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Comentário “Deleuze e a perversão”

Referência do texto comentado: FERREIRA, Filipe. Deleuze e a perversão. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, Número Especial, p. 77-92, 2020.

O artigo “Deleuze e a perversão”, escrito por Filipe Ferreira, nos convida a pensar o problema da perversão na obra de Deleuze, no final dos anos 60, período de publicação de duas grandes obras: Diferença e repetição (1968) e Lógica do sentido (1969). O que se desenrola, ao longo do texto, é uma escrita consistente que abre uma nova perspectiva de abordagem, sem deixar de indicar sua fundamentação a partir do próprio texto de Deleuze. O texto reivindica a existência de um sujeito definido como perverso, na filosofia de Deleuze, e é a partir dessa conversão, em sujeito perverso, que sua filosofia se instaura, em Diferença e repetição e na Lógica do sentido. Assim, o problema da perversão decorre de um devir-perverso que vai balizar a abordagem deleuziana acerca do perverso, mas também demarca a existência de um heterônimo, o qual, concebido na gênese da filosofia de Deleuze, será determinante para o desdobramento dos conceitos de “diferença” e “repetição”; logo, o perverso resulta do arcabouço conceitual, mas, ao contrário, é do devir-perverso que emana a gênese da sua filosofia.

É preciso ressaltar a relevância dessa abordagem, pois o que se observa, no decorrer do texto, é uma interpretação singular, cujo desenvolvimento e argumentação, sem perder de vista as indicações estabelecidas na obra de Deleuze, como pontua o autor, intenta comprovar que há um sujeito perverso e um devir-perverso que subsiste na obra em sua gênese e na maquinaria conceitual, mas também no autor enquanto sujeito e ponto de vista que se impõe. Tal perspectiva é confrontada com a análise empreendida por David Lapoujade (2015), segundo a qual a problematização da perversão não induz à constatação de um Deleuze perverso, contudo, antes revela a exposição de uma “reversão dos duplos” que configura um “método”, um método perverso de dobragem o qual consiste em perverter o original.

De acordo com Lapoujade, a perversão em Deleuze figura como um método que visa a extrair “um duplo do original”, de forma a conduzi-lo ao seu limite, ao fora. Assinala o filósofo:

[...] não se deve concluir que Deleuze é um perverso, mas sim que ele instaura um procedimento ou um método perverso que consiste em extrair uma espécie de duplo do original estudado, e que permite passar do outro lado do limite atribuído pelo original” (LAPOUJADE, 2015, p. 135, grifo do autor).

É como reversão que a perversão deleuziana se consolida, pois não seria dessa maneira que ele concebe a história da filosofia, percorrendo filósofos, de modo a arrastá-los para outro lugar, no limite, “[...] extraindo a cada vez um duplo que o desloca, o vira do avesso ou o reverte?” (LAPOUJADE, 2015, p. 136).

Ao cotejar esse método de dobragem que conduz ao limite ou ao fora, sustentado por Lapoujade, Filipe Ferreira argumenta que a perversão excede a demarcação de um método de duplicação, quando se leva em conta a gênese da obra e, nesse caso, o que está em jogo e precede o método é a relação do perverso e um devir-perverso com gênese do pensamento; é convertendo-se em sujeito, perverso, que o filósofo Deleuze emerge, revelando um heterônimo. Desse ponto de vista, avalia que o que se verifica, tanto em Diferença e repetição como na Lógica do sentido, é uma disseminação da perversão que extrapola a duplicação dos originais e, nesse sentido, pontua o autor, no artigo, “[...] eleva a perversão pressuposta pela criação de duplos à sua enésima potência [...]”, produzindo “reversões de reversões”, que suscitariam, ao nosso ver, uma perversão que se amplia indefinidamente.

O traço relevante na abordagem do artigo objeto deste comentário reside na afirmação da existência, na filosofia de Deleuze, de um sujeito subjacente definido como um ponto de vista perverso e seu devir-perverso, na instauração da sua filosofia e de sua maquinaria conceitual. É preciso ressaltar que Deleuze inclui a noção de sujeito no rol das categorias da representação que perfazem a imagem dogmática do pensamento, e a recusa aos pressupostos, sejam eles objetivos, um conceito prévio, sejam subjetivos e implícitos, um sentimento, são premissas sujeitas ao idêntico e ao universal (DELEUZE, 19982. DELEUZE G. Diferença e repetição. Trad. brasileira de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Ed. Graal, 1998.). Em oposição a isso, Deleuze refuta as noções prévias e indica a necessidade de um verdadeiro começo na filosofia, enfatizando, no rastro de Nietzsche, que só há o devir, o que é primeiro não é o ser mas o devir, de onde se arrolam “[...] singularidades anônimas e nômades, impessoais, pré-individuais” (DELEUZE, 1974, p. 106).

