ARTIGOS ORIGINAIS
A produção racional em regime histórico de fé - com vistas à ciência* * Apresentado em simpósio na 36ª. Reunião Anual da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).
The rational production in the historical conditions of faith - with regard to science
Ubaldo M. Puppi
Professor Titular Aposentado do Departamento de Filosofia - Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais da Documentação - UNESP - 17500 - Marília - SP
RESUMO
Em razão das diferenças das respectivas pertinencias, não há diálogo direto possível entre ciência e fé teologal. Não há nada de estranho nisso, pois o mesmo ocorre entre uma ciência e outra, entre ciência e filosofia e até entre ciência e cultura geral. Cada ciência é uma estrutura fechada, fala apenas sua língua, ignorando as demais. Mas isso não quer dizer que não seja possível o diálogo entre diversas espécies ou diversos gêneros de discurso. É a mediação de intérpretes que o viabiliza, e a filosofia é o seu agente privilegiado. Por sua natureza, e desde que assistida por intérpretes que podem estar acumulados no próprio filósofo, a filosofia é apta a conduzir um diálogo universal. Por aquilo que ela transcende, a filosofia mantém fronteiras com as ciências e com a cultura geral; por aquilo que a transcende, ela mantém fronteiras com a teologia. Esta última marca, ela a deve ao estado em que se encon tra, que é de um regime histórico de revelação e de fé.
Unitermos: Ciência; fé, diálogo; discurso; intérprete; filosofia.
ABSTRACT
Because of the difference of their own pertinences, there is no possible direct dialogue between science and theologal faith. Indeed, there is nothing strange in this, because the same occurs between one science and another, between one science and philosophy and even between science and general culture. Each science is a close structure, and it speaks only its own language, ignoring all the others. But it does not mean that the dialogue among several kinds and genera of discourses is impossible. It is the interpreter's mediation that makes it possible, and philosophy is its privileged place and agent. By its own nature, and it is assisted by competent interpreters, who may be accumulated in the philosopher himself, philosophy is able to lead an universal dialogue. Through the aspects that it transcends, philosophy keeps borders with science and with general culture; through those that transcend it, philosophy keeps borders with theology. That, philosophy owes to the state, in which it is found, the historical conditions of revelation and faith.
Key-words: Science; faith; dialogue; discource; interpreter; philosophy; theology.
INTRODUÇÃO
O tema trata da possibilidade de diálogo entre o cientista e o teólogo, entre o homem de ciência e homem de fé. Esclareço previamente que quando me refiro ao cientista ou homem de ciência e ao teólogo ou homem de fé, me estou reportando, por metonímia, às comunidades das quais são a mais legítima expressão. Não me refiro às suas expressões ilegítimas ou por demais deficientes.
Se mesmo numa comunidade científica, altamente especializada, se encontram membros que a representam mal, por um nível inferior de conhecimento, por sua contaminação ideológica, por suas prevenções infundadas, pela falta de discernimento cultural e político que consente em sua manipulação pelo poder, o que não se poderá dizer da outra comunidade, a comunidade da fé?
Esta é antes de tudo uma comunidade de vida entre os homens, e de todos e cada um com o Deus que a eles se revela como Amor. Mas também como Verdade. Nessa comunidade, o amor deve ser vivido na verdade e a verdade deve ser reconhecida e amada, resultando daí indissolúvel solidariedade entre amor e verdade, entre vida e doutrina. Esta tem seus especialistas, os teólogos, que constituem uma comunidade na comunidade, fato determinante de duplo parâmetro, um comum, a prática da fé, e outro particular, o saber teológico. A comunidade dos teólogos existe dentro da comunidade da fé, com a função específica da elaboração do discurso cristão e do seu diálogo com outros discursos. Com função específica na comunidade, o teólogo precisa da fé para ser teólogo, ao passo que o homem de fé não precisa ser especializado em teologia para a prática de sua fé. Como não poderia deixar de ser, aqui também, e aqui de modo particular, encontramos membros que representam mal a comunidade a que pertencem, sobretudo se, julgando através de espelhos deformantes, reduzimos a comunidade à instituição e sua representatividade à autoridade hierárquica. Por tratar-se de comunidade de vida e de doutrina, o critério de legítima representatividade de seus membros pode ser tão convincente como são decepcionantes as falsificações que o convertem num "ópio do povo".
