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A gnoseologia segundo Ernest Sosa1 1 Este texto pode lido como uma tentativa acadêmica. Terá sido bem sucedido? É algo de duvidar, mas isso pode ser julgado por quem acaso o leia. Expressa alguma competência? Talvez alguma. Não é claro que o autor seja um dispositivo suficientemente preparado para a tarefa. Também a forma do dispositivo pode não estar em seu melhor. A gestão universitária é deveras extenuante, mas sobretudo as condições atuais de execução do texto, em meio à pandemia e a ameaças obscurantistas e autoritárias à vida universitária, dificultaram a concentração necessária a tarefa tão desafiadora, só podendo dispor de tempo limitado quem ora esteja na condição de reitor de uma universidade pública. De todo modo, a decisão de fazer o texto não podia ser mais acertada. Não podia declinar o gentil convite feito pelo colega Waldomiro José da Silva Filho de submeter um texto para o dossiê sobre Ernest Sosa da Trans/Form/Ação - revista, aliás, na qual publiquei, fora de Salvador, meu primeiro texto como pesquisador em filosofia. Entretanto, de modo o mais bem refletido, não poderia deixar de escolher esse risco e de celebrar a fascinante obra de um dos maiores filósofos da contemporaneidade. Só posso desejar que esta tentativa tenha, vez ou outra, acertado o alvo, que mesmo seus gestos mal sucedidos tenham esboçado alguma competência ou, ao menos, tenham tido todos eles a aptidão de manifestar meu imenso afeto e admiração por Ernest Sosa.

Gnoseology according to Ernest Sosa

Resumo:

Ernest Sosa enfatiza a diferença entre a teoria do conhecimento (ou, simplesmente, gnoseologia) e a ética intelectual, no interior de uma epistemologia. Com efeito, tal distinção adquire importância estratégica em sua obra, servindo bem à caraterização das tarefas de sua singular epistemologia das virtudes, sobretudo em sua versão mais recente, aperfeiçoada e télica. Exploraremos assim o sentido próprio de uma gnoseologia conforme com uma posição confiabilista, procurando mostrar como essa exigência taxonômica também se associa à análise da normatividade télica das performances humanas, por meio da qual Sosa oferece uma resposta unificada às duas questões platônicas clássicas sobre a natureza e o valor do conhecimento e também aos desafios colocados pelo problema de Gettier. Para essa resposta, procuraremos enfim mostrar, é relevante o exame da relação entre as noções de ‘performance’ e ‘sorte’, aplicadas então à avaliação do fenômeno do conhecimento.

Palavras-chave:
Ernest Sosa; Epistemologia das virtudes télica; Performance; Sorte

Abstract:

Ernest Sosa emphasizes the difference between the theory of knowledge (or, simply, gnoseology) and intellectual ethics, within an epistemology. Indeed, such a distinction acquires strategic importance in his work, serving well the characterization of the tasks of his unique epistemology of virtues, particularly in its most recent, improved and telic version. We will thus explore the meaning proper of a gnoseology adjusted to a reliabilist view, aiming at showing how this taxonomic requirement is also associated with the analysis of the telic normativity of human performances, through which Sosa offers a unified response to the two classic Platonic questions on the nature and the value of knowledge, as well as to the challenges posed by Gettier’s problem. For such a response, we will thus try to show, it is relevant to examine the relationship between the notions of ‘performance’ and ‘luck,’ as applied to the evaluation of the phenomenon of knowledge.

Keywords:
Ernest Sosa; Telic virtue epistemology; Performance; Luck

A pergunta é metade da resposta; sem uma pergunta, não há razão para uma resposta. Abraham Galante, Or ha-Ḥammah, ca. 1550.

Introdução

Uma disciplina determina-se por seu objeto e, em função deste, por seu método. Somente assim ela pode elaborar perguntas pertinentes e rejeitar respostas assemelhadas, mas destoantes ou confusas, porque decorrentes da indefinição de fronteiras que, no fenômeno, costuma ser a regra. As questões não se nos apresentam etiquetadas, acomodadas em compartimentos estanques nem com método claro para respostas legítimas. O risco de confusão é permanente e, por isso mesmo, a distinção inicial, uma vez lograda, precisa ser renovada de tempos em tempos.

Para dar um exemplo, é preciso relembrar os métodos próprios à estimação do aspecto lógico de um discurso, separando-os da avaliação de expedientes retóricos ou heurísticos. Um argumento não exibe sua estrutura lógica, seu esqueleto formal, em separado de sua encarnação em sutilezas gramaticais ou psicológicas, mas estas não lhe servem à estimação de validade ou solidez argumentativa; assim como o suicídio, enquanto fenômeno sociológico, não pode ser explicado por causas psicológicas ou biológicas, que, todavia, sempre se lhe ocorrem entremescladas. É também o caso com a distinção entre teoria do conhecimento e ética intelectual - distinção que, sendo interior à epistemologia, a três por dois se embaralha e nos escapa, sendo, portanto, ainda mais necessária para o eventual sucesso da investigação epistemológica.

Por óbvio, toda distinção conceitual revela uma escolha, expressa um ponto de vista, que pode, contudo, recuperar diferenças instaladas no próprio fenômeno, dando conta de separar o que importa ser separado, com finalidades claras. Sendo necessária ao pensamento, uma distinção bem feita pode ter um papel estratégico e produtivo, como é o caso, acreditamos, da reiterada insistência de Ernest Sosa em afastar o que é próprio da teoria do conhecimento (ou, simplesmente, gnoseologia) do que pertence a uma ordem de investigação de ética aplicada à epistemologia, uma ética intelectual. Neste texto, voltamos nossa atenção para sua construção de uma gnoseologia, bem demarcada e justificada,3 3 Sosa define assim o escopo de uma gnoseologia, conforme versão aperfeiçoada de uma epistemologia das virtudes télica: “the epistemic domain is one where we perform alethically, aiming at getting it right, whether through judgment (intentional and even conscious) or through functional perception or belief, where the aim would be teleological rather than intentional” (SOSA, 2019b, p. 15). procurando ainda então destacar nesse projeto a tensão constitutiva entre as noções de ‘sorte’ e ‘performance’.

1 Gnoseologia versus ética intelectual

1. É do ofício do filósofo ver diferenças. Conceituais ou instaladas no fenômeno, são flagradas na linguagem, sendo significativo o próprio gesto de demarcação. A distinção entre teoria do conhecimento e ética intelectual perpassa a obra de Sosa, que a explicita em A Virtue Epistemology, afirmando tanto um sentido de virtude que a aproxima de competência, quanto um sentido mais restrito para uma epistemologia das virtudes, distinguindo-a de um campo mais amplo, mais análogo à teoria das virtudes em ética. Interessam-lhe, portanto, as virtudes que mantêm relações internas com os processos constitutivos do conhecimento.

Sosa afirma, pois, o campo próprio de uma gnoseologia, no qual têm lugar virtudes intelectuais que mantêm um laço interno com o conhecimento, abstraindo-as das demais virtudes do agente - que podem contribuir para a produção do conhecimento ou ter o conhecimento como resultado, mas mantêm com as proposições um laço externo e, por conseguinte, não são epistêmicas. Que nos agentes e nos fenômenos as virtudes se misturem, que haja ademais um interesse pragmático em unir os esforços acadêmicos de quantos valorizam o lugar do agente do conhecimento, nada disso deve levar-nos a confundir o que é próprio de uma gnoseologia com o que seria da alçada de uma ética intelectual.

Conhecimento, dito de modo simples, é crença apta, ou seja, uma crença que acerta a verdade e também manifesta a competência do agente, mas sobretudo acerta com a verdade por manifestar tal competência. A constituição do campo gnosiológico reflete a definição mesma de conhecimento, antecipando um modo de resolução de seus problemas teóricos. Nesse domínio epistêmico, temos uma perspectiva normativa específica, resultante da natureza da competência própria da tarefa do conhecer, sem cuja manifestação simplesmente não haveria conhecimento. Uma coisa é decidir sobre a oportunidade de gerar proposições verdadeiras ou descrever as atitudes de quem costumeiramente investiga com algum sucesso; outra é definir os requisitos da aptidão definidora do conhecimento.

Podemos discorrer sobre as vantagens do conhecimento sobre a ignorância, inclusive imaginar atitudes morais superiores, de um ponto de vista pragmático. O conhecimento, à luz da ética intelectual e com benefícios diversos, pode ser julgado tolo ou perigoso, mas somente uma estimação gnoseológica volta os olhos para a qualidade de sua constituição e de quanto contribui estritamente para estabelecer o vínculo com a realidade, decidindo se a crença é ou não precariamente sustentada, uma vez que não lhe basta chegar à verdade, se o fizer apenas por acaso.

A normatividade estabelecida por uma ética intelectual, que tem escopo mais amplo, afigura-se externa aos procedimentos intrínsecos à procura e obtenção da verdade. A ética intelectual pode assim sombrear a teoria do conhecimento, mas suas raízes estão do lado de fora do terreno. Tal diferença de objetivos só pode redundar em uma diferença de métodos, sobretudo no que se refere à pergunta acerca de como um juízo pode ser estimado em sua pretensão à verdade:

Suppose Paul forms a belief about the number of motes of dust on his desk by consulting an Ouija board. According to our proposal, we might then (a) from the point of view of a theory of knowledge, evaluate the belief poorly because the belief is so unsafe with respect to the truth of the matter, and (b) from the point of view of intellectual ethics, criticize the believer for even bothering with such things - from the point of view of his intellectual flourishing, we might say, there are better ways he should be spending his time. (SOSA, 2007SOSA, E. A Virtue Epistemology. Oxford: OUP, 2007., p. 89).

As “ciências” aqui são imiscíveis. Procuram algo distinto, e seu diagnóstico, mesmo sendo confluente ou até tendo o mesmo resultado (o de indicar o abandono de uma prática supersticiosa), não são concordantes. Desse modo, não seria contraditório estimar que tal prática divinatória tenha benefícios sociais importantes e eleve a confiança do agente no divino e seu altruísmo, sendo um requisito para sua elevação individual e sua ascensão social em uma sociedade marcadamente teológica. O julgamento da gnoseologia, porém, se bem fundado, desconheceria tais marcadores externa ou internamente edificantes.

2. A gnoseologia deve voltar-se aos aspectos que importam à constituição do conhecimento, assim como o julgamento de performances em geral só pode ser feito em conformidade com as tentativas em questão. Não julga, por analogia, se foi valoroso (no sentido de louvável) o intento de um arqueiro que, precisando levar alimentos para casa, desferiu um tiro em condições que ultrapassam o limiar de sua habilidade, pois em uma situação já precária de sua força física e estando bastante distante do alvo. Um olhar compreensivo, solidário talvez, louvaria o esforço ou desculparia o desespero do arqueiro, abstraindo para tanto a qualidade do tiro e sua motivação - o que uma análise gnoseológica não se permite. O caçador (mais que arqueiro) não teria escolha senão desferir um tiro, mesmo fora de qualquer padrão. E pode até ser bem sucedido, mas não o será por sua competência de caçador. Talvez por seu mérito como pai de família, sua força de vontade, sua confiança cega. Nesse extremo, o resultado pode redimir ou condenar, mas não expressa uma competência.

Em outra situação de caça, o julgamento pode variar. Havendo escassez e pobreza de recursos, o arqueiro poderia, ao contrário, ser mais duramente criticado por ter dado um tiro de qualquer maneira. Ou ainda, não havendo escassez nem desespero, talvez fosse outra a avaliação do tiro. Entretanto, nos domínios internos à arte ou técnica da arquearia, um tiro mal escolhido continuará um tiro mal escolhido:

So, in theory of archery it falls short, and is a ‘‘poor’’ shot. But in respect of the larger ethics of archery, or of the use of bows and arrows, its evaluation would be quite different, and not just in respect of the importance of the targets chosen. (SOSA, 2007SOSA, E. A Virtue Epistemology. Oxford: OUP, 2007., p. 90).