Disso deriva o cuidado que se deve ter, ao mencionar o sujeito como um pressuposto ou elemento preexistente às operações do seu método. No artigo de Filipe Ferreira, vemos que, a despeito e para além do método perverso instituído por Deleuze, segundo a análise de Lapoujade, há uma condição que ultrapassa o campo operatório das reversões e duplicações, esboçando assim a primazia de um sujeito e um devir-perverso de Deleuze como gênese de sua filosofia. Ao justificar tal condição, o autor afirma que “[...] é do sujeito que se cria o devir-perverso de Deleuze, a gênese de sua filosofia”, e a relação da filosofia de Deleuze com a perversão reside na determinação do perverso como um personagem conceitual, operação que está subordinada à demarcação do ponto de vista de um sujeito enquanto perverso, logo, ao “encontro do filósofo com um sujeito interno ao seu pensamento”, conclui, em sua argumentação.

A existência de um devir-perverso amplia o escopo do problema da perversão em Deleuze, na medida em que o perverso se torna o personagem conceitual, e é perfeitamente plausível invocar um sujeito perverso em Deleuze, como devir-perverso, não obstante a objeção feita à associação do personagem conceitual a uma “personificação abstrata”: “O filósofo é a idiossincrasia de seus personagens conceituais. E o destino do filósofo é de transformar-se em seu ou seus personagens conceituais” (DELEUZE/GUATTARI, 1992, 86). Vale ressaltar que a demarcação de um sujeito perverso aparece decerto de forma indireta, no texto de Lapoujade (2015, p. 135): “Quando Maïmon se pergunta: ‘Sou kantiano? Sou antikantiano’, não é essa uma pergunta de perverso? Esse é o humor do perverso: obedecer com tanto zelo que, no final, a lei se vê revertida”. Contudo, deve-se atentar para que a reversão não se converta num novo princípio ou original, numa nova busca pelo fundamento; deve-se conceber, então, de forma implícita, “[...] a perversão como crítica dos fundamentos, em nome da mais zelosa das buscas de um fundamento?”, indaga Lapoujade (2015, p. 135). Essa pergunta, parece apontar para as implicações da perversão, quando há o risco de desencadear uma crítica, a qual, subordinada ao original, venha requerer um novo fundamento. A resposta de Lapoujade (2015, p. 135, grifo do autor) parece excluir tal fundamento:

Não se deve concluir que Deleuze é um perverso, mas sim que ele instaura um procedimento ou um método perverso que consiste em extrair uma espécie de duplo do original estudado, e que permite passar do outro lado do lado do limite atribuído pelo original

A tarefa da perversão constitui uma reversão, e reverter significa extrair um duplo do autor como uma torção que propicie, ao mesmo tempo, conduzir ao seu limite e produzir o seu fora: a perversão não consiste em jogar com os limites, colocá-lo à prova, “[...] mas sim em produzir do outro lado do limite um duplo ideal, que é a sua reversão ou o seu desvio”; a perversão encontra-se, então, consubstanciada a uma atividade de repetição, ela “[...] se confunde com as potências da repetição. Repetir consiste em duplicar, reduplicar e deslocar, como uma espécie de gigantismo método de dobragem” (LAPOUJADE, 2015, p. 136-137).

Vale destacar que o problema da perversão como método é apontado por Zourabichvili (20047. ZOURABICHVILI F. O vocabulário de Deleuze. Trad. brasileira André Telles. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 2004.), sob um liame de operações que se entrecruzam: a perversão consiste em “discernir e cultivar” uma linhagem de pensadores que integram a história da filosofia, mas que dela escapa; promover desvios, subtrair resíduos de teorias, submetendo-as a outros fins; ou conectar um conceito às condições reais de sua existência, “às forças e aos dinamismos intuitivos” (ZOURABICHVILI, 20047. ZOURABICHVILI F. O vocabulário de Deleuze. Trad. brasileira André Telles. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 2004., p. 31) que pressupõem; ou ainda confrontar uma noção, extinguindo-a em direção a sua distorção. Todavia, em todos os casos, não se trata de uma crítica que conduza à negação ou desconstrução do original, mas de fazer fugir: efetuar uma perversão de suas condições, trazendo-o à superfície ou à imanência, num movimento de fuga ou contraefetuação.

