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Entrevista com o Professor John Thornton, Universidade de Boston (EUA)

Entrevistadores - O senhor é um dos mais importantes estudiosos da história da África, da escravização e do tráfico de cativos em sociedades africanas atlânticas durante a era moderna. Como e quando o senhor começou a se interessar por esses temas? Que obras, ideias e/ou experiências lhe foram fundamentais ao longo de seu percurso intelectual?

John Thornton - Para começar, eu teria que dizer que nunca realmente me vi como um historiador do tráfico de cativos, mas antes como um historiador da África. No entanto, não se pode compreender África sem levar em consideração o tráfico de cativos, logo, naturalmente, tive que dedicar uma parte considerável do meu trabalho ao tema. Uma das coisas que eu quis fazer foi “naturalizar” a história da África inserindo-a em modos do fazer historiográfico tradicional já existente. Eu sentia que a história da África fora aprisionada pela antropologia como disciplina e, ainda que houvesse reais vantagens em compartilhar uma perspectiva antropológica, a história tinha seus próprios modos para fazer o mesmo tipo de coisas. Então, não é estranho que eu quisesse fazer história social e cultural (como essas preocupações haviam surgido também na antropologia e já eram, então, por ela desenvolvidas) em oposição à tradição de uma história mais política e diplomática.

Eu fui, como muitos outros da minha geração, atraído pelos trabalhos da Escola dos Annales, da historiografia francesa, e também pela literatura neomarxista que todos aprendemos na pós-graduação. Uma razão fundamental para minha escolha em trabalhar especificamente com o Reino do Congo deriva do fato de seu relativamente denso corpus de fontes primárias viabilizar a elaboração de trabalhos similares aos que estavam sendo desenvolvidos na Europa no campo da história social e econômica. Os relatos de jesuítas e capuchinhos sobre o Congo seiscentista forneciam boas compreensões da paisagem rural, do mundo agrário, bem como sobre as relações sociais no nível micro. E aconteceu que também descobri que eu poderia usar estatísticas batismais deixadas por esses missionários para fazer trabalhos demográficos quantitativos.

No que concerne às abordagens marxistas, fui atraído por elas porque o modelo básico de análise, encapsulado nas suas explorações sobre modos de produção, fornecia, eu pensava, um modelo universal que poderia efetivamente ser aplicado para a África. Naquela época, eu estava menos interessado no outro ramo do marxismo que enfatizava o que era chamado de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”.

Uma de minhas primeiras descobertas, que me veio a partir da leitura de Braudel em particular, foi a de que o mundo do século XVII não era tão diferente na Europa e na ­África. A pesquisa demográfica solidificou essa ideia. Eu percebi que taxas vitais fundamentais, como mortalidade infantil e expectativa de vida, eram praticamente as mesmas no Congo e na França. Isso me fez conceber e orientar meus estudos em torno da ideia de que não havia um Terceiro Mundo no século XVII, tal qual o que nós vivenciamos hoje, mas um mundo no qual a pobreza, que pode ser mensurada por taxas demográficas, era um fenômeno universal, e não algo específico da África.

Entrevistadores - Houve contextos políticos e/ou intelectuais em sua experiência profissional, pessoal e/ou geracional que foram decisivos para orientar sua trajetória historiográfica no campo da história da África? Em que sentidos?

John Thornton - Como mencionei acima, não há dúvida de que as maiores influências em meu trabalho foram os escritos da Escola dos Annales, particularmente Fernand BraudelBRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. Lisboa: Dom Quixote, 1995, 2. ed; São Paulo: Martins Fontes, 1983, 2v. Publicado originalmente em francês em 1966., Pierre Goubert, Emmanuel Leroy Ladurie e Pierre Channu1 1 N.T.: Historiadores da chamada segunda geração da Escola dos Annales. . Todos eles trabalharam com o início da era moderna, o que eu queria fazer na época, e eles criaram modelos de análise que abrangiam setores das elites e das não elites da sociedade. Eles não sentiam medo de usar a lógica e o pensamento econômicos em seus trabalhos.