A discussão do tema assume pois, como preliminar, a representatividade dos interlocutores e, como será enfatizado adiante, a necessidade de mediação de intérpretes familiarizados com os discursos científico e teológico. Sem a mediação de intérpretes - que pode estar acumulada no próprio interlocutor - não seriam ultrapassadas as barreiras de um diálogo de surdos. De fato, sem uma visão teológica, o homem de ciência ignorará o aporte da fé sobre a vida e sobre a atividade racional, e portanto sobre a própria ciência. Estará ele, antes, exposto a declarar a fé como obsoleta e supérflua, principalmente se der ouvidos ao cientificismo, ideologia da ciência, que promete respostas para tudo ou, pelo menos, as únicas supostas dignas de crédito. De outro lado, sem formação ou pelo menos razoável informação científica, o homem de fé desconhecerá a contribuição da ciência para o progresso racional e para a compreensão racional do homem e do mundo. Em decorrência disso, não está livre de opor-se à ciência e de mantê-la sob severa vigilância, uma vez que a seu nível, o nível teologal, a fé possui resposta para tudo.
É preciso, pois, a intervenção do intérprete, de alguém que se situe "na fronteira", conhecendo os dois lados dela. Devo, a propósito, prestar um esclarecimento: quem lhes fala não é teólogo, opera profissionalmente nos domínios da razão natural, mas reconhece que um estudo suficiente de teologia é indispensável à prática da fé e ao diálogo desta com a razão.
Quanto a conhecer suficientemente a ciência, é afirmação ou questão que não faz sentido. A ciência não é singular; no singular ela não existe senão adjetivada. O ideal do conhecimento científico se distribui por uma multiplicidade de especializações heterogêneas. O conhecimento de todas é tarefa sobre-humana. Diante das exigências atuais da produção científica e dos limites de capacidade e duração de uma vida de homem, a simples menção do antigo ideal enciclopedista soa de modo anacrônico. Substituí-lo pelo assim chamado polivalente, - panvalente, no caso, - equivale a trocar o anacronismo pela ingenuidade, ou pela astucia político-burocrática no intuito não declarado de esvaziar a função crítica do verdadeiro saber.
O expediente de isolar entre as ciências apenas uma delas para a efetuação do confronto com a teologia, torna o debate irrealizável. Uma ciência é uma estrutura fechada, uma clausura. Em razão de seu método e de seu critério de conhecimento, não questiona a razão que a pensa nem toma conhecimento de questionamentos extramuros. Só sabe servir-se da razão para o fim particular da produção do seu discurso. Nada sabe das outras ciências, da filosofia, da poesia, da teologia: conceitos poéticos ou filosóficos, por exemplo, não são elementos de sua estrutura nem compatíveis com ela. É preciso abrir janelas para enxergar a rua, sair da caverna para ver o mundo. O cientista pode, - e deve, - fazê-lo; a ciência, não. Em termos leibnizianos, ela é uma mô nada sem porta nem janelas. A matemática, para ser ela mesma, nada sabe da célula; a biologia, da desindexação. Com maior razão, é impraticável o diálogo entre uma ciência e a teologia. E se, por impossível, fosse praticado, haveria tantos diálogos heterogêneos quantas forem as ciências. O resultado seria uma verdadeira confusão das línguas.
Teria eu vindo aqui só para dizer que o que existe é uma babel epistemológica e que, nas fronteiras da teologia e das ciências, ninguém se entende? Não por acaso pronunciei a palavra que estava faltando, epistemologia, que significa literalmente discurso da ciência. Porque a preposição é aí empregada no passivo e não no ativo, para evitar ambiguidade é preferível traduzir epistemologia por discurso sobre a ciência. Há vários modos de entendê-lo, segundo quem faz o discurso. O agente do discurso, o sujeito ao qual o discurso se atribui, é aqui decisivo. Num primeiro modo, epistemologia designa o discurso sobre a ciência feita por ela mesma: depois de suficientemente elaborada, ela estabelece um retrospecto sobre si e repassa seus próprios passos. É uma teoria da ciência: teoria matemática feita por matemáticos, teoria econômica feita por economistas. Num segundo modo, epistemologia é tomada como teoria das ciências, com complemento preposicional no plural, e nesse caso a expressão não é unívoca; sua acepção está suspensa à identificação do agente do discurso teórico. Se o agente for concebido de modo indeterminado, a teoria não terá valor algum, por falta de critério de referência para a avaliação das ciências. Não se fica sabendo quem fala e em nome de que fala. Se se pensa que o sujeito produtor da teoria se situa a nível das ciências, ela não comportará um discernimento crítico abrangente; tampouco será objeto de consenso entre os teóricos, pois, na ordem da exatidão, a maioria das ciências permanece distante do paradigma teoremático da matemática, e, na ordem da especificidade, as ciências humanas perdem em propriedade o que venham a ganhar em exatidão. Finalmente, tomando-se a filosofia como autora do discurso teórico sobre as ciências, este é colocado no caminho certo.
