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António Manuel Hespanha, o Antigo Regime luso e a historiografia brasileira: notas sobre um diálogo transatlântico

Em fevereiro do ano passado, Hespanha publicou o que acabaria por ser seu último livro, Filhos da terra (2019HESPANHA, António M. Filhos da terra: identidades mestiças nos confins da expansão portuguesa. Lisboa: Tinta da China, 2019.). Não foi pensado como último e de forma alguma representa um balanço de sua obra. Representa, isso sim, o estágio final de sua reflexão, e por isso nos interessa aqui. Nessa obra, ele se dedica a analisar as comunidades mestiças que compunham o que foi denominado de “Império na sombra”, ou seja, aquelas que, mesmo estando fora dos domínios formais do Império, consideravam-se (e/ou eram consideradas) “portuguesas”. Na introdução, Hespanha revela que buscou inicialmente fazer uma análise institucional de tais comunidades, mas logo percebeu que esta era inadequada para estabelecer os traços mais característicos de sua organização e da definição de sua identidade. As instituições formais de governo e o direito oficial cediam lugar aí a “processos mais difusos de organizar e de dominar” (HESPANHA, 2019HESPANHA, António M. Filhos da terra: identidades mestiças nos confins da expansão portuguesa. Lisboa: Tinta da China, 2019., p. 16).

Em Filhos da terra temos, portanto, Hespanha transitando entre uma história institucional, com ênfase no direito, para uma outra, com forte vínculo com a antropologia. Da ênfase no político para uma maior atenção com o econômico, sobretudo sua face mercantil. Para trabalhar com os “confins da expansão portuguesa”, o próprio historiador descentra-se. Impossível não ver aqui o resultado de um profícuo diálogo de décadas com a historiografia desse mesmo império. O conhecimento de uma realidade muito mais complexa do que aquela existente no “reino” transformou Hespanha, mas também foi inegavelmente transformada por ele. É sobre esse diálogo, notadamente com a historiografia brasileira, que pretendo falar aqui, numa homenagem àquele que será, ainda por longo tempo, uma referência incontornável para historiadores brasileiros dedicados aos estudos da Época Moderna.

Cabe-nos uma contextualização, ainda que apressada, para entender as circunstâncias em que a obra de Hespanha foi construída. No seu caso, é preciso sublinhar inicialmente que ele se formou em direito em 1967, fazendo assim parte de uma geração que estava no início de sua carreira quando houve a Revolução dos Cravos. Não seria exagero dizer que a Revolução, somada posteriormente à entrada na comunidade europeia, representou um autêntico “desencapsulamento” de Portugal e de sua população, durante décadas isolado no contexto europeu e agarrado a um império colonial que teimava em manter.

É interessante perceber que, até 1974, Hespanha foi assistente de Direito Romano na Universidade de Coimbra, onde se formou. Temos aí o início da carreira docente, mas ainda não o historiador. Somente depois disso, e tendo passado por cargos no Ministério da Educação, inclinou-se gradualmente para a história.

Aqui é preciso fazer uma observação. Dentro do campo historiográfico, a história “moderna”, entendida aqui como aquela referente ao período entre os séculos XV e XVIII, foi um dos setores mais impactados pelas transformações dessa época. Isso porque ela foi marcada por uma grande produção “oficial” no regime salazarista, que buscava construir uma memória que fosse ao mesmo tempo gloriosa e justificadora da manutenção de seu império no momento em que outros países europeus bem mais poderosos que Portugal estavam se desfazendo, voluntariamente ou não, dos seus. Nela, encontramos a imagem de um Estado precocemente centralizado e que, a partir da Dinastia de Avis, possuiria um claro projeto ultramarino. Uma espécie de versão portuguesa do “fardo do homem branco”, de Kipling: cabia ao país pioneiro da expansão ultramarina levar a civilização à África e à Ásia. Tudo isso personificado em mitos como o “navegador” Infante Dom Henrique, a “Escola de Sagres” etc. Temos na figura de Marcello Caetano, intelectual e último dirigente do salazarismo, a expressão maior dessa perspectiva historiográfica.