A gnoseologia distingue, pois, o que é constitutivo do sucesso de uma ação do que constitui a avaliação externa de sua importância.

Alguma taxonomia faz-se necessária, a classificar tipos de conhecer, cada qual com exigências próprias de justificação interna ou externa. A taxonomia, porém não dorme no coração das coisas. Ela antes espelha os recursos conceituais de acesso aos fenômenos, quer para circunscrever-lhes a dimensão interna, quer para lhes atribuir relevância. Podemos assim ser severos e julgar irrelevante um tema, como a história da goma de mascar, que Sosa compara com a história da guerra civil americana (de interesse bem mais óbvio e clara relevância). Além disso, o tipo de conhecimento pode exigir justificação diversa, com procedimentos bem distantes entre si. Uma coisa é saber que as costas nos doem em um dado instante ou que vemos uma superfície vermelha; outra, bem mais refinada, é conhecer a história da revolução francesa. Alguns registros de conhecimento podem, enfim, exigir o detalhamento de causas, e não serão conhecimento sem a possível apresentação desses detalhes, enquanto isso não é necessário nas crenças funcionais. De todo modo, estimações apenas externas ao próprio tema não caracterizam uma gnoseologia. E o reconhecimento de uma ética intelectual (da importância de atitudes passíveis de valoração na ação humana, que podem ademais ser o objeto de uma boa sociologia, uma antropologia ou, quem sabe, uma psicologia) não nos obriga a deslocar o resultado desse estudo para a estimação interna do que é próprio à constituição de crença aptas, ou seja, crenças verdadeiras porque competentes.4 4 Most of the history of epistemology has had the narrower focus of the theory of knowledge. Interest did eventually shift from the focus on the nature of knowledge in the Theaetetus, towards an interest in how far we can be justified in our beliefs generally. But this latter question is that of how extensively we can attain the kind of epistemic justification and aptness that is constitutive of knowledge. It is therefore still a concern in the theory of knowledge, not in intellectual ethics, and so it remains to the present day. (SOSA, 2007, p. 91.)

3. A distinção importa em tarefas distintas. Sem dúvida, gnoseologia e ética intelectual têm a verdade como um objetivo, assim como a coerência. Filósofos sempre discorreram sobre essa norma primeira do processo de conhecimento, a saber, a de que devemos preferir a verdade à falsidade, invocando em tal defesa razões pragmáticas e mesmo razões lógicas, uma vez que, na forma mais pura da contradição, o falso é inclusive um puro e simples abismo para o entendimento, sendo possível derivar dela qualquer coisa. Como a gnoseologia pode conceder um lugar preferencial à verdade? E como esse lugar preferencial concedido à verdade organiza, enfim, a gnoseologia como um projeto epistêmico específico?

Em “The Place of Truth in Epistemology”, Sosa aponta uma tarefa clara para gnoseologia, que deve responder sobre o valor interno da verdade, em relação a performances aptas.5 5 Redigido em 2002 e publicado em 2003, o artigo guarda sintonia com o livro A Virtue Epistemology (no qual se encontram as conferências Locke, proferidas em Oxford, em 2005), significando uma inflexão importante na obra, pois nele (i) Sosa renuncia à noção de safety como uma cláusula necessária ao conhecimento, embora a cláusula não se torne desimportante; (ii), temos nele a primeira (conquanto incompleta) ocorrência do modelo de avaliação de performances télicas, o exemplo modelar da arquearia, que circunscreve o objeto e o escopo de uma gnoseologia como lugar de reflexão sobre performances epistêmicas; e, nessa linha, (iii) temos uma exposição da noção de performance do agente epistêmico, com uma referência mais direta à Ética a Nicômaco, doravante central. E aqui temos um critério fundamental. Não interessa uma soma infinita de verdades. Muitas delas, por óbvio, são triviais e desinteressantes. O interesse começa nas questões que podem ser formuladas, de modo que verdades se põem como metas, como resultado de tentativas, como o produto de performances, cujo interesse inicial está em serem bem instruídas:

[…] we have no desire for truths per se. When we have a desire for the truth, this is because that desire is implicated in our desire for an answer to a particular question or for answers to questions of some restricted sort. But our interest in the truth in such a case is just our interest in the question(s). (SOSA, 2003SOSA, E. The Place of Truth in Epistemology. in DePAUL, M.; ZAGZEBSKI, L. (Eds.). Intellectual Virtue: Perspectives from Ethics and Epistemology. Oxford: OUP, p. 155-180, 2003., p. 158).

A verdade é logo o fruto de uma aim-directed action. Se a relevância começa na questão, enfatiza-se assim o processo que solicita e procura um resultado e não simplesmente o resultado.

Há padrões de avaliação dessa habilidade conhecedora de interesse da gnoseologia. A verdade é parte do objetivo, mas não todo objetivo. Por isso, não julgamos a qualidade isolada de uma taça de café expresso (que por mero acaso pode ser boa), mas julgamos em conjunto a qualidade da máquina e a competência do barista, se desejamos ter bebidas com padrão de qualidade estável e confiável. Interessa-nos, pois, avaliar, em condições normais, quão confiáveis são os dispositivos e os indicadores que temos de sua performance - em particular, de performances por meio das quais dispositivos lançam suas antenas (gages, sentidos, etc.) em direção à realidade.

4. Se uma crença não deriva do exercício de capacidade intelectual, faculdade, método cognitivo, virtudes intelectuais do agente ou o que seja, então não pode ser atribuída ao sujeito, ao agente epistêmico. Estando além de sua excelência, escaparia a seu controle cognitivo e, por conseguinte, à sua responsabilidade ou mérito. Se é algo que, escapando-lhe embora, o agente ainda faz, esse seu fazer tem uma leitura enfraquecida, “as weakly as does the puppet dance when the puppeteer makes it do so”. (SOSA, 2003SOSA, E. The Place of Truth in Epistemology. in DePAUL, M.; ZAGZEBSKI, L. (Eds.). Intellectual Virtue: Perspectives from Ethics and Epistemology. Oxford: OUP, p. 155-180, 2003., p. 171). Não teríamos nesse caso conhecimento; não teríamos exercitada uma competência cognitiva, tenhamos acertado ou não com a verdade.

Se a verdade tem enfim um valor cognitivo, objeto de interesse de uma gnoseologia, esta nos faz preferir o ato do crer verdadeiro, no qual tanto o crer quanto sua verdade podem ser remetidos ao agente, porque um resultado de seu próprio fazer. Desenhamos assim o escopo de uma disciplina que, ao fim e ao cabo, é normativa, pois preza uma performance epistêmica com valor mais elevado. Logo, se a disciplina se constitui pelas tarefas que deve cumprir, pelas respostas que pode oferecer e, logo, pelas questões que lhe são legítimas, desenha-se-lhe a tarefa específica de estabelecer critérios para uma justificação epistêmica (e, portanto, interna ao domínio do conhecimento) para as performances cognitivas, ou seja, cabe-lhe avaliar o valor da performance do agente epistêmico, de modo que possa ser atribuído conhecimento ao agente, como um sistema confiável capaz de atingir a verdade, “in virtue of the proper operation of its cognitive architecture”. (SOSA, 2003SOSA, E. The Place of Truth in Epistemology. in DePAUL, M.; ZAGZEBSKI, L. (Eds.). Intellectual Virtue: Perspectives from Ethics and Epistemology. Oxford: OUP, p. 155-180, 2003., p. 177.)

Quais então os valores epistêmicos a serem cobrados ou avaliados por uma gnoseologia? Quais os itens normativos que exigem uma avaliação? A lista é variável, sem dúvida, mas alguns traços podem ser estabelecidos, porque não ocorrem aleatoriamente, não são meramente concomitantes à estimação do valor epistêmico. Uma avaliação epistêmica, em sentido próprio, quando julgar a qualidade de uma ação dirigida à verdade, concederá status avaliativo, porque normativo, (a) à verdade sobre a falsidade; (b) ao valor de atingir a verdade como um fazer do agente; (c) ao valor intrínseco de o agente atingir a verdade por um ato creditável à sua condição cognitiva; e (d) à qualidade da performance indutora de uma crença bem fundada que, mesmo sendo falsa, deveria conduzir ao bem esperado, estando o sistema em corretas condições e no ambiente adequado. (SOSA, 2003SOSA, E. The Place of Truth in Epistemology. in DePAUL, M.; ZAGZEBSKI, L. (Eds.). Intellectual Virtue: Perspectives from Ethics and Epistemology. Oxford: OUP, p. 155-180, 2003., p. 177).

Em suma, uma disciplina não se constituiria, se incapaz de separar o que é relevante para seu diagnóstico. Seu escopo não se demarca, caso embaralhe o interno e o externo a seu domínio; e, em se tratando do conhecimento, caso não separe o que configura a autonomia mesma do agente epistêmico. Nesse sentido, como uma disciplina que se volta agora para performances específicas (sendo o conhecimento um caso particular de ações e, enfim, de ações humanas, com a características de não serem meros doings, porque necessariamente deeds), a gnoseologia precisa de um instrumental capaz de separar a boa performance da má performance, uma vez que ambas podem acertar a verdade.

5. A estratégia discursiva de Sosa o leva a trazer as objeções para o interior do seu processo de elaboração teórica. Não é, todavia, condescendente com elas. Em Judgment & Agency, Sosa (2015SOSA, E. Judgment & Agency. Oxford: OUP, 2015a.) foi especialmente generoso com uma “epistemologia” das virtudes responsabilista, à qual pareceu conceder mais espaço, em função da própria ênfase dada às disposições do agente. Entretanto, oferecia então apenas uma abordagem da crença do agente, sobretudo ao emitir juízos. Não pretendia embaralhar o que antes distinguira, nem conferir um lugar destacado às virtudes de caráter (como ter uma mente aberta ou ter coragem intelectual), cuja importância podemos reconhecer, sem deslocar contudo para o domínio epistêmico propriamente dito motivações como as decorrentes de um amor à verdade. Afinal, “[...] the virtues whose exercise is constitutive of knowledge - the gnoseological - require not love but competence”. (SOSA, 2019bSOSA, E. Telic Virtue Epistemology. In: BATTALY, Heather (Ed.). The Routledge Handbook of Virtue Epistemology. New York: Routledge, 2019b., p. 21).

Tendo antes conferido uma atenção algo condescendente, por exemplo, ao livro de Jason Baehr (2011BAEHR, J. The Inquiring Mind: On Intellectual Virtues and Virtue Epistemology, Oxford: OUP, 2011.), precisou depois afastar qualquer vagueza. Sua réplica a comentários de Baehr sobre Judgment & Agency é esclarecedora, pois reafirma o campo de uma gnoseologia com toda precisão, deixando claro um alvo de fundo da própria distinção, qual seja, o conflito entre responsabilistas e confiabilistas. Uma gnoseologia tem a clara tarefa de identificar, no fenômeno das performances télicas cognitivas, aquelas dirigidas à procura da verdade, ou seja, os elementos constitutivos do conhecimento. As virtudes não podem ser avaliadas externamente à natureza da ação empreendida. Assim, [l]oving motivation is irrelevant to theory of knowledge, or gnoseology, nor is it relevant to theory of inquiry, or pursuit of knowledge. (SOSA, 2017aSOSA, E. Replies to comments on Judgment and Agency. Philosophical Studies. vol. 174, n. 10, p. 2599-2611, 2017a., p. 2600). A gnoseologia volta-se, pois, a performances dirigidas a fins, orientando esse fim acertar a questão relevante ou, em nível mais elevado, chegar à verdade de modo confiável, relativamente ao campo relevante de questões. O valor do conhecimento não decorre de alguma motivação elevada ou valorosa que seja, mas independente do processo de constituição do conhecimento. Um tal caminho de explicação não poderia constituir a gnoseologia como disciplina, não podendo estabelecer uma solução para os dilemas clássicos e os contemporâneos. Ao contrário, são as competências constitutivas do conhecimento que podem fundar uma epistemologia voltada à explicação do conhecimento humano.6 6 Other epistemically important traits- such as open-mindedness, intellectual courage, persistence, and even single-minded obsessiveness- are certainly of interest to a broader epistemology. They are of course worthy of serious study. But are they in the charmed inner circle of traditional epistemology? No, they may be only ‘‘auxiliary’’ intellectual virtues, by contrast with the ‘‘constitutive’’ intellectual virtues of central interest to virtue reliabilism. (SOSA, 2017a, 2601).