Teoria das ciências sinonimiza então com filosofia das ciências, à condição bem entendido de não envolver as duas expressões em um círculo vicioso à maneira do positivismo, que reduz a filosofia, que não possuiria conteúdo próprio, a mera teoria das ciências. Mas, neste caso, ou a teoria não dispõe de nenhum critério de referência para a avaliação das ciências como na primeira hipótese do segundo modo, ou, como na segunda hipótese , para a qual a ciência seria produtora da teoria, esta não é critica nem goza de consenso. Como se vê, a hipótese positivista nada acrescenta às duas outras anteriormente consideradas, ambas insustentáveis.
A teoria das ciências só estará fundada se for uma filosofia das ciências. Mas a filosofia só será também uma filosofia das ciências se, na abrangência de seu conteúdo, ela for simultaneamente uma teoria do ser, uma teoria do conhecimento e uma lógica fundamental. Com esses pressupostos, o discurso teórico sobre as ciências, para ser plenamente fundado, crítico e abrangente, deve ser conduzido e produzido pela filosofia. Para isso, a filosofia deve complementar mente saber das ciências. O importante a notar a esta altura da exposição, é que saber das ciências está incluído em seu projeto: tematizadora do ser em geral e da natureza do conhecimento, está apta a identificar a realidade particular com a qual lida cada ciência; elaboradora do organon universal, da lógica comum, é capaz de reconhecer os métodos e processos típicos de cada ciência; e, last and to the last, se põe à escuta e na escola dos cientistas. Mantem-se constantemente informada por eles para instruir-se e para não disparatar sobre as ciências.
Por conseguinte, ao contrário do que propõe o reducionismo positivista, a filosofia possui conteúdo e espaço próprios; por isso mesmo pode ser também um saber de fronteiras, tomar conhecimento de conhecimentos outros que o seu, nestes incluindo as ciências. Mas a filosofia só toma efetivamente conhecimento das ciências, entrando em diálogo com elas. E por isso nada é mais urgente do que descartar ilusões e destruir conceitos confusos, por mais generosos ou menos maldosos que sejam em suas intenções.
Com efeito não é possível um diálogo direto das ciências entre si, ou delas com a filosofia, com a teologia (como ademais com a poesia e com as línguas comuns). Cada uma fala só a própria língua, nenhuma fala a língua da outra. Qualquer tentativa de diálogo se traduz em hidridismo, o qual, no mínimo, trai uma e outra, se não produzir, acolá, a inquisição da Igreja contra Galileu e, aqui-e-agora, a neo-inquisição do materialismo histórico contra a fé. Se esta neo-inquisição se erige em nome da ciência, apoia-se num hibridismo ininteligível; se em nome da política do partido, apoia-se numa arbitrariedade fascista.
A constatação da inviabilidade do diálogo direto conduz à possibilidade de um diálogo mediado. A possibilidade contempla duas hipóteses: diálogo por meio da cultura geral e diálogo por meio de intérpretes. A cultura geral é o meio por excelência da comunicação universal. Nela, todos os conhecimentos especializados se encontram diluídos, e por isso mesmo aí os entendimentos, como também os desentendimentos, são comuns e fáceis, mas em contrapartida sempre superficiais. Não é a esse nível pouco confiável que a questão se põe. O diálogo mediado por intérprete, pelo contrário, respeita a especialização das línguas e preserva as verdades de cada uma. Intérprete é tomado aqui menos no sentido hermenêutico do que no sentido lingüístico de tradutor: aquele que conhece as línguas confrontadas, tanto para entender como para reproduzir uma língua na outra.