Podemos inferir que a perversão como método converge e pode ser comparável a um “método de dramatização”, tendo em vista suas condições, os dinamismos espaço-temporais implícitos; os dinamismos espaço-temporais são “agitações de espaço, buracos de tempo, puras sínteses de velocidades, de direções e ritmos” (DELEUZE, 20064. DELEUZE G. A ilha deserta e outros textos (Org. David Lapoujade). Org. edição brasileira e revisão de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2006., p. 132). Partindo dessa perspectiva, deve-se indagar, por conseguinte: que tipo de sujeito habita tal superfície e encerra tais dinamismos? Que tipo de sujeito pressupõe o movimento perverso e que tipo de sujeito advém desse devir-perverso? Se não se pode prescindir do sujeito, nem nos dinamismos, nem na perversão, tal sujeito e o devir-perverso não reenviam a um fundamento, a um sujeito subjacente, pois os sujeitos desses dinamismos

[...] só podem ser esboços não ainda qualificados nem compostos [e que suportam] a amplitude de um movimento forçado [de movimentos intensivos.] Há movimentos que somente o embrião pode suportar, e aí está a verdade da embriologia: aqui o sujeito só pode ser larvar. (DELEUZE, 20064. DELEUZE G. A ilha deserta e outros textos (Org. David Lapoujade). Org. edição brasileira e revisão de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2006., p. 132).

Portanto, se pretendemos requerer um sujeito subsistente ao devir-perverso, sendo o perverso o personagem conceitual, heterônimo do filósofo, parece-nos que tal determinação não pode ser concebida à maneira de um ser, uma identidade subjacente; nem o filósofo poderia ser esse sujeito como representado no personagem conceitual, porque, como afirmam Deleuze e Guattari (1992, p. 86, grifo nosso.), o filósofo é “[...] o personagem conceitual não é o representante do filósofo [...]: o invólucro de seu personagem conceitual e de todos os outros, que são seus intercessores, os verdadeiros sujeitos da filosofia”. Os sujeitos são multiplicidades, estão sempre no meio, num entre, atravessados por lugares, devires, multiplicidades que evocam o caráter imanentista de uma filosofia que emerge no limiar de um campo de experimentação, instauração do plano de imanência do pensamento.

É na esteira dessa experimentação que o encontro de Deleuze com Nietzsche constitui um acontecimento ímpar. A potência desse encontro faz ecoar as tramas e labirintos de um pensador rebelde e de uma filosofia que se faz por combate; em seu combate, Nietzsche embaralha os códigos, desfazendo-os, quebrando-os. O efeito expressivo desse acontecimento se reverbera em Deleuze como uma conversão do próprio ato de pensar, o qual, a partir disso, instaura a perversão como método e força ativa do pensamento - o exercício de perverter e transformar, revirar ao avesso, levando a um esgarçamento, a uma reversão criadora que mobiliza o poder de fazer falar a partir das intensidades, dos fluxos e das reversões que se operam. Como assinala Deleuze (DELEUZE, 2003, p. 15-16), esse exercício desperta um “gosto perverso” que libera o pensamento à condição “de dizer em nome próprio, de falar por afetos, intensidades, experiências, experimentações”; tais circunstâncias compõem o devir, um devir que circula entre; implicam expressões imanentistas que não invocam “um eu, uma pessoa ou um sujeito que fala”, pois o nome próprio se conquista no “mais severo exercício de despersonalização”, num movimento e vivência que coloca o indivíduo em conexão com o fora, “quando ele se abre às multiplicidades que o atravessam de ponta a ponta, às intensidades que o percorrem”.

Referências

  • 1
    DELEUZE G. Lógica do sentido. Trad. brasileira de Luiz Roberto Salinas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1974.
  • 2
    DELEUZE G. Diferença e repetição. Trad. brasileira de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Ed. Graal, 1998.
  • 3
    DELEUZE G. Pourparlers (1972-1990). Paris: Les Éd. de Minuit, 2003.
  • 4
    DELEUZE G. A ilha deserta e outros textos (Org. David Lapoujade). Org. edição brasileira e revisão de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2006.
  • 5
    DELEUZE G, GUATTARI F. O que é a filosofia?. Trad. brasileira de Bento Prado Jr e Alberto Alonso Munõz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
  • 6
    LAPOUJADE D. Deleuze, os movimentos aberrantes. Trad. brasileira Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: Ed. N-1 edições, 2015.
  • 7
    ZOURABICHVILI F. O vocabulário de Deleuze. Trad. brasileira André Telles. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 2004.
  • 1
    Doutora em Filosofia pela UNICAMP e PARIS X. Pós-Doutorado pela Unicamp, com estágio postdoctoral em Paris 1, Sorbonne. Professora Titular de Filosofia da UESB. https://orcid.org/0000-0001-7050-8289. E-mail: zamaraa@hotmail.com
  • 2
    http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43esp.07.p93
  • 3
    Em passagem do texto, na nota de rodapé n. 8, o autor faz as ressalvas necessárias à questão do “sujeito”, pontuando a distância de sua abordagem em relação à visão tradicional, e alerta para a distinção entre o “sujeito” filosófico que se constitui como o perverso e o “eu penso”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2020
  • Aceito
    27 Jun 2020
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