Sosa concede bastante tempo a seus interlocutores, mas não por um ato de pura boa vontade, que bem sabemos nunca lhe faltar. É mais um ato epistêmico estrito. Elaborar contraexemplos e responder a objeções são faces de uma estratégia metodológica, em conformidade com o escopo traçado para a gnoseologia, um arco definido exatamente pelo que pode ser atribuído ao exercício de virtudes intelectuais epistêmicas. Afastada a ilusão de uma concessão mais ampla e vaga às virtudes do sujeito, podemos deixar as questões práticas para a boa prática, sabendo inclusive que, do ponto de vista prático, algum excessivo zelo epistêmico, caso deslocado da realidade, pode até comportar um dano. Entretanto, vale a regra fundamental: a gnoseologia, enquanto um domínio com razões internas e padrões de avaliação próprios, está blindada em relação a incursões práticas. Da mesma forma, em performances de outra natureza, padrões normativos também se estabelecem, e tais padrões são, obviamente, normativos e relativos a cada domínio, de modo que a competência para atingir sucesso em um jogo de beisebol pode ser bem estabelecida, mesmo não se assemelhando ao que seria o bom desempenho em um jogo de pôquer.

Razões pragmáticas podem inspirar a mera opinião ou valorizar a mentira. Da mesma forma, vantagens potenciais, reais ou ilusórias, podem e costumam motivar o agente, mas não determinam a natureza mesma dos juízos, enquanto performances dirigidas a um fim, no caso, à verdade.7 7 Vale aqui, em benefício da clareza, o possível pleonasmo. Pode-se questionar que, em se tratando de uma performance, ela só pode ser télica. Caso contrário, seria apenas comportamento, e não um comportamento que envolve uma performance. Mesmo por ênfase, é conveniente explicitar o aspecto télico, mas, doravante, deixamos isso suposto e somente mencionamos performances que são ações dirigidas a finalidades, sejam elas episódicas ou constantes, e mesmo conscientes ou não. A razão pragmática é louvável, se motivacional, mas indevida, caso interfira no processo de atingir a verdade, como quando alguém rouba o gabarito de uma prova, sem apreciar sequer a correção entre o gabarito e as respostas certas. Ser télica a normatividade epistêmica da gnoseologia, ou seja, serem dirigidas à verdade as ações humanas que tem sob seu escrutínio, é algo que tanto a protege contra interferências práticas extrínsecas, quanto a situa em um campo mais amplo da ação humana, beneficiando-a então com a análise mais ampla das diversas performances. Desse modo, definir o conhecimento como uma ação implica, por um lado, enunciar uma tese específica da epistemologia das virtudes, doravante télica, e também, por outro lado, estabelecer as razões intrínsecas a um critério taxonômico.

6. Definir o conhecimento como uma ação é bem mais que uma analogia: “[…] telic virtue epistemology takes judgment and judgmental belief to be forms of praxis, of intellectual praxis.” (SOSA, 2020aSOSA, E. Knowledge, Default, and Skepticism. In GRAHAM, P. ; PEDERSEN, N. (Eds.). Epistemic Entitlement. Oxford; OUP, 2020a., 205). Além disso, ser uma ação normativamente dirigida a fins e passível de ser julgada como uma performance, isso oferece uma chave essencial de acesso ao fenômeno do conhecimento, a partir da qual podemos responder às duas questões platônicas clássicas - primeira, o que faz com que o conhecimento seja mais que uma opinião verdadeira? Ou seja, qual sua natureza? E, segunda, por que devemos preferir o conhecimento à opinião verdadeira? Ou seja, qual o seu valor?

Uma observação gramatical sugere a ligação óbvia entre a natureza do conhecimento e seu valor superior. Um traço gramatical mostra quão entranhada está na organização conceitual da experiência a diferença de valor entre crer e conhecer. Uma coisa é dizer que procuramos uma resposta e queremos conhecer a resposta (o que agrega valor e tem sentido). Outra coisa é dizer que procuramos uma resposta e queremos acreditar na resposta (o que não agrega valor e tem pouco sentido, sabendo mesmo a um paradoxo). Se é assim, uma tarefa gnoseológica é dar a razão dessa valoração que a gramática sugere ser também uma explicação da natureza do conhecimento. E a gnoseologia deve fazer isso de uma maneira que ultrapasse essa simples intuição gramatical, mostrando a raiz comum capaz de unificar em uma resposta orgânica nossa apreciação sobre a natureza do conhecimento, de modo que tal afirmação também implique seu valor superior. Em suma, cabe mostrar que as duas questões se unificam em uma única resposta, capaz de dar conta tanto da reflexão histórica sobre o conhecimento, quanto das sutilezas do problema de Gettier.

Conhecimento é uma performance intelectual, uma crença, que satisfaz as três condições normativas de ser acertado (de atingir o alvo da verdade), de ser adequado (de comportar competência conforme à questão) e, enfim, de ser apto, ou seja, de acertar porque adequado, de atingir a verdade por manifestar competência, e não por mero acaso. Conhecimento não é simplesmente uma crença acertada ou adequada; é sim crença apta.8 8 Escolhemos os termos “acertado”, “adequado” e “apto”, visando a preservar a estrutura de triplo AAA usada por Sosa (por Accurate-Adroit-Apt) para determinar uma ação normativamente bem sucedida. A escolha envolve significativo artifício. De toda forma, nenhuma tradução dá exatamente conta da descrição, que tem sim, já na origem, a marca de um arbítrio técnico.

A performance a ser analisada pela gnoseologia não procura uma coleção de verdades, mas sim a verdade e a aptidão. A aptidão é o adicional significativo para qualquer performance, sendo essencial, também no domínio epistêmico, a pergunta sobre a meta ter sido atingida (ou não) por causa da competência do agente. No caso das performances intelectuais, a gnoseologia pode responder à questão da natureza indicando que o conhecimento se distingue da mera opinião verdadeira por comportar a cláusula adicional da aptidão. Também, pode responder à questão do valor mostrando que o conhecimento se distingue da mera opinião, é melhor que a mera opinião exatamente por comportar aptidão. Com isso, as duas questões têm a mesma raiz e uma resposta equivalente, que configuram um escopo para a gnoseologia e desenham internamente um domínio epistêmico.

O núcleo da resposta oferece também a melhor reação ao problema de Gettier. Com efeito, o problema de Gettier solicita uma cláusula adicional que resolva ou dissolva o enigma de termos uma opinião que acerta a verdade, que se move ao lançar-se à verdade com competência (ou seja, está bem justificada, tem razões para crer) e, não obstante, chega ao alvo sem resultar da competência do agente e, por conseguinte, sem ser apta. Usando o exemplo da arquearia (que é, como veremos, bem mais que um exemplo, porquanto oferece um modelo de avaliação da normatividade télica), o enigma consiste em um tiro de grande competência do arqueiro no momento do disparo da flecha ser, entretanto, compatível com esse tiro acertar o alvo, mas já sem manifestar a competência do arqueiro na chegada. Esse, um dos grandes enigmas a serem resolvido no âmbito da gnoseologia com os recursos da epistemologia das virtudes télica, com a resposta estratégica da exigência normativa da aptidão, ou seja, o enigma de uma performance competente e bem sucedida, mas comprometida por algum lance ou ameaça do acaso.9 9 Analisaremos na seção seguinte, “Sorte e Performance”, essa situação gettieresca, cifrada no modelo pela possibilidade das rajadas concorrentes de ar que terminam por retirar o crédito do arqueiro.

A circunscrição disciplinar é normativa. A ética intelectual bem pode orientar uma teoria da investigação. Pode descrever as atitudes mais favoráveis aos melhores resultados e mesmo detalhar procedimentos que lhes sejam correlatos. Entretanto, se externos aos critérios mesmos que podem distinguir uma proposição com a marca do conhecimento (que, portanto, é mais que mera crença verdadeira), não fica exatamente claro por que não seríamos mais beneficiados por nossos vícios intelectuais, não sendo sempre claro que um líder, para obter resultados, deva demonstrar humildade intelectual ou deva preferir a colaboração. Em suma, não só se distinguem gnoseologia e ética intelectual, como também, para orientar uma pesquisa de modo apropriado, uma ética deve acolher medidas que ela mesma não pode estabelecer, porque decorrentes e dependentes de uma gnosoleogia - lugar bem definido no qual se travam grandes batalhas filosóficas de definição do conhecimento (sobretudo na pauta estabelecida pelo problema de Gettier), de relação entre juízo e suspensão do juízo, de conhecimento e ceticismo.

Ao fim e ao cabo, temos campos separados, com regras distintas que inclusive podem conflitar. Há, porém, uma normatividade interna à produção de conhecimento que sobredetermina os outros campos e mesmo limita o grau de exceções toleráveis. Em sendo assim, tão só medidas internas ao exercício competente de uma performance cognitiva (uma voltada ao acerto epistêmico e importando em controle epistêmico da deliberação judicativa) podem estabelecer a margem tolerável de variação de uma performance epistêmica acertada, adequada e apta. Sem depreciar as questões do interesse de uma sabedoria do inquérito, nas quais se entrechocam performances epistêmicas e questões de ética intelectual aplicada, ter uma resposta adequada acerca de como performances epistêmicas se realizam e podem ser estimadas é sim o caminho interno e filosoficamente apto para se chegar (digamos, de dentro) a uma resposta adequada à demarcação do campo próprio da gnoseologia.

7. A filosofia nunca desdenhou da orientação do entendimento. Tradições investigativas procuraram, por exemplo, afastar ídolos que prejudicam o acesso à verdade ou sugeriram alguma psicanálise conceitual ao investigador. Por vezes, no sentido de ver bem uma questão, já se sugeriu alguma terapia dos usos ou dos abusos da linguagem. Investigações dessa natureza têm pois seu lugar e interesse, mas não estão no âmbito mais restrito de uma realização gnoseológica estrita. Uma investigação pode até ser empreendida por uma motivação ociosa e externa; não é sequer desprezível, afirmou Hume, que nossos estudos visem à simples vantagem da satisfação de uma inocente curiosidade, pois isso “oferece um acesso aos poucos prazeres seguros e inofensivos conferidos à raça humana”. (HUME, 2004HUME, D. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. São Paulo: Editora Unesp, 2004., p. 25).

Por ser télica a realização epistêmica, enfatiza-se, como definidor, o fato de ser internamente orientada a uma meta, orientada em função do conhecimento; e ainda, em seu nível mais elevado, a procura gnoseológica é, com o perdão do advérbio, conhecedoramente orientada. Não por acaso, a compreensão adequada dos ramos da epistemologia exige a separação interna entre teoria do conhecimento e ética intelectual, pois tal exigência decorre de uma visão específica da natureza do conhecimento como performance estritamente epistêmica, com foco portanto no que é constitutivo do conhecimento e, logo, próprio de uma justificativa epistêmica.