Suponhamos como intérprete um filósofo com formação suficiente em outra área, digamos uma ciência. Como filósofo já poderia ter situado grosso modo a ciência e seu objeto no conjunto do saber e no universo do ser; mas com formação apropriada nessa ciência, está apto a penetrar na especificidade de seus conhecimentos. Esse lastro de conhecimentos lhe permite: aprofundar os contrastes e delimitar as fronteiras da ciência e da filosofia; respeitar a irredutibilidade dos respectivos modos de conhecer; traduzir e interpretar as verdades de um na língua do outro. Isso é o essencial para o encaminhamento do nosso tema. A título de complemento convém acrescentar que, sob as condições postas, a filosofia é competente para reconhecer um conjunto de condições básicas, epistêmicas e ontológicas, que a ciência pressupõe, mas ignora, mais ainda, para identificar questões comuns sob problemática e tratamento diferenciados na ciência e na filosofia.
Por esse exemplo isolado é posto em relevo uma peculiaridade da filosofia: por sua vocação de universalidade e para o eficaz desempenho dessa vocação, ela não prescinde de intérpretes para comunicar-se com qualquer outra esfera do saber. Por meio desses agentes de ligação, ela estabelece, em seu registro próprio, uma síntese e uma crítica do saber especializado e as introduz, ainda que de modo diluído, no caldo comum da cultura geral, nela constituindo o que se pode chamar com propriedade de massa crítica. É, pois, por sua própria natureza, servida por batedores que atravessam todas as fronteiras do saber, que a filosofia se realiza também como um diálogo universal. Por aquilo que ela transcende, a filosofia mantém fronteiras com as ciências (e com a cultura geral e em geral); por aquilo que a transcede, ela mantém fronteiras com a teologia.
A filosofia linda com as ciências porque uma e outras operam no espaço comum da razão natural, não obstante sob enfoques e alcances diversos. Sob seu enfoque típico, conhece ela a razão que as ciências exercem, mas desconhecem. A ciência só conhece as razões de seus resultados bem sucedidos, por exemplo a causa da lepra ou da fissão nuclear, não conhece a razão de suas razões. Fora e além de suas razões endógenas, a ciência não é crítica, nem aquém delas, autocrítica. Só a razão filosófica pode dar razão às razões da ciência. Por essas metarrazões, epistemológica e ética, e por todas as demais razões primeiras e últimas em cada esfera do saber, a filosofia tem o privilégio de ser a interlocutora autorizada da razão.
Trilhando caminhos escolhidos, eis-nos chegados aonde queríamos: às fronteiras da razão com a fé. Nesse debate, a filosofia, - e vimos porquê, - será porta-voz da razão, falando em nome próprio e no da ciência. Mas, a filosofia só fala em nome das ciências enquanto conhece a razão das razões da ciência. Afetando só e propriamente às razões da ciência, um problema singular deve ser levado em conta, posto que foi e é levantado: haveria incompatibilidade entre as asserções e os critérios da ciência com os da fé? De saída é preciso insistir que tais incompatibilidades não são biunívocas, bilaterais. Estão exclusivamente do lado dos cientistas, e não repousam em nenhuma descoberta científica específica. É ponto pacífico, hoje, que as descobertas e critérios científicos, sem exceção, podem ser admitidos ou integrados nos sistemas teológicos e absorvidos pela prática da fé, posto que jamais serão capazes de responder às questões que a revelação coloca. Desse modo são, antes, mais aptos a ampliar e a atualizar o hino às criaturas de um Davi ou de um Francisco de Assis. O agravo unilateral do cientista será de natureza indiossincrásica ou ideológica, derivada esta do estado de crise da episteme da cultura ambiente. Nossa época vive, com efeito, uma crise epistemo-teo-lógica, que consiste no contraste entre a razão positivista e a razão teológica. A razão positivista é marcada pela resistência e pela desconfiança, no mínimo agnósticas, diante de tudo o que não diga respeito ao dado empírico e àquilo que ela mesma produziu. A razão teológica, pelo contrário, se caracteriza pela adesão incondicional à Verdade personalizada que, e m pessoa, se dá e se profere na carne e no discurso humanos, pelos quais revela seu verdadeiro ser. De um lado, a razão é reduzida às dimensões do empírico, de outro lado, mesmo as regiões suspeitas da razão são reabilitadas e alargadas. Aqui, o aprisionamento nos limites do empírico, ali a libertação a partir do empírico e da palavra.