O Padrão dos Descobrimentos, inaugurado por Salazar em 1960, em lembrança dos 500 anos da morte do Infante d. Henrique, é uma síntese da construção dessa memória gloriosa. Situado à beira do Tejo e defronte do Mosteiro dos Jerônimos, lá temos o infante, na proa de uma caravela estilizada, ladeado por figuras notáveis ligadas aos descobrimentos (Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque, Luís de Camões, João de Barros, entre outros).

A grande figura a contrapor-se a tudo isso no campo da história era então Vitorino ­Magalhães Godinho, herdeiro de Jaime Cortesão e discípulo de Braudel, cujos estudos buscavam pensar a história de Portugal e sua expansão ultramarina a partir de uma perspectiva econômico-social. Buscava também entender por que o país, apesar de seu pioneirismo, não conseguiu se industrializar e era, então, uma das nações mais atrasadas da Europa. ­Godinho passava longe, no entanto, da história política, campo visto então como menor pelos Annales. E era aí que Marcello Caetano e outros intelectuais do regime concentravam sua produção, sempre com uma perspectiva ideológica muito clara.

Em meio a isso, Hespanha aos poucos deslocava-se em direção à história, mas sem abandonar sua antiga formação. Pelo contrário, uniu ambas as áreas. Inscreveu-se em um “movimento” (na falta de melhor nome) ou tendência historiográfica que a partir da década de 1980 começou a revisar referências até então cruciais na historiografia política e institucional da Europa Meridional. Poderíamos citar, ao seu lado, nomes como Bartolomé Clavero e Pablo Albaladejo, na Espanha, e Ângela de Benedictis na Itália. Categorias como “Absolutismo”, “centralização” e mesmo “Estado” foram abandonadas ou perderam sua centralidade para a compreensão da história política europeia desse período.

No que nos interessa mais de perto, podemos dizer que resultou daí uma nova visão da monarquia portuguesa, caracterizada agora como uma monarquia corporativa em que o poder, longe de estar centralizado, era partilhado entre a coroa e outras instâncias, como as câmaras e a Igreja. Como consequência, temos que, no campo do direito, a capacidade legislativa do poder central era limitada tanto pela doutrina jurídica quanto pelo direito costumeiro. Hespanha sublinhou também a importância dos laços pessoais e dos deveres morais na construção da governabilidade. Demonstrou, por exemplo, que a concessão de mercês pelos monarcas não era fruto de sua liberalidade, mas sim o cumprimento de uma obrigação moral de retribuição dos serviços prestados por seus vassalos, dentro da lógica de uma economia do dom (GODELIER, 2001GODELIER, Maurice. O enigma do Dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.) (temos aqui seu primeiro namoro com a antropologia).

O Brasil, por sua vez, passava por mudanças nos estudos sobre o período colonial que acabariam por confluir com as pesquisas de Hespanha e demais historiadores portugueses que o seguiram. Se nos debruçarmos sobre a década de 1980, veremos que havia então duas correntes historiográficas antagônicas. Uma, reunida em volta de Fernando Novais e cuja origem remontava a Caio Prado Júnior, preconizava que a colonização do Brasil se inseria no contexto das políticas mercantilistas dos Estados Europeus, direcionadas para a acumulação primitiva de capital nos quadros do denominado “capitalismo comercial”, e comandada por um Estado absoluto precocemente centralizado. A segunda, capitaneada por Ciro ­Cardoso e Maria Yedda Linhares, voltava-se para o estudo das estruturas internas da sociedade colonial, sublinhando que os laços externos não eram suficientes para explicar essa mesma sociedade. Em outras palavras, no centro do debate estavam as relações metrópole-colônia, ou seja, até que ponto elas eram importantes para explicar a história colonial.

