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Comentário a “A investigação arqueológica como diagnóstico do presente: uma crítica ao pensamento antropológico”: por que ler o artigo de Fernanda?

Coube a mim, em meio à vasta e profissional comunidade acadêmica em filosofia, no Brasil, a tarefa de exercer o ofício de parecerista para a revista Trans-form-ação do artigo de Silva (2022SILVA, Fernanda Gomes da. A investigação arqueológica como diagnóstico do presente: uma crítica ao pensamento antropológico. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 45, n. 4, p. 65-84, 2022.), que o leitor está prestes a conhecer, após a leitura destas singelas palavras de apresentação. Comunidade de pares, diga-se de passagem, sempre anônima no trabalho de formulação de um juízo da pesquisa alheia, proteiforme como o é em sua composição, assim como desprovida de hierarquia na decisão que submete, seja ao colega desconhecido, seja ao editor que solicita a atitude desinteressada de um olhar científico acerca da questão tratada. Intitulado “A investigação arqueológica como diagnóstico do presente: uma crítica ao pensamento antropológico”, o artigo de Fernanda teve a coragem de enfrentar uma leitura do livro A Arqueologia do Saber, de Michel Foucault, partindo justamente das premissas filosóficas que ali se encontram depositadas, desde o ano de sua publicação, 1969, e do exercício de autocrítica a propósito de praticamente uma década de pesquisa que lhe antecedera.

Sua argumentação é a de que a arqueologia e o diagnóstico iluminista do presente que o Foucault dos anos sessenta quis operar em nossa cultura já antecipam a crítica genealógica dos anos setenta de nossa cultura, bem como prefiguram a postura anti-humanista do autor, diante de seus objetos de estudo. Normalmente e até então vistas pela literatura de comentadores como análises arqueológicas que se concentravam tão somente nas figuras dos saberes, sem remetê-los a relações exteriores ao seu campo, como o poder, elas recebem da pena de Fernanda um comentário que julga seus antecedentes e sucedentes a partir do critério fornecido pelo texto de 1969. Coisa rara e atrevida. Pela audácia em enfrentar um tema árido e ainda carente de pesquisas relevantes, como é a leitura de A arqueologia, não me restou outra alternativa senão a de recomendar sua publicação ao editor de Transformação - a sorte favorece os bravos, como diria Virgílio.

Pois bem, quer como acadêmico legitimado por uma carreira no ensino superior universitário, quer como indivíduo dotado de uma suposta expertise no assunto (uma espécie de sujeito-suposto-saber, se permitem a alusão à contraciência humana de Lacan), coube a mim, outrossim, o expediente de comentar, para além do parecer positivo, as contribuições e limites inerentes a toda pesquisa que pretende o rótulo de científica, diante de seu objeto de aplicação. Como agir agora e fazer jus ao que se está prestes a ler?

Primeiramente, notemos a qualidade do conteúdo estudado e a análise que quer desenvolver: fazer aparecer o discurso ocidental, em seus enunciados, átomos de nossas relações de força, para encontrar aí não seu fundamento antropológico, oculto e intencional, mas sim o sistema que permita estabelecer a positividade de sua aparição em nossa cultura. Contra as correntes fenomenológicas de nossa filosofia, as quais insistem em apostar na figura de um antropos ocidental a reger suas formações, ao longo dos séculos, Foucault aposta em realizar as condições de emergência das diferentes formações discursivas que formaram o caldo de nossa cultura. Nesse sentido, o artigo de Fernanda é muito feliz, ao fazer uso das análises de Arqueologia, para mostrar ao leitor como qualquer tipo de discurso, filosófico, literário ou oficial, obedece a uma mesma positividade de que recebe sua legitimidade, ou seja, daquilo que possibilitou sua emergência ou aparição. Dessa forma, nossas pressuposições humanistas de que todo discurso remete a um referente ou autor por baixo dele caem por terra. Pois é, antes, uma função-autor que pode preencher o vazio que a moderna figura do homem quis preencher, estabelecendo um caráter regular ou um nexo entre determinados tipos de discursos, a reger dadas relações de força. Mas dizendo assim, porém, estaríamos já aqui a nos exceder no comentário...

