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Comentário ao artigo Caminos y esbozos para una apertura fenomenológica del horizonte mismidad desde la constitución del mundo en ser y tiempo de Heidegger

Referência do texto comentado: PERIÑÁN, Juan José Garrido. Caminos y esbozos para una apertura fenomenológica del horizonte mismidad desde la constitución del mundo en ser y tiempo de Heidegger. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, Número Especial, p. 269-294, 2020.

Com grande satisfação, recebo pela primeira vez o convite para escrever um texto científico - por natureza, texto dirigido a todos e a todas -, tendo em vista alguém. Um ente, assim propôs Heidegger, que pode, em seu ser, ser o ente quem ele mesmo é, um ente que pode ser si-mesmo. Por um feliz acaso, as condições criadas por vós-mesmos, editoras e editores de TRANS/FORM/AÇÃO, para esse diálogo, não poderiam ser mais favoráveis, posto ser justamente o fenômeno existencial da mismidad, o tema filosófico ao qual tu-mesmo, Prof. Juan Periñán, dedicas tuas reflexões na contribuição acima publicada, para proveito dos estudiosos e estudiosas da fenomenologia - nós-mesmos. O que significa esse “mesmo”? Para qual direção se deve voltar o olhar fenomenológico, de modo a ver e conceber o seu ser e estrutura ontológica? Em qual campo fenomenal reluz primariamente a mismidad do ser-aí?

Para a última questão, o título “Caminos y esbozos para una apertura fenomenológica del horizonte mismidad desde la constitución ontológica del mundo en Ser y Tiempo” apresenta uma resposta que será cuidadosamente elaborada, ao longo do escrito, através de reconstruções rigorosas das análises heideggerianas do momento estrutural “mundo” - em especial do acoplamento entre respectividade (Bewandtnis) e significância (Bedeutsamkeit) -, pertencente à estrutura unitária e total formalmente indicada em Ser e tempo, com a expressão “ser-no-mundo”. Não seria preciso esperar o pensador traduzi-la posteriormente como a unidade de existencialidade (ser-se-adiante), faticidade (já-ser-em) e caída (ser-junto-a), isto é, o próprio ser do ser-aí enquanto Cuidado (Sorge), para que a mismidad mostre a sua face; essa já aparece na descoberta do existencial mundanidade, preparada com grande agudeza metodológica por uma análise do simples uso cotidiano de entes intramundanos utensiliares,

[...] pues lo que afirma Heidegger, ni más ni menos, es que el complejo de fines del para-algo ha de remitir, como suelo fundante, a la experiencia propia, y genuina, del Dasein, a lo que éste es: experiencia de sí mismo. El útil es útil si y solo si remite a la experiencia propia del Dasein, [um ente não caracterizado ontologicamente por dizer-respeito-a outro ente, mas por ser por-mor-de si.] (PERIÑÁN , 2020, p. 14).

A correção de tuas análises, Prof. Juan Periñán, é manifesta. E precisamente por isso, fez entrar no meu horizonte de questionamento sobre a arquitetura da analítica existencial do Dasein, o sentido de negatividade do si-mesmo impessoal, tal como estabelecido, ademais, “de un modo bastante abstracto-formal, en las derivaciones en torno a la “[...] impropiedad/propiedad” [Uneigentlichkeit/Eigentlichkeit] del existir.” (PERIÑÁN , 2020, p. 2) Que a constatação desse caráter negativo não pareça ser coisa de somenos, em tuas reflexões, mostra o anúncio de que moverás as análises numa direção “[...] en contra de los propios análisis heideggerianos sobre el uno (§§. 25-27)” (PERIÑÁN , 2020, p. 1), o que interpreto da seguinte maneira: a favor de estabelecer positivamente o si-mesmo, em seu modo possível de Man-selbst, existência imprópria.