Mas eles estavam também preparados para produzir trabalhos acadêmicos minuciosos calcados em fontes primárias e para tornar as evidências empíricas acessíveis ao leitor, o que é difícil fazer. Eu me lembro do quão impressionado fiquei com as notas de pé de página do O Mediterrâneo2 2 N.T.: BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. Lisboa: Dom Quixote, 1995, 2. ed; São Paulo: Martins Fontes, 1983, 2 v. Publicado originalmente em francês em 1966. e quanto apreciei as afirmações ousadas de Braudel, às quais se seguiam evidências acadêmicas apresentadas de forma coloquial. Não posso afirmar que minha própria escrita é como essa, mas certamente fui influenciado por ela.

Entrevistadores - A respeito de sua vasta obra bibliográfica, quais o senhor enfatiza como as mais signiticativas e como elas contribuíram e contribuem, em diferentes contextos historiográficos, para o conhecimento da história da África?

John Thornton - Seria difícil dizer que Africa and Africans in the making of the ­Atlantic World, 1400-16803 3 N.T.: Publicado originalmente em inglês, em 1992, sob o título Africa and the Africans in the making of the Atlantic World, 1400-1800. não foi a minha mais importante contribuição. De acordo com o Google Acadêmico, o livro foi citado mais de 1.660 vezes, o que é impressionante para um livro de história porque se compara mesmo com muitos trabalhos que não lidam com África e são até considerados clássicos. Não apenas isso, mas o livro continua a vender, mesmo depois de 25 anos de sua primeira edição, e eu sei que a vasta maioria das vendas se destina a fins didáticos. Fico admirado com o fato de que as pessoas ainda queiram que seus alunos de graduação leiam o livro.

Contudo, como uma preferência pessoal, ainda gosto muito do meu primeiro livro, The kingdown of the Kongo: civil war and transition4 4 N.T.: Publicado originalmente em 1983. Não traduzido para o português. , minha tese de doutorado, com poucas revisões. Escrevê-lo foi um prazer, e realmente fiquei triste por ter que terminar (embora eu tivesse escrito outros livros também como experiências prazerosas). Na ocasião, senti que tinha feito uma grande descoberta sobre como sociedades africanas funcionavam e que tinha revolucionado o modo como o Congo seria visto. Infelizmente, não muitas pessoas trabalharam no tema antes ou depois de mim.

Também gosto muito de The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684-1706.5 5 N.T.: Publicado originalmente em 1998. Não traduzido para o português. Foi minha primeira tentativa em fazer uma biografia e, de fato, eu estava decidido a escrever uma biografia de um centro africano, mas de quem? Eu hesitei entre D. Afonso I do Congo, Beatriz Kimpa Vita e a Rainha Jinga e, finalmente, decidi fazer a de Beatriz Kimpa Vita porque já tinha toda a documentação original vinda do meu primeiro livro. Por uma destas coincidências da sorte, minha esposa, Linda Heywood, decidiu ela própria escrever sobre a Rainha Jinga, e agora seu livro foi publicado e já traduzido para o francês e para o português.6 6 N.T.: HEYWOOD, Linda, Njinga of Angola: Africa’s warrior queen. Harvard University Press, 2017. ­Publicado em português sob o título Jinga de Angola: a rainha guerreira da África. São Paulo: Todavia, 2019. Finalmente, acabei de aceitar um contrato para escrever uma biografia sobre Dom Afonso; logo, de qualquer modo esse trabalho está feito.

Biografia é muito mais o ato de contar uma história do que o tipo de história analítica que eu vinha fazendo, a cronologia pesa mais, e a construção do ritmo é crucial. É uma maneira muito diferente de escrever.

Sempre me esforcei para tornar meus trabalhos acessíveis aos alunos, especialmente aos graduandos em processo de formação docente, porque eles refinam e transmitem o que estou escrevendo para crianças sob seus cuidados. Lecionei, por 17 anos, na Millersville University (na Pensilvânia), que era, principalmente, uma faculdade de formação de professores, e a maioria dos alunos em minhas aulas planejava sua carreira na educação primária ou secundária. Eu queria que até mesmo meus artigos acadêmicos fossem acessíveis a eles.

Foi essa preocupação com a acessibilidade que me fez evitar a linguagem técnica ou o jargão intelectual tão comum durante a maior parte de minha carreira intelectual, primeiro com a linguagem marxista, depois com a linguagem do pós-estruturalismo e do pós-modernismo.