O quadro, no entanto, começava a se complexificar nessa mesma época. Em 1981VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos entre os séculos XVII e XVIII. São Paulo: Corrupio, 1981.tivemos a publicação, no Brasil, da tese de Pierre Verger. Nesse trabalho fundador, Verger apontava para dois aspectos essenciais: o primeiro era que, ao contrário do que se imaginava até então, o tráfico de escravos para a Bahia não era controlado por comerciantes metropolitanos, mas pelos sediados em Salvador, o que não era pouca coisa. Ressalte-se que Novais chegara a afirmar que era o tráfico que explicava a escravidão. Ou seja, haveria escravidão porque o tráfico era lucrativo para a metrópole. A comprovação de que não era assim produziu um poderoso abalo na argumentação novaisiana. Em segundo lugar, o trabalho de Verger apontava para a existência de uma influência cultural recíproca entre as duas pontas do tráfico.

Na mesma década, Ciro Cardoso e Héctor Brignoli publicariam um manual, História econômica da América Latina (1984CARDOSO, Ciro; BRIGNOLI, Héctor. História econômica da América Latina. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.), no qual também sublinhavam a importância de se conhecer a África para melhor se entender as sociedades escravistas americanas. Ali era apresentado um quadro da África pré-colonial com a bibliografia mais atualizada de então.

O quadro se tornava agora mais interessante. A antiga dicotomia metrópole-colônia implodira. A África ganhava existência concreta, já não sendo mais possível pensar nos escravos apenas a partir de sua chegada nos portos americanos. Era preciso estudar as sociedades de que partiam. Mais ainda: os estudos sobre o tráfico demonstraram que parte das mercadorias utilizadas na troca por cativos vinha da Ásia portuguesa. Aos poucos, a paisagem se revelava mais vasta e diversa.

Aqui, vale fazer um parêntese para uma justa homenagem. Na década de 1960, José ­Roberto do Amaral Lapa publicou um livro notável, A Bahia e a Carreira da Índia (2000LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a Carreira da Índia. Campinas: Unicamp, 2000.), mas que passou então despercebido e teve pouco impacto. Creio que a principal razão era que seu trabalho ia contra a corrente historiográfica então dominante. Nele, vemos claramente como o vínculo entre América e Ásia portuguesas era algo estrutural, e não episódico, e que esse comércio chegava a ser mais importante para a Carreira do que o realizado com Lisboa. O livro ganharia novo significado no final do século XX. Não por acaso, foi reeditado no ano 2000.

Esse mesmo período trouxe importantes contribuições ao estudo de alguns temas até então relegados a segundo plano pela historiografia, como o abastecimento interno e a atividade mercantil, através de trabalhos como os de Maria Yedda Linhares (1979LINHARES, Maria Yedda Leite. História do abastecimento: uma problemática em questão. Brasília: Binagri,1979.), Alcir Lenharo (1979LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. São Paulo: Símbolo, 1979.) e Riva Gorenstein (1978GORENSTEIN, Riva. O enraizamento de interesses mercantis portugueses na região centro-sul do Brasil: 1808-1822. Dissertação (Mestrado em História Social). Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1978.). Esses trabalhos tiveram como principal mérito o aumento da complexidade no estudo da sociedade brasileira, fortalecendo assim aqueles que percebiam a necessidade de se conhecer a dinâmica interna dessa mesma sociedade.

A obra que acabará por sintetizar tais contribuições num novo esforço de interpretação teórica é a de João Fragoso e Manolo Florentino, publicada no início da década de 1990 (FRAGOSO e FLORENTINO, 1993FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993.). Sua principal contribuição localiza-se na comprovação da existência de uma acumulação de capitais interna e na explicitação dos mecanismos que transformavam tal acumulação em mecanismo de reiteração da sociedade escravista e de seu caráter excludente.

