novas repúblicas. O argentino Bartolomé Mitre seria um expressivo exemplo dessa historiografia fundadora, pois foi quem identificou no passado colonial as origens da identidade criolla e lhe atribuiu a responsabilidade pela fundação da nova identidade nacional argentina. Altamirano, por sua vez, demonstra que a invenção discursiva de uma consciência criolla não é um recurso exclusivo do século XIX, dedicando grande parte do quarto capítulo a mostrar seus impactos nas análises de historiadores recentes, como David Brading e Bernard Lavallé. Apesar dessa longevidade, o autor considera que as transformações documentais e metodológicas promovidas na ciência histórica do século XX impactaram positivamente a revisão dessas narrativas, resultando na crítica a essa “visão criolla” da história da América Latina, que visava propagar sua hegemonia política e cultural. O historiador venezuelano Germán Carrera Damas é continuamente mencionado por Altamirano como exemplo desses novos esforços, os quais lançam nova luz sobre o alcance do mito da longeva e superior consciência criolla. Assim, os dois capítulos se circunscrevem ao escopo da obra, na medida em que analisam, com base nas demandas históricas locais, a criação de uma identidade particular por um grupo que visava legitimar sua autoridade no cenário pós-independente.
No quinto capítulo, denominado por “Universalidade europeia e particularidade americana”, Altamirano debruça-se sobre a primeira metade do século XX, analisando as preocupações dos intelectuais latino-americanos com a originalidade do subcontinente diante da herança europeia. A proposta desse capítulo consiste em desvendar como a elite erudita da América Latina buscou afirmar sua singularidade em um contexto no qual a Europa se encontrava imersa em contendas bélicas e o Novo Mundo era dado como herdeiro do legado cultural europeu. Para tanto, Altamirano perpassa as considerações de Alfonso Reyes, Pedro Henríquez Ureña, Francisco Romero e Jorge Luis Borges, que se dedicaram a definir - sobretudo a partir do âmbito da literatura - a peculiaridade identitária da América Latina diante da longeva influência cultural da Europa Ocidental. Frente à intelligentsia europeia, assim “como diante dos membros de um tribunal, os latino-americanos alegariam razões e provas de que a América Latina já não era uma sucursal da Europa, e sim tinha uma palavra própria ou se encontrava em vias de alcançá-la” (ALTAMIRANO, 2023, p. 139). As reivindicações dessa originalidade deram-se, sobretudo, em colóquios e congressos internacionais sediados em países latino-americanos ao longo da primeira metade do século XX. Altamirano afirma que, para aqueles escritores, a improvisação e a pressa pela fixação de tradições eram os principais traços que poderiam singularizar a cultura e a literatura da América Latina, cujos países se encontravam unidos pelo conjunto ancestral de ideias, sentimentos e instituições comuns. Ao final desse capítulo, vislumbra-se a preocupação do autor em observar que a busca pela originalidade latino-americana - iniciada nas discussões sobre a identidade e na própria preocupação com o nome do subcontinente, como dissertou nos capítulos anteriores - não foi sanada pelos escritores daqueles anos, principalmente porque a heterogeneidade e o internacionalismo que caracterizava a América Latina na primeira metade do século XX dificultavam a definição de elementos que transcendessem tal improvisação e urgência.
As inquietações sobre a identidade latino-americana percorrem “A originalidade como tarefa”, sexto capítulo da obra. Nesse excerto, o autor aborda as preocupações dos intelectuais da América Latina oitocentista e novecentista sobre a singularidade da literatura do subcontinente. Suas sondagens visam mapear como escritores do porte de Juan María Gutiérrez, David Viñas, Ezequiel Martínez Estrada e o supracitado Pedro Henríquez Ureña responderam à seguinte questão medular: “Então, quando começou nossa expressão em literatura, ou melhor, quando começou uma expressão que se pudesse chamar nossa, não manifestação das letras espanholas no Novo Mundo?” (ALTAMIRANO, 2023, p. 167). No fim de “A originalidade como tarefa”, constata-se, por meio de uma interessante abordagem dos estudos de Adolfo Prieto, que o possível marco inicial daquela originalidade - atribuído por muitos daqueles escritores ao alvorecer do período republicano - compreendia, na verdade, um conjunto de trabalhos que copiavam textos de matriz europeia. Um exemplo minuciosamente tratado por Altamirano foi a correlação entre a Generación del 1837 - narrada por David Viñas como o alicerce de uma literatura genuinamente argentina - e os relatos de viajantes ingleses publicados décadas antes. Diante das querelas em torno da originalidade da literatura latino-americana, o autor não buscou lançar novas hipóteses para solucioná-las, mas percorrer as contradições que elas suscitaram.