Entrevistadores - As questões relacionadas a guerras, escravização, catolicismo em África, religiosidades africanas e dimensões culturais são grandes temas presentes em suas abordagens. Que outros assuntos o senhor ainda acha lacunares e abertos à investigação? Se houver, no que eles podem inovar?

John Thornton - Para mim, uma das coisas mais tristes que aconteceram recentemente é o dramático, eu arriscaria dizer, o catastrófico declínio na pesquisa, estudo e escrita da História da África anterior a 1850. A África é um lugar difícil de estudar, há desafios de linguagem no uso das fontes, e, constantemente, é preciso ler as entrelinhas dos textos para tentar responder as perguntas que você tem.

Então, o que é preciso fazer agora é retomar a produção da história da África mais antiga, anterior a 1850. Nós aprendemos muito sobre como fazer aquela história, como fazer uso da tradição oral, como lidar com a arqueologia e a linguística como fontes, como inventar nosso trabalho aproveitando todos os tipos de informação disponíveis para extrair o que quer que seja possível das várias fontes e escrever o que pudermos. Mas temos que continuar a fazer isso.

Entrevistadores - Suas abordagens priorizam a participação ativa de sociedades africanas na construção do mundo atlântico, rompendo com supostos imobilismo e passividade na história, inclusive em suas formas de atuação na escravização, no tráfico de cativos e na formação econômica, política e cultural do Ocidente. De que forma tal compreensão da história rompeu, ou ainda rompe, com acepções historiográficas que tendem, anacronicamente, a ver uma Europa como a rainha do mundo durante a era moderna? De algum modo, o senhor tem dialogado com o revisionismo das teses circulacionistas e com a crítica ao estado moderno europeu tido como absolutista? Ou é mera confluência de ideias próximas? Até que ponto Braudel e outros autores o inspiraram?

John Thornton - Preciso dizer que fico surpreso como muito das descobertas que fiz, quando escrevia minha tese/primeiro livro, continua a orientar o modo como eu lido com a África. Como já mencionei, uma das primeiras razões pelas quais escolhi o Reino do Congo como projeto foi porque eu podia abordá-lo da mesma maneira como Goubert concebeu a França. Isso não significa dizer que tentei fazer uma análise comparativa, mas apenas que eu quis usar as mesmas técnicas de análise. Mas, como as fontes me permitiram fazer isso, rapidamente percebi, pelo menos para a época sobre a qual eu estava escrevendo, que não havia tanta diferença, no que chamaríamos de desenvolvimento, entre a África e a Europa.

Aquela ideia era revolucionária para mim, e considerei que os aspectos demográficos confirmavam isso. Eu estava convencido pela ideia implícita nas fontes primárias, segundo a qual as mulheres que cultivavam a terra no Congo trabalhavam pouco e colhiam muito, de que isso era um indicador da produtividade do trabalho. Muito depois, acrescentei a produção de têxteis, quando percebi que as exportações do Congo oriental para Luanda equivaliam ao total das exportações do Sul da Holanda. Historiadores que pesquisavam têxteis me informaram que os tecidos africanos se equiparavam aos europeus de melhor qualidade. Depois, li um artigo de autoria de Candice Goucher7 7 N.T. GOUCHER, Candice L. Iron is Iron ‘Til it is Rust: Trade and Ecology in the Decline of West African Iron-Smelting. In The Journal of African History, Vol. 22, No. 2 (1981), pp. 179-189. que demonstrava que os africanos produziam aço da mesma qualidade que os aços europeus.

Dessa maneira, a produtividade agrícola, a produção têxtil e a produção de aço similar àquelas de outros continentes, somados aos mesmos níveis de expectativa de vida, levaram à mesma conclusão: a África não era atrasada ou menos desenvolvida, conforme os indicadores que historiadores econômicos geralmente consideram fundamentais. Isso derrubou, pelo menos para mim, a ideia de que os europeus podiam forçar os africanos, a partir de sua suposta maior força econômica, a vender outros africanos como escravos. Evidentemente, argumentei isso de forma restrita para o Congo [no meu primeiro livro], e depois, em A África e africanos na formação do mundo atlântico, para toda a África Atlântica.