A circularidade aqui não é viciosa, mas sim produtiva e reflexiva. A procura do conhecimento é télica e, logo, internamente orientada, e isso se reflete na atitude meta-competente de uma gnoseologia, que também se mede pelo exercício de uma aptidão. Com isso, para uma gnoseologia telicamente orientada, o erro é mais grave que a mera falsidade. Pode-se afinal estar em erro, mesmo esbarrando com a verdade. Esbarrar com a verdade não é o essencial e pode resultar de um erro. Pode ser fraqueza da vontade ou de caráter o simples medo de errar, que leva ao erro de se evitar uma tentativa. Por isso, não será recriminado o jogador que, em apuro total de tempo e sem opção, tenta atingir a cesta do outro lado da quadra, bem além do seu alcance competente. Essa é uma consideração pragmática de outra ordem, que não afeta o preceito gnosiológico cartesiano que julga mais grave o erro que a falsidade. A diversidade de respostas não nivela tudo, não faz valer qualquer coisa, sendo preservada a normatividade de cada domínio. Em suma, se há erro em não tentar, não há crédito em se tentar de qualquer jeito, sem preservar a normatividade interna ao domínio em questão, seja ele da alçada do basquetebol, seja ele epistêmico.10 10 It is an assessment of a sort of intellectual, cognitive status of a belief that is potentially constitutive of knowledge, when that belief does amount to knowledge. This is a status both (a) logically independent of the mere truth of that belief, and (b) constitutively by virtue of having which a belief might amount to knowledge. (Any practical advantages provided to the thinker by hosting their belief would then be irrelevant to the gnoseological assessment of that belief, including intellectually “practical” advantages as to whether and how that belief might aid the success of future inquiry. The latter would seem relevant to a certain epistemic assessment of that belief, but not to its gnoseological assessment). (SOSA, 2021, 85n)

A epistemologia das virtudes télica traça um novo rumo para a gnoseologia como disciplina télica e normativa, fazendo depender nossos arranjos conceituais de uma leitura dos fenômenos eles próprios. E esse é um acontecimento filosófico de grande envergadura. A definição do conhecimento, da natureza do conhecimento, tem doravante uma chave na compreensão do que seja seu valor, disso que afinal resulta como um crédito para o agente epistêmico. Portanto, não se trata apenas de demarcar no interior da epistemologia o campo da teoria do conhecimento, mas sim, a partir da definição do que o conhecimento pode ser, redefinir o campo da epistemologia. Trata-se ademais de atualizar seu lugar a partir da resposta a suas exigências teóricas mais centrais, como as que analisam o conhecimento como uma espécie de performance à qual (em geral, ao menos) repugna a mera sorte.

2 Sorte e performance

1. Em março de 2016, em uma sessão do Collège de France, Ernest Sosa discorre sobre conhecimento e justificação - conferência que, com alguma mudança, será o capítulo conclusivo de seu Epistemology. A exposição é cristalina, didática até, em tom elegante e voz não muito elevada. A exposição se encerra com uma frase, que Sosa enuncia diminuindo ainda mais o tom da fala, como se, após um percurso rico de exemplos e contraexemplos, ele revelasse (entre embaraçado e tímido, e com um sorriso deveras maroto) uma verdade simples e forte: “Not all luck spoils performance”. A conclusão é emblemática da reflexão mais recente de Sosa, cujo contexto tem uma nota forte: “Human beings act in performance domains”. (SOSA, 2019aSOSA, E. Reflection and Security. Episteme. vol. 16, Special Issue 4, p. 474-489, 2019a., 474). Trata-se, pois, de analisar a relação entre ‘sorte’ e ‘performance’, tendo em conta a experiência humana do conhecimento.

2. O problema de Gettier anatematizou a noção de sorte. A definição do conhecimento como opinião verdadeira justificada estaria afinal em cheque exatamente por ser possível a situação na qual o sujeito enuncia uma proposição verdadeira e nela acredita, estando também justificado em sua crença, embora chegue a tal proposição por acaso, pois lhe escapa, em suma, o controle epistêmico desse específico acesso à verdade. A mera sorte retira crédito ao sujeito; e, com efeito, é melhor atingir a verdade dominando os meios desse acesso. Quem domina o caminho para a verdade, entre outras coisas, pode mostrar a todos esse caminho, pode conduzir qualquer um pelos mesmos passos. Logo, devemos preferir o conhecimento à mera opinião verdadeira, à semelhança de preferirmos o método ao caos.

O problema de Gettier redefiniu a pauta de investigação da epistemologia contemporânea. Ele revolveu a calmaria reinante “in the complacent 1950s”, nos quais “it was received wisdom that we know a given proposition to be true if, and only if, it is true, we believe it to be true, and we are justified in so believing”. (SOSA, 2015bSOSA, E. Getting it Right. The Stone - The New York Times, 2015b. Disponível em: Disponível em: https://opinionator.blogs.nytimes.com/2015/05/25/getting-it-right/ Acesso em: 02/08/2016.
https://opinionator.blogs.nytimes.com/20...
, p. 01). Não que na literatura filosófica não houvesse exemplos “gettierescos” anteriores,11 11 Here is one kind of example: Imagine that we are seeking water on a hot day. We suddenly see water, or so we think. In fact, we are not seeing water but a mirage, but when we reach the spot, we are lucky and find water right there under a rock. Can we say that we had genuine knowledge of water? The answer seems to be negative, for we were just lucky. This example comes from the Indian philosopher Dharmottara, c. 770 CE. The 14th-century Italian philosopher Peter of Mantua presented a similar case: Let it be assumed that Plato is next to you and you know him to be running, but you mistakenly believe that he is Socrates, so that you firmly believe that Socrates is running. However, let it be so that Socrates is in fact running in Rome; however, you do not know this. (Ichikawa; Steup, 2018.) nem que a definição clássica de conhecimento não tivesse outrora recebido críticas.12 12 A. M. MacIver, por exemplo, em seu célebre discurso inaugural, sintetiza com uma pergunta a definição platônica apresentada no Teeteto “Pode ser dito, então, que conhecimento é crença verdadeira racionalmente fundada?”, para lhe contrapor diretamente o gettieresco exemplo outrora elaborado por Bertrand Russell, de afirmar, em 1912, que o nome do último primeiro ministro britânico começaria com a letra B, supondo ser Balfour, no que acertava com uma proposição verdadeira, mas por ter sido Bannerman, sem a verdade implicar aí conhecimento. (Cf. MaCiver, 1958, p. 3-4.) Nenhuma ocorrência prévia, porém, fizera começar o programa de investigação desencadeado pelo singelo paper de Edmond Gettier. O problema podia ser conhecido, mas não parecia relevante. E, como o sentido de uma questão depende da natureza da resposta que podemos oferecer, todas as pistas para o problema de Gettier terminavam por ser absorvidas ou por retornar à sofisticada inocência epistemológica de décadas ou séculos complacentes.

Vivia-se ademais a ilusão de haver uma definição clara, abrangente e única de conhecimento. Gettier teria mostrado, porém, que a definição cristalina do conhecimento como opinião verdadeira justificada não seria abrangente, pois seria falha e não daria conta de todos os casos. O campo vasto da epistemologia, por conseguinte, não tinha antes formulado a questão gnoseológica estruturante, uma que solicitasse método próprio e pautas convergentes, na dimensão de um programa de investigação com fronteiras relativamente definidas, organizando a experiência que tão somente assim pode dispor-se à nossa mais óbvia taxonomia.

3. Um programa filosófico de análise pode sugerir caminhos ambíguos. A análise tende a voltar-se mais para conceitos do que para fenômenos, procurando-lhes as condições necessárias e suficientes de enquadramento e emprego. E, como as três cláusulas (P é verdadeira; S acredita que p; e S está justificado em acreditar que P) se mostraram insuficientes, a procura de uma nova cláusula parecia impor-se. Um caminho foi o de propor um acréscimo modal pelo qual a crença adquiriria uma incontroversa nota característica que a alçaria ao posto de conhecimento. Para isso, por exemplo, a crença deveria ser sensível (sensitive), de modo que, se não fosse verdadeira, nós não a teríamos (~p®~Bp) - estando ‘Bp’ por ‘acreditar que p’.

Ora, a condição de sensitivity dificilmente é sustentável e pouco pode resistir a ameaças céticas. Havendo sensitivity, se o fato fosse diferente, nossos sentidos, nossos instrumentos (gages) mostrariam algo diferente. Se o que ocorre, se a realidade fosse diferente, a aparência seria diferente e, logo, outra seria nossa crença. Entretanto, o agente epistêmico ficaria impotente diante do pleito do cético de que nossa experiência pode ser ilusória e enganadora. Nesse caso, nossos instrumentos, nossos sentidos não indicariam nenhuma mudança. Eles não indicam por si, no cenário cético, que estejam desconectados; e não temos afinal acesso ao próprio fato do acesso, não temos conexão com a conexão, não somos, em suma, sensíveis ao fato pressuposto pela condição da sensitivity.

A sensitivity pode, contudo, ser substituída com vantagens por um laço modal distinto, o de segurança (safety), que, à primeira vista, parece uma mera contraposição do condicional modal anterior (Bp®p). Entretanto, tais condicionais são subjuntivos, não lhes sendo válida a contraposição. Não sendo equivalentes sensitivity e safety, parece uma legítima e necessária condição modal para uma crença ser conhecimento que ela satisfaça a condição de segurança, a saber, uma crença capaz de postular a condição de conhecimento seria uma tal que nós a teríamos apenas se fosse verdadeira. (SOSA, 1999aSOSA, E. How to Defeat Opposition to Moore. Philosophical Perspectives, vol. 13, Dossier Epistemology, p. 141, 153, 1999a.; 1999bSOSA, E. How Must Knowledge Be Modally Related to What Is Known?. Philosophical Topics. vol. 26, n. 1 e 2, p. 373-384, 1999b.; 2000SOSA, E. Modal and Other A Priori Epistemology: How Can We Know What is Possible and What Impossible?. The Southern Journal of Philosophy. Vol. 38, Issue S1, p. 1-16, 2000..) Uma condição que Sosa não descarta simplesmente, mas admite (o que tem consequências decisivas para a própria classificação dos níveis de conhecimento) que uma crença pode ser insegura (unsafe), porque sobredeterminada, e todavia constituir conhecimento. (SOSA, 2002SOSA, E. Epistemology. Princeton: Princeton University Press , 2017b., p. 6).13 13 Aqui, parece-nos mais consistente a leitura de John Greco, que enfatiza a filiação constante de Sosa à cláusula modal da safety (GRECO 2018), do que a sugestão forte de Turri de que teria havido um puro e simples abandono da noção de safety - que para ele, de resto, seria uma aberração: “The addition of safety in the interim was an aberration”. (Turri 2013, p. 161) A língua portuguesa não separa bem as noções de ‘safety’ e ‘security’, talvez por serem mesmo gradações de uma única noção. Podemos, porém, ter conhecimento em um nível, apesar de unsafe a crença, mas haveria um nível mais elevado, de conhecimento completamente apto, que precisa sim ser secure.

Uma objeção de natureza cética também pode ser feita à ideia de ser conhecimento o que, todavia, não satisfaz a condição de safety. Uma inferência parece natural, mas tem consequências desastrosas. Se julgamos apta uma performance em contexto no qual o agente ignora a iminência de um risco, pressupomos que esse risco não há de se confirmar. Como a não confirmação da ameaça é condição de crença, parece fácil supor com o cético que também precisamos saber isso que tomamos como um pressuposto. A ilação, todavia, beira o absurdo. Ou seja, saberíamos não haver risco de corte de luz durante um lance de beisebol, nem ameaça de explosão do planeta antes de dar partida a um automóvel ou enfim de estarmos em um condado de celeiros falsos. Isso, porém, é algo que não sabemos, ao tempo da performance.