Todas essas mudanças acabam por levar ao resgate de um conceito que, embora antigo, havia sido deixado de lado: o de império. Pensar o Império português significava buscar entender as complexas relações entretecidas entre suas diversas partes. Mais ainda: significava entender qual era o papel da monarquia em seu interior. Nesse ponto, as preocupações de ambas as historiografias se encontraram.

Temos uma síntese do primeiro diálogo de pesquisadores brasileiros com a historiografia portuguesa capitaneada por Antonio Hespanha no livro O Antigo Regime nos trópicosFRAGOSO; BICALHO; GOUVÊA, 2001FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima(orgs.). O Antigo Regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.). Nele, além de participar com um capítulo, Hespanha aparece em vários outros como uma referência teórica fundamental. Não é exagero dizer que foi por meio de sua obra que a historiografia brasileira atualizou sua visão sobre a monarquia europeia na Época Moderna e, mais particularmente, sobre as características definidoras da monarquia lusa. Nossos trabalhos nunca mais seriam os mesmos.

De que forma seu trabalho marcaria, a partir daí, a historiografia brasileira? Podemos definir três influências principais:

  1. A noção de poder partilhado, em detrimento da antiga percepção de centralização monárquica, produziu uma multiplicação dos estudos sobre as câmaras municipais, percebidas a partir daí como locais privilegiados para o conhecimento das elites locais e de suas relações com a monarquia;

  2. Um renovado interesse sobre o direito costumeiro, ou consuetudinário, dada sua importância para a conformação das estruturas políticas e sociais locais.

  3. A renovação da história do direito gerou um grande crescimento dos estudos da história da justiça, antes bastante marginais em nossa historiografia, no que pesem obras como a de Stuart Schwartz sobre a Relação da Bahia.

No sentido oposto, é inegável que os estudos portugueses sobre império passaram por uma grande transformação com a contribuição dos pesquisadores brasileiros e a realização de projetos de pesquisa conjuntos. Noções como a de “centralidade da monarquia”, “centro e periferia” e outras precisaram ser revistas. Mais importante ainda, ficou clara a centralidade do Brasil para a compreensão do Império português e, por extensão, da própria história portuguesa na Época Moderna. Nesse sentido, é curioso perceber como, até o final do século XX, os portugueses dedicavam pouca atenção à história de sua maior ex-colônia, voltando-se com maior entusiasmo à África e à Ásia.

Hoje, o conceito que melhor exprime a compreensão do que foi o Império português é o de monarquia pluricontinental. Trabalhado por historiadores dos dois lados do Atlântico, resulta da série de projetos conjuntos de pesquisa realizados nas duas últimas décadas. Não foi criado por Hespanha, mas seria impossível pensá-lo sem o contributo de sua obra.

Por monarquia pluricontinental podemos compreender não só uma estrutura político-administrativa, mas também uma forma de articulação socioeconômica que tem no ­Ultramar seu eixo principal. Desde o século XVI, a monarquia portuguesa não tinha como sua principal fonte de rendimentos o seu próprio território e sua população, mas sim suas possessões ultramarinas, o que a torna um caso muito peculiar no contexto europeu. O mesmo ocorria com os comerciantes e, desde pelo menos a Restauração, também com a nobreza. Por um lado, porque grande parte dos recursos que esta recebia da Coroa tinha sua origem no Ultramar. Por outro, porque a ocupação de cargos nas conquistas revelou-se fundamental para a sobrevivência das principais “Casas” portuguesas, como nos mostra Nuno Monteiro (1998MONTEIRO, Nuno. O crepúsculo dos grandes. A Casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: INCM, 1998.). Não seria exagero dizer que o Ultramar salvou Portugal na luta contra a Espanha no pós-restauração. Lembremos que em 1640 não foi somente Portugal quem se revoltou e buscou sua independência, mas também a Catalunha. Mas esta, ao contrário daquele, não possuía um império ultramarino e, após mais de dez anos de lutas, viu-se obrigada a capitular e retornar ao seio da monarquia espanhola.

