Acessibilidade / Reportar erro

Monasticismo, arte e riqueza na Gália tardo-antiga

Monasticismo, arte y riqueza en la Galia tardo-antigua

Monasticism, art and wealth in late antique Gaul

RESUMO

Peter Brown recentemente descreveu a conversão de Paulino de Nola ao monasticismo, em 394, como a renúncia da mística da riqueza. De acordo com Brown, essa mística, perceptível nos vestígios materiais das uillae do século IV, expressava esplendor e prazer. O refinamento da arquitetura, o luxo das decorações e o cuidado do corpo celebravam a riqueza dos proprietários e a abundância da natureza. Meu objetivo neste artigo é usar o conceito de Brown de mística da riqueza como um termômetro, para entender como outros monges aristocratas da Gália dos séculos IV e V conciliaram sua conversão ao monasticismo com suas próprias riquezas. Argumento que sua conversão podia assumir sentidos muito diferentes. Nem todos os monges aristocratas sentiam a necessidade, como Paulino, de rejeitar os sinais que os identificavam como homens ricos e de dedicar sua fortuna a um santo ou a Deus.

Palavras-chave:
Antiguidade tardia; Gália; monasticismo; arte; riqueza

ABSTRACT

Peter Brown recently described Paulinus of Nola’s conversion to monasticism, in 394, as the renouncement of the mystique of wealth. According to Brown, such a mystique, noticeable in the material remains of fourth-century villas, expressed splendor and pleasure. Architectural refinement, decorative luxury and body care celebrated owners’ wealth and abundance of nature. My purpose in this paper is to use Brown’s concept of mystique of wealth as a thermometer, in order to understand how other contemporary Gallic aristocratic monks reconciled their conversion to monasticism with their own wealth. I argue that their conversion could take on a range of different meanings. Not every aristocratic monk felt the need, as Paulinus did, to reject the signs that identified him as a rich man and to dedicate his wealth to a saint or God.

Keywords:
Late Antiquity; Gaul; Monasticism; Art; Wealth

RESUMEN

Peter Brown recientemente describió la conversión de Paulino de Nola al monasticismo, en 394, como la renuncia de la mística de la riqueza. De acuerdo con Brown, esa mística, perceptible en los vestigios materiales de las villas del siglo IV, expresaba esplendor y placer. El refinamiento de la arquitectura, el lujo de las decoraciones y el cuidado del cuerpo celebraban la riqueza de los propietarios y la abundancia de la naturaleza. Mi objetivo en este artículo es usar el concepto de Brown de mística de la riqueza como un termómetro, para entender cómo otros monjes aristócratas de Galia de los siglos IV y V conciliaron su conversión al monasticismo con sus propias riquezas. Argumento que su conversión podía asumir sentidos muy diferentes. No todos los monjes aristócratas sentían la necesidad, como Paulino, de rechazar las señales que los identificaban como hombres ricos y dedicar su fortuna a un santo o a Dios.

Palabras clave:
Antigüedad Tardía; Galia; Monasticismo; Arte; Riqueza

Introdução

Entre a primavera (no hemisfério norte) e o Natal de 394, o rico senador Pôncio Merópio Paulino e sua esposa, Terásia, anunciaram publicamente sua conversão ao monasticismo.2 2 Para a data e a possibilidade de Paulino ter anunciado publicamente sua conversão, cf. TROUT, Dennis E. Paulinus of Nola: Life, Letters, and Poems. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1999, p. 92. Ambos adotaram a castidade e prometeram abandonar todos os seus bens em favor dos pobres. Bispos de inclinação ascética deleitaram-se com a notícia. Martinho de Tours, por exemplo, supunha que Paulino, “tendo desprezado enormes riquezas e seguido Cristo, era quase o único de seu tempo a ter cumprido os preceitos evangélicos”.3 3 SEVERO, Sulpício. Vita Martini 25.4: “[…] summis opibus abiectis Christum secutus, solus paene his temporibus euangelica praecepta conplesset […]”. Tradução do autor. Cf. também AMBRÓSIO. Epistula 6.27; AGOSTINHO. Epistulae 26, 27 e 31. Para o sentido da conversão de Paulino nesses textos, cf. TROUT. Paulinus, p. 2-10. Martinho claramente se referia à passagem bíblica na qual Jesus aconselha ao jovem rico: “Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!” Nessa passagem, o jovem rico não se desfaz de suas posses, e Jesus, então, adverte seus discípulos: “Em verdade vos declaro: é difícil para um rico entrar no reino dos céus! Eu vos repito: é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus”.4 4 Mt 19.21-24. Tradução: Bíblia sagrada. 48. ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1985, p. 1308.

Paulino acreditava, contudo, que os ricos não precisavam vender os seus bens e doar o dinheiro aos pobres para obter a salvação. O jovem rico não teria conseguido ser perfeito não por causa da posse, mas por causa do amor às suas riquezas. Segundo Paulino, Deus havia criado os ricos e os pobres, de modo que as riquezas pertenciam a ele. Os ricos odiados por Deus, como teriam esclarecido os Evangelhos, seriam “os que antepuseram as coisas passageiras às eternas e os que preferiram acreditar nas coisas terrenas a Deus”.5 5 PAULINO. Epistula 13.19: “[…] qui aeternis caduca praeuerterint quique maluerint terram quam deo credere […]”. Tradução do autor. Em outras palavras, seriam os que usavam sua fortuna em benefício próprio e desprezavam os pobres. O problema para Paulino, portanto, era o uso correto das riquezas. Elas deveriam ser empregadas em obras de caridade, para que, assim, retornassem a Deus e garantissem a salvação dos seus proprietários. Tudo aquilo que era usado “na obra de Deus onipotente” transformar-se-ia em “uma forma beata de mercadoria”, que seria enviada “antes mesmo de nós aos braços do Senhor”.6 6 PAULINO. Epistula 11.9: “[…] ea per omnipotentis dei opus beato mercimonii genere uertentes non modo nobiscum efferimus, sed ante nos etiam in sinum domini seminata praemittimus”. Tradução do autor. Para mais detalhes acerca do pensamento de Paulino, cf. TROUT. Paulinus, p. 134-145.

Concorde ao seu pensamento, Paulino manteve parte de suas posses e dedicou-a a obras pias. No ano em que foi governador da Campânia, em 380 ou 381, ele construiu uma estrada que ligava Nola ao santuário de São Félix e um alojamento para os pobres.7 7 PAULINO. Carmen 21.383-386. Mas quando, em 395, instalou-se definitivamente em Nola, ele converteu o modesto santuário de São Félix em um complexo monumental. Ele reformou e redecorou a basílica antiga e construiu uma nova, além de um batistério e um pórtico. Todos esses edifícios foram majestosamente decorados com fontes, jardins, pinturas parietais, mármores e mosaicos policromados, colunas de mármore e poemas do próprio Paulino.8 8 Para a história do santuário de São Félix e as descobertas arqueológicas, cf. EBANISTA, Carlo. Et manet in mediis quasi gemma intersita tectis: la basilica di S. Felice a Cimitile. Storia degli scavi, fasi edilizie, reperti. Nápoles: Accademia di Archeologia, Lettere e Belle Arti, 2003; os artigos reunidos por BRANDENBURG, Hugo; PANI, Letizia Ermini (Org.). Cimitile e Paolino di Nola: la tomba di S. Felice e il centro di pellegrinaggio. Trent’anni di ricerche. Atti della giornata tematica dei Seminari di Archeologia Cristiana (École française de Rome — 9 marzo 2000). Cidade do Vaticano: Pontificio Istituto di Archeologia Cristiana, 2003; LEHMANN, Tomas. Paulinus Nolanus und die Basilica Nova in Cimitile/Nola: Studien zu einem zentralen Denkmal der spätantik-frühchristlichen Architektur. Wiesbaden: Reichert Verlag, 2004. Próximo ao santuário de São Félix, talvez em sua propriedade,9 9 BOWES, Kim. Private Worship, Public Values, and Religious Change in Late Antiquity. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 154. ele ergueu ainda um edifício com dois andares de pórticos. No andar superior eram acomodados os monges e, no inferior, doentes e pobres.

Peter Brown recentemente sugeriu que a conversão de Paulino ao monasticismo representou o abandono da mística da riqueza, entendida como a arte e o estilo de vida por meio dos quais os ricos, à época, mostravam que eram ricos. Paulino, de fato, apesar de ter mantido boa parte de seus bens e ter dado todo o esplendor possível ao santuário de São Félix, cercou-se de pessoas e adotou um regime que eram o exato oposto do modo como os ricos exibiam suas riquezas. Ele passou a viver em uma cela no monastério que fundou próximo ao santuário de São Félix, a ter a companhia de monges e pobres, a vestir-se com roupas grosseiras e sem cor, a ter os cabelos mal cortados e a comer frugalmente em vasilhas de cerâmica e com talheres de madeira. Os senadores da época, ao contrário, estavam habituados a residir boa parte do ano em uillae luxuosas,10 10 Na Antiguidade, não existia uma definição precisa para o termo uilla (no plural: uillae). Como indica PERCIVAL, John. The Roman Villa: an Historical Introduction. Londres: B.T. Batsford, 1976, p. 13-15, as fontes literárias referem-se a “um local no campo, normalmente (mas não sempre) associado à agricultura, às vezes com conotações de luxo ou relaxamento, e na maioria dos casos a uma única casa”. Em termos legais, a uilla era concebida simplesmente como “um edifício no campo”. Mas, ao mesmo tempo, nem todos os edifícios no campo eram identificados como uillae. As habitações nativas, por exemplo, não o eram. As fontes literárias sugerem que, “para ser uma uilla, o edifício tinha que ser reconhecidamente romano na aparência, na função ou em ambas”. Na ausência de uma palavra equivalente para uilla em português, manterei o termo latino. a cercar-se de clientes, a vestir-se com roupas refinadas e coloridas, a manter os cabelos bem cortados e penteados com azeite e a comer alimentos exóticos e requintados em louças de prata.11 11 BROWN, Peter. Through the Eye of a Needle: Wealth, the Fall of Rome, and the Making of Christianity in the West, 350-550 A.D. Princeton; Oxford: Princeton University Press, 2012, p. 186 e 219-223. Cf. PAULINO. Epistulae 5.21 e 22.2.