O mero perigo pode, entretanto, suprimir nossa capacidade epistêmica e nosso crédito télico? Ora, essa confusão entre conhecimento e pressuposto do conhecimento nos levaria a suprimir a possibilidade inteira do conhecimento humano, sendo ainda mais absurda sua consequência, qual seja, a pura e simples suposição de não haver nenhum conhecer possível. Se temos a sorte de escapar desse perigo mais devastador, essa sorte não compromete nossa performance e, nesse caso, não estamos sendo inconsequentes. Apenas cumpre separar o que, em dado momento, se nos apresenta como leito onde corre o rio de nossas proposições legítimas das próprias proposições passíveis de verdade ou falsidade, recuperando aqui, com Sosa, uma imagem de Wittgenstein. A chamada cética, se acolhida, levar-nos-ia a um regresso ao infinito, exigindo-nos a aplicação de uma medida de saber para o que todavia é uma condição de saber, uma background condition.14 14 What makes such conditions mere background conditions is that, although they must hold, the performer can perform aptly without knowing that they will hold. Nor need they hold safely. (SOSA, 2017c, p. 3). E a ligação entre a performance apta e seus pressupostos não pode nem precisa ser feita por “raciocínios”, como o que leva à ilação que acima indicamos como absurda.

4. O problema de Gettier anatematiza a mera sorte, mas comporta uma possibilidade deveras atraente. Sua estrutura, se bem compreendida, ultrapassa o campo do conhecimento. Ou seja, ao favorecer a apresentação do conhecimento como uma ação cognitiva dirigida à verdade, o problema possibilita uma leitura cuja estrutura pode ser aplicada a performances em geral e, logo, a outros campos da ação humana, como o desempenho de atletas ou atividades humanas mais ordinárias. Com efeito, “a performance of whatever sort is Gettiered if it is both accurate and adroit without being apt”. (SOSA, 2010SOSA, E. How Competence Matters in Epistemology. Philosophical Perspectives. vol. 24, n. 1, p. 465-475, 2010., p. 467).

Tal descrição geral das performances é uma escolha teórica importante e parte essencial da solução do problema, bem como das condições de uma classificação da epistemologia bem orientada por uma perspectiva gnoseológica. Assim para o atleta, como para o agente epistêmico, há um modelo, uma estrutura do que seja uma normatividade télica. Aqui não se separam ação e contemplação, que podem ser descritas segundo a mesma normatividade télica, de sorte que, por esse viés, depois de muitas circunvoluções técnicas, o problema de Gettier pode encontrar, como afirma Sosa, uma solução surpreendentemente simples. (SOSA, 2011SOSA, E. Knowing Full Well. Princeton: Princeton University Press, 2011., p. vii).

A análise de ações dirigidas a metas oferece um modelo normativo, que pode ser exposto com clareza pela descrição de uma performance atlética, o exemplo privilegiado da arquearia, tomado então como um modelo de avaliação de desempenho de ações estruturalmente orientadas a uma finalidade - modelo que torna claros fenômenos centrais de uma teoria télica, como tentativa, sucesso, competência, aptidão e realização.

If an archer shoots aiming to hit a certain target, we can assess that shot in various respects. First, does it succeed? Does it hit the target? Second, how competent is that shot? The arrow may exit the bow with an orientation and speed that would normally take it straight to the bullseye. Even if a gust diverts it, that shot may still be highly competent. It might thus be adroit without being accurate. And it can be accurate by luck, without being adroit. But even a shot that is both accurate and adroit might still underperform. An arrow adroitly released from a bow may be headed straight to the bullseye when a gust diverts it, so that it would now miss the target, except that a second gust puts it back on course. The archer succeeds in that attempt to hit the target, and the shot is also competent, as the arrow leaves the bow perfectly directed and with the right speed. But the shot is accurate because of the lucky second gust, not because of its adroitness. So, it is accurate and adroit without being apt. (SOSA, 2021SOSA, E. Epistemic Explanations: A Theory of Telic Normativity, and What It Explains. Oxford: Oxford University Press, 2021., p. 20).

À luz de uma teoria da normatividade télica (parte ciência, parte filosofia), o modelo dá conta de performances em geral e, em particular, no caso das rajadas concorrentes de ar, das situações gettierescas. A abordagem é toda ela normativa, com prescrições como: é melhor ser competente do que inepto; é melhor também ter sucesso do que não ter, admitiríamos: melhor ainda é ter sucesso em função de nosso mérito, de nossa habilidade, de nossa competência. Um gesto télico, em conformidade com esse modelo, pode então ser definido como:

  1. não sendo conhecimento (ou não sendo ato creditável ao agente), caso:

    1. ~Acertado, ~adequado e ~apto (um tiro às cegas que fracassa);

    2. Acertado, mas ~adequado e ~apto (um tiro às cegas que acerta o alvo);

    3. Adequado, mas ~acertado e ~apto (um tiro feito com competência mas que se desvia do alvo);

    4. ~[Adequado e ~acertar, mas apto] (Um limite gramatical da descrição, pois indica algo que jamais pode ocorrer. Para ser apto, ele precisa ser acertado e adequado, pois acertado porque adequado.);

    5. ~[Acertado e ~adequado, mas apto] (Outro limite gramatical da descrição);

    6. Acertado e adequado, mas ~apto (um tiro que chega ao alvo, mas por efeito das rajadas duplas que se compensam, sendo esta a situação propriamente gettieresca de uma competência de partida que não se mantém na chegada, pois o acerto não expressa competência, cabendo debate se a presença da sorte em qualquer caso suprime o crédito télico);

  2. sendo conhecimento (ou ato creditável ao agente), em vários níveis ou gradações, mas basicamente segundo uma bi-level descrição, caso:

    1. Acertado, adequado e apto (logo, nível básico de conhecimento, conhecimento animal, seja por não envolver uma reflexão, seja por ser unsafe);

    2. Acertado, adequado e completamente apto (ou seja, conhecimento reflexivo, que pode ser, em nível mais elevado, um conhecimento seguro, sendo a safety não mais uma condição necessária, mas sim uma nota distintiva do nível superior de conhecimento.)

5. As perguntas formuladas acerca do desempenho do arqueiro conformam um campo gnoseológico específico. Elas podem ser dirigidas, mutatis mutandis, a todas as performances humanas e, portanto, servem para aquilatar cada caso possível de conhecimento, do mais óbvio ao mais enigmático. Nossos olhos se voltarão sobretudo a duas situações - a nosso ver, as mais desafiadoras do modelo, inclusive por algum possível e questionável sombreamento recíproco. A situação a.6, na qual não se apresenta como incompatível a situação de um agente que manifesta competência e acerta o alvo, sem ter sido apto; e a situação b.1, nos casos em que parece possível atribuir conhecimento a quem não satisfaz a cláusula da safety.

Uma performance qualquer é “gettierizada” caso acertada (no sentido estrito de acertar o alvo) e também adequada (no sentido de se servir dos meios apropriados e conformes, comportando pois competência, habilidade para a finalidade em questão), sem ser apta (sem manifestar o laço gramatical interno que sobredetermina o acerto pela adequação). Caso alcance o sucesso por acaso, o crédito do agente (seja um atleta, seja um cientista) fica comprometido.

Parece agora natural aplicar categorias assemelhadas a performances bastante afastadas entre si. Por exemplo, caso atinja por acaso o alvo, o mérito não seria do arqueiro, assim como não teria tido conhecimento quem acaso acerte uma resposta de múltipla escolha no puro chute. Temos por vezes alguma hesitação em saber quem deve ser registrado na súmula do jogo como autor de um gol que acabou sendo um “gol contra”. Porém, caso alguém acerte chegar a um destino ou acerte com a verdade, mas sem ter contudo traçado um caminho, sem ter as coordenadas devidas ou sem estar bem justificado ao enunciar uma proposição, desse agente decerto não diríamos que nos possa guiar ou que tenha conhecimento.

Enquanto performances, as tentativas podem ser avaliadas em função de suas respectivas metas e, sobretudo, do modo como as atingem. Nessa linha, podemos ter enfim uma epistemologia das virtudes afirmada como télica - que dá assim conteúdo e forma a uma gnoseologia (ou vice-versa). Por isso, Sosa se refere a uma epistemologia das virtudes aprimorada, que contribui ainda melhor para uma compreensão mais precisa do problema de Gettier. O agente chega à verdade no exercício de virtudes intelectuais apropriadas; assim, não chega por acaso, antes podendo explicitar um vínculo entre o conhecimento alcançado e o meio por que se o alcançou. Conhecimento não se adquire apenas, mas sim se atinge, de modo epistêmico apto, como o bom arqueiro acerta de modo apto o alvo, no exercício de sua habilidade própria de arqueiro.

Imaginemos, contudo, uma casa com dezenas de relógios, quase todos com uma função decorativa. Por vezes, o colecionador dá corda em todos eles para a manutenção dos mecanismos delicados, mas apenas um desses relógios funciona sempre, com corda e hora ajustada. Os outros são apenas relógios de enfeite, sem garantia de vínculo com a realidade. Ora, um visitante que acaso se guie pelo único relógio que não é de enfeite sabe mesmo que horas são? Sabe sim, mas por acaso? A sorte de olhar para o único relógio usado como relógio compromete sua performance?

A situação do visitante seria semelhante à do arqueiro competente cuja flecha atinge o alvo, mas pela interferência de rajadas de ar que se anularam e, logo, por sorte (situação a.6); ou ele estaria na situação de Barney, que acertou ao reconhecer um celeiro, mas sem saber que estava em um condado de celeiros falsos (situação que talvez possa ser incluída no caso b.1)? A situação parece guardar alguma semelhança com os dois casos, mas em um deles não diríamos que tem conhecimento, enquanto no outro diríamos que sim, mesmo que esse conhecimento não seja plenamente apto - indefinição a ser superada adiante.

A verdade é parte do objetivo, mas não todo o objetivo - lição que merece ser relembrada. A responsabilidade por uma ação, assim como a autoria de um texto, depende de o agente estar no controle da ação, mas que ela resulte ademais de sua capacidade. Vontade e capacidade do agente determinam sua intenção e autoria; logo, permitem configurar uma proposição ou gesto como resultado de uma deliberação, como efeito de uma motivação interna ao agente. O sucesso não resume a tentativa, importando sim como chegamos a ele. Se todas as realizações são frutos de tentativas com sucesso, nem por isso todas as tentativas de sucesso são realizações, sobretudo no caso de realizações epistêmicas. (SOSA, 2019bSOSA, E. Telic Virtue Epistemology. In: BATTALY, Heather (Ed.). The Routledge Handbook of Virtue Epistemology. New York: Routledge, 2019b.).

O problema de Gettier traduz sim a ideia de que atingir a verdade por sorte (por acaso) não é ter conhecimento, não é uma realização que possa ser atribuída com direito epistêmico ao agente; entretanto, a sorte, conquanto não possa ser a fonte do conhecimento, não danifica por si o mérito e, portanto, nem sempre é incompatível com o conhecimento. Afinal, como se diz no futebol, o bom goleiro também precisa de sorte. Não seria um bom goleiro apenas por ser sortudo, mas seria desastroso para o melhor dos goleiros, se todas as bolas fossem certeiras, se ele tivesse que enfrentar uma saraivada de chutes fortes vindos de todos os lados. Isso, decerto, ultrapassaria os limites do exercício de sua competência. Ter sorte, confrontar-se com um número razoável de acertos dos adversários, nada disso lhe retira o crédito de sua boa atuação. E, em sentido bem mais amplo, conta com a sorte de que a bola se comporte como tal, não deslizando para além de suas propriedades costumeiras, além de pressupor que, por sorte ou não, a iluminação do campo lhe permita enxergar os lances. Há, portanto, em atividades atléticas um tipo de sorte que não bloqueia o crédito do agente e em cujas margens o agente atinge seu sucesso, manifestando seu talento.