Além disso, também descobri em meu estudo sobre o Congo que ele era governado mais a partir de um centro do que os países europeus. Não que um governo centralizado seja uma boa coisa em si, como são fabricar têxteis refinados ou produzir alimentos suficientes para impedir que a população morra prematuramente, porém é uma medida do dinamismo de sociedades como um todo. É por isso que, às vezes, me sinto irritado com estudiosos que se recusam a chamar de “estados” sociedades como o Congo, simplesmente porque, de uma forma ou de outra, não correspondem a uma definição weberiana de Estado. Isso é realmente um disparate. No caso do Congo, há muitas evidências que provam o contrário, assim como para a maioria das comunidades políticas africanas do período.

Eu acho que há um certo modo pelo qual historiadores modernos ficam míopes pela realidade de hoje. Desde a transformação da Europa no início do século XIX, a própria Europa, a América do Norte e o Japão demonstraram uma sociedade inteiramente mais produtiva, ­ancorada na Revolução Industrial e na democratização. O Terceiro Mundo é geralmente visto, corretamente, como sendo atrasado porque suas economias não são produtivas da forma que o são as dos chamados países desenvolvidos; a expectativa de vida e a justiça social também são menores.

Mas isso não é uma situação eterna, não foi “sempre assim”. Esse quadro resultou de complexos avanços ocorridos em alguns países, durante o século XIX, seguidos mais recentemente por alguns outros. Antes desses avanços, havia pouca diferença entre as grandes regiões continentais.

Assim, a abordagem moderna sobre África sofre de dupla miopia ao focar o mundo atlântico dos séculos XVII e XVIII. Por um lado, a Europa recebe mais crédito por ser considerada mais desenvolvida do que era, e, por outro, os africanos recebem menos crédito do que deveriam. Consequentemente, cria-se um fosso inexistente na forma como as interações entre as duas regiões são compreendidas.

Uma vez que passamos de 1840, a situação do desenvolvimento de fato torna-se desigual tanto em termos econômicos quanto políticos, e, nesse caso, algumas daquelas ideias [de desigualdade entre África e Europa] fazem mais sentido. Todavia, também estamos vendo que o fosso entre o Primeiro e o Terceiro Mundos está mudando.

Entrevistadores - Paradoxalmente, não lhe parece uma contradição que parte da historiografia ressalte, por exemplo, a falta de domínio político e cultural europeu sobre a África durante a época moderna ao mesmo tempo em que a mesma historiografia atribui enfaticamente à colonização europeia as modificações no continente? Em suma, o europeu teria sido incapaz de dominar, mas capaz de alterar profundamente as sociedades africanas. Força do mercado de um mundo pré-industrial ou contradição historiográfica?

John Thornton - De fato, não pesquisei seriamente a África colonial ou pós-colonial profissionalmente, embora tenha ideias sobre isso por conta de viagens e, às vezes, do magistério. Não acho que a Europa modificou intensamente a sociedade africana durante o período colonial. Minha opinião é que os construtores dos estados africanos do século XIX, Samori e al-Hajj ‘Umar no Sudão, o Califado de Sokoto, Daomé ou Ashante na África Ocidental, ou o império Lunda, Msiri e outros, provavelmente teriam feito o mesmo que os europeus fizeram. Eles teriam mobilizado a produção agrícola e mineral para exportação, teriam construído ferrovias e outras infraestruturas (usando capital e conhecimento europeus) e, provavelmente, se valeriam de trabalho forçado e teriam experimentado alguns dos comportamentos abusivos vigentes no período colonial. Nesse sentido, eles teriam seguido uma trajetória não muito diferente da América Latina ou do Sul da Ásia nos séculos XIX e XX.

Mas as lideranças africanas, provavelmente, também teriam desenvolvido suas próprias culturas à sua maneira, teriam desenvolvido seu próprio senso de identidade cultural, incluindo educação e capacitação. Podemos observar que a Etiópia, que não passou por um período colonial, fez o mesmo tipo de coisas que os europeus fizeram e não está substancialmente pior do que outros países africanos. Não necessariamente está melhor, mas também não está pior. Claro, estou fazendo história contrafactual e, nesse campo, uma opinião é tão defensável como qualquer outra.