Avanço, pois, o presente comentário, com um esboço de determinação do sentido da negatividade e possível positividade do si-mesmo, bem como do fundamento dessas possibilidades e da sua divisão. Para isso, articulo de maneira breve a distinção entre três conceitos, os quais se encontram espalhados e analisados segundo diferentes perspectivas e interesses, por toda a fase ontológico-fundamental do pensamento heideggeriano, a qual se estende para além do tratado Ser e tempo, mas que surgem convenientemente reunidos numa passagem da preleção Einleitung in die Philosophie, de 1928/1929:

Esse ser-por-mor-de-si (Umwillen-seiner) constitui si-mesmo (Selbst) como tal. A simesmidade (Selbstheit), enquanto determinação ontológica do ser-aí, não consiste primariamente apenas numa consciência que esse ente tem de si; a auto-consciência, enquanto reflexão, é sempre e somente uma consequência da simesmidade, mais precisamente: no por-mor-de-si, o ente que chamamos ser-aí é de tal forma revelado, que ele sempre é posto diante de seu poder-ser mais próprio e frente a ele deve se decidir o que pode o seu ser mais próprio no tocante as possibilidades que lhe pertencem essencialmente: ser-com com outro (Mitsein mit Anderen), ser-junto ao ente simplesmente dado (Sein bei Vorhandenen) e ser-si-mesmo (Selbstsein). (HEIDEGGER, 20011. Heidegger M., Einleitung in die Philosophie (GA 27), Frankfurt am Main, ed. O. Saame et I. Saame-Speide, Vittorio Klostermann Verlag, 2001., p. 324)

O termo Selbst, si-mesmo, é um conceito ôntico, indicando esse ente que o ser-aí mesmo é. O termo Selbstsein, ser-si-mesmo, é um conceito ontológico, realçando uma possibilidade existencial. O termo Selbstheit, simesmidade, é também um conceito ontológico, todavia, no uso que dele faz Heidegger, não parece ser indicada uma possibilidade existencial da mesma forma que os termos “ser-si-mesmo”, “ser-com”, “ser-junto-a” e tantos outros, porém, um caráter do modo de ser existência em geral: “por-mor-de” - “A existência do ser-aí é determinada através do por-mor-de. É característico do ser-aí que, para esse ente, em seu ser, esse próprio ser esteja em jogo num determinado modo. O ser e poder-ser do ser-aí é aquilo por-mor-de que ele existe” (HEIDEGGER, 19782. Heidegger M. Metaphysische Anfangsgru¨nde der Logik im Ausgang von Leibniz (GA 26), ed. K. Held, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann Verlag, 1978., p. 239).

Aquelas possibilidades essenciais, por-mor-das quais o ser-aí é - Selbstsein, Mitsein, Sein-bei - são poderes ontológicos, para os quais o ser-aí há de transcender (e já sempre transcendeu) num projeto de compreensão (e já sempre compreendeu), para assim sê-los. “O ser-aí ultrapassa o ente de tal modo que, pela primeira vez nessa ultrapassagem ele se comporta com o ente e, assim, ele também se comporta pela primeira vez consigo enquanto ente, ou seja, ele próprio pode ser um si-mesmo.” (HEIDEGGER, 20011. Heidegger M., Einleitung in die Philosophie (GA 27), Frankfurt am Main, ed. O. Saame et I. Saame-Speide, Vittorio Klostermann Verlag, 2001., p. 306) Em resumo: enquanto simesmidade diz o mesmo que transcendência, compreensão, ser-si-mesmo diz uma possibilidade transcendental em sentido puramente existencial.

Da mesma maneira que ser-com outro e ser-junto-à coisa , ser-si-mesmo (Selbstsein) é) um poder-ser aberto no modo da compreensão, por-mor-do qual o ser-aí existe (Selbstheit) e para o qual se projeta, para ser o ente quem ele mesmo é, ou seja, para ser um si-mesmo (Selbst). E como tudo o que o ser-aí é como poder-ser, ser-si-mesmo é uma possibilidade sua. Sendo e tendo de ser sua possibilidade ontológica de ser-si-mesmo, ele sempre “foi”, “é” e “será” enquanto esse si-mesmo ou própria ou impropriamente: “Ambos os modos de ser, propriedade e impropriedade [...] se fundam nisto: que o ser-aí é determinado por ser-sempre-meu (Jemeinigkeit).” (HEIDEGGER, 1967, p. 42-43).