6. A análise do fenômeno solicita outros recursos conceituais, inclusive para a análise mais detida, caso a caso, de performances epistêmicas. Para decidirmos se uma tentativa manifesta aptidão, é preciso analisar a competência em outra dimensão tripla, partindo da qualidade mais íntima, aquela instalada em nosso interior enquanto dispositivos (skill), àquela ainda interna, mas que é uma atualização desse skill em uma forma (shape, digamos, a condição física do atleta, se está sóbrio, etc.) e uma situação externa (situation), que condiciona o exercício dessa competência em dado ambiente, sendo relativa à habilidade e à condição física do agente. Considerando em conjunto SkShSi, temos um padrão de avaliação da competência de uma performance, cabendo enfatizar que não se trata de termos absolutos, mas sim aspectos para a análise da competência. Uma pista escorregadia e a velocidade muito acima de 100km/h podem levar um motorista comum à perda do controle de um automóvel, mas não ameaçam o desempenho de um piloto de corrida em plena forma.

Dados tais parâmetros de análise, uma situação nos interessa especialmente. Podemos creditar ao arqueiro o mérito por um tiro certeiro que mostrou competência, no caso de ter havido uma grande probabilidade de que ventos fortes incidissem sobre o campo? Ou ainda, podemos atribuir ao jogador o mérito por uma tacada, dada sob a iminência de as luzes do estádio se apagarem? Ora, o crédito télico não será negado ao arqueiro, se ele, de fato, mostra sua aptidão, mesmo cercado por uma probabilidade de ventos fortes, caso estes não ocorram. Pode ter crédito em situação portanto unsafe, pois amparado em um fato e não em uma modalidade.

A atribuição de um crédito télico não exige, portanto, uma propriedade modal. O que ocorre efetivamente neste mundo afasta a sombra de qualquer possibilidade, mesmo a mais instalada na trama causal efetiva. Não tendo ocorrido os ventos ameaçadores, por mais prováveis que o tenham sido, o agente vai desfrutar de todo crédito, não sendo ameaçadas sua competência e sua aptidão por uma situação modal desfavorável. Nesse caso (e assemelhados, como talvez o de Barney, que veremos em seguida), não parece necessária a cláusula da safety para atribuição de conhecimento. Com isso, Sosa aproxima sua reflexão de posições de Wittgenstein no Da Certeza, em especial nestes dois parágrafos, cuja compreensão sugere algo equivalente à introdução por Sosa das noções de ‘default assumptions’ e ‘background conditions’:

Em que posso confiar?

Eu quero mesmo dizer que um jogo de linguagem só é possível se alguém confia em algo (Eu não disse ‘pode confiar em algo’). (WITTGENSTEIN, 1975WITTGENSTEIN, L. On Certainty. Oxford: Blackwell, 1975., § 508 e § 509, grifos nossos.)

7. Barney parece ter a terrível sina de não saber ao certo se ele sabe o que, entretanto, realmente sabe. Passeando de carro pelo campo com seu filho, ele aponta e diz “Olhe ali um celeiro”. E, nesse caso, trata-se mesmo de um celeiro. Barney porém enuncia haver ali um celeiro sem ter ciência de que se encontra em um condado repleto de celeiros falsos, pois foram pintadas para turistas apenas as fachadas de celeiros. Em sendo assim, pensam alguns, ele teria acertado por mero acaso e, por conseguinte, não teria realmente conhecimento. Ora, o senso comum não hesita em lhe conceder que saiba tratar-se de um celeiro, e a mais direta observação empírica o comprovará; mas a filosofia, com suas sutilezas, suas luzes e sombras, levanta as mais finas dúvidas conceituais.

Nesses casos enigmáticos, a linguagem parece estar de férias, estando envolto o filósofo em uma nuvem de poeira que ele mesmo provoca. O exemplo, porém, é célebre e nada tem de simples, já tendo sido tachado de gettieresco. Barney já foi Henry em tempos idos. (GOLDMAN, 1976GOLDMAN, A. Discrimination and Perceptual Knowledge. The Journal of Philosophy, 73(20), p. 771-791, New York, 1976., p. 772.) O contraexemplo foi mesmo inventado por Goldman, forçando-o a deixar em aberto a própria solução que acabara de apresentar para complementar as cláusulas definidoras do conhecimento. A situação contrariava exatamente a regra que Goldman acrescentara para resolver o problema de Gettier, pela qual se excluiria a possibilidade de o conhecimento derivar de um conjunto de proposições, entre as quais estivesse uma falsidade. A quarta cláusula de Goldman seria “S’s belief that p is not inferred from any falsehood” - cláusula que daria conta dos casos elencados por Gettier, mas, admitia Goldman, não conseguiria dar conta do exemplo do condado de falsos celeiros. Afinal, pensava ele, Henry (agora Barney) não se baseou em uma falsidade. Viu sim um celeiro e disse ver um celeiro. Não obstante isso, estando em tal condado, Henry não saberia realmente. Sua crença seria justificada e verdadeira, mas não seria considerada uma instância autêntica de conhecimento, mesmo não decorrendo sua inferência de uma falsidade.15 15 Há “soluções” diversas para o problema, que não levantaremos aqui, mas cuja comparação, sugerimos, pode render uma boa dissertação ou um artigo bastante útil. Seria instrutivo revisitar um percurso característico da investigação gettieresca, com posições distintas de nomes de peso como Robert Nozick, Fred Dretske, Alvin Plantinga, Ruth Millikan, Alvin Goldman e o próprio Sosa, que, aliás, tem posições diversas a respeito desse contraexemplo ao longo de sua obra.

Temos uma performance bem sucedida. Será ela apta? Ora, Barney sabe que <p>, “Em tal e tal localização, há um celeiro”, havendo inclusive um laço consistente entre sua percepção e sua crença, ou seja, padrões bem aceitos de reconhecimento de sua experiência anterior com celeiros e de aplicação da palavra ‘celeiro’, contando ademais (e isso é essencial) com o pressuposto padrão de que a aparência de p, em condições satisfatórias de iluminação, etc., deva implicar p. Entretanto, Barney não tinha ciência das condições desse condado singular, por cuja política local estaria comprometido o pressuposto padrão. Barney vira uma exceção, não tendo critérios para discernir celeiros verdadeiros de falsos pela visão exclusiva de suas fachadas.

O coitado do Barney, saído desse inocente passeio, parece condenado a um desses círculos de exemplos e contraexemplos da filosofia analítica que nos costumam retirar o chão. Não sabemos se, ao acertar com a afirmação de estar vendo um celeiro, Barney sabe que <p> e tinha conhecimento ou se, dado ter sido por acaso, ele não sabe que <p>, sendo possível até chegar à conclusão (felizmente, em sentidos distintos) de que Barney sabe e não sabe que <p>. Qual a relevância da questão? Ora, o exemplo parece apenas reiterar o lema do programa de investigação gerado pelo texto de Gettier, qual seja, o de que a mera sorte sempre bloqueia o conhecimento. Analisaremos esse caso sob esse prisma, mas também por acreditar que ele oferece um bom teste à fecundidade do modelo de avaliação de performances próprio da teoria da normatividade télica, instrumento chave da construção de uma gnoseologia.

O dilema de Barney e outros sobre a percepção, sobre a narrativa do que vemos e o conhecimento proposicional, podem mitigar o alcance universal dessa quase inconteste profissão de fé epistemológica. Se a aparência da fachada o levou a concluir pela presença de um celeiro, baseando-se na suposição geral de A(p) implica p - estando A(p) por ‘aparência de p’ -, ele não tinha critérios relevantes para discernir a A(p) da A(p’), sendo p’ indicador do falso celeiro de “mesma” aparência de um verdadeiro. Barney, porém, não está separando a aparência de um celeiro daquela de um moinho de vento ou de uma padaria, tendo sido nisso competente. Sem contar antes com um modelo télico apropriado, a situação de Barney, acreditamos, foi subsumida indevidamente a casos gettierescos. Porém, antes de nos definirmos sobre sua situação, analisemos o item específico das relações entre acerto, adequação e aptidão, a gettieresca situação a.6.

8. Para decidir sobre o crédito do agente, precisamos compreender mais de perto uma das situações previstas no modelo, a que define as situações par excellence gettierescas. No caso de rajadas concorrentes de ar que ao fim se anulam, seria retirado o crédito do agente. Nesse caso, porém, a noção de sorte parece ocorrer contra-intuitivamente, pois as duas rajadas de vento, mais que se compensarem, simplesmente se anulariam. Por isso, pode provocar alguma reação, uma reação quase instintiva, como quando, diante dos exemplos de Gettier, tendemos em um primeiro momento a achar que uma boa justificação, o acréscimo de alguma cláusula esclarecedora da relação epistêmica entre nossas crenças e o mundo, nos devolveria a paz e a satisfação com nossas opiniões verdadeiras e justificadas. Entretanto, que impliquem sorte é essencial, mesmo que a sorte não precise bloquear o mérito inteiro da performance - embora, no caso das performances epistêmicas, retire sim a condição de conhecimento.

Temos uma espécie de sorte que não elimina a habilidade, mas reduz a atribuição de conhecimento. Ora, no caso de algumas performances humanas, apesar dos golpes de ar imprevistos (que talvez se anulem e não apenas se compensem), o sucesso parece conservar algo da competência de partida. Tomemos o exemplo de um orador que profere um discurso em uma assembleia, visando a convencer as pessoas. Ele profere um discurso retoricamente bem construído e ademais bem argumentado, à luz do qual propõe uma resolução. Seu discurso é sedutor e, ao que tudo indicaria, suficiente para a adesão do auditório. Em seguida, contudo, um outro orador critica sua posição com tal veemência que a assembleia passar a inclinar-se em direção contrária; mas, por sorte, um terceiro orador resolve contestar tal posição contrária com semelhante veemência, pois lhe ocorre mais um argumento, ao encontro da primeira fala. E a assembleia volta a inclinar-se em apoio à posição original, que logra vencer. Houve um elemento de sorte, sem dúvida. Não obstante, dificilmente não atribuiríamos o resultado favorável da votação à performance inteligente do primeiro orador, mesmo que não mais apenas a ele. Não seria este um claro caso de uma sorte que não bloqueia inteiramente o mérito?

Um bom modelo deixa brilhar os fenômenos, não os empalidece. A intuição acima parece correta, mas não abala nosso modelo. Apenas mostra que nenhum bom modelo deve ter uma aplicação mecânica, e que, além disso, é preciso distinguir em alguma medida as performances em geral das performances epistêmicas, no que se refere à atribuição final de conhecimento. E o próprio Sosa o confirma. Em correspondência privada, concorda que, no caso dos oradores, há sim um mérito conjunto na ação coordenada, mesmo que não tenha sido combinada e tenha sido casual. O primeiro orador tem sim parte do mérito. Esse caso, porém, insiste, se diferencia da estrutura do modelo. No caso do modelo, a segunda rajada determina o resultado de forma cegamente arbitrária (esse o traço gettieresco incontornável), de modo que o arqueiro não ganha crédito algum quando a segunda rajada atinge o alvo.

No caso do arqueiro, poderíamos arguir que o primeiro golpe de ar muda a trajetória da flecha que se dirigia ao centro do alvo, e somente a intervenção do segundo golpe de ar é responsável por ela atingir o alvo, por chegar a esse resultado. Ficamos intrigados se nessa situação limite o arqueiro não teria mesmo crédito algum. Por exemplo, se ele não tivesse atirado com a força devida, se ele tivesse lançado a flecha em outra direção, o segundo golpe de ar não salvaria o tiro. Já mencionamos nossa tendência, quando no futebol dizemos ter sido feito um gol contra, a atribuir parte significativa do mérito pelo gol ao atacante, mesmo quando não lhe é assinalado crédito. Sosa, todavia, reitera um ponto fundamental. Crédito não é algo absoluto. Envolve sim gradação. Entre uma jogada muito ruim e outra que na origem revelava perícia, há clara diferença e possível atribuição relativa de mérito. A casualidade está presente; e o mérito, se houver, não elimina a sorte, que, por sua feita, tampouco extingue o mérito inteiro da performance, mas sim a atribuição de conhecimento.