Meu objetivo neste artigo é usar o conceito de Brown de mística da riqueza como um termômetro, para analisar como outros monges aristocratas dos séculos IV e V conciliaram sua conversão ao monasticismo com suas próprias riquezas.12 12 Não pretendo discutir aqui os benefícios espirituais, políticos e econômicos das doações à Igreja para os próprios doadores e a extensão das propriedades fundiárias acumuladas por igrejas e monastérios da Europa ocidental entre os séculos V e IX. Boas introduções a essas questões são os trabalhos de WOOD, Ian N. Entrusting Western Europe to the Church, 400-750. Transactions of the Royal Historical Society, sexta série, v. 23, p. 37-73, 2013; e BROWN, Peter. The Ransom of the Soul: Afterlife and Wealth in Early Western Christianity. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2015, que dá continuidade ao approach de Through the Eye of a Needle. Concentro-me no sudoeste da Gália, pois, no período em questão, as fontes são mais abundantes para essa região do que para o restante do Ocidente. Mas, antes de examinar as fontes literárias e arqueológicas relativas a monges aristocratas e suas uillae, apresentarei brevemente o que Brown entende por mística da riqueza e como esta aparecia nas uillae do sudoeste da Gália. Só assim teremos condições de saber o que Paulino abandonou - afinal, ele era natural de Bordeaux13 13 URÂNIO. Epistola de obitu S. Paulini ad Pacatum 2. - e se outros aristocratas abandonaram o mesmo que ele quando se converteram.

A mística da riqueza no sudoeste da Gália

De acordo com Brown, que sintetiza a historiografia mais recente sobre a habitação e o estilo de vida dos aristocratas nos séculos IV e V, a arquitetura e a decoração das uillae no período, bem como as estátuas e os utensílios domésticos que nelas são encontrados, queriam mostrar o quanto seus proprietários eram ricos e o que significava ser rico. Os vestígios materiais relacionados a essas casas, mesmo que fragmentários, revelam uma arte que fala de riqueza em termos de beleza, luxo e prazer.

Segundo Brown, o primeiro aspecto da mística da riqueza é o esplendor. Uma “explosão de cores” podia ser observada nas paredes e nos pavimentos das uillae. Em geral, tal “explosão” aparecia em mosaicos policromados, mas, nas casas dos mais ricos, ela aparecia em mármores coloridos, cortados e dispostos em painéis por meio de uma técnica conhecida como opus sectile. Os objetivos de tal “explosão de cores” eram, obviamente, deslumbrar e elevar o status dos proprietários, mas eram também agradar, mostrar que a uilla era um lugar de intimidade e surpresa.14 14 BROWN, Peter. Through the Eye of a Needle: Wealth, the Fall of Rome, and the Making of Christianity in the West, 350-550 A.D, op. cit., p. 192-194.

O segundo aspecto da mística da riqueza, de acordo com Brown, é a abundância da natureza. Diversos mosaicos encontrados nas uillae da época queriam mostrar que a natureza oferecia alimentos fartos e apetitosos aos proprietários. E essa generosidade aparece isenta de tensões sociais, pois nunca é representada como o resultado de um esforço: no lugar do árduo trabalho da terra, aparecem apenas cestas cheias dos belos frutos de uma abundante colheita. Nos banquetes, os proprietários esforçavam-se para oferecer essa abundância da natureza aos convivas através de alimentos exóticos e saborosos.15 15 Ibidem, p. 197-199.

O terceiro aspecto da mística da riqueza, enfim, é o cuidado do corpo. Brown aponta que, nos séculos IV e V, as pessoas imaginavam que seus corpos eram universos em miniatura, de modo que, supostamente, as energias que se movimentavam dentro delas eram as mesmas que se movimentavam dentro das estrelas. Para manter a saúde e, assim, o mesmo movimento das energias cósmicas do universo, os ricos banhavam-se frequentemente nas termas de suas casas. Daí o desejo que eles sentiam, à época, de torná-las cada vez mais agradáveis e suntuosas.16 16 Ibidem, p. 199-201.

A riqueza dos aristocratas dos séculos IV e V variava muito e tal variação aparece claramente em suas uillae: quanto mais ricos eram os proprietários, mais luxuosas e sofisticadas eram suas casas. Isso significa que os proprietários de uillae não eram apenas os super-ricos, tais como Paulino. A maioria dos aristocratas provinha das cúrias municipais e não dispunha da estabilidade financeira de que um grande senador dispunha. Mas o que unia todos os proprietários de uillae da época, segundo Brown, era a mística da riqueza. Todos eles queriam dar esplendor às suas casas e mostrar que desfrutavam da generosidade da natureza.17 17 Ibidem, p. 193-197.

Durante os séculos IV e V, a arquitetura doméstica desenvolveu-se notavelmente no sudoeste da Gália.18 18 O restante desta seção deve enormemente a BALMELLE, Catherine. Les demeures aristocratiques d’Aquitaine: société et culture de l’Antiquité tardive dans le Sud-Ouest de la Gaule. Bordeaux; Paris: Ausonius; Aquitania, 2001. As uillae da região foram inteiramente construídas à época ou passaram por reformas que alteraram em maior ou menor grau a conformação original dos espaços. Tais construções e reformas refletem os recursos econômicos de seus proprietários, mas o que se observa quase sempre é o desejo de ostentação: as termas recebiam trabalhos constantes de ampliação e manutenção, as salas eram adaptadas para novos usos, e a arquitetura e a decoração eram refeitas de acordo com os novos gostos.19 19 Para uma hipótese do motivo desse desejo, cf. BOWES. Private Worship, Public Values, and Religious Change in Late Antiquity, op. cit., p. 180.

Se quisermos entender como a mística da riqueza aparecia no sudoeste da Gália, precisamos observar, antes de tudo, o local onde as uillae eram construídas na região. A grande maioria situava-se nos vales, perto ou às margens dos rios. A proximidade a um rio era certamente um fator crucial na escolha do local, pois facilitava o transporte dos produtos para os centros de consumo. Mas a presença da água também era muito valorizada pelo prazer que proporcionava. Na carta em que apresenta sua uilla a um amigo, o senador Sidônio Apolinário descreve detalhadamente o lago que fazia parte da propriedade.20 20 APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 2.2.16-19. O lago não só permitia a criação de animais (cisnes, gansos, patos, peixes) e o divertimento (a prática de esportes e jogos), como também deleitava o olhar. Tanto que um pórtico e a sala de refeição de verão abriam-se para o lago. Durante o banquete, o convidado podia observar o trabalho do pescador enquanto se refrescava com um copo de água gelada.21 21 APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 2.2.10-12. Além disso, a presença da água era fundamental para a construção de termas. Algumas uillae luxuosas, porém, aparecem nos planaltos. Nesses casos, eram privilegiadas as vistas para os vales ao redor e as montanhas.

Com relação às casas em si, a mística da riqueza aparecia sobretudo nos espaços de socialização. Nas uillae, de fato, eram recebidos familiares, amigos e clientes, e também eram oferecidos banquetes, praticados jogos e esportes e desenvolvidas discussões políticas, intelectuais e religiosas. Para tanto, eram necessários espaços diversificados, como pátios, vestíbulos, peristilos, salas de recepção e termas. A decoração desses espaços, sobretudo nas uillae à beira dos Pirineus, onde se situavam jazidas de mármore, era abundante no material. Nas demais uillae da região, predominavam mosaicos. Pinturas parietais, esculturas e estuques também eram usados.

Comecemos com os pátios e os vestíbulos, que conduziam do exterior ao centro da casa. Em um poema famoso, Sidônio elogia o burgus de seu amigo Pôncio Leôncio, um dos maiores aristocratas da Gália do século V.22 22 A uilla de Pôncio Leôncio é denominada burgus porque era cercada por muralhas e torres. Cf. BALMELLE, Catherine. Les demeures aristocratiques d’Aquitaine: société et culture de l’Antiquité tardive dans le Sud-Ouest de la Gaule, op. cit., p. 38 e 144-145. Sobre Pôncio Leôncio, cf. MARTINDALE, John Robert. The Prosopography of the Later Roman Empire, A.D. 395-527. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, v. 2, p. 674-675; PIETRI, Luce; HEIJMANS, Marc. Prosopographie chrétienne du Bas-Empire: la Gaule chrétienne (314-614). Paris: Association des amis du Centre d’histoire et civilisation de Byzance, 2013, v. 2, p. 1138-1139. O visitante que chegasse pelo rio Dordogne, à margem do qual se situava o burgus, entrava em uma sala na qual podia retirar a lama de seus pés utilizando a água que escorria pelo chão. As paredes da sala eram em opus sectile e o teto era banhado a ouro. Havia também uma inscrição com o nome de Paulino Pôncio, construtor do burgus no início do século IV e fundador da família (generis princeps). Em seguida, o visitante encontrava um pátio em forma de “D” com duas galerias que levavam a partes diferentes da casa. A galeria ao fundo, por ser curva e aberta para o sul, permitia que o sol fosse visto a qualquer hora do dia. As paredes das galerias exibiam, ainda, uma pintura que comemorava a conquista do Ponto, da qual um ancestral de Pôncio Leôncio havia participado.23 23 APOLINÁRIO, Sidônio. Carmen 22.142-168. A confiabilidade de Sidônio acerca das condições sociais e econômicas de sua época tem sido muito questionada, pois, em seus escritos, ele empregou diversas construções literárias e retóricas que teriam distorcido a realidade retratada. Suas descrições das uillae da época, em particular, têm sido consideradas extremamente duvidosas. Cf. PERCIVAL, John. The Fifth-Century Villa: New Life or Death Postponed? In: DRINKWATER, John; ELTON, Hugh (Org.). Fifth-Century Gaul: a Crisis of Identity? Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 158; WOOD, Ian N. Continuity or Calamity? The Constraints of Literary Models. In: DRINKWATER, John; ELTON, Hugh (Org.). Fifth-Century Gaul: a Crisis of Identity? Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 9-18; HARRIES, Jill. Sidonius Apollinaris and the Fall of Rome, A.D. 407-485. Oxford: Oxford University Press, 1994, p. 10 e 131; PERCIVAL, John. Desperately Seeking Sidonius: the Realities of Life in Fifth-Century Gaul. Latomus, v. 56, p. 279-292, 1997. Mais recentemente, todavia, alguns autores têm argumentado que as descrições do burgus de Pôncio Leôncio e da uilla de Sidônio são verossímeis, mesmo que parciais. Ambas as descrições têm uma série de correspondências nos vestígios arqueológicos das uillae do sudoeste da Gália e Sidônio apresenta diferenças significativas para com seu principal modelo literário, Plínio. Cf. BALMELLE, Catherine. Les demeures aristocratiques d’Aquitaine: société et culture de l’Antiquité tardive dans le Sud-Ouest de la Gaule, op. cit., p. 144-145; DARK, Ken. The Archaeological Implications of Fourth- and Fifth-Century Descriptions of Villas in the Northwest Provinces of the Roman Empire. Historia, v. 54, p. 331-342, 2005; VISSER, Jelle. Sidonius Apollinaris, Ep. II.2: the Man and His Villa. Journal for Late Antique Religion and Culture, v. 8, p. 26-45, 2014.

Os vestígios arqueológicos sugerem que pátios semelhantes ao do burgus de Pôncio Leôncio eram muito apreciados no sudoeste da Gália. Em Montmaurin, por exemplo, uma das uillae mais ricas da região, o pátio de entrada tinha uma galeria em forma de “C” com 62 m de diâmetro. O tipo mais comum, porém, era retangular. Desses pátios, o visitante podia ir diretamente ao peristilo central, mas, na maioria das uillae, ele antes passava por um ou mais vestíbulos.