Finalmente, o sétimo capítulo - denominado “Apêndice. Anotações sobre uma Literatura” - atua como um complemento ao capítulo inicial da obra. Nesta última porção de A invenção de nossa América, Altamirano discorre sobre o conceito de “identidade” e busca mapear como seus significados foram objeto de estudo das mais diversas áreas do campo intelectual e político. Para o autor, a existência de identidades nacionais consiste em um fato moderno, pois se manteve atrelada ao processo de construção dos Estados nacionais modernos. Nesse capítulo, torna-se visível o esforço de Altamirano em demonstrar, por meio da retomada de um debate conceitual, como a identidade e sua internalização resultam de interesses característicos da modernidade - isto é, como parte dos processos de construção nacional gestados a partir do século XIX. Trata-se, portanto, de um debate conceitual que demonstra o interesse do autor pela História das Ideias e, até mesmo, pela História dos Conceitos. Embora seja sucinto, o capítulo traz reflexões muito contundentes sobre a “modernidade” da ideia de “identidade”. Essas considerações finalizam a obra e reiteram ao leitor seu argumento central: o aspecto moldável das identidades propiciou a invenção de múltiplas narrativas e interpretações sobre a originalidade de “nossa América”.
É oportuno mencionar que a abundância de referências bibliográficas e o rico repertório de fontes fundamentam com solidez as discussões feitas em A invenção de nossa América, conferindo-lhes certo rigor historiográfico. A despeito das relevantes contribuições, a obra apresenta certas lacunas que podem dificultar a leitura corrente. O terceiro e o quarto capítulos - cujos temas dialogam intrinsecamente - produzem um movimento de “vai e vem” temporal que prejudica a clareza da exposição da identidade criolla: Altamirano desloca-se entre os séculos XIX e XX e retoma temas supracitados que poderiam ser suprimidos em uma discussão temporal linear. Considera-se que a fusão - e a subsequente reestruturação - desses dois capítulos seria mais oportuna para a fluidez da leitura. Outra lacuna organizacional decorre do sétimo capítulo, cujos debates deveriam ser incluídos no início da obra. Afinal, Altamirano discorre sobre a ideia de “identidade” - um conceito central para o entendimento de toda a obra -, o que justificaria sua inserção no capítulo inicial de A invenção de nossa América.
Carlos Altamirano reconstrói debates históricos que demandam conhecimentos prévios do leitor: não é possível entender as considerações do autor sobre Torres Caicedo e Bilbao sem um estudo anterior do imperialismo norte-americano e napoleônico; não se compreenderão as reivindicações de Alfonso Reyes e Pedro Henríquez Ureña sem o entendimento dos impactos do modernismo no início do século XX; o conhecimento da Generación del 1837 e do intenso fluxo imigratório na Argentina oitocentista são requisitos para a leitura do sexto capítulo. Esses exemplos - que percorrem os capítulos junto com outros casos pontuais - limitam A invenção de nossa América a um público especializado, que possui conhecimentos prévios sobre a história da América Latina. Não se trata, portanto, de um livro de introdução facilmente entendido pelo público geral, principalmente porque a pluralidade de debates e narrativas também pode cultivar dúvidas no leitor que busca uma resposta conclusiva sobre o que é a “nossa América”. No entanto, pode-se considerar que é justamente nas querelas e nas inconclusões que subjaz a riqueza do livro: através delas, Altamirano nos leva a refletir sobre a permanência das obsessões e debates sobre a identidade latino-americana, que instigam o contínuo nascimento de novas hipóteses e novas narrativas. Foi justamente o caráter de “invenção” que originou múltiplos olhares sobre a América Latina: a possibilidade de construir, modelar e reelaborar a identidade permitiu que diversos escritores e seus respectivos grupos sociais lançassem considerações sobre o que os dotavam de originalidade. São as inconclusões desse tema que permitem que, nas últimas décadas, os outsiders também registrassem suas visões sobre a identidade latino-americana com base nas demandas de seus grupos. Implicitamente, Carlos Altamirano anuncia que novas hipóteses sobre a singularidade da América Latina sempre continuarão nascendo daqueles que buscarem solucionar a questão a partir das demandas de seu presente.
Referências
- ALTAMIRANO, Carlos (org.). Historia de los intelectuales en América Latina Madri: Katz, 2008. 2 v.
- ALTAMIRANO, Carlos. Para un programa de historia intelectual y otros ensayos Buenos Aires: Siglo XXI, 2005.
- ANNINO, Antonio; GUERRA, François-Xavier. Inventando la nación: Iberoamérica siglo XIX. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 2003.
- PAMPLONA, Marco A.; DOYLE, Don H. Nacionalismo no novo mundo: a formação de Estados-nação no século XIX. Rio de Janeiro: Record, 2008.
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Editoras responsáveis:Luiza Larangeira da Silva Mello e Silvia Liebel
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Jul 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
09 Abr 2024 -
Aceito
27 Jun 2024 -
Corrigido
02 Ago 2025