Em termos políticos, essa dependência produziu um arranjo institucional bastante peculiar. No século XVII, enquanto grande parte das monarquias europeias tentava centralizar a cobrança de tributos e o exercício do poder militar, Portugal delegou para suas conquistas a responsabilidade por sua própria defesa e, por conseguinte, o poder de cobrar tributos para bancá-la. É bem verdade que no século XVIII o poder tributário das câmaras foi bastante reduzido, mas tanto o sistema de defesa quanto a tributação continuaram dependendo de arranjos locais para funcionar. Sob Pombal, a diferença de tratamento foi gritante. Enquanto no reino ele abusou de medidas que reforçavam o poder régio (ou o próprio poder, segundo os detratores), no Brasil adotou sempre a moderação e a prudência como eixos de sua política.

Por fim, gostaria de retomar um aspecto específico da obra de Hespanha que influenciou e influencia sobremaneira o trabalho de muitos. Trata-se da importância do direito costumeiro, ou consuetudinário, na organização jurídico-administrativa lusitana. Podemos dizer que da história do direito esse tema migrou para a história econômico-social, onde adquiriu renovada relevância.

E isso porque o direito costumeiro chama-nos a atenção para práticas locais, cuja recorrência no tempo as legitima e fortalece. Práticas essas que são entendidas como consensuais, mas que, de fato, expressam uma certa correlação de forças, que também se define localmente. Ora, se essas práticas se consubstanciam em atos de valor jurídico, também definem as hierarquias sociais, resultantes dessa mesma correlação de forças. É preciso lembrar que, no caso da América portuguesa, não temos uma organização estamental nos moldes do “Velho Mundo”. Não há “Ordens” ou “Estados” distintos. Ou, dito de outra forma, tratava-se de um grande terceiro Estado, no qual o pertencimento a grupos não passava necessariamente pela genealogia nem por estatutos de admissão. Nem mesmo a escravidão, principal clivagem existente nessa sociedade, criava uma barreira intransponível. Era possível transitar para a liberdade através da alforria. Nesse cenário, sequer as mais proeminentes famílias da elite colonial possuíam um lugar permanente na hierarquia social, precisando a cada geração reafirmar seu papel. Em outras palavras, o direito costumeiro chamou nossa atenção para o caráter igualmente costumeiro da hierarquia colonial e, por que não dizer, da economia. Podemos falar, portanto, de uma “economia costumeira”.

A esse respeito, é preciso ter em conta que nas sociedades historicamente anteriores ao capitalismo a economia encontrava-se enraizada no tecido social, e jamais podia ser considerada como um campo autônomo e muito menos dominante (POLANYI, 2012POLANYI, Karl. A subsistência do homem e outros ensaios correlatos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.). Afirmar o “enraizamento” da economia na estrutura social, no entanto, é apenas o primeiro passo. Em cada sociedade, esse enraizamento configurava-se através de um arranjo institucional específico. Como nos mostra Hespanha, no Antigo Regime lusitano essa roupagem institucional tinha por base o poder político local e o direito. Direito das gentes, direito do vivido e, por isso mesmo, um direito local.

A noção de economia costumeira considera, assim, que a estrutura econômica se organiza sempre no âmbito local, como resultado do processo histórico de constituição de uma sociedade numa dada região, com sua correlação específica de forças entre os diversos grupos, relações com outras regiões e interação com o meio ambiente circundante. A economia costumeira busca, portanto, não apenas dar conta de alguns fenômenos ou fatores econômicos específicos, mas da organização econômica em geral.

Se estamos tratando de poderes locais, é mesmo por isso que em cada circunstância precisamos olhar as configurações específicas, o modus operandi e as estratégias construídas a partir dos jogos de interesses e mediações dinâmicas. Cada contexto local engendra um espectro de análise, e por isso buscam-se as diferenças, as dissonâncias e realidades in tese antagônicas.