Entrevistadores - O senhor é um autor muito lido no Brasil, sobretudo, mas não apenas, depois da tradução de Africa and Africans in the making of the Atlantic World, 1400-1680. Atualmente, o país vive uma efervescência no campo da História da África, ­inclusive na historiografia. De sua experiência no Brasil e/ou com pesquisadores brasileiros, que impressão o senhor teve sobre os estudos de história da África no país? O senhor acha que, ­desprendidos do binômio colonizador versus colonizado relativo à história da África, os historiadores brasileiros podem caminhar por novas searas de pesquisa? Que tipos de contribuição historiadores brasileiros, entre outros, poderiam fornecer num contexto de historiografia internacionalizada? O senhor vê algum conhecimento de historiadores nos EUA ou alhures sobre a historiografia relativa à África feita no Brasil e/ou por historiadores brasileiros? Ou a língua portuguesa é uma sólida barreira?

John Thornton - Ninguém deixa de ficar impressionado com o crescimento dos estudos africanos no Brasil! Quando o visitei pela primeira vez em 1998, havia muita pouca coisa sendo feita, mas agora há bastante. Isso se deve ao fato de o Brasil reconhecer sua herança africana e querer entendê-la.

Atualmente, africanistas brasileiros estão pesquisando muito a herança africana no ­Brasil, o que implica um foco voltado fortemente para Angola e para o que foi chamado de Costa da Mina, locais de procedência da maioria dos africanos desembarcados no Brasil. Para Angola, as pesquisas se enquadram de vários modos em um modelo estabelecido pela historiografia brasileira sobre o próprio passado brasileiro. Há um foco na história social e, portanto, uma leitura atenta dos tipos de documentos exigidos pela história social. Frequentemente, tais pesquisas abordam áreas coloniais da África e, particularmente, Angola. Eu gostaria que isso se tornasse um pouco mais diversificado, como percebo que vem acontecendo mais recentemente. Isso significa que os brasileiros podem lançar luz sobre o Senegal, a Costa do Ouro, e não apenas sobre a Guiné-Bissau e o Benin.

Creio que a historiografia brasileira sobre África terá que ser publicada em inglês para causar um impacto internacional sério. Vejo isso em trabalhos traduzidos, nos quais africanistas brasileiros, como Roquinaldo Ferreira ou Mariana Candido, estão sendo reconhecidos e citados justamente porque muito de seus trabalhos está em inglês. Por essa razão, eu apoiaria traduções para o inglês de parte dos trabalhos que está sendo feita no Brasil, uma vez que isso não ressoaria apenas nos EUA, mas também internacionalmente. O inglês, para o bem ou para o mal, tornou-se a língua franca do mundo, e o português é visto como uma barreira.

Entrevistadores - Ainda sobre historiografia brasileira relativa à África pré-colonial, há muitas fontes em português sobre tráfico de cativos e escravidão no Atlântico Sul, bem como escravização na África Central, entre outros aspectos. Porém, poucos pesquisadores leem em português, ou seja, as fontes seriam quase de domínio exclusivo dos lusófonos. ­Nesse sentido, no que os historiadores brasileiros podem avançar? Por outro lado, quais seriam nossas lacunas e deficiências?

John Thornton - O português é mais uma barreira mental do que real. Qualquer um que saiba francês e outra língua latina pode ler o resto delas. E, se alguém quiser ler português, apenas aprenda espanhol, o que é fácil nos EUA, em particular. Na página impressa, espanhol e português são a mesma língua (assim como o catalão e, mais ou menos, o italiano). Tenho alunos de língua materna espanhola que vêm até mim e dizem que não sabem ler português, e eu lhes respondo: “Não, você não consegue entender o português falado, mas você pode lê-lo”. Eles voltam maravilhados e dizem: “Sim, eu posso ler muito bem!”. Todos nós conhecemos esse problema; não preciso falar mais nada!

Tendo dito isso, todavia, certamente ter o português como língua materna é um passo à frente para qualquer um que faça história africana, especialmente para o período anterior a 1700 e para Angola. E, muito provavelmente, mais pessoas utilizando o português, sejam elas brasileiras, portuguesas, angolanas ou moçambicanas, colaborarão para divulgar a utilidade de tais fontes.