Os poucos vestígios encontrados até o momento sugerem que os pátios eram luxuosamente decorados, com o objetivo de impressionar o visitante logo na entrada da uilla. No caso, especificamente, de retratos de antepassados e membros da família e de retratos de imperadores - como os encontrados em Castelculier, Chiragan, Montmaurin e Montreal-Séviac, todos de altíssima qualidade -, bem como de pinturas parietais semelhantes às do burgus de Pôncio Leôncio, os objetivos eram ostentar não só a riqueza do proprietário, mas também a antiguidade de sua família e a lealdade e os vínculos desta ao Império.

Os vestíbulos podiam ter uma ou, mais frequentemente, um conjunto de peças interligadas. Os principais vestígios da decoração dessas peças encontrados são mosaicos policromados. Na maioria dos casos, os mosaicos eram os mais caros e sofisticados de toda a casa. O tipo mais comum apresenta vinhas que saem de folhagens ou crateras (jarros que os gregos usavam para misturar e servir o vinho). Eram muito comuns também mosaicos com composições vegetais. Na uilla de Nérac, por exemplo, o mosaico de um vestíbulo circular apresenta, no registro central, elementos geométricos e vinhas que saem de crateras e folhagens. Na faixa intermediária, há uma guirlanda composta de diversas espécies de flores, frutas, legumes e cachos de uva. Na faixa mais externa, enfim, há ramos de acanto amarrados de forma circular. A soleira também apresenta um mosaico decorado com cestas cheias de frutas, na parte inferior, e uma concha com ramos de flor-de-lis, na parte superior. No vestíbulo anterior, ainda, havia um mosaico com pórticos entre os quais figuram árvores frutíferas e cestas de frutas.

Os peristilos centrais e secundários também recebiam grande atenção do proprietário. No peristilo das termas de Montmaurin, por exemplo, o revestimento do chão e das paredes, as colunas e os capitéis eram de mármore. Todavia, mosaicos com motivos geométricos eram mais comuns.

As salas de recepção podiam variar em número, formato e tamanho. As uillae mais ricas podiam ter quatro ou mesmo cinco salas. A maioria era retangular ou absidal, mas algumas eram triconcas, tetraconcas, octogonais ou até mesmo cruciformes. As salas retangulares podiam chegar a 160 m2 e as absidais, a 330 m2. Esses espaços eram usados como salas de refeição de inverno, salas de refeição de verão, bibliotecas e, os mais amplos, como salas de representação.

As salas com abside eram, em geral, as mais suntuosas, mas, em muitas uillae, as retangulares também eram ricamente decoradas. Em Chiragan, por exemplo, havia uma sala de 9 m × 9 m com as paredes e o pavimento em opus sectile. Na maioria dos casos, todavia, o chão era revestido de mosaicos policromados. Um belo mosaico, descoberto na uilla de Palat, sugere uma sala de comer de verão. O mosaico apresenta cinco tapetes com diversos motivos decorativos. Supõe-se que o leito de comer ficasse a oeste, sobre dois tapetes simétricos com motivos geométricos e naturalistas, de modo que os convidados ficavam voltados para o peristilo e a fonte, a leste, e podiam observar do ponto de vista correto as cenas de caça que aparecem em quadrados no tapete ao sul. As cenas de caça desse mosaico são as únicas que conhecemos em toda a região.

As termas eram dedicadas não apenas à prática de esportes e ao descanso; elas compunham também espaços de socialização. Os proprietários de uillae, portanto, constantemente as reformavam. Elas podiam estar localizadas em uma ala do peristilo principal ou de um peristilo secundário ou, então, isoladas da casa. Algumas uillae, como o burgus de Pôncio Leôncio, tinham termas de inverno e termas de verão.24 24 APOLINÁRIO, Sidônio. Carmen 22.128, 180 e 184. Diversos planos eram possíveis. O percurso do banho iniciava-se no caldarium, passava para o tepidarium e terminava no frigidarium. Sendo a última etapa, o frigidarium era concebido como um espaço onde se podia conversar, relaxar e admirar a construção. Por isso as suas amplas dimensões: em Séviac, só o frigidarium chegava a 185 m2. Em algumas uillae, havia ainda uma piscina separada do frigidarium. Sidônio conta que, em sua uilla, arcadas com colunas de pórfiro separavam as termas de uma piscina a céu aberto. Os seis canos que traziam a água de uma fonte na montanha, segundo ele, terminavam em cabeças de leão esculpidas com grande realismo.25 25 APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 2.2.8. Em Loupiac, a piscina era cercada por três galerias porticadas, cujos pavimentos eram em mosaicos divididos em cinco tapetes de inspiração geométrica.

Mosaicos comuns nas termas, especialmente no frigidarium, eram os que representavam peixes e animais marinhos. Em Montcaret, por exemplo, vemos diferentes espécies de peixes, polvos e crustáceos organizados em quadrados delineados por cordas trançadas. A peça mais original descoberta na região é uma piscina que fazia parte do frigidarium de Saint-Rustice. Ela tem 13 m de comprimento por 2,78 m de largura e sete absides. O mosaico apresentava, ao centro do corredor, a cabeça de Oceano e, nos espaços ao redor, personagens mitológicos, identificados por inscrições em grego. Alguns animais aquáticos também são representados.

O percurso pelo qual amigos e clientes eram conduzidos nas uillae do sudoeste da Gália, portanto, era inteiramente concebido para impressionar e agradar. Grande atenção era dada aos pátios, aos vestíbulos, aos peristilos, às salas de recepção e às termas. A arquitetura e a decoração desses espaços apresentavam claramente os três aspectos da mística da riqueza, tal como Brown a define: o esplendor, a abundância da natureza e o cuidado do corpo. Mas existem algumas peculiaridades na região: o mármore era empregado mais abundantemente nas uillae próximas aos Pirineus, onde havia jazidas da rocha. Nas restantes, predominavam mosaicos, nos quais abundavam representações de árvores frutíferas, cestas repletas de frutas, vinhas, legumes, flores e cornucópias. Cenas de caça, cenas mitológicas e representações de figuras humanas, porém, eram raras.

Até agora falamos da mística da riqueza na arquitetura e na decoração das uillae, mas não podemos esquecer-nos de que não era apenas pela arte de suas casas que os ricos ostentavam sua fortuna. Mesmo fora de casa, eles valiam-se de alguns sinais para mostrar quem eles eram. Por intermédio do seu séquito de clientes e escravos, dos tecidos finos e coloridos de suas roupas, da quantidade e do brilho de suas joias, do andar e dos movimentos solenes, eles saíam do anonimato das pessoas comuns.26 26 Cf. BROWN, Peter. Through the Eye of a Needle: Wealth, the Fall of Rome, and the Making of Christianity in the West, 350-550 A.D., op. cit., p. 27-30.

As fontes literárias

O caso mais antigo que conhecemos de um aristocrata que se retirou como monge em sua uilla no sudoeste da Gália é o de Sulpício Severo, amigo íntimo de Paulino. Sulpício converteu-se ao monasticismo em 394 e, nos anos seguintes, abandonou sua carreira e suas propriedades.27 27 A Epistula 1 de Paulino, datada do início de 395 por FABRE, Pierre. Essai sur la chronologie de l’œuvre de saint Paulin de Nole. Paris: E. de Boccard, 1948, p. 22, foi escrita pouco após a conversão de Sulpício. Sobre a conversão de Sulpício, cf. FONTAINE, Jacques (Ed.). Vie de saint Martin. Paris: Les Éditions du Cerf, 1967, v. 1, p. 19-25; GHIZZONI, Flaminio. Sulpicio Severo. Roma: Bulzoni, 1983, p. 58-62; STANCLIFFE, Clare. St. Martin and His Hagiographer: History and Miracle in Sulpicius Severus. Oxford: Clarendon Press, 1983, p. 15-19 e 30-31. Ele manteve uma única uilla, chamada Primuliacum, da qual conservou o usufruto e transferiu a posse à Igreja.28 28 PAULINO. Epistula 24.1-4. Não há consenso sobre a localização de Primuliacum. FONTAINE (Ed.). Vie, v. 1, p. 32-40, aponta que na Epistula 1.11, Paulino diz ter recebido uma carta de Sulpício em Barcelona oito dias após o mensageiro ter deixado Eluso. O mensageiro, para tanto, teria percorrido a estrada que passava por Narbonne e cruzava os Pirineus. Na Epistula 5.22, Paulino pede a Sulpício que lhe envie o estoque de vinho que ainda possuía em Narbonne, de modo que Primuliacum devia situar-se próximo à cidade. Se Primuliacum estava entre Barcelona e Marselha, como supõe Fontaine, então a uilla situava-se entre a Gallia Narbonensis e a Aquitania. O estudioso conclui: “Primuliacum se situerait […] dans la région toulousaine, et peut-être sur la route, de Toulouse à Alzonne”, mais provavelmente em Montferrand. STANCLIFFE, Clare. St. Martin and His Hagiographer: History and Miracle in Sulpicius Severus, op. cit., p. 30-31, não concorda com Fontaine. Segundo ela, “We should not build too much on the Eluso of Paulinus, Ep. 1.11, because at this early date (394-5) Sulpicius was not necessarily settled at Primuliacum”, e “Primuliacum cannot have been actually within the ciuitas/diocese of Toulouse […] because Sulpicius’ bishop was called Gavidius […], whereas the bishop of Toulouse in 405 was Exsuperius, his predecessor Silvius”. Stancliffe sugere, a partir da Epistula 28.3 de Paulino, “that the province of Narbonensis lay between Primuliacum and Nola as the roads ran” e “that Primuliacum probably did not lie actually within the province of Narbonensis; for Victor returned ‘de Narbonensi […] ad te’ (i.e. Sulpicius), before setting off anew for Nola”. A autora, então, sugere que Primuliacum situava-se, mais provavelmente, na “area west of the Toulouse ciuitas”. Mais recentemente, RIESS, Frank. Narbonne and its Territory in Late Antiquity: from the Visigoths to the Arabs. Londres: Ashgate, 2013, p. 67-68, advogou a favor de Montferrand, pois “recent archaeological findings now suggest two early (fourth-fifth century) basilicas side by side that could correspond to the description of Primuliacum as mentioned by Paulinus in Ep 32, 1”. Para uma síntese das descobertas arqueológicas, cf. PASSELAC, Michel; MEREL-BRANDENBURG, Anne-Bénédicte. Montferrant. In: OURNAC, Perrine; PASSELAC, Michel; RANCOULE, Guy (Org.). Carte archéologique de la Gaule: l’Aude. Paris: Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 2009, v. 11/2, p. 377-385. Passelac e Merel-Brandenburg, contudo, não acreditam que Montferrant tenha abrigado Primuliacum, pois Elusio, em sua opinião, não pode ser confundido com Primuliacum. Nessa uilla, ele fundou um monastério e passou a viver na companhia de sua sogra, de ex-escravos, que também se converteram, de amigos e de monges provenientes de Tours.