Posta nestes termos, a incompatibilidade se manifesta como expressão de um conflito de ordem exclusivamente pessoal ou cultural, que só comporta uma solução igualmente pessoal, eventualmente acompanhada, ou precedida, da instauração de uma crítica da cultura vigente. Exemplar como desveladora dos dois lados da questão é a narração pelo renomado cientista Newton Freire Maia de sua adesão à fé: "Eu agora acredito em tudo. Passou a época em que eu não acreditava em nada Nada tive de mudar em relação... à vocação para a pesquisa científica e aos paradigmas científicos "1 1 "Um católico na Europa", Texto policopiado. . É digno de nota que as expressões "acredito em tudo" e "não acreditava em nada" definem de modo feliz, embora elíptico, o conflito a que me referi, e sua única saída possível. Explicitados em seus elementos sintáticos, as frases completas seriam: "não acreditava em nada que transcendesse minha razão agnóstica", "agora acredito em tudo o que se contem sob o dado revelado".
Uma vez isolada e analisada essa dificuldade unilateral e não dialógica, creio estar fundado a afirmar que toda a problemática efetivamente suscitada a partir das ciências, em suas relações de diálogo com a teologia, se concentra em torno da razão filosófica. É por meio desta que as ciências se inscrevem, cada uma em seu lugar próprio, no horizonte da razão natural. Mas a filosofia, expressão por excelência do alcance máximo da razão natural, se apropria de possibilidades e de visadas efetivas para além daquelas que idealmente possui. E isso sem perda de sua autonomia, nem comprometimento de seu modo específico de proceder. O que quer isto dizer? Pode a filosofia ser melhor e mais completa do que aquilo que ela é ou deveria em princípio ser? Ser outra que ela mesma, sem deixar de ser o que é? Por analogia com conhecida definição autoritária da democracia, devemos aceitar que haja uma filosofia relativa e uma filosofia tout court, ou que aquela é a que existe de fato e esta a sua projeção utópica, que não existirá jamais?
A questão é mais complexa e importa inserí-la em contesto adequado. Tanto mais que se constitui no centro de referência para a elucidação das relações entre razão e fé. Trata-se, com efeito, de bem discernir entre o que seria, de direito, a natureza da filosofia e o estado no qual, de fato, ela se concretiza e existe; dito de outro modo, entre a ordem da especificação e a ordem do exercício2 2 GILSON, E. et alii- La philosophie chrétienne. Juvisy, Ed. du Cerf, 1933. . Considerada academicamente em sua pura natureza ou essência, a filosofia é especificada por um objeto sobre o qual ela deve evidentemente possuir a máxima competência com os sós recursos e critérios da razão natural. Mas a razão assim considerada é ainda um mero conceito abstrato. Ela só existe exercendo-se, e seu exercício se dá em situação, em conjuntura, enfim num determinado estado, estado sendo entendido como um regime histórico, seja ele pré-cristão, cristão ou não-cristão. Existem estados menos decisivos, mas nem por isso negligenciáveis, que explicam a peculiaridade das filosofias grega, alemã, francesa, hindu, latino-americana. A razão filosófica não é portanto uma razão pura; ela não é abstrata, ela está concreta. O estado da razão filosófica é parte integrante do modo de produção da filosofia.
Em razão da dimensão livre e universal de sua natureza, a filosofia é levada a se interessar por todas as coisas e a se perguntar sobre o sentido radical do mundo, do ser, do homem, e sobre suas situações-limites. Nem todas essas perguntas transcendentais chegaram a ser explicitamente formuladas. O fato de terem sido omitidas ou formuladas, o modo como foram respondidas ou eludidas, são reveladoras do estado da filosofia. Dois exemplos principais e inequívocos podem ser evocados: a filosofia pagã da Antiga Grécia e a filosofia cristã. A filosofia grega, apesar de toda a sua grandeza, por exemplo em Platão e Aristóteles, é portadora de significativas lacunas e embaraços dessas "sempre buscadas questões", como as define Aristóteles. Basta comparar a "A Metafísica" de Aristóteles com o seu "Comentário" por Tomás de Aquino, texto este da mais rigorosa filosofia.