Evidentemente, se você quiser preencher lacunas, é importante ir além apenas das fontes portuguesas. É impossível fazer muita coisa sobre África apenas com fontes portuguesas. Quando escrevi o meu primeiro livro sobre o Congo, a maior parte do meu material original estava em italiano e, para a história de Angola, é bom conhecer também o holandês. Para períodos posteriores, pós-1850, o alemão é essencial.

Se você quer fazer algo sério sobre a Costa da Mina, você não pode evitar o holandês, e, para a Costa do Ouro, o dinamarquês também é indispensável. Este é o problema da história africana, as demandas por línguas são muito fortes, mas é justamente aí que o avanço pode ser feito. Foi com o passar dos anos que desenvolvi conhecimento prático de todas aquelas línguas europeias.

Entrevistadores - A internacionalização da historiografia se faz, sobretudo, pela língua inglesa. Nela, temas como o impacto do tráfico atlântico de cativos na África pré-colonial, principalmente na historiografia africanista (isto é, feita fora da África) são clássicos. Hoje, no entanto, há ênfase em temas sobre guerra e escravização, processos jurídicos e escravização, fronteiras da escravização, gênero, trajetórias pessoais e/ou familiares, etc. Há tendências de mudança nos enfoques em curso? Ainda há lacunas geográficas e temporais?

John Thornton - Uma das coisas que aconteceram, desde que estudei África na pós-graduação, foi o declínio do estudo de questões africanas como questões africanas. Nos anos 1970, parcialmente por causa do papel da antropologia como uma disciplina na formação da história da África, nós nos concentrávamos em tópicos como governança interna, economia do comércio interno entre países africanos, estruturas sociais e temas afins. Isso era história da África pela África, por assim dizer.

Porém, conforme o interesse específico pela história da África mais recuada diminuía, e muitas ou mesmo a maioria das pessoas interessadas na África se concentravam em perío­dos modernos e até contemporâneos, o campo se tornou cada vez mais voltado ao tráfico de escravos. Isso se deu, acho, simplesmente porque foi o tráfico de escravos que tornou a África importante para a história das Américas. Em parte, esse foi o motivo pelo qual eu escrevi A África e os africanos na formação do mundo atlântico. Percebi que o interesse futuro sobre África seria guiado por pessoas cujo principal interesse era a história das Américas, e eu queria incluir a África como parte disso.

Se voltar a ocorrer uma época de ouro da história africana mais recuada, nós iremos, imagino, ocupar alguns campos que, atualmente, estão em voga entre os historiadores da Europa ou das Américas, incluindo gênero, estudos sobre fronteira, trajetórias pessoais, e assim por diante. Haverá, porém, o problema de que as fontes primárias que viabilizam tais tipos de estudos estão ausentes para muitas regiões da África. Foi em busca de assuntos populares na historiografia europeia que escolhi estudar o Congo, porque eu tinha ali o material necessário para escrever sobre esses assuntos.

Claro, podemos buscar fontes orais, e é o que um considerável número de historiadores tem feito. Mas aqui há dois problemas, o primeiro é que isso requer a aquisição de, pelo menos, uma e, potencialmente, de múltiplas línguas africanas, e a capacidade de fazer trabalho de campo, o que é mais difícil na África hoje do que nos anos 1970, ao menos em muitos países.

Contudo, mesmo assim, não se pode esperar recuar muito distante no tempo usando tradições orais ou entrevistas. O otimismo que já prevaleceu nos estudos africanos, segundo o qual a tradição oral permitiria compensar a falta de documentos, basicamente se extinguiu. Dizer que uma descrição de tempos passados feita por um ancião em 2019 representa algo anterior a 1900 é, provavelmente, um erro.

Entrevistadores - Suas publicações contribuíram substancialmente para o avanço dos estudos da África Central Ocidental antes de 1800. Gostaríamos de falar um pouco sobre suas experiências atuais como professor e pesquisador, bem como sobre seus futuros projetos de pesquisa em história da África.