Os estudiosos costumam considerar o regime dos monges de Primuliacum como uma espécie de ócio aristocrático.29 29 Cf., por exemplo, FONTAINE (Ed.). Vie, v. 1, p. 40-46. Primuliacum, de fato, era uma uilla que havia sido luxuosamente decorada,30 30 SEVERO, Sulpício. Dialogi 3.3.5. onde aristocratas e monges podiam conversar a respeito do monasticismo e de Martinho de Tours.31 31 É essa a impressão que Sulpício dá em sua carta a Aurélio (Epistula 2) e, especialmente, em seus Dialogi. Além disso, Sulpício dispunha de escribas encarregados de transcrever suas obras literárias32 32 SEVERO, Sulpício. Epistula 3.2. e a presença de escravos (pueri familiares) é atestada em alguns de seus escritos.33 33 SEVERO, Sulpício. Epistula 2; Dialogi 2.14.5 e 3.3.5. Sulpício, porém, construiu uma segunda basílica ao lado de outra mais antiga e um batistério que as interligava. A nova basílica, ele a decorou com poemas seus e de Paulino e o batistério, com representações pictóricas de Martinho e de seu amigo.34 34 PAULINO. Epistulae 30.2 e 32. Paulino diz que Sulpício também acolhia peregrinos e indigentes em sua uilla,35 35 PAULINO. Epistula 24.3. o que indica que ele havia construído espaços adequados para tanto. A respeito de seu regime, sabemos que ele alojava-se em uma pequena cela e dormia sobre palha estendida no chão,36 36 SEVERO, Sulpício. Epistula 2.1; Dialogi 2.8.6. vestia roupas simples e tinha os cabelos mal cortados,37 37 PAULINO. Epistula 22.2. comia frugalmente38 38 PAULINO. Epistula 23.6-7. e frequentava o culto diário.39 39 STANCLIFFE, Clare. St. Martin and His Hagiographer: History and Miracle in Sulpicius Severus, op. cit., p. 36. Tudo somado, o monasticismo de Sulpício era muito parecido com o de Paulino,40 40 Concordo, portanto, com STANCLIFFE, Clare. St. Martin and His Hagiographer: History and Miracle in Sulpicius Severus, op. cit., p. 30-38; ALCIATI, Roberto. And the Villa Became a Monastery: Sulpicius Severus’ Community of Primuliacum. In: DEY, Hendrik; FENTRESS, Elizabeth (Org.). Western Monasticism ante litteram: the Spaces of Monastic Observance in Late Antiquity and the Early Middle Ages. Turnhout: Brepols, 2011, p. 85-98. de modo que Sulpício também abandonou a mística da riqueza. Após sua conversão, ele passou a investir no esplendor de construções pias, não mais na parte residencial de sua uilla, a ter a companhia de monges e pobres e a viver de acordo com um regime que era oposto ao modo como os ricos ostentavam suas riquezas.

Os outros aristocratas do sudoeste da Gália que, como sabemos, converteram suas uillae em monastérios entre os séculos IV e V são pelo menos duas gerações mais novos do que Sulpício. Em 470 ou 471, Sidônio Apolinário enalteceu o regime do senador Vécio, que havia decidido tornar-se monge em sua propriedade próxima a Cantillia (Chantelle-la-Vieille, departamento de Allier).41 41 APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.13.3. O caso de Vécio é discutido por AMHERDT, David. Sidoine Apollinaire, le quatrième livre de la correspondance: introduction et commentaire. Bern: Peter Lang, 2001, p. 251-367 (referentes à Epistula 4.9) e 323-337 (referentes à Epistula 4.13); e FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário. Classica: Revista Brasileira de Estudos Clássicos, v. 28, p. 50-51, 2015. Disponível em: <revista.classica.org.br>. Acesso em: 10 jun. 2017. De acordo com Sidônio, Vécio apresentava-se como um “monge não sob o pálio, mas sob o manto dos generais”.42 42 APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.9.3: “[…] nouoque genere uiuendi monachum complet non sub palliolo sed sub paludamento […]”. Tradução: FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário, op. cit., p. 50. O seu maior atributo teria sido conseguir difundir um perfeito recato por toda a sua uilla, de modo que os escravos eram diligentes, a mesa era farta e a bondade era ubíqua.

Aos olhos de Sidônio, Vécio apresentava ainda outros atributos, pois ele:

não fica atrás de ninguém na criação, na apreciação e na condução de cavalos, cães e falcões; ele demonstra suma elegância nas roupas, refinamento nos cintos, esplendor nos ornamentos dos cavalos; seu andar é solene, seu espírito, sério (o primeiro lhe garante confiança pública, o segundo, dignidade privada); sua indulgência não favorece o vício, sua reprimenda não é cruel e sua severidade tem justa medida, pois não é torpe, mas rígida.43 43 APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.9.3: “[…] in equis, canibus, accipitribus instituendis, spectandis, circumferendis nulli secundus; summus nitor in uestibus, cultus in cingulis, splendor in phaleris; pomposus incessus, animus serius (iste publicam fidem, ille priuatam asserit dignitatem); remissio non uitians, correptio non cruentans, et seueritas eius temperamenti, quae non sit taetra sed tetrica”. Tradução: FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário, op. cit., p. 50.

A rotina de Vécio revelaria sua moderação: ele ouvia a leitura de trechos bíblicos durante as refeições, cantava os salmos e, mesmo se dedicando à caça, abstinha-se de carnes. Sidônio acrescenta ainda que ele:

para com seus escravos domésticos, não é ameaçador ao proferir-lhes a palavra, nem desdenhoso ao aceitar um conselho, nem obstinado ao investigar um delito; rege o estado e a condição dos seus subordinados não segundo os direitos de propriedade, mas com discernimento.44 44 APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.9.4: “[…] erga familiam suam nec in proferendo alloquio minax nec in admittendo consilio spernax nec in reatu inuestigando persequax; subiectorum statum condicionemque non dominio sed iudicio regit […]”. Tradução: FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário, op. cit., p. 51.

No caso de Vécio, portanto, estamos muito distantes de Paulino ou Sulpício. Vécio manteve todos os sinais que o caracterizavam como um rico aristocrata: a fartura dos banquetes, a apreciação e a criação de animais, o esplendor das roupas e dos ornamentos dos cavalos, a caça (esporte preferido dos ricos à época) e a solenidade do andar. Seu monasticismo consistia em manter a castidade (ele tornou-se monge após a morte da esposa), em ouvir as Escrituras enquanto comia, em cantar os salmos, em abster-se de carnes e em tratar os escravos com ponderação.

Sidônio não diz nada a respeito da uilla de Vécio, a não ser que nela reinava a pudicícia e que seu amigo não a possuía, mas a administrava. O silêncio de Sidônio, porém, é revelador. Ele fala do novo regime de Vécio para dá-lo como exemplo aos seus leitores e, assim, não teria perdido a oportunidade de mencionar obras pias deste em sua uilla. É bem provável que sua propriedade já contasse com uma igreja, a qual Vécio e seus clientes frequentavam, mas ele não sentiu a necessidade de dedicar sua fortuna a um santo ou a Deus. O fato de agir não como o proprietário, mas como o administrador de sua uilla, pode ser um indício de que, para ele, o desapego mental dos próprios bens era suficiente. A julgar por todas as notícias que temos, Vécio não abandonou a mística da riqueza. Ele continuou a mostrar-se e a comportar-se como um rico senador, a receber seus amigos e clientes com banquetes suntuosos e a manter todo o esplendor de sua uilla. Aos olhos de Sidônio, o que era admirável em Vécio era justamente a moderação do seu regime monástico e da sua renúncia aos bens materiais. Tal moderação teria permitido que seu status social e sua riqueza conferissem dignidade ao seu regime e, ao mesmo tempo, que esse conferisse santidade ao seu status social e à sua riqueza.

O ex-oficial da corte imperial Máximo, contemporâneo de Vécio, foi outro aristocrata que passou a viver como monge em sua uilla.45 45 Sobre Máximo, cf. AMHERDT. Sidoine, p. 483-503; FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário, op. cit., p. 49-50. Quando Sidônio, entre 465 e 467, chegou à uilla de Máximo, que distava algumas milhas da estrada que ligava Clermont a Toulouse, encontrou-o mudado:

Seu hábito, seu caminhar, seu recato, sua aparência, sua linguagem eram os de um religioso; seus cabelos eram curtos, sua barba era longa, as cadeiras eram trípodes, os véus pendurados às portas eram de cilício; o leito não tinha nenhuma pluma, nem a mesa nenhuma púrpura; sua hospitalidade era tão benigna quanto frugal, menos abundante em carnes do que em legumes. Certamente, se um prato era mais saboroso, não era por indulgência para si, mas para os hóspedes.46 46 APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.24.3: “Habitus uiro, gradus, pudor, color, sermo religiosus, tum coma breuis, barba prolixa, tripodes sellae, Cilicum uela foribus appensa, lectus nil habens plumae, mensa nil purpurae, humanitas ipsa sic benigna quod frugi, nec ita carnibus abundans ut leguminibus; certe, si quid in cibis unctius, non sibi sed hospitibus indulgens”. Tradução: FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário, op. cit., p. 50.

Após o banquete, Sidônio perguntou aos demais convivas se Máximo havia se tornado monge, clérigo ou penitente. Disseram-lhe, então, que ele havia sido ordenado padre por pressão da comunidade.47 47 APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.24.4. Foi só no dia seguinte que Sidônio conversou com Máximo, enquanto seus clientes e escravos alimentavam os animais.

Máximo parece ter sido um caso entre Paulino e Vécio. Máximo adotou a aparência, a linguagem e os movimentos de um monge e retirou o esplendor dos objetos móveis de sua uilla: substituiu os véus pendurados às portas, os móveis e os tecidos à mesa. Podemos supor que ele retirou também os retratos, as estatuetas importadas e as cerâmicas finas, tão comuns nas uillae da época. Mas, ao mesmo tempo, ele não dedicou sua fortuna a um santo ou a Deus. Tanto é que Sidônio foi visitá-lo em sua uilla para pedir-lhe a prorrogação do pagamento de uma dívida contraída por um amigo comum dez anos antes.48 48 APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.24.1-2 e 4-5. Além disso, Máximo continuou a viver com seus clientes e escravos e a oferecer banquetes a seus amigos. No seu caso, portanto, não é o monasticismo que confere santidade ao seu status social e à sua riqueza. São seu status aristocrático e sua riqueza, gasta parcimoniosamente, sem ir além dos sacrifícios autoimpostos, que intensificam a santidade do seu monasticismo.49 49 A relação entre status aristocrático e santidade foi ressaltada na Gália desde Sulpício. Acerca dessa questão, cf. GOODRICH, Richard J. Contextualizing Cassian: Aristocrats, Asceticism, and Reformation in Fifth-Century Gaul. Oxford; Nova York: Oxford University Press, 2007, p. 8-31.