De todo modo, se os exemplos que inventamos se encaixam ou não na situação das rajadas de ar concorrentes, essa situação não pode desaparecer do modelo, sendo uma de suas razões de ser. É uma situação estruturante, sendo expressão no modelo exatamente dos casos gettierescos, que acertam a verdade sem a manifestação nesse acerto de uma aptidão própria do domínico em questão e, assim, não merecem crédito télico - e, no caso de performances epistêmicas, não são conhecimento. A situação é modelar e inegociável. Mas compreendê-la bem, ou seja, dispor desse modelo télico de análise de performances humanas, permite-nos ver melhor casos que antes se embaralhavam, e podemos assim decidir que não é nesse compartimento que podemos alocar o caso de Barney e os falsos celeiros, pois não interferiu internamente na performance a informação que ele, de resto, desconhecia.

9. O modelo da arquearia nos ajuda a tomar uma posição. Ele nos ajuda a situar o caso de Barney, favorecendo a noção de que, visto de perto, esse caso não se enquadra na situação gettieresca das duas rajadas de ar, a situação a.6, na qual a sorte suprime uma performance mensurável por critérios internos a um domínio específico, seja atlético, seja epistêmico. As duas rajadas de ar são adventícias e externas à performance, cujo mérito comprometem. A situação de Barney (cuja performance de reconhecimento é bem sucedida e conta com o pressuposto de que a aparência de fachadas de celeiros nos leva a celeiros reais) é antes semelhante àquela do jogador de beisebol, Fielder, que, em típica situação b.1, ignora a informação de que, com grande probabilidade, de uma hora para outra, as luzes podem se apagar, comprometendo a qualidade de seu lançamento ou de sua tacada. E Fielder não estará sendo negligente se ignora tais fatores, que não interferem em seu desempenho enquanto atleta.

A situação de Barney (como nosso visitante na casa do colecionador de relógios) guarda semelhança com a situação de quem vai dar a partida em um automóvel sem se saber ameaçado por uma força alienígena que pode decidir por um lance de moeda pela aniquilação do planeta, de modo que apenas por sorte o carro dará a partida. Guarda ainda algo da situação de um agente humeano que confirma um compromisso para o dia seguinte, sem poder jamais ter certeza de que o sol nascerá amanhã. Em todas essas situações, “epistemic agents may have no need to rule out the irrelevant alternatives posited by skeptics”. (SOSA, 2017cSOSA, E. Skepticism, Default, and Virtue Epistemology. Conference on “Hinge Epistemology”, mimeo, UC-Irvine, 2017c., p. 3). Essas alternativas podem ser consideradas irrelevantes e ignoradas pelo agente razoável, uma vez que não têm vínculo direto com os desempenhos específicos que ameaçariam, mesmo que ameacem toda existência humana.

Ou seja, esses casos se parecem porque os pressupostos padrão que assumem garantem as condições da performance, sem interferir na qualidade da tacada, no dizer correto das horas ou em apontar: “Ali está um celeiro”. Teriam sim crédito télico, mesmo sem este ser pleno. Barney sabe, portanto, satisfazendo plenamente as condições do conhecimento animal, na classificação de Sosa. Sua afirmação de ali haver um celeiro é verdadeira, ele tem capacidade de reconhecer celeiros, mesmo sem ter sido testado na capacidade de separar celeiros de meras fachadas de celeiros.

Por outro lado, seu tiro apto, em tal contexto de ignorância, pode não ter sido bem selecionado. Com isso, seu conhecimento não desfruta da condição (safety) de acreditar que se trata de um celeiro apenas se for um celeiro, pois não sabe em um nível reflexivo mais pleno, estando seu conhecimento longe ainda de ser um conhecimento reflexivo plenamente apto. Desse modo, esclarece-se também a diferença entre as situações b.1 e b.2, pois ambas comportam conhecimento, mas apenas no nível mais elevado, meta-competente, o agente reflete e delibera sobre o próprio exercício da competência epistêmica, não podendo aí ser negligente diante do contexto, da situação, das informações que podem orientar e justificar sua tentativa atlética ou alética.

A safety não subordina a performance apta. A competência, que se desdobra em SkShSi, não precisa ter cada uma de suas dimensões completamente segura. Precisa antes, para expressar aptidão, de uma competência relativa ao domínio interno da ação em curso. Nos casos em que a ação foi bem-sucedida por mera sorte (a forte hipótese de as luzes se apagarem não ter se confirmado, ou a moeda do alienígena ter dado um resultado favorável etc.), essa condição relativa de exercício da competência foi real e suficiente, manifestou suficiente competência ao tentar e ter sucesso, de modo que atende uma cláusula relativa de safety, que não é todavia a de uma segurança plena.

A questão precisa ser enfrentada em níveis distintos, à luz dos quais nossa avaliação muda. Em uma boa teoria, a análise de mais casos permite progressivos ajustes taxonômicos, sem que estes sirvam aos fenômenos como um leito de Procusto. Um tiro pode ser apto (acertado porque adequado) sem ser plenamente apto. O conhecimento não seria humano se fosse de um único tipo, independente de qualquer situação ou da reflexão que o agente pode fazer ou não sobre seu ato. É preciso levar em conta, portanto, a diferença entre as situações em que um desempenho manifesta competência e as situações em que o agente julga, ademais, ser capaz ou não de se haver com competência.

O fully apt shot é aquele em que o atirador acerta, tendo deliberado judiciosamente sobre as condições de tiro. Ou seja, aquele em que visa não só ao sucesso mas também à aptidão do próprio tiro. O agente reflete sobre a SkShSi e delibera, procura a qualidade do tiro, que reside em ter sido bem selecionado. Mas aqui por razões internas e não pragmáticas, por razões gnoseológicas e não de ética intelectual, razões que o levam a responder conhecedoramente a uma questão de conhecimento. A virtude que interessa a uma gnoseologia pode assim ter uma relação interna com a dimensão epistêmica. Por isso, a resposta sobre haver competência ou não em um gesto epistêmico está ligada diretamente à disciplina que solicita essa resposta. Também, em função dos critérios que estabelece para a estimação do conhecimento, a disciplina deve prover, indo ao encontro dos fenômenos, os meios de classificar em camadas os tipos de conhecimento, os tipos de acerto que podem chegar à forma mais elevada de ato epistêmico, a crenças judicativas, com sua meta de acertar de modo apto a verdade ao afirmar aleticamente que <p>.

Considerações finais

1. Performance e sorte se relacionam de modo complexo, e não necessariamente excludente. No exercício de uma competência performática, adquire papel estruturante o que sabemos e também o que pressupomos, sendo importante separar o que pode ou não depender de ilação modal, na garantia de termos conhecimento e, enfim, que tipo de conhecimento. A resposta não modal importa bastante, mas não esgota os níveis todos de conhecimento. Agimos atentos à luz acesa, ao comportamento dos corpos sublunares e celestiais, e não em função da possibilidade de as luzes se apagarem ou de o sol não nascer amanhã. Temos então pressupostos que podem ser unsafe e mesmo mantidos por ignorância de todos os fatos. Tais pressupostos são próprios de nossa instalação humana e logo são próprios disso que chamamos de conhecimento, mas não de todo conhecimento humano.

Alguns já observaram, sem esconder alguma estranheza, a multiplicação de níveis de conhecimento na obra de Sosa. Nada a estranhar, porém. Sosa não faz uma investigação de palavras nem uma investigação meramente conceitual. A organização da experiência do conhecer pretende, afinal, dar conta de um fenômeno diverso, unificado pela condição de serem performances voltadas à finalidade de realizar proferimentos verdadeiros; um fenômeno constituído por tentativas humanas, cujo sucesso deve manifestar sobretudo competência (ou seja, verdade e também aptidão), não decorrendo de não mera sorte - mesmo que, como vimos, não elimine toda sorte. E, sendo diversos os casos de conhecimento, não há contradição em conceder que um agente tenha conhecimento de um tipo e, logo, manifeste competência, sem manifestar plena competência ou aptamente plena aptidão.

A classificação de tipos de competência, sendo aim-relative, permite um exame mais detalhado de cada caso, sendo precioso para a gnoseologia um modelo de avaliação das performances, capaz de estruturar o fenômeno que toma por objeto ou constitui. A aplicação do modelo pode ser controversa, mas não há de gerar, no mesmo sentido, dois resultados. O mesmo fenômeno, sob o mesmo aspecto, não será classificado em duas situações-tipo - o que pode suscitar mais e mais classificações, sem qualquer artificialismo. É o caso da distinção entre conhecimento animal e conhecimento reflexivo, que, de resto, é passível de gradação e novos níveis.

Pudemos ver, por exemplo, como ela veio ao encontro das características dos casos de Barney e Fielder, sem os sufocar, mostrando como satisfazem os critérios do conhecimento animal, tendo acesso à verdade através de sua competência, mesmo ser ter conhecimento reflexivo (Barney por não saber que naquele condado a aparência de um celeiro não implica ser um celeiro, e Fielder por não se dar conta da iminência de uma pane elétrica). Eles, então, apesar do acesso competente à verdade, não teriam atingido de forma apta os requisitos da aptidão, ou seja, aquela espécie de meta-competência que nos leva, por exemplo, a selecionar bem o momento do tiro e, em geral, a dominar as variáveis de risco que cercam nossas performances. Eles teriam uma crença apta; a sorte não lhes estragaria por si a performance nem lhes roubaria um crédito télico, mas lhes faltaria, contudo, uma aptidão de grau mais elevado.

Que o sucesso seja apenas parte do objetivo, mas não todo objetivo, é uma intuição essencial à epistemologia das virtudes télica de Sosa, que não nega, mas sim sofistica as versões confiabilistas anteriores, exigindo ainda mais internamente a afirmação de uma perspectiva gnoseológica no âmbito da epistemologia. Não é télica apenas, mas virtuosa no âmbito que lhe é próprio. No que compete ao futebol, deverá ser virtuosa, por assim dizer, futebolisticamente. No que se refere à gramática, será virtuosa se urdida a escrita com aptidão gramatical. Da mesma forma, no que compete ao conhecimento, será tanto mais conhecimento se a aproximação à verdade for orientada por normas epistêmicas e se, com tanto mais clareza, o agente controlar os próprios meios que conhecedoramente emprega. Reforça-se assim a necessária medida, já enunciada em A Virtue Epistemology, de separar o inquérito segundo sua natureza e não por mera gradação, relembrando, pois, que uma questão gnoseológica não se deixa afetar por considerações de ordem prática, mas sim, repetimos, pelo que importa na tentativa de acertar de modo apto ao se pretender afirmar a verdade.

2. Um bom café não se mede apenas pelo resultado na taça de um expresso. Caso contrário, um mapa seria independente dos procedimentos cartográficos; um juízo, das faculdades intelectuais que o engendrariam. Tomada ao extremo a analogia, talvez não precisássemos sequer de um mapa, contanto que cheguemos a Larissa. O processo cartográfico, porém, nos justifica a aceitação de um mapa, que pode até ter suas falhas. Entretanto, um mapa feito de palpites, por mais preciso que seja, só pode ser justificado por outro mapa ou pela realidade, não sendo mesmo um mapa.