Caracterizado ontologicamente por ser-por-mor-de e por ser-meu, o ente que pode, em seu ser, ser um Selbst, não encontrará nesse ser fundamento algum para ser como esse ente, quem ele mesmo é. Para ser-si-mesmo (bem como para ser qualquer um dos seus poderes existenciais) não há por quê. Daí que, “[n]a ultrapassagem de si, se revela pela primeira vez o abismo que o ser-aí sempre é para ele próprio, e somente por que este abismo do Ser-si-mesmo (Abgrund des Selbstseins) é aberto através da e na transcendência [isto é, através da e na Selbstheit], ele pode se tornar encoberto e invisível.” (HEIDEGGER, 19782. Heidegger M. Metaphysische Anfangsgru¨nde der Logik im Ausgang von Leibniz (GA 26), ed. K. Held, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann Verlag, 1978., p. 234). Sendo um si-mesmo sem fundamento para tal, o ser-aí é encarregado de sê-lo como a sua possibilidade fundamental: “Enquanto esse ente que só pode existir como entregue ao ente que ele é, ele é, existindo, o fundamento do seu poder-ser [...]

O si-mesmo, o qual, enquanto tal, tem de colocar o fundamento de si próprio, nunca pode se apoderar deste, mas tem de, existindo, assumir ser-fundamento. Ser o próprio fundamento lançado é o poder-ser que está em jogo no cuidado.” (HEIDEGGER, 1967, p. 284) Lançado na existência, não na presença, o ser-aí já assumiu a carga de ser-fundamento da própria possibilidade abismal de ser-si-mesmo e, desde essa assunção, pode ser o si-mesmo quem ele sempre é como qualquer um pode ser (si-mesmo em sentido impróprio) ou pode ser o si-mesmo quem ele sempre é como só ele pode ser (si-mesmo próprio), se se deixa iluminar o ser-no-mundo com a luz da própria morte, a possibilidade que impossibilita todas as possibilidades por-mor-das quais existe, ou seja, se ele se compreende finito.

De fato, quem o ser-aí é, de início e na maioria das vezes, é o si-mesmo impessoal, e não é fortuito que o “horizonte mesmidad”, como mostra o Prof. Juan Periñán, já se abra, ainda que de maneira não temática, no mundo das ocupações, no qual o ser-aí, de início e na maioria das vezes, não é ele mesmo. Porém, segundo o exposto, a negatividade desse “não” não pode significar ausência de simesmidade. Por conseguinte, só posso concebê-la da forma que segue: o ente que pode ser si-mesmo, e para sê-lo já assumiu a carga de ser-fundamento dessa possibilidade, carrega também consigo a possibilidade e tendência de se aliviar desse peso, como já escrito, de “insustentável leveza” - a do ser como existência, Selbstheit. Quer assumido com propriedade, quer assumido com impropriedade, o ser-si-mesmo reluz pleno de positividade ontológica em todos os caminhos práticos, poiéticos, teóricos ou estéticos do meu ser-aí.

Referências

  • 1
    Heidegger M., Einleitung in die Philosophie (GA 27), Frankfurt am Main, ed. O. Saame et I. Saame-Speide, Vittorio Klostermann Verlag, 2001.
  • 2
    Heidegger M. Metaphysische Anfangsgru¨nde der Logik im Ausgang von Leibniz (GA 26), ed. K. Held, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann Verlag, 1978.
  • 3
    Heidegger M. Sein und Zeit, Tu¨bingen. Max Niemeyer Verlag, 1967.
  • 4
    PERIÑÁN, Juan José Garrido. Caminos y esbozos para una apertura fenomenológica del horizonte mismidad desde la constitución del mundo en ser y tiempo de Heidegger. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, Número Especial, p. 269-294, 2020.
  • 1
    . Docente da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Departamento de Filosofia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas. https://orcid.org/0000-0002-2119-7741. E-mail: sandrosena@gmail.com.
  • 2
    . http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43esp.21.p295

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2020
  • Aceito
    27 Jun 2020
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