As fontes arqueológicas

As fontes arqueológicas acrescentam pouco ao que as fontes literárias revelam. Isso porque os arqueólogos não conseguem identificar o momento em que os proprietários de uillae que foram transformadas em monastérios converteram-se ao monasticismo.50 50 Para uma avaliação do material arqueológico, embora já um pouco desatualizada, cf. PERCIVAL, John. Villas and Monasteries in Late Roman Gaul. Journal of Ecclesiastical History, v. 48, p. 1-21, 1997. Refiro-me aqui apenas às uillae que foram transformadas em monastérios sem terem sido abandonadas ou destruídas. Um dos casos mais intrigantes é sem dúvida o de Sorde-l’Abbaye.

No século XIX, vestígios de mosaicos de época romana foram descobertos sob a abadia medieval de Saint-Jean. Mas foi só anos mais tarde, entre 1958 e 1963, que escavações arqueológicas puderam ser realizadas no local.51 51 Sob a direção de Jean Lauffray. Sínteses das descobertas foram publicadas por COUPRY, Jacques. Circonscription de Bordeaux. Gallia, v. 17, p. 405-407, 1959; v. 19, p. 393-396, 1961; v. 21, p. 532-535, 1963; v. 23, p. 436-441, 1965. Àquela ocasião, foram descobertas duas alas de uma uilla romana. Na ala oeste foram encontrados uma galeria do peristilo principal, três amplas salas de recepção retangulares e um corredor, que ligava a galeria a outra parte, praticamente não escavada, da uilla. Já na ala sul foram encontradas as termas. Três salas retangulares e adjacentes delimitavam, de leste a oeste, o caldarium, o tepidarium e o frigidarium. Ambas as alas estavam ligadas por um peristilo secundário.

Esses espaços revelaram nove pavimentos com mosaicos policromados. Catherine Balmelle, a partir de um estudo minucioso da técnica e da decoração dos mosaicos, distingue dois grupos contemporâneos. Segundo ela, o primeiro grupo, constituído pelos mosaicos situados no extremo oeste do sítio, no corredor, na galeria e em uma das salas de recepção (nos 172-175 e 177), é do fim do século IV ou do início do século V. O segundo grupo, constituído pelos mosaicos de outra sala de recepção, do peristilo secundário e do frigidarium (nos 176 e 178-180), é do século VI ou talvez do século VII.52 52 BALMELLE, Catherine. Recueil général des mosaïques de la Gaule: Province d’Aquitaine. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1987, v. 4/2, p. 32-54.

Todos os mosaicos encontrados celebram esplendor e abundância. Os mais bem conservados do primeiro grupo são os do corredor e da galeria (nos 174 e 175). No mosaico do corredor (tal mosaico pode ser visualizado em https://www.centrecultureldupaysdorthe.com/le-pays-d-orthe/sorde-l-abbaye/sorde-l-abbaye-3/ - Mosaïque A), quadrados inclinados, separados por tranças, encerram quadrados menores preenchidos com nós de Salomão. Uma fileira de cubos pretos delimita uma moldura ao redor dos quadrados menores e maiores e, entre ambas as molduras, alternam-se ramos de hera com folhas amarelas e vermelhas sobre um fundo branco ou dourado e, dispostas de três em três, folhas de louro nas mesmas cores sobre um fundo preto.

O mosaico da galeria é ainda mais complexo (tal mosaico pode ser visualizado em https://www.centrecultureldupaysdorthe.com/le-pays-d-orthe/sorde-l-abbaye/sorde-l-abbaye-3/ - Mosaïque Galerie B). O padrão é composto por estrelas constituídas por dois quadrados entrelaçados que formam, entre elas, losangos e octógonos. Os losangos são preenchidos por um único motivo decorativo (ornamentos em forma de “V” alinhados, conhecidos como “aspas)” mas os octógonos são preenchidos por motivos variados, que se alternam. Destaco os motivos que representam (1) uma pomba pousada em um arbusto carregado de frutas, (2) um pato em um campo com três ovos, dois arbustos e uma romã (3) e uma cesta de vime cheia de frutas sob dois pavões que bicam cerejas. No interior das estrelas, os quadrados circunscrevem octógonos que também são preenchidos por diferentes motivos decorativos. Chamo a atenção para os que apresentam (1) duas crateras com o corpo em gomos e alças em “S” que se alternam com duas cestas de vime cheias de frutas (2) e uma cratera com quatro alças em “S” e um pé alto, da qual saem filetes de água que escorrem até a boca de dois peixes situados embaixo, um a cada lado do vaso (tal mosaico pode ser visualizado em https://www.centrecultureldupaysdorthe.com/le-pays-d-orthe/sorde-l-abbaye/sorde-l-abbaye-3/ - Mosaïque B’).

A qualidade técnica e a variedade decorativa desses mosaicos contrastam com a mediocridade dos mosaicos do segundo grupo.53 53 Idem. No tapete da galeria norte do peristilo secundário (tal mosaico pode ser visualizado em https://www.centrecultureldupaysdorthe.com/le-pays-d-orthe/sorde-l-abbaye/sorde-l-abbaye-3/ - Mosaïque F), por exemplo, hexágonos, quadrados e retângulos alinhados um ao lado do outro são preenchidos com escamas de peixe, círculos e losangos de lados curvos, nós de Salomão, losangos e quadrados. Os mosaicos do segundo grupo revelam, assim como o desse exemplo, motivos decorativos muito esquemáticos, traçados irregulares e mistura de cores.

A baixa qualidade desses mosaicos, porém, não indica que o proprietário não se preocupou com a beleza ou que ele quis economizar pagando uma oficina pouco qualificada. A simples colocação de novos mosaicos requeria investimentos consideráveis. Na verdade, os mosaicos do segundo grupo, além de serem policromados, resultam de reformas muito caras, que almejavam a manutenção ou mesmo o melhoramento de uma ampla parte da uilla. Talvez o peristilo secundário date da mesma época, e o luxo com o qual ele foi construído aparece não só nos mosaicos policromados, mas também na colunata com capitéis coríntios.54 54 Sugerida por fragmentos de mármore. Infelizmente, as publicações das descobertas arqueológicas (cf. nota 50 acima) são apenas de síntese e não dão informações sobre esses fragmentos e sobre os níveis estratigráficos em que eles foram encontrados. Os mosaicos do segundo grupo não são de melhor qualidade porque, muito provavelmente, as oficinas do século VI-VII não eram tão qualificadas quanto as dos séculos anteriores. Mas o proprietário da uilla continuou a exibir sua fortuna, no século VI-VII, com todo o esplendor que tinha à disposição e que podia pagar.

Contudo, o que mais chama a atenção em Sorde-l’Abbaye não é tanto o luxo quanto a data das reformas. A ausência de sinais de abandono ou destruição e os mosaicos do segundo grupo sugerem que a uilla foi ocupada como residência e de modo ininterrupto até, pelo menos, o século VI-VII. Até onde pude perceber, não há qualquer outro caso seguro na Gália de ocupação residencial continuada de uma uilla até uma data tão tardia. A única maneira de explicar a ocupação de Sorde-l’Abbaye, em minha opinião, é considerar que ela foi transformada em monastério antes do século VI-VII, momento em que os últimos vestígios de uso residencial começaram a desaparecer nas uillae até então ocupadas.55 55 BALMELLE, Catherine. Les demeures aristocratiques d’Aquitaine: société et culture de l’Antiquité tardive dans le Sud-Ouest de la Gaule, op. cit., p. 117-123. A autora destaca a ocupação residencial de Sorde-l’Abbaye até pelo menos o século VI-VII da ocupação das outras uillae conhecidas da Aquitânia, que foram transformadas em espaços funerários ou receberam “l’implantation, à l’intérieur des bâtiments antiques, de diverses structures qui modifient la fonction originelle des espaces” (p. 120). Se essa hipótese estiver correta, podemos imaginar a seguinte situação: o proprietário converteu-se ao monasticismo e reuniu em sua uilla parentes e amigos com os mesmos interesses religiosos. Tais parentes e amigos, mesmo depois da morte do proprietário, continuaram a viver no local e a reunir outras pessoas.

Se a uilla foi de fato transformada em monastério no decorrer dos séculos IV e VI, fica claro que os proprietários e seus companheiros não abandonaram a mística da riqueza. Eles não sentiram a necessidade de dedicar o esplendor da arte a um santo, como Paulino havia feito. Mesmo como monges, eles continuaram a cuidar de seus corpos, como a reforma das termas sugere, e a desfrutar do esplendor da arte. Nesse caso, teríamos um regime muito semelhante ao adotado por Vécio.

Considerações finais

As fontes literárias e arqueológicas discutidas aqui sugerem que nem todos os monges aristocratas dos séculos IV e V abandonaram a mística da riqueza. Entre Paulino de Nola e Sulpício Severo, que a abandonaram, e Vécio, que não a abandonou, estava Máximo, que adotou o feitio de um monge e retirou o esplendor dos objetos móveis de sua uilla, mas que não dedicou sua fortuna a um santo ou a Deus. Paulino e Sulpício, na verdade, não eram um dos polos, mas situavam-se na mesma área cinza em que se situava Máximo, embora em gradações diferentes. No polo oposto a Vécio estavam os aristocratas que abandonaram seus bens e instalaram-se em monastérios que não se situavam em suas propriedades.56 56 Podemos dar como exemplo Honorato, Hilário, Máximo e Lupo, que, de acordo com seus hagiógrafos, abandonaram todos os seus bens antes de instalar-se na ilha de Lérins, no sul da Gália, a pouca distância da atual Cannes. Todavia, a Regula quattuor Patrum 2.18-35, escrita entre 414 e 419 para a reunião dos monges da ilha em um monastério, sob a autoridade de Honorato, permitia que os postulantes ricos doassem parte de seus bens ao monastério e mantivessem consigo os próprios escravos, contanto que começassem a considerá-los irmãos. Sobre a Regula quattuor Patrum, cf. FIGUINHA, Matheus Coutinho. A data da Regra dos quatro Padres e o início do monastério de Lérins. Romanitas: Revista de Estudos Grecolatinos, v. 5, p. 168-185, 2015. Disponível em: <periodicos.ufes.br/romanitas/article/view/11214/7817>. Acesso em: 10 jun. 2017.