Em contexto histórico cristão, a filosofia recebe da fé e da revelação socorros sem os quais, segundo os teólogos, ela é incapaz de realizar plenamente as promessas de sua natureza. Ela recebe aportes objetivos e subjetivos. Da revelação, com efeito, a filosofia recebe, antes de tudo, verdades que, nem por integrarem o corpus do discurso revelado, pertencem menos à razão natural, e portanto à filosofia mesma. Também as verdades de conteúdo estritamente teológico beneficiam sobremodo a reflexão filosófica, pelas repercussões que sobre ela incidem para a compreensão da realidade. A fé, por sua vez, existindo em continuidade com os habitus filosóficos dá-lhes uma força subjetiva que os retifica e orienta em seu próprio nível e para seu objeto específico.
Convém, a esta altura, alertar que as conseqüências do estado cristão sobre a natureza da filosofia extrapolam os limites de uma opção explícita. Os teólogos insistem sobre a ação da fé implícita. Esta, além do que eles chamam de graças atuais, somadas a certas inspirações naturais, podem animar filósofos não-cristãos, em medida que não nos é possível avaliar.
Do que precede resulta que, graças à contribuição da fé e da revelação, todo um conjunto de certezas e de conceitos, de si accessíveis à razão filosófica, só foram efetivamente tematizados e plenamente afirmados em regime histórico cristão. Pelo fato mesmo, a filosofia se tornou mais rica e fecunda, e através dessa filosofia alargada está aberto o diálogo, em todas as esferas e dimensões, entre razão e fé. Um diálogo assim concebido, no qual a busca da verdade não se opõe à busca da verdade e estimula a busca da verdade, se anuncia fácil, solto e promissor. Na realidade, porém, topamos antes com o baralhamento das línguas e a falta de intérpretes adequados. A dificuldade crucial se aninha lá mesmo onde pareceria superada: no seio da comunidade filosófica, entre o crente e o descrente ou o agnóstico.
Suposto que também o filosofo incréu ou agnóstico vive e pensa e produz em um estado determinado, cujas influências são diferentes, não deve causar espanto constatar que o nome mesmo de filosofia possa se tornar equívoco, segundo empregado por ele ou pelo interlocutor cristão. Afinal de contas, o que é que o levaria a reconhecer a validade das distinções das quais este se serve, e que supõem conceitos precisos sobre a fé como sobre a razão? Daí o seguinte estado de coisas contraditório: é um universo racional, e de escorreita filosofia, que o filósofo cristão propõe e deve propor em seu discurso, mas o filósofo incréu ou agnóstico se sentirá constantemente tentado a não convalidar a autenticidade desse discurso. E não por má vontade deste. Simetricamente, não será por triunfalismo ou proselitismo que aquele se encontrará na contingência paradoxal de propor uma filosofia mais racional e mais completa do que certas construções de seus colegas não-cristãos, e, no entanto, de conceber essa filosofia como se, em seus princípios, ela pressupusesse a fé.
E o filósofo cristão sabe que dificilmente conseguirá eliminar mal entendidos e superar prevenções. Apesar de tudo, deve fazer o que a razão pede para evitá-los. O zelo pela enxuta racionalidade de sua obra filosófica e de sua linguagem jamais será exagerado. É o que de seu lado pode fazer, certo de que o diálogo, se não é fácil ao modo da circulação entropizada das relações sociais, é possível; tão possível como desejável. O único fator que em definitivo o inviabiliza é, de um lado como de outro, o poder fanático e autoritário de recusar ao contendor a capacidade de acesso à verdade. A admissão dessa capacidade é o cacife sobre o qual os ousados apostam forte no jogo do diálogo.
MARITAIN, J. - De la philosophie chrétienne. Paris, Desclée De Brouwer, 1933.
MARITAIN, J. - Science et sagesse. Paris, Labergeric, 1935.
- MARITAIN, J. - De la philosophie chrétienne. Paris, Desclée De Brouwer, 1933.
- MARITAIN, J. - Science et sagesse. Paris, Labergeric, 1935.
- 2 GILSON, E. et alii- La philosophie chrétienne. Juvisy, Ed. du Cerf, 1933.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Dez 2011 -
Data do Fascículo
Jan 1984