A recente edição das cartas escritas na Índia portuguesa e do Discurso sobre o Comércio no Mediterrâneo - doravante, apenas Discurso - de autoria de Filippo Sassetti por parte do historiador Corey Tazzara, autor de uma importante monografia acerca do porto de Livorno entre os séculos XVI e XVIII (2017), é uma ocasião para se refletir acerca do interesse que a expansão portuguesa gerou em indivíduos e em Estados pré-unitários da Península Itálica. A riqueza de detalhes fornecida por Sassetti, fruto de sua formação acadêmica na Universidade de Pisa, de seu tirocínio na arte mercantil e de sua estadia em Lisboa e na Índia faz de suas cartas um dos principais documentos que revelam a visão tardo-renascentista sobre a expansão ultramarina no Oriente. Nesta resenha, focaremos na análise do ensaio introdutório feito pelo organizador discutindo, contemporaneamente, a importância das cartas e de seu Discurso em diálogo com a historiografia. Aliadas ao ensaio de Tazzara, essas fontes são um convite a uma abordagem transversal do império português e de sua expansão oceânica, incitando a uma reconsideração sobre o papel do Estado na empreitada colonial e da configuração neste momento - isto é, fins do século XVI - da economia-mundo capitalista.
Ao longo de seu ensaio introdutório The World is a Village? Filippo Sassetti on Trade, Empire, and Institutions in the Renaissance o editor obedece ao esquema interpretativo que propõe, e que em muito revela a visão de mundo do viajante e mercador florentino. Esclarecendo que seu foco é analisar a obra editada de Sassetti dentro dos quadros da economia política do período, considerando sobretudo aspectos geopolíticos e econômicos, Tazzara constrói uma ponte entre a concepção de Sassetti acerca do comércio no Mediterrâneo e da presença lusitana na Ásia e o pensamento de importantes figuras da época, como é o caso do economista Antonio Serra e do teórico Giovanni Botero. A grande diferença - ou, pode-se dizer, peculiaridade de Sassetti - é que o florentino teoriza o lugar a ser ocupado dentro do comércio e da geopolítica do mundo Mediterrâneo pelo Grão-Ducado da Toscana (Tazzara, 2023, p.54). E essa união entre geopolítica e comércio atravessa o Discurso, assim como as cartas que envia da Índia para vários destinatários toscanos.
Isso é evidente em sua assertiva constante de que a pujança mercantil é diretamente relacionada com o poder do Estado e as medidas institucionais a serem tomadas para fomentar o desenvolvimento comercial. Essa era uma faceta que, no caso de suas cartas da Índia e sobretudo na interpretação dada pela historiografia que utilizou os relatos dos viajantes italianos na Ásia, demonstra uma posição paradoxal desses agentes. Ao mesmo tempo que, como cristãos, “beneficiavam-se da rede de comércio estabelecida pelos portugueses”, encontravam-se desvinculados “de uma ação estatal ancorada em projetos de conquista ou dominação”. Para a historiadora Andrea Doré, a administração portuguesa fazia uma discriminação em relação aos estrangeiros em suas possessões ultramarinas - o que seria reforçado posteriormente pela legislação filipina (Doré, 2002, p. 327).
Se as cidades-estados italianas foram pioneiras no desenvolvimento de mecanismos que em muito flexibilizaram as transações mercantis e de capitais nos séculos XIII e XIV - com letras de câmbio e redes de representantes espalhados pelas principais praças europeias -, na empreitada ultramarina o papel do Estado em termos políticos e militares era essencial para a extensão dessas mesmas redes (Wallerstein, 2011, p.121). Por mais que muitos italianos, sobretudo genoveses e florentinos, tenham prosperado no ultramar ibérico1, isso se deu a partir de sua absorção dentro da órbita dos impérios ultramarinos, ou, nos termos de Giovanni Arrighi (1996, p. 40), pela conquista de suas fontes de riqueza e poder, trazendo-os para dentro da estrutura imperial.
E são justamente essas medidas estatais que, se voltamos ao cenário do Mediterrâneo como apresentado no Discurso, poderiam ser adotadas pelo Estado toscano para incentivar o comércio, como a hospitalidade a comerciantes muçulmanos e a redução das tarifas de mercadorias a serem desembarcadas no porto de Livorno. Essas medidas, nas palavras do próprio Filippo Sassetti, dariam vantagens no mercado diante dos venezianos, principais competidores mercantis. Ao contrário da Ásia, o Mediterrâneo era um espaço em que o Grão-Ducado poderia - e deveria - projetar sua esfera de poder no âmbito econômico. Casa-se, assim, comércio com o estímulo à manufatura; abrem-se as portas de Livorno, ao mesmo passo em que se estimula a produção têxtil florentina face aos concorrentes do Adriático (Sassetti, 2023, p. 77).