John Thornton - Eu acabei de terminar um livro, que é uma história geral da África Centro-Ocidental antes de 1852 (ano da morte de Naweji II, imperador Lunda). Nesta definição, África Centro-Ocidental abrange o Congo e as terras do planalto central de Angola. É um livro bastante longo e para um público acadêmico, no sentido de que o escrevi a partir, principalmente, de fontes primárias e levando em consideração toda a produção historiográfica atual. Não o vejo como um manual de graduação, mas como uma história geral. Há muitas descobertas novas nele e um bom número de reflexões. Estou animado com ele, e talvez seja publicado em 2020. Talvez mais cedo, o que depende da Cambridge University Press e da minha capacidade de responder seus pedidos.

O meu próximo projeto se mantém sobre a África Centro-Ocidental, como aludi, é uma biografia de Dom Afonso I do Congo. O projeto incluirá traduções anotadas para o inglês de todas as correspondências de Dom Afonso. O livro faz parte de uma coleção criada para o ensino de estudantes de graduação e, por isso, não terá todos os requisitos técnicos de uma edição, e a biografia será, espero, acessível ao meu público.

No momento, estou lecionando um curso chamado História da Religião na África e tenho preparado um texto com base em minhas aulas. O livro será escrito, como é meu costume, diretamente a partir de fontes primárias, e inclui todo o continente. Espero que, algum dia, possa ser publicado, vamos ver.

Entrevistadores - Que conselhos o senhor daria aos estudantes que queiram enveredar pelo estudo da história da África?

John Thornton - Duas palavras: aprendam línguas! Ponham isso em perspectiva e considerem isso os ossos do ofício.

Ao mesmo tempo, também diria que aprendessem, pelo menos, uma língua africana, talvez a da região que você está estudando. Eu não usei nenhuma fonte em língua kikongo para escrever minha tese (eu só falava hausa e kiswahili) e não tenho certeza se, em termos gerais, teria feito grande diferença no texto final caso eu tivesse aprendido esta língua. Mas, uma vez tendo aprendido kikongo, simplesmente senti que conhecia o lugar melhor do que antes. Por fim, descobri algumas fontes (uma boa quantidade, na verdade) escritas em kikongo que se mostraram úteis para períodos mais recentes. E [saber kikongo] me permitiu traduzir o sermão de Beatriz Kimpa Vita para o kikongo na biografia que escrevi sobre ela. Eu acho que isso forneceu uma salutar, ainda que não muito visível, profundidade analítica ao trabalho.

Eu também sugeriria que aprendam também sobre outras regiões além da África, bem como leiam amplamente sobre história e sobre outras disciplinas além da história. Quando comecei os estudos de pós-graduação em história, decidi que minha tese seria orientada por uma interseção entre o conjunto da história do Kongo e a história do mundo no período que escolhi analisar. Assim, li muito sobre todas as partes do mundo do século XVII e li tudo que pude sobre o Congo, desde as primeiras escavações até os dias atuais.

Entrevistadores - Professor, somos muito gratos por seu tempo e atenção. Muitíssimo obrigados!

Referência

  • BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. Lisboa: Dom Quixote, 1995, 2. ed; São Paulo: Martins Fontes, 1983, 2v. Publicado originalmente em francês em 1966.
  • 1
    N.T.: Historiadores da chamada segunda geração da Escola dos Annales.
  • 2
    N.T.: BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. Lisboa: Dom Quixote, 1995, 2. ed; São Paulo: Martins Fontes, 1983, 2 v. Publicado originalmente em francês em 1966.
  • 3
    N.T.: Publicado originalmente em inglês, em 1992, sob o título Africa and the Africans in the making of the Atlantic World, 1400-1800.
  • 4
    N.T.: Publicado originalmente em 1983. Não traduzido para o português.
  • 5
    N.T.: Publicado originalmente em 1998. Não traduzido para o português.
  • 6
    N.T.: HEYWOOD, Linda, Njinga of Angola: Africa’s warrior queen. Harvard University Press, 2017. ­Publicado em português sob o título Jinga de Angola: a rainha guerreira da África. São Paulo: Todavia, 2019.
  • 7
    N.T. GOUCHER, Candice L. Iron is Iron ‘Til it is Rust: Trade and Ecology in the Decline of West African Iron-Smelting. In The Journal of African History, Vol. 22, No. 2 (1981), pp. 179-189.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2019
  • Aceito
    02 Jul 2019
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