A respeito das uillae desses personagens, podemos tirar algumas conclusões. Em primeiro lugar, as uillae de Paulino e Sulpício tiveram funções alteradas: elas deixaram de ser a habitação de um dominus para tornarem-se a habitação de vários monges. Além disso, elas passaram a acolher peregrinos e pobres, de modo que precisavam de espaços específicos para tanto. Outras funções, contudo, devem ter permanecido inalteradas. Sulpício, por exemplo, continuou a produzir vinho em Primuliacum,57 57 PAULINO. Epistula 43.2. embora não saibamos se tal produção era para o consumo próprio ou para o comércio. No caso das uillae de Máximo e Vécio e, talvez, de Sorde-l’Abbaye, não conseguimos identificar qualquer alteração significativa nas suas funções.

Em segundo lugar, os proprietários não rejeitaram a decoração luxuosa que haviam comissionado antes de sua conversão. No caso de Paulino e Sulpício, eles simplesmente deixaram de renová-la e passaram a investir na construção e decoração de edifícios sacros. O que Paulino, Sulpício e Máximo rejeitaram foi o luxo dos objetos móveis de suas uillae. Já no caso de Vécio e, talvez, do proprietário de Sorde-l’Abbaye, podemos supor que não ocorreu nem mesmo essa rejeição.

Sulpício, apesar de continuar a habitar uma de suas uillae, alienou a maior parte de sua riqueza e dedicou o que lhe restou a obras pias. Ele e Paulino tinham certamente a mesma intenção (pois ambos eram amigos íntimos): eles esperavam que suas riquezas, empregadas em obras de caridade, retornassem a Deus e garantissem sua salvação. Já nos casos de Vécio e Máximo, havia uma clara relação entre monasticismo, status social e riqueza. Mesmo como monge, Vécio continuou a comportar-se e a mostrar-se como um rico aristocrata. Ele não sentiu a necessidade de abandonar seus bens ou de dedicá-los a obras pias. Assim, aos olhos de Sidônio Apolinário, a moderação de seu regime monástico, ao mesmo tempo que conferia santidade ao seu status social e à sua riqueza, era enobrecido por ambos. Máximo, diferentemente, passou a mostrar-se e a comportar-se como monge depois que foi ordenado padre em sua comunidade. E mesmo não tendo sentido a necessidade de renunciar aos seus bens ou de dedicá-los a obras pias, deixou de ostentá-los. Para Sidônio, portanto, seu regime monástico não santificava seu status social e sua riqueza, mas ambos intensificavam a santidade de seu regime monástico.

Esses exemplos indicam que os monges aristocratas dos séculos IV e V conciliavam sua conversão ao monasticismo com suas riquezas de modo muito individual. Nem todos sentiam a necessidade de rejeitar os sinais que os identificavam como homens ricos, de renunciar aos seus bens ou de dedicá-los a um santo ou a Deus. E as diferenças de comportamento não impediam que todos fossem igualmente considerados monges e admirados pelos contemporâneos. Pelo contrário. Foram Vécio e Máximo, não Paulino ou Sulpício, quem Sidônio apresentou como modelos ideais de comportamento aos aristocratas de sua época.

É importante ressaltarmos, enfim, que as diferenças entre Paulino e Vécio não foram geracionais. Pois Aper, advogado e ex-governador de província, e sua esposa, Amanda, escreveram a Paulino pouco antes de 399-400 para contar-lhe acerca de sua conversão ao monasticismo. Podemos facilmente deduzir da reposta de Paulino que eles não renunciaram aos seus bens. Ambos continuaram a habitar a própria casa e Amanda assumiu a administração das propriedades familiares para liberar o marido do fardo58 58 PAULINO. Epistulae 38, 39 e 44. Cf. PIETRI, Luce; HEIJMANS, Marc. Prosopographie chrétienne du Bas-Empire: la Gaule chrétienne (314-614), v. 1, p. 114-115, sobre Amanda, e p. 156-157, sobre Aper.

Referências bibliográficas - Documentos

  • AGOSTINHO. Epistulae GOLDBACHER, Alois (Ed.). S. Aureli Augustini Hipponiensis episcopi Epistulae, pars II (Corpus scriptorum ecclesiasticorum Latinorum 34/2). Viena: F. Tempsky, 1898.
  • AMBRÓSIO. Epistulae FALLER, Otto (Ed.). Epistulae et acta, epistularum libri I-VI (Corpus scriptorum ecclesiasticorum Latinorum 82/1). Viena: F. Tempsky , 1968.
  • APOLINÁRIO, Sidônio. Carmina LOYEN, André (Ed.). Poèmes Paris: Les Belles Lettres, 2003.
  • Bíblia Bíblia Sagrada 48. ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1985.
  • PAULINO. Epistulae HARTEL, Guilelmus de (Ed.). Sancti Pontii Meropii Paulini Nolani Epistulae (Corpus scriptorum ecclesiasticorum Latinorum 29). Viena: F. Tempsky, 1894.
  • PAULINO. Carmina HARTEL, Guilelmus de (Ed.). Sancti Pontii Meropii Paulini Nolani Carmina (Corpus scriptorum ecclesiasticorum Latinorum 30). Viena: F. Tempsky , 1894.
  • PAULINO. Regula quattuor Patrum DE VOGÜÉ, Adalbert (Ed.). Les Règles des saints Pères: trois Règles de Lérins au Ve siècle. Paris: Les Éditions du Cerf, 1982, v. 1, p. 55-205. (Sources Chrétiennes, v. 297)
  • PAULINO. Epistulae LOYEN, André (Ed.). Correspondance Paris: Les Belles Lettres, 2003, 2v.
  • SEVERO, Sulpício. Vita Martini FONTAINE, Jacques (Ed.). Vie de saint Martin Paris: Les Éditions du Cerf , 1967, 3v. (Sources Chrétiennes, v. 133-135)
  • SEVERO, Sulpício. Epistulae FONTAINE, Jacques (Ed.). Vie de saint Martin Paris: Les Éditions du Cerf , 1967, 3v. (Sources Chrétiennes, v. 133-135)
  • SEVERO, Sulpício. Dialogi FONTAINE, Jacques; DUPRÉ, Nicole (Ed.). Gallus: Dialogues sur les “vertus” de saint Martin. Paris: Les Éditions du Cerf, 2006. (Sources Chrétiennes, v. 510)
  • URÂNIO. Epistola de obitu S. Paulini ad Pacatum MIGNE, Jacques-Paul (Ed.). Patrologiae cursus completus, series Latina Paris: Garnier, 1847, v. 53, col. 859-866.