Já no caso do comércio e da presença portuguesa na Ásia, o viajante e mercador se demonstra mais preocupado não em adotar uma projeção de medidas que fomentariam o comércio e a dinamização da economia toscana, mas busca informar seus correspondentes em sua pátria sobre as estruturas de poder e as práticas mercantis adotando uma posição bastante crítica. Em primeiro lugar, pelo uso desmesurado da violência por parte dos portugueses. Em segundo, pelo fato das possessões portuguesas na Ásia serem um emaranhado de entrepostos, sem contiguidade territorial e, portanto, incapazes de assegurar o controle da atividade mercantil a longo prazo. A título de exemplo, afirma em carta ao Grão-Duque Francesco de’ Medici (r.1574-1587) de 11 de fevereiro de 1585 que, em sua viagem de Cochim à Goa, visitara alguns fortes portugueses, construídos e mantidos em um modo que no passado poderia ser eficaz, mas que no momento que os visita eram mantidos apenas pela força da Divina Providência (Sassetti, 2023, p. 109).
A visão é até certo ponto compartilhada por outros viajantes italianos do período, como Francesco Carletti e Pietro Della Valle, que, como afirma Tazzara no ensaio introdutório, desprezavam a dinâmica imperial portuguesa e a “má administração” do Estado da Índia (Tazzara, 2023, p.48). Carletti iria mais além em suas críticas. Extrapolando os aspectos administrativos, como nos lembra Francisco Bethencourt, fez duras críticas à falta de higiene a bordo dos navios portugueses e à desorganização durante a batalha naval que opôs portugueses e neerlandeses nas proximidades da Ilha de Santa Helena, em 1602, quando voltava à Europa com a frota da Carreira da Índia (Bethencourt, 2007, p. 301). As cartas de Sassetti, de certo modo, anunciam o que em menos de duas décadas se transformaria no principal problema do Império português no Índico e no Atlântico: sua capacidade defensiva diante de outras potências.
Contudo, se a disposição militar e o comportamento dos portugueses eram um problema, a origem encontra-se na administração do vasto império. Além de sua experiência na Ásia, as críticas de Sassetti acerca da administração portuguesa baseiam-se na leitura de João de Barros, “Tito Lívio português”, como afirma em carta a um destinatário desconhecido datada de janeiro de 1587 (Sassetti, 2023, p. 148). Autor cuja obra possui rigor metodológico e capacidade narrativa ímpar e cujos escritos são essenciais para se compreender os eventos que levaram à conformação do domínio português no Oriente, mesmo com todos os problemas que esse domínio desencadeou, João de Barros auxilia o florentino a refletir sobre a pluralidade religiosa e as distintas práticas de comércio que desaguam em divagações acerca da importância da legitimidade para a dominação e exercício da autoridade.
Diante do cenário que vê e das práticas que deslegitimam a presença portuguesa, Sassetti parece esposar uma visão de dominação e de exercício da legitimidade como a que foi teorizada por Max Weber séculos depois. Para Weber, baseando-se na experiência, nenhuma dominação persiste por motivos puramente materiais, afetivos ou racionais; antes, “toda dominação sobre uma pluralidade de homens” requer um quadro administrativo que coordene e reproduza o domínio, concretizando-o (Weber, 1993, p. 170). Era justamente esse quadro administrativo a origem das demais tribulações que afetavam o Estado da Índia, já que o monopólio da Coroa portuguesa sem a afirmação de sua soberania em uma porção territorial significativa era sinônimo de fragilidade, que certamente implicaria na derrocada ou enfraquecimento, cedo ou tarde, do domínio lusitano - reflexão essa que, nos lembra Tazzara (2023, p. 44), também fizera Francesco Carletti.
Isso abre espaço para uma ulterior reflexão que as cartas da Índia nos convidam a fazer: sobre a presença ou ausência de aspectos capitalistas na expansão e domínio colonial ibérico, em primeiro lugar lusitano, em comparação com o movimento expansionista de ingleses e neerlandeses em fins do século XVI. Até porque, e aí está o ponto que permite a abordagem transversal do império lusitano no período, isso nos leva a refletir sobre essas presenças ou ausências no espaço Atlântico - em especial nos Açores, na Madeira, em Cabo Verde, em São Tomé e na América portuguesa. Em termos de modelos de dominação e ocupação, vale mencionarmos a recente abordagem de Maria Fernanda Bicalho e Nuno Gonçalo Monteiro, que ilumina suficientemente o problema ao distinguirem o modo de “ocupação bélica e militar, tal como existiu no Marrocos e na Ásia”, e que se sustentava a partir do controle de entrepostos mercantis e fortes, e o modelo Atlântico, que “esteve ligado à ocupação territorial e agrícola ou à intenção de a promover, mesmo quando condicionado por imperativos comerciais” (Bicalho; Monteiro, 2018, p. 210).