Sem querermos ser mais realistas que o rei, não obstante, e com o fito de iluminar o leitor, apontemos de forma segunda as polêmicas abertas pelo artigo de Fernanda, na literatura de comentadores considerada já mais “consagrada”. Quer nossa autora que o a priori histórico mediante o qual Foucault estabelece a lógica de sistematicidade e regularidade entre os enunciados seja variável, cultural, discursiva e não perceptiva. E ela tem toda razão, ao afirmar isso. Ao menos de acordo com a lógica de 1969, exposta em A Arqueologia do Saber, o a priori histórico não é algo que constitua uma figura imóvel e vazia, a qual fizesse valer sobre o pensamento dos homens uma tirania da qual ninguém poderia escapar. Ocorre, não obstante, que se possa dizer que o seja e o tenha sido para as análises empreendidas por Foucault, na década de sessenta.

Seguindo a interpretação de Paul Veyne, como o leitor poderá observar, Fernanda escolheu operar uma leitura retroativa dos textos prévios a 1969, como História da Loucura e As Palavras e as Coisas, para poder afirmar que o ceticismo de Foucault e sua suspensão de juízo escapassem de toda forma de dogmatismo possível, desde 1961. Isso é algo que permanece deveras controverso até hoje, na literatura de comentadores, e recebe interpretações divergentes. Como contraponto, o leitor pode se remeter, se quiser, às obras do falecido professor Roberto Machado, para citá-lo a título de homenagem, bem como a outros intérpretes que nem por isso iriam academicamente recusar o recebimento de aceite do artigo de Fernanda. Pelo contrário, embora seja explícita a afirmação de Foucault, em As Palavras, de que apenas uma única episteme regeria as ordens do saber, em cada momento dado, e de que, no fundo, História da Loucura não passaria de uma “arqueologia da percepção” que nos conta a estória da fabricação de uma grande mentira, contraposta a uma verdade valorizada axiologicamente, continua sendo verdade que Foucault desejava operar uma outra leitura da história, desta vez sem privilegiar a figura do homem como seu artífice. Mas como operar tal leitura?

É no final do artigo a se ler que essas e outras questões são exploradas. Fica a menção honrosa ao belo, pois sucinto, comentário do capítulo IX de As Palavras e as Coisas, no qual Fernanda esboça a demonstração de como as figuras antropológicas do saber confundiram o empírico e o transcendental, enveredando numa circularidade dialética sem fim. Se Kant ainda remeteria os saberes a uma figura do antropos ocidental ou não isso já é algo controverso. A tese do artigo pareceu-me ser a de que sim, a despeito da tese complementar de Foucault ao seu doutoramento sobre Kant sempre nos lembrar de jamais nos esquecermos da lição crítica.

Para finalizarmos, todavia, nossa breve apresentação, mas sem deixar de fazer jus ao seu objetivo, “por que ler o artigo de Fernanda?”, recordo-me agora das palavras que me foram narradas presencialmente pelo professor Bento, ocorridas em 1965, quando Foucault então ainda era professor da Universidade de São Paulo e acabara de redigir As Palavras, apresentando-a aos pares e ouvintes. “Mas como você pode, Foucault, querer fazer a crítica das ciências humanas ao mesmo tempo valendo-se da noção de a priori kantiano, quando Kant se valeu dela justamente com o fito de legitimar as ciências, ao invés de deslegitimá-las?” A essa pergunta, disse-me o professor Bento que seu colega Foucault nunca conseguira responder-lhe, muito embora a tenha considerado uma ótima colocação. Que a leitura desse comentário, assim como a do artigo, venha a ser de bom proveito para que o leitor responda um dia a essas e outras perguntas, as quais, no anonimato do discurso, sejam colocadas por quem quer que seja...

Referência

  • SILVA, Fernanda Gomes da. A investigação arqueológica como diagnóstico do presente: uma crítica ao pensamento antropológico. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 45, n. 4, p. 65-84, 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2022
  • Aceito
    20 Jun 2022
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