Isso não significa dizer que a organização econômica tivesse algo de autárquica. É eviden­-te que senhores de engenho não produziam açúcar para o mercado local, e que os grandes pecuaristas também vendiam seu gado para consumidores que estavam muitas vezes a centenas de léguas de distância. Sem falar, é claro, dos homens de negócio, cujos interesses mercantis cruzavam os sertões e oceanos. No entanto, a forma como essas relações se dariam dependia, em grande parte, das condições locais. Senhores de engenho definiam no mercado local, com apoio da câmara, os preços dos açúcares que enviavam para a Europa. Grandes comerciantes tinham seus negócios influenciados por condições igualmente locais: o número de trapiches, a estrutura da Alfândega, a atuação da câmara na regulamentação do comércio, ou tentando minar o poder dos potentados locais, para instituírem seus negócios referendados em contratos junto à coroa etc. Mineradores tinham a cobrança dos quintos feita das mais diversas formas. Mais uma vez, dependentes das condições locais.

O conceito de “economia costumeira”, portanto, expressa essa forte imbricação dos aspectos econômicos com as hierarquias e os direitos locais, também eles costumeiros. Cabe aqui uma última ressalva. Em Portugal, e na Europa em geral, o costume baseava-se em uma tradição “imemorável”, ou que se pretendia assim. Na América portuguesa frequentemente não era dessa forma. O “costume” podia expressar uma forma de agir recente, sobretudo em regiões recém-ocupadas, fruto da correlação de forças então existente. Isso lhe dava, é claro, uma enorme plasticidade, fundamental numa sociedade em constante transformação.

Desse panorama geral o que nos surge é, sem dúvida, um quadro muito mais complexo da realidade colonial. Não se busca mais abstrair, mas enriquecer o real, levando em conta os mais diversos aspectos da experiência social. Hespanha possui uma enorme importância aqui. Seu trabalho nos obriga a multiplicar nossas escalas de observação. Por um lado, no nível macro, levando em conta certos elementos que marcavam todo o Império, como a catolicidade. Por outro, numa escala micro, sublinhando a importância dos arranjos locais, a inexistência de uma monarquia centralizada e de um “projeto colonial” homogêneo. De uma história político-institucional migramos para outra que dialoga com a antropologia e a economia. Torna nossa tarefa maior, mas também mais divertida. Creio que seja isso. ­Hespanha certamente se divertia com a história, com o mesmo espírito que guiava Marc Bloch (1987BLOCH, Marc. Introdução à história. 5. ed. Sintra: Publicações Europa-América, 1987., p. 13), e quer que a gente também se divirta.

Referências

  • BLOCH, Marc. Introdução à história 5. ed. Sintra: Publicações Europa-América, 1987.
  • CARDOSO, Ciro; BRIGNOLI, Héctor. História econômica da América Latina Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
  • FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto Rio de Janeiro: Diadorim, 1993.
  • FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima(orgs.). O Antigo Regime nos trópicos Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
  • GODELIER, Maurice. O enigma do Dom Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
  • GORENSTEIN, Riva. O enraizamento de interesses mercantis portugueses na região centro-sul do Brasil: 1808-1822. Dissertação (Mestrado em História Social). Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1978.
  • HESPANHA, António M. Filhos da terra: identidades mestiças nos confins da expansão portuguesa. Lisboa: Tinta da China, 2019.
  • LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a Carreira da Índia Campinas: Unicamp, 2000.
  • LENHARO, Alcir. As tropas da moderação São Paulo: Símbolo, 1979.
  • LINHARES, Maria Yedda Leite. História do abastecimento: uma problemática em questão. Brasília: Binagri,1979.
  • MONTEIRO, Nuno. O crepúsculo dos grandes. A Casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832) Lisboa: INCM, 1998.
  • POLANYI, Karl. A subsistência do homem e outros ensaios correlatos Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
  • VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos entre os séculos XVII e XVIII São Paulo: Corrupio, 1981.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2019
  • Aceito
    13 Nov 2019
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