Bibliografia

  • ALCIATI, Roberto. And the Villa Became a Monastery: Sulpicius Severus’ Community of Primuliacum. In: DEY, Hendrik; FENTRESS, Elizabeth (Org.). Western Monasticism ante litteram: the Spaces of Monastic Observance in Late Antiquity and the Early Middle Ages. Turnhout: Brepols, 2011, p. 85-98.
  • AMHERDT, David. Sidoine Apollinaire, le quatrième livre de la correspondance: introduction et commentaire. Bern: Peter Lang, 2001.
  • BALMELLE, Catherine. Recueil général des mosaïques de la Gaule: Province d’Aquitaine. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1987, v. 4/2.
  • BALMELLE, Catherine. Les demeures aristocratiques d’Aquitaine: société et culture de l’Antiquité tardive dans le Sud-Ouest de la Gaule. Bordeaux; Paris: Ausonius; Aquitania, 2001.
  • BOWES, Kim. Private Worship, Public Values, and Religious Change in Late Antiquity Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
  • BRANDENBURG, Hugo; PANI, Letizia Ermini (Org.). Cimitile e Paolino di Nola: la tomba di S. Felice e il centro di pellegrinaggio. Trent’anni di ricerche. Atti della giornata tematica dei Seminari di Archeologia Cristiana (École française de Rome - 9 marzo 2000). Cidade do Vaticano: Pontificio Istituto di Archeologia Cristiana, 2003.
  • BROWN, Peter. Through the Eye of a Needle: Wealth, the Fall of Rome, and the Making of Christianity in the West, 350-550 A.D. Princeton; Oxford: Princeton University Press, 2012.
  • BROWN, Peter. The Ransom of the Soul: Afterlife and Wealth in Early Western Christianity. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2015.
  • COUPRY, Jacques. Circonscription de Bordeaux. Gallia, v. 17, p. 377-409, 1959.
  • COUPRY, Jacques. Circonscription de Bordeaux. Gallia, v. 19, p. 369-398, 1961.
  • COUPRY, Jacques. Circonscription de Bordeaux. Gallia, v. 21, p. 505-536, 1963.
  • COUPRY, Jacques. Circonscription de Bordeaux. Gallia, v. 23, p. 413-442, 1965.
  • DARK, Ken. The Archaeological Implications of Fourth- and Fifth-Century Descriptions of Villas in the Northwest Provinces of the Roman Empire. Historia, v. 54, p. 331-342, 2005.
  • EBANISTA, Carlo. Et manet in mediis quasi gemma intersita tectis: la basilica di S. Felice a Cimitile. Storia degli scavi, fasi edilizie, reperti. Nápoles: Accademia di Archeologia, Lettere e Belle Arti, 2003.
  • FABRE, Pierre. Essai sur la chronologie de l’œuvre de saint Paulin de Nole Paris: E. de Boccard, 1948.
  • FIGUINHA, Matheus Coutinho. A data da Regra dos quatro Padres e o início do monastério de Lérins. Romanitas: Revista de Estudos Grecolatinos, v. 5, p. 168-185, 2015. Disponível em: <Disponível em: http://periodicos.ufes.br/romanitas/article/view/11214/7817 >. Acesso em: 10 jun. 2017.
    » http://periodicos.ufes.br/romanitas/article/view/11214/7817
  • FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário. Classica: Revista Brasileira de Estudos Clássicos, v. 28, p. 47-64, 2015. Disponível em: <Disponível em: http://revista.classica.org.br >. Acesso em: 10 jun. 2017.
    » http://revista.classica.org.br
  • GHIZZONI, Flaminio. Sulpicio Severo Roma: Bulzoni, 1983.
  • GOODRICH, Richard J. Contextualizing Cassian: Aristocrats, Asceticism, and Reformation in Fifth-Century Gaul. Oxford; Nova York: Oxford University Press, 2007.
  • HARRIES, Jill. Sidonius Apollinaris and the Fall of Rome, A.D. 407-485 Oxford: Oxford University Press, 1994.
  • LEHMANN, Tomas. Paulinus Nolanus und die Basilica Nova in Cimitile/Nola: Studien zu einem zentralen Denkmal der spätantik-frühchristlichen Architektur. Wiesbaden: Reichert Verlag, 2004.
  • MARTINDALE, John Robert. The Prosopography of the Later Roman Empire, A.D. 395-527 Cambridge: Cambridge University Press, 1980, v. 2.
  • PASSELAC, Michel; MEREL-BRANDENBURG, Anne-Bénédicte. Montferrant. In: OURNAC, Perrine; PASSELAC, Michel; RANCOULE, Guy (Org.). Carte archéologique de la Gaule: l’Aude. Paris: Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 2009, v. 11/2, p. 377-385.
  • PERCIVAL, John. The Roman Villa: an Historical Introduction. Londres: B.T. Batsford, 1976.
  • PERCIVAL, John. The Fifth-Century Villa: New Life or Death Postponed? In: DRINKWATER, John; ELTON, Hugh (Org.). Fifth-Century Gaul: a Crisis of Identity? Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 156-164.
  • PERCIVAL, John. Villas and Monasteries in Late Roman Gaul. Journal of Ecclesiastical History, v. 48, p. 1-21, 1997.
  • PERCIVAL, John. Desperately Seeking Sidonius: the Realities of Life in Fifth-Century Gaul. Latomus, v. 56, p. 279-292, 1997.
  • PIETRI, Luce; HEIJMANS, Marc. Prosopographie chrétienne du Bas-Empire: la Gaule chrétienne (314-614). Paris: Association des amis du Centre d’histoire et civilisation de Byzance, 2013, 2 v.
  • RIESS, Frank. Narbonne and its Territory in Late Antiquity: from the Visigoths to the Arabs. Londres: Ashgate, 2013.
  • STANCLIFFE, Clare. St. Martin and His Hagiographer: History and Miracle in Sulpicius Severus. Oxford: Clarendon Press, 1983.
  • TROUT, Dennis E. Paulinus of Nola: Life, Letters, and Poems. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1999.
  • VISSER, Jelle. Sidonius Apollinaris, Ep II.2: the Man and His Villa. Journal for Late Antique Religion and Culture, v. 8, p. 26-45, 2014.
  • WOOD, Ian N. Continuity or Calamity? The Constraints of Literary Models. In: DRINKWATER, John; ELTON, Hugh (Org.). Fifth-Century Gaul: a Crisis of Identity? Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 9-18.
  • WOOD, Ian N. Entrusting Western Europe to the Church, 400-750. Transactions of the Royal Historical Society, sexta série, v. 23, p. 37-73, 2013.
  • 2
    Para a data e a possibilidade de Paulino ter anunciado publicamente sua conversão, cf. TROUT, Dennis E. Paulinus of Nola: Life, Letters, and Poems. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1999, p. 92.
  • 3
    SEVERO, Sulpício. Vita Martini 25.4: “[…] summis opibus abiectis Christum secutus, solus paene his temporibus euangelica praecepta conplesset […]”. Tradução do autor. Cf. também AMBRÓSIO. Epistula 6.27; AGOSTINHOAGOSTINHO. Epistulae. GOLDBACHER, Alois (Ed.). S. Aureli Augustini Hipponiensis episcopi Epistulae, pars II (Corpus scriptorum ecclesiasticorum Latinorum 34/2). Viena: F. Tempsky, 1898.. Epistulae 26, 27 e 31. Para o sentido da conversão de Paulino nesses textos, cf. TROUT. Paulinus, p. 2-10.
  • 4
    Mt 19.21-24. Tradução: Bíblia sagrada. 48. ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1985, p. 1308.
  • 5
    PAULINO. Epistula 13.19: “[…] qui aeternis caduca praeuerterint quique maluerint terram quam deo credere […]”. Tradução do autor.
  • 6
    PAULINO. Epistula 11.9: “[…] ea per omnipotentis dei opus beato mercimonii genere uertentes non modo nobiscum efferimus, sed ante nos etiam in sinum domini seminata praemittimus”. Tradução do autor. Para mais detalhes acerca do pensamento de Paulino, cf. TROUT. Paulinus, p. 134-145.
  • 7
    PAULINO. Carmen 21.383-386.
  • 8
    Para a história do santuário de São Félix e as descobertas arqueológicas, cf. EBANISTA, Carlo. Et manet in mediis quasi gemma intersita tectis: la basilica di S. Felice a Cimitile. Storia degli scavi, fasi edilizie, reperti. Nápoles: Accademia di Archeologia, Lettere e Belle Arti, 2003; os artigos reunidos por BRANDENBURG, Hugo; PANI, Letizia Ermini (Org.). Cimitile e Paolino di Nola: la tomba di S. Felice e il centro di pellegrinaggio. Trent’anni di ricerche. Atti della giornata tematica dei Seminari di Archeologia Cristiana (École française de Rome — 9 marzo 2000). Cidade do Vaticano: Pontificio Istituto di Archeologia Cristiana, 2003; LEHMANN, Tomas. Paulinus Nolanus und die Basilica Nova in Cimitile/Nola: Studien zu einem zentralen Denkmal der spätantik-frühchristlichen Architektur. Wiesbaden: Reichert Verlag, 2004.
  • 9
    BOWES, Kim. Private Worship, Public Values, and Religious Change in Late Antiquity. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 154.
  • 10
    Na Antiguidade, não existia uma definição precisa para o termo uilla (no plural: uillae). Como indica PERCIVAL, John. The Roman Villa: an Historical Introduction. Londres: B.T. Batsford, 1976, p. 13-15, as fontes literárias referem-se a “um local no campo, normalmente (mas não sempre) associado à agricultura, às vezes com conotações de luxo ou relaxamento, e na maioria dos casos a uma única casa”. Em termos legais, a uilla era concebida simplesmente como “um edifício no campo”. Mas, ao mesmo tempo, nem todos os edifícios no campo eram identificados como uillae. As habitações nativas, por exemplo, não o eram. As fontes literárias sugerem que, “para ser uma uilla, o edifício tinha que ser reconhecidamente romano na aparência, na função ou em ambas”. Na ausência de uma palavra equivalente para uilla em português, manterei o termo latino.
  • 11
    BROWN, Peter. Through the Eye of a Needle: Wealth, the Fall of Rome, and the Making of Christianity in the West, 350-550 A.D. Princeton; Oxford: Princeton University Press, 2012, p. 186 e 219-223. Cf. PAULINO. Epistulae 5.21 e 22.2.
  • 12
    Não pretendo discutir aqui os benefícios espirituais, políticos e econômicos das doações à Igreja para os próprios doadores e a extensão das propriedades fundiárias acumuladas por igrejas e monastérios da Europa ocidental entre os séculos V e IX. Boas introduções a essas questões são os trabalhos de WOOD, Ian N. Entrusting Western Europe to the Church, 400-750. Transactions of the Royal Historical Society, sexta série, v. 23, p. 37-73, 2013; e BROWN, Peter. The Ransom of the Soul: Afterlife and Wealth in Early Western Christianity. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2015, que dá continuidade ao approach de Through the Eye of a Needle.
  • 13
    URÂNIO. Epistola de obitu S. Paulini ad Pacatum 2.
  • 14
    BROWN, Peter. Through the Eye of a Needle: Wealth, the Fall of Rome, and the Making of Christianity in the West, 350-550 A.D, op. cit., p. 192-194.
  • 15
    Ibidem, p. 197-199.
  • 16
    Ibidem, p. 199-201.
  • 17
    Ibidem, p. 193-197.
  • 18
    O restante desta seção deve enormemente a BALMELLE, Catherine. Les demeures aristocratiques d’Aquitaine: société et culture de l’Antiquité tardive dans le Sud-Ouest de la Gaule. Bordeaux; Paris: Ausonius; Aquitania, 2001.
  • 19
    Para uma hipótese do motivo desse desejo, cf. BOWES. Private Worship, Public Values, and Religious Change in Late Antiquity, op. cit., p. 180.
  • 20
    APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 2.2.16-19.
  • 21
    APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 2.2.10-12.
  • 22
    A uilla de Pôncio Leôncio é denominada burgus porque era cercada por muralhas e torres. Cf. BALMELLE, Catherine. Les demeures aristocratiques d’Aquitaine: société et culture de l’Antiquité tardive dans le Sud-Ouest de la Gaule, op. cit., p. 38 e 144-145. Sobre Pôncio Leôncio, cf. MARTINDALE, John Robert. The Prosopography of the Later Roman Empire, A.D. 395-527. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, v. 2, p. 674-675; PIETRI, Luce; HEIJMANS, Marc. Prosopographie chrétienne du Bas-Empire: la Gaule chrétienne (314-614). Paris: Association des amis du Centre d’histoire et civilisation de Byzance, 2013, v. 2, p. 1138-1139.
  • 23