Mas o problema de fundo da expansão oceânica de modo geral permanece latente: o monopólio ambicionado pelos portugueses e a descontinuidade territorial tão criticada por Sassetti seriam de fato limitações ao exercício do domínio no Índico? A resposta aparece como simples se seguimos seu raciocínio: o controle territorial acarreta consequentemente no controle mercantil, ambos sustentando-se mutuamente. Trabalhando com as dimensões capitalistas e territorialistas como tipologias ideais e chegando à conclusão de que ambas as lógicas de poder nunca funcionaram de modo isolado uma da outra, Giovanni Arrighi afirmou que, no caso da lógica de poder territorialista, o poder é expandido a partir do controle territorial, enquanto no caso da lógica capitalista a partir da acumulação de riqueza (Arrighi, 1996, p. 30). A receita de Sassetti parece ir na contramão, portanto, da assertiva de Arrighi. Longe do plano da abstração teórica e pautando-se na sua formação tardo-renascentista, Sassetti pôde constatar - e refletir sobre - o que se apresentava como problemático no domínio português, mesmo que desconsiderando de certa maneira que essa configuração era fruto da necessária adaptabilidade diante dos diversos contextos coloniais. O mesmo ponto pode ser invertido ao ser trazido ao Atlântico: a ocupação territorial e o desenvolvimento agrícola, com um maior fluxo demográfico na longa duração, implicaram necessariamente um domínio pleno por parte da Coroa?
As respostas para essas questões, feitas pela historiografia há tempos, requerem amplas investigações documentais e uma meticulosa reflexão teórica que não desconsidere as distintas realidades dos espaços imperiais de modo transversal. Embora seja algo que nos últimos tempos tem recebido ampla atenção por historiadores e historiadoras, a incorporação de fontes não-portuguesas pode ser essencial para nos ajudar a pensar sobre o problema. Preocupado com a realidade do Mediterrâneo e transpondo seu ponto de vista ao Índico, Sassetti é um dos muitos “italianos” que passaram pelo mundo colonial português e que deixaram fontes de grandíssimo valor. No caso específico de Sassetti, uma análise profunda e comentada de suas cartas, ressaltando o papel do Brasil nas missivas do viajante e mercador, foi feita na tese de doutoramento de Karla Ribeiro (2023). Há outros caminhos a serem explorados, e a leitura e reflexão desta recente edição de parte de sua obra por Corey Tazzara deve servir como inspiração para empreitadas semelhantes no futuro.
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Para o caso específico do papel de italianos na expansão ultramarina portuguesa, veja-se, dentre a vasta bibliografia existente, Virgínia Rau (1965); Verlinden (1970); Spallanzani (1997); Alessandrini (2006) e Guidi Bruscoli (2013).
Referências
- ALESSANDRINI, Nunziatella. La presenza italiana a Lisbona nella prima metà del Cinquecento. Archivio Storico Italiano, v.c164, n. 1, p. 37-54, 2006.
- ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
- BETHENCOURT, Francisco. Cultures Organisationnelles des Empires Européns. In: BETHENCOURT, Francisco; ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). L’empire portugais face aux autres empires, XVIe-XIXe siècle Paris: Maisonneuve & Larose; Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2007.
- BICALHO, Maria Fernanda; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. As instituições civis da monarquia portuguesa na Idade Moderna: centro e periferia do Império. In: XAVIER, Ângela Barreto; PALOMO, Federico; STUMPF, Roberta (org.). Monarquias ibéricas em perspectiva comparada (séculos XVI-XVIII): dinâmicas imperiais e circulação de modelos político-administrativos. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2018. p. 209-236.
- DORÉ, Andrea. Cristãos na Índia no século XVI: a presença portuguesa e os viajantes italianos. Revista Brasileira de História, v. 44, n. 22, 2002.
- GUIDI BRUSCOLI, Francesco. I mercanti fiorentini e l’espansione europea nel XVI secolo. In: AZZARI, Margherita; ROMBAI, Leonardo (org.). Amerigo Vespucci e i mercanti viaggiatori fiorentini del Cinquecento Florença: Firenze University Press, 2013.
- RAU, Virginia. Um grande mercador-banqueiro italiano em Portugal: Lucas Giraldi. Estudos Italianos em Portugal, Lisboa, n. 24, p. 3-35, 1965.
- RIBEIRO, Karla. Lettere (1578-1585), de Filippo Sassetti: tradução comentada e anotada para o português. Tese (Doutorado em Estudos da Tradução) - Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2023.
- TAZZARA, Corey. The Free Port of Livorno and the Transformation of the Mediterranean World, 1574-1790 Oxford: Oxford University Press, 2017.
- TAZZARA, Corey (org.) Filippo Sassetti on Trade, Insitutions, and Empire Nova Iorque: Routledge, 2023.
- VERLINDEN, Charles. The Beginnings of Modern Colonization: Eleven Essays with an Introduction. Ithaca: Cornell University Press, 1970.
- SPALLANZANI, Marco. Mercanti fiorentini nell’Asia portoghese (1500-1525) Florença: SPES, 1997.
- WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System I: Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. Berkeley; Los Angeles; Londres: University of California Press, 2011.
- WEBER, Max. Economía y Sociedad México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1993.
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Editoras responsáveis: Luiza Larangeira da Silva Mello e Silvia Liebel
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
20 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
03 Out 2024 -
Aceito
07 Mar 2025