Conhecimento é ação. Ou seja, o produto não se separa do agente que produz nem de como produz. A perspectiva da normatividade télica sugere, portanto, que não se pode separar a confiabilidade da competência epistêmica do agente. Nossa analogia relevante não será, portanto, com taças de café, nem com mapas (tomados como resultados de ações, produtos, proposições), mas sim com as performances do barista ou do cartógrafo. Nossa atenção não se volta apenas ao mapa, mas sim à performance epistêmica do cartógrafo, bem como ao uso epistêmico do mapa - uso que, ao fim e ao cabo, também é uma ação.

A nova aproximação, pela qual Sosa aprimora sua epistemologia das virtudes com a teoria da normatividade télica, solicita a reafirmação estratégica da distinção entre gnoseologia e ética intelectual, oferecendo-nos uma resposta que é ela própria interna ao processo de conhecimento e se refere a fenômenos no mundo, e não primariamente a palavras, semântica ou conceitos. Pretende entender um fenômeno na realidade humana, decifrando, então, entre as performances humanas, as que são, em particular, realizações epistêmicas humanas.

A gnoseologia segundo Ernest Sosa é, assim, uma disciplina organizada por problemas clássicos e contemporâneos, mas um projeto com forma e conteúdo singulares. Com a obra de Sosa, podemos testemunhar a organização de uma disciplina pela organização da experiência a ser analisada, importando esse movimento uma profunda inflexão na história da gnoseologia. Afinal, para além da circunscrição de um objeto, ela se ampara por uma tese, a de que o conhecimento é uma espécie de performance, desenhando com essa tese a possibilidade de um método, um padrão de avaliação e classificação das performances cognitivas, capaz de decidir, entre tantas questões filosóficas, se uma crença é ou não conhecimento.

A gnoseologia de Ernest Sosa constitui uma objetividade, exercitando uma espécie de meta-competência, que não a separa do seu objeto, sem a confundir com ele. Ela mostra sua originalidade e fôlego ao responder às duas questões clássicas sobre a natureza e o valor do conhecimento e, pelo mesmo gesto, ao problema de Gettier, deixando claro que, ao fim e ao cabo, estamos diante de uma única questão. Se a pergunta é metade da resposta, a resposta também é metade da pergunta, pois esta não teria sentido ou interesse sem o que se pode responder. Uma disciplina determina seu objeto por seu método, pelo modo como confere unidade a suas possíveis respostas. A epistemologia das virtudes télica parece filosofia com pretensões científicas, mas também é ciência com sofisticação filosófica. E, sendo filosofia científica ou ciência filosófica, a teoria da normatividade télica é um acontecimento extraordinário, que nos desafia e solicita toda atenção intelectual.

Referências

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  • WITTGENSTEIN, L. On Certainty. Oxford: Blackwell, 1975.
  • 1
    Este texto pode lido como uma tentativa acadêmica. Terá sido bem sucedido? É algo de duvidar, mas isso pode ser julgado por quem acaso o leia. Expressa alguma competência? Talvez alguma. Não é claro que o autor seja um dispositivo suficientemente preparado para a tarefa. Também a forma do dispositivo pode não estar em seu melhor. A gestão universitária é deveras extenuante, mas sobretudo as condições atuais de execução do texto, em meio à pandemia e a ameaças obscurantistas e autoritárias à vida universitária, dificultaram a concentração necessária a tarefa tão desafiadora, só podendo dispor de tempo limitado quem ora esteja na condição de reitor de uma universidade pública. De todo modo, a decisão de fazer o texto não podia ser mais acertada. Não podia declinar o gentil convite feito pelo colega Waldomiro José da Silva Filho de submeter um texto para o dossiê sobre Ernest Sosa da Trans/Form/Ação - revista, aliás, na qual publiquei, fora de Salvador, meu primeiro texto como pesquisador em filosofia. Entretanto, de modo o mais bem refletido, não poderia deixar de escolher esse risco e de celebrar a fascinante obra de um dos maiores filósofos da contemporaneidade. Só posso desejar que esta tentativa tenha, vez ou outra, acertado o alvo, que mesmo seus gestos mal sucedidos tenham esboçado alguma competência ou, ao menos, tenham tido todos eles a aptidão de manifestar meu imenso afeto e admiração por Ernest Sosa.
  • 3
    Sosa define assim o escopo de uma gnoseologia, conforme versão aperfeiçoada de uma epistemologia das virtudes télica: “the epistemic domain is one where we perform alethically, aiming at getting it right, whether through judgment (intentional and even conscious) or through functional perception or belief, where the aim would be teleological rather than intentional” (SOSA, 2019bSOSA, E. Telic Virtue Epistemology. In: BATTALY, Heather (Ed.). The Routledge Handbook of Virtue Epistemology. New York: Routledge, 2019b., p. 15).
  • 4
    Most of the history of epistemology has had the narrower focus of the theory of knowledge. Interest did eventually shift from the focus on the nature of knowledge in the Theaetetus, towards an interest in how far we can be justified in our beliefs generally. But this latter question is that of how extensively we can attain the kind of epistemic justification and aptness that is constitutive of knowledge. It is therefore still a concern in the theory of knowledge, not in intellectual ethics, and so it remains to the present day. (SOSA, 2007SOSA, E. A Virtue Epistemology. Oxford: OUP, 2007., p. 91.)
  • 5
    Redigido em 2002 e publicado em 2003, o artigo guarda sintonia com o livro A Virtue Epistemology (no qual se encontram as conferências Locke, proferidas em Oxford, em 2005), significando uma inflexão importante na obra, pois nele (i) Sosa renuncia à noção de safety como uma cláusula necessária ao conhecimento, embora a cláusula não se torne desimportante; (ii), temos nele a primeira (conquanto incompleta) ocorrência do modelo de avaliação de performances télicas, o exemplo modelar da arquearia, que circunscreve o objeto e o escopo de uma gnoseologia como lugar de reflexão sobre performances epistêmicas; e, nessa linha, (iii) temos uma exposição da noção de performance do agente epistêmico, com uma referência mais direta à Ética a Nicômaco, doravante central.
  • 6
    Other epistemically important traits- such as open-mindedness, intellectual courage, persistence, and even single-minded obsessiveness- are certainly of interest to a broader epistemology. They are of course worthy of serious study. But are they in the charmed inner circle of traditional epistemology? No, they may be only ‘‘auxiliary’’ intellectual virtues, by contrast with the ‘‘constitutive’’ intellectual virtues of central interest to virtue reliabilism. (SOSA, 2017aSOSA, E. Replies to comments on Judgment and Agency. Philosophical Studies. vol. 174, n. 10, p. 2599-2611, 2017a., 2601).
  • 7
    Vale aqui, em benefício da clareza, o possível pleonasmo. Pode-se questionar que, em se tratando de uma performance, ela só pode ser télica. Caso contrário, seria apenas comportamento, e não um comportamento que envolve uma performance. Mesmo por ênfase, é conveniente explicitar o aspecto télico, mas, doravante, deixamos isso suposto e somente mencionamos performances que são ações dirigidas a finalidades, sejam elas episódicas ou constantes, e mesmo conscientes ou não.
  • 8
    Escolhemos os termos “acertado”, “adequado” e “apto”, visando a preservar a estrutura de triplo AAA usada por Sosa (por Accurate-Adroit-Apt) para determinar uma ação normativamente bem sucedida. A escolha envolve significativo artifício. De toda forma, nenhuma tradução dá exatamente conta da descrição, que tem sim, já na origem, a marca de um arbítrio técnico.
  • 9
    Analisaremos na seção seguinte, “Sorte e Performance”, essa situação gettieresca, cifrada no modelo pela possibilidade das rajadas concorrentes de ar que terminam por retirar o crédito do arqueiro.
  • 10
    It is an assessment of a sort of intellectual, cognitive status of a belief that is potentially constitutive of knowledge, when that belief does amount to knowledge. This is a status both (a) logically independent of the mere truth of that belief, and (b) constitutively by virtue of having which a belief might amount to knowledge. (Any practical advantages provided to the thinker by hosting their belief would then be irrelevant to the gnoseological assessment of that belief, including intellectually “practical” advantages as to whether and how that belief might aid the success of future inquiry. The latter would seem relevant to a certain epistemic assessment of that belief, but not to its gnoseological assessment). (SOSA, 2021SOSA, E. Epistemic Explanations: A Theory of Telic Normativity, and What It Explains. Oxford: Oxford University Press, 2021., 85n)
  • 11
    Here is one kind of example: Imagine that we are seeking water on a hot day. We suddenly see water, or so we think. In fact, we are not seeing water but a mirage, but when we reach the spot, we are lucky and find water right there under a rock. Can we say that we had genuine knowledge of water? The answer seems to be negative, for we were just lucky. This example comes from the Indian philosopher Dharmottara, c. 770 CE. The 14th-century Italian philosopher Peter of Mantua presented a similar case: Let it be assumed that Plato is next to you and you know him to be running, but you mistakenly believe that he is Socrates, so that you firmly believe that Socrates is running. However, let it be so that Socrates is in fact running in Rome; however, you do not know this. (Ichikawa; Steup, 2018ICHIKAWA, J. J; STEUP, M. The Analysis of Knowledge. The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2018 Edition), Edward N. Zalta (ed.). <https://plato.stanford.edu/archives/sum2018/entries/knowledge-analysis/>.
    https://plato.stanford.edu/archives/sum2...
    .)
  • 12
    A. M. MacIver, por exemplo, em seu célebre discurso inaugural, sintetiza com uma pergunta a definição platônica apresentada no Teeteto “Pode ser dito, então, que conhecimento é crença verdadeira racionalmente fundada?”, para lhe contrapor diretamente o gettieresco exemplo outrora elaborado por Bertrand Russell, de afirmar, em 1912, que o nome do último primeiro ministro britânico começaria com a letra B, supondo ser Balfour, no que acertava com uma proposição verdadeira, mas por ter sido Bannerman, sem a verdade implicar aí conhecimento. (Cf. MaCiver, 1958MACIVER, A. M. The Inaugural Address: Knowledge. Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volumes, Vol. 32, Londres, 1958., p. 3-4.)
  • 13
    Aqui, parece-nos mais consistente a leitura de John Greco, que enfatiza a filiação constante de Sosa à cláusula modal da safety (GRECO 2018GRECO, John. Safety in Sosa. Synthese, Julho, 2018.), do que a sugestão forte de Turri de que teria havido um puro e simples abandono da noção de safety - que para ele, de resto, seria uma aberração: “The addition of safety in the interim was an aberration”. (Turri 2013TURRI, J. Bi-Level Virtue Epistemology. In TURRI, J. (Ed.). Virtuous Thoughts: The Philosophy of Ernest Sosa. Dordrecht: Springer, p. 147-164, 2013., p. 161) A língua portuguesa não separa bem as noções de ‘safety’ e ‘security’, talvez por serem mesmo gradações de uma única noção. Podemos, porém, ter conhecimento em um nível, apesar de unsafe a crença, mas haveria um nível mais elevado, de conhecimento completamente apto, que precisa sim ser secure.
  • 14
    What makes such conditions mere background conditions is that, although they must hold, the performer can perform aptly without knowing that they will hold. Nor need they hold safely. (SOSA, 2017cSOSA, E. Skepticism, Default, and Virtue Epistemology. Conference on “Hinge Epistemology”, mimeo, UC-Irvine, 2017c., p. 3).
  • 15
    Há “soluções” diversas para o problema, que não levantaremos aqui, mas cuja comparação, sugerimos, pode render uma boa dissertação ou um artigo bastante útil. Seria instrutivo revisitar um percurso característico da investigação gettieresca, com posições distintas de nomes de peso como Robert Nozick, Fred Dretske, Alvin Plantinga, Ruth Millikan, Alvin Goldman e o próprio Sosa, que, aliás, tem posições diversas a respeito desse contraexemplo ao longo de sua obra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    06 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2020
  • Aceito
    05 Mar 2021
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