    APOLINÁRIO, Sidônio. Carmen 22.142-168. A confiabilidade de Sidônio acerca das condições sociais e econômicas de sua época tem sido muito questionada, pois, em seus escritos, ele empregou diversas construções literárias e retóricas que teriam distorcido a realidade retratada. Suas descrições das uillae da época, em particular, têm sido consideradas extremamente duvidosas. Cf. PERCIVAL, John. The Fifth-Century Villa: New Life or Death Postponed? In: DRINKWATER, John; ELTON, Hugh (Org.). Fifth-Century Gaul: a Crisis of Identity? Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 158; WOOD, Ian N. Continuity or Calamity? The Constraints of Literary Models. In: DRINKWATER, John; ELTON, Hugh (Org.). Fifth-Century Gaul: a Crisis of Identity? Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 9-18; HARRIES, Jill. Sidonius Apollinaris and the Fall of Rome, A.D. 407-485. Oxford: Oxford University Press, 1994, p. 10 e 131; PERCIVAL, John. Desperately Seeking Sidonius: the Realities of Life in Fifth-Century Gaul. Latomus, v. 56, p. 279-292, 1997. Mais recentemente, todavia, alguns autores têm argumentado que as descrições do burgus de Pôncio Leôncio e da uilla de Sidônio são verossímeis, mesmo que parciais. Ambas as descrições têm uma série de correspondências nos vestígios arqueológicos das uillae do sudoeste da Gália e Sidônio apresenta diferenças significativas para com seu principal modelo literário, Plínio. Cf. BALMELLE, Catherine. Les demeures aristocratiques d’Aquitaine: société et culture de l’Antiquité tardive dans le Sud-Ouest de la Gaule, op. cit., p. 144-145; DARK, Ken. The Archaeological Implications of Fourth- and Fifth-Century Descriptions of Villas in the Northwest Provinces of the Roman Empire. Historia, v. 54, p. 331-342, 2005; VISSER, Jelle. Sidonius Apollinaris, Ep. II.2: the Man and His Villa. Journal for Late Antique Religion and Culture, v. 8, p. 26-45, 2014.
  • 24
    APOLINÁRIO, Sidônio. Carmen 22.128, 180 e 184.
  • 25
    APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 2.2.8.
  • 26
    Cf. BROWN, Peter. Through the Eye of a Needle: Wealth, the Fall of Rome, and the Making of Christianity in the West, 350-550 A.D., op. cit., p. 27-30.
  • 27
    A Epistula 1 de Paulino, datada do início de 395 por FABRE, Pierre. Essai sur la chronologie de l’œuvre de saint Paulin de Nole. Paris: E. de Boccard, 1948, p. 22, foi escrita pouco após a conversão de Sulpício. Sobre a conversão de Sulpício, cf. FONTAINE, Jacques (Ed.). Vie de saint Martin. Paris: Les Éditions du Cerf, 1967, v. 1, p. 19-25; GHIZZONI, Flaminio. Sulpicio Severo. Roma: Bulzoni, 1983, p. 58-62; STANCLIFFE, Clare. St. Martin and His Hagiographer: History and Miracle in Sulpicius Severus. Oxford: Clarendon Press, 1983, p. 15-19 e 30-31.
  • 28
    PAULINO. Epistula 24.1-4. Não há consenso sobre a localização de Primuliacum. FONTAINE (Ed.). Vie, v. 1, p. 32-40, aponta que na Epistula 1.11, Paulino diz ter recebido uma carta de Sulpício em Barcelona oito dias após o mensageiro ter deixado Eluso. O mensageiro, para tanto, teria percorrido a estrada que passava por Narbonne e cruzava os Pirineus. Na Epistula 5.22, Paulino pede a Sulpício que lhe envie o estoque de vinho que ainda possuía em Narbonne, de modo que Primuliacum devia situar-se próximo à cidade. Se Primuliacum estava entre Barcelona e Marselha, como supõe Fontaine, então a uilla situava-se entre a Gallia Narbonensis e a Aquitania. O estudioso conclui: “Primuliacum se situerait […] dans la région toulousaine, et peut-être sur la route, de Toulouse à Alzonne”, mais provavelmente em Montferrand. STANCLIFFE, Clare. St. Martin and His Hagiographer: History and Miracle in Sulpicius Severus, op. cit., p. 30-31, não concorda com Fontaine. Segundo ela, “We should not build too much on the Eluso of Paulinus, Ep. 1.11, because at this early date (394-5) Sulpicius was not necessarily settled at Primuliacum”, e “Primuliacum cannot have been actually within the ciuitas/diocese of Toulouse […] because Sulpicius’ bishop was called Gavidius […], whereas the bishop of Toulouse in 405 was Exsuperius, his predecessor Silvius”. Stancliffe sugere, a partir da Epistula 28.3 de Paulino, “that the province of Narbonensis lay between Primuliacum and Nola as the roads ran” e “that Primuliacum probably did not lie actually within the province of Narbonensis; for Victor returned ‘de Narbonensi […] ad te’ (i.e. Sulpicius), before setting off anew for Nola”. A autora, então, sugere que Primuliacum situava-se, mais provavelmente, na “area west of the Toulouse ciuitas”. Mais recentemente, RIESS, Frank. Narbonne and its Territory in Late Antiquity: from the Visigoths to the Arabs. Londres: Ashgate, 2013, p. 67-68, advogou a favor de Montferrand, pois “recent archaeological findings now suggest two early (fourth-fifth century) basilicas side by side that could correspond to the description of Primuliacum as mentioned by Paulinus in Ep 32, 1”. Para uma síntese das descobertas arqueológicas, cf. PASSELAC, Michel; MEREL-BRANDENBURG, Anne-Bénédicte. Montferrant. In: OURNAC, Perrine; PASSELAC, Michel; RANCOULE, Guy (Org.). Carte archéologique de la Gaule: l’Aude. Paris: Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 2009, v. 11/2, p. 377-385. Passelac e Merel-Brandenburg, contudo, não acreditam que Montferrant tenha abrigado Primuliacum, pois Elusio, em sua opinião, não pode ser confundido com Primuliacum.
  • 29
    Cf., por exemplo, FONTAINE (Ed.). Vie, v. 1, p. 40-46.
  • 30
    SEVERO, Sulpício. Dialogi 3.3.5.
  • 31
    É essa a impressão que Sulpício dá em sua carta a Aurélio (Epistula 2) e, especialmente, em seus Dialogi.
  • 32
    SEVERO, Sulpício. Epistula 3.2.
  • 33
    SEVERO, Sulpício. Epistula 2; Dialogi 2.14.5 e 3.3.5.
  • 34
    PAULINO. Epistulae 30.2 e 32.
  • 35
    PAULINO. Epistula 24.3.
  • 36
    SEVERO, Sulpício. Epistula 2.1; Dialogi 2.8.6.
  • 37
    PAULINO. Epistula 22.2.
  • 38
    PAULINO. Epistula 23.6-7.
  • 39
    STANCLIFFE, Clare. St. Martin and His Hagiographer: History and Miracle in Sulpicius Severus, op. cit., p. 36.
  • 40
    Concordo, portanto, com STANCLIFFE, Clare. St. Martin and His Hagiographer: History and Miracle in Sulpicius Severus, op. cit., p. 30-38; ALCIATI, Roberto. And the Villa Became a Monastery: Sulpicius Severus’ Community of Primuliacum. In: DEY, Hendrik; FENTRESS, Elizabeth (Org.). Western Monasticism ante litteram: the Spaces of Monastic Observance in Late Antiquity and the Early Middle Ages. Turnhout: Brepols, 2011, p. 85-98.
  • 41
    APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.13.3. O caso de Vécio é discutido por AMHERDT, David. Sidoine Apollinaire, le quatrième livre de la correspondance: introduction et commentaire. Bern: Peter Lang, 2001, p. 251-367 (referentes à Epistula 4.9) e 323-337 (referentes à Epistula 4.13); e FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário. Classica: Revista Brasileira de Estudos Clássicos, v. 28, p. 50-51, 2015. Disponível em: <revista.classica.org.br>. Acesso em: 10 jun. 2017.
  • 42
    APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.9.3: “[…] nouoque genere uiuendi monachum complet non sub palliolo sed sub paludamento […]”. Tradução: FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário, op. cit., p. 50.
  • 43
    APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.9.3: “[…] in equis, canibus, accipitribus instituendis, spectandis, circumferendis nulli secundus; summus nitor in uestibus, cultus in cingulis, splendor in phaleris; pomposus incessus, animus serius (iste publicam fidem, ille priuatam asserit dignitatem); remissio non uitians, correptio non cruentans, et seueritas eius temperamenti, quae non sit taetra sed tetrica”. Tradução: FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário, op. cit., p. 50.
  • 44
    APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.9.4: “[…] erga familiam suam nec in proferendo alloquio minax nec in admittendo consilio spernax nec in reatu inuestigando persequax; subiectorum statum condicionemque non dominio sed iudicio regit […]”. Tradução: FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário, op. cit., p. 51.
  • 45
    Sobre Máximo, cf. AMHERDT. Sidoine, p. 483-503; FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário, op. cit., p. 49-50.
  • 46
    APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.24.3: “Habitus uiro, gradus, pudor, color, sermo religiosus, tum coma breuis, barba prolixa, tripodes sellae, Cilicum uela foribus appensa, lectus nil habens plumae, mensa nil purpurae, humanitas ipsa sic benigna quod frugi, nec ita carnibus abundans ut leguminibus; certe, si quid in cibis unctius, non sibi sed hospitibus indulgens”. Tradução: FIGUINHA, Matheus Coutinho. Monges sob o manto de generais: aristocracia imperial galo-romana e monasticismo nas obras de Sidônio Apolinário, op. cit., p. 50.
  • 47
    APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.24.4.
  • 48
    APOLINÁRIO, Sidônio. Epistula 4.24.1-2 e 4-5.
  • 49
    A relação entre status aristocrático e santidade foi ressaltada na Gália desde Sulpício. Acerca dessa questão, cf. GOODRICH, Richard J. Contextualizing Cassian: Aristocrats, Asceticism, and Reformation in Fifth-Century Gaul. Oxford; Nova York: Oxford University Press, 2007, p. 8-31.
  • 50
    Para uma avaliação do material arqueológico, embora já um pouco desatualizada, cf. PERCIVAL, John. Villas and Monasteries in Late Roman Gaul. Journal of Ecclesiastical History, v. 48, p. 1-21, 1997. Refiro-me aqui apenas às uillae que foram transformadas em monastérios sem terem sido abandonadas ou destruídas.
  • 51
    Sob a direção de Jean Lauffray. Sínteses das descobertas foram publicadas por COUPRY, Jacques. Circonscription de Bordeaux. Gallia, v. 17, p. 405-407, 1959; v. 19, p. 393-396, 1961; v. 21, p. 532-535, 1963; v. 23, p. 436-441, 1965.
  • 52
    BALMELLE, Catherine. Recueil général des mosaïques de la Gaule: Province d’Aquitaine. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1987, v. 4/2, p. 32-54.
  • 53
    Idem.
  • 54
    Sugerida por fragmentos de mármore. Infelizmente, as publicações das descobertas arqueológicas (cf. nota 50 acima) são apenas de síntese e não dão informações sobre esses fragmentos e sobre os níveis estratigráficos em que eles foram encontrados.
  • 55
    BALMELLE, Catherine. Les demeures aristocratiques d’Aquitaine: société et culture de l’Antiquité tardive dans le Sud-Ouest de la Gaule, op. cit., p. 117-123. A autora destaca a ocupação residencial de Sorde-l’Abbaye até pelo menos o século VI-VII da ocupação das outras uillae conhecidas da Aquitânia, que foram transformadas em espaços funerários ou receberam “l’implantation, à l’intérieur des bâtiments antiques, de diverses structures qui modifient la fonction originelle des espaces” (p. 120).
  • 56
    Podemos dar como exemplo Honorato, Hilário, Máximo e Lupo, que, de acordo com seus hagiógrafos, abandonaram todos os seus bens antes de instalar-se na ilha de Lérins, no sul da Gália, a pouca distância da atual Cannes. Todavia, a Regula quattuor Patrum 2.18-35, escrita entre 414 e 419 para a reunião dos monges da ilha em um monastério, sob a autoridade de Honorato, permitia que os postulantes ricos doassem parte de seus bens ao monastério e mantivessem consigo os próprios escravos, contanto que começassem a considerá-los irmãos. Sobre a Regula quattuor Patrum, cf. FIGUINHA, Matheus Coutinho. A data da Regra dos quatro Padres e o início do monastério de Lérins. Romanitas: Revista de Estudos Grecolatinos, v. 5, p. 168-185, 2015. Disponível em: <periodicos.ufes.br/romanitas/article/view/11214/7817>. Acesso em: 10 jun. 2017.
  • 57
    PAULINO. Epistula 43.2.
  • 58
    PAULINO. Epistulae 38, 39 e 44. Cf. PIETRI, Luce; HEIJMANS, Marc. Prosopographie chrétienne du Bas-Empire: la Gaule chrétienne (314-614), v. 1, p. 114-115, sobre Amanda, e p. 156-157, sobre Aper.
  • Agradeço aos pareceristas deste artigo os comentários, que me permitiram aprimorá-lo. A pesquisa da qual este artigo é resultado foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (Capes).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2017
  • Aceito
    09 Abr 2018
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, n. 1., CEP 20051-070, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, Tel.: (55 21) 2252-8033 R.202, Fax: (55 21) 2221-0341 R.202 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: topoi@revistatopoi.org