RESUMO:
Pretende-se, com este artigo, analisar como a noção de epistemologias do Sul possibilita pensar também em um ethos sulista, no sentido de que a crise ambiental que assola a civilização tecnológica, crescida sob os auspícios do saber científico moderno, acabou por levar ao maior impasse ético da história humana, aquele que põe em xeque a própria possibilidade de sua existência no futuro. Dessa forma, almeja-se analisar como as comunidades tradicionais representam a concretização fática daquilo que o filósofo alemão Hans Jonas descreveu, em sua proposta de uma ética para a civilização tecnológica: um tipo de vida baseado na frugalidade e na temperança, diante da emergência da crise climática e da urgência de uma nova ética amparada na responsabilidade.
Palavras-chave: Epistemologias do sul; Ethos sulista; Crise ambiental; Comunidades tradicionais; Hans Jonas
Abstract:
In this article we intend to analyze how the notion of epistemologies of the south enables us to think also of a southern ethos, in the sense that the environmental crisis that plagues the technological civilization, grown under the auspices of modern scientific knowledge ended up leading to the greatest impasse ethics of human history, one that calls into question the very possibility of its existence in the future. In this way, we intend to analyze how traditional communities represent the factual fulfillment of what the German philosopher Hans Jonas described in his proposal for an ethics for technological civilization: a type of life based on frugality and temperance in the face of the emergence of the climate crisis and the urgency of a new ethics based on responsibility.
Keywords: Epistemologies of the south; Southern ethos; Environmental crisis; Traditional communities; Hans Jonas
Introdução
Assim falou a águia ao perceber as penas Da flecha que a perfurava: Então somos abatidos por nossas próprias asas? (Ésquilo)O conceito de epistemologia tem sido utilizado, ao longo da história ocidental, como sinônimo de esclarecimento e reflexão sobre o acesso do ser humano à verdade do mundo. No geral, epistemé (ἐπιστήμη), desde Platão, é a alternativa tanto à ignorância quanto à mera opinião sem fundamento e, nesse sentido, caracteriza-se como uma atitude orientada pelo logos e, consequentemente, por uma série de postulados que formam práticas discursivas centradas na racionalidade. Se, obviamente, tal conceito tem servido para orientar a atividade intelectual, fazendo-a escapar das várias armadilhas que podem aprisionar e impedir o acesso à verdade, é também necessário reconhecer que tal estratégia tem se revelado, ela mesma, como um novo “canto de sereia” capaz de enganar aqueles que, por sua própria fidelidade, acabam se deixando seduzir pelo encantamento da lógica racional, europeiamente centrada, cientificamente fragmentada e ecologicamente prejudicial.
Horkheimer identificou esse processo como a tendência central do iluminismo moderno, cuja base teria sido uma epistemologia da coisificação:
Identificando por antecipação o mundo matematizado, pensando até as últimas consequências, com a verdade, o iluminismo acredita estar a salvo diante do retorno do mito. Ele identifica pensar e matemática. [...] O pensar se coisifica no processo automático que transcorre por conta própria, competindo com a máquina que ele próprio produz para que esta possa finalmente substituí-lo. [...] O iluminismo transforma o pensamento em coisa, em ferramenta, como ele próprio o denomina. (HORKHEIMER, 1989, p. 18).
Estamos no campo da dominação técnica da natureza, por meio de um pensamento empobrecido que já dá sinais de falência, os quais não demoram a aparecer quando analisamos aquilo que tem sido a soberania epistêmica da ciência moderna, com seus métodos e práticas, que, dados os elementos hegemônicos e intransigentes, têm contribuído para a negação dos outros tipos de modelos epistemológicos, gerados a partir de outras identidades culturais, outros momentos e movimentos históricos e outras geografias. Trata-se, portanto, de confrontar o saber tradicional da cientificidade reinante com os saberes plurais negados ao longo da história ocidental euro e etnocêntrica, em benefício dessas mesmas identidades culturais negadas pelo colonialismo e suas práticas discursivas. O pressuposto dessa perspectiva é a ideia de que o pensamento não pode ser pensado como algo separado histórica, social e politicamente e que, consequentemente, o sujeito do pensamento também não. Além disso, seria preciso vencer aquela afirmação kantiana segundo a qual o homem seria unicamente o “reino dos fins” e tudo o resto teria um “valor condicional” em relação a ele mesmo (KANT, 1995, p. 65).2
Tal sujeito, assim, não pode ser pensado mais a partir de uma separação exaustiva em relação ao objeto (mundo): seria preciso vencer a hipótese segundo a qual “[...] a sociedade moderna nasce com a ruptura da ordem sagrada do mundo; no lugar dela aparece a separação, mas também a interdependência da ação racional instrumental e do sujeito pessoal.” (TOURAINE, 1995, p. 28). Ao contrário, será necessário reconhecer que todos os sujeitos são sujeitos política e culturalmente situados e que seus modos de pensar se aliam a seus modos de viver. Como um aspecto recusado pela ciência moderna, a subjetividade foi associada a elementos como crenças e valores, irreconciliáveis com a exigência de objetividade empírica que passou a orientar a epistemologia, pelo menos desde o século XVI.
Questionar o paradigma eurocêntrico absolutizado historicamente pela ideia de subjetividade moderna significaria reconhecer as sujeições geradas ao longo da história e como aquela estratégia acabou por gerar uma violência cultural cujos sinais se contam hoje contra as próprias populações colonizadoras, na forma da atual crise climática. Do ponto de vista da América Latina, Enrique Dussel tem sido uma das vozes mais importantes, no sentido de criticar esse processo de negação das subjetividades “locais”:
De fato, o procedimento formal de simplificação para tornar “manejável” o sistema-mundo produz subsistemas formais racionalizados que depois, não têm pauta internas de autorregulação de seus limites na própria modernidade, que poderiam reconduzi-los ao serviço da produção, reprodução e crescimento da vida de cada sujeito ético. É neste momento que surgem as críticas a partir de dentro do “centro” (e da periferia, como a nossa) contra a própria modernidade. (DUSSEL, 2002, p. 63).
Além de Dussel, tal perspectiva crítica tem sido insistentemente formulada, sob outro ponto de vista (embora convergente), por Boaventura de Souza Santos, a partir de três perguntas fundamentais: a primeira pensa a causa (“Por que razão, nos dois últimos séculos, dominou uma epistemologia que eliminou da reflexão epistemológica o contexto cultural e político da produção e reprodução do conhecimento?”); a segunda, as consequências (“Quais foram as consequências de uma tal descontextualização?”); e a terceira, as alternativas (“São hoje possíveis outras epistemologias?”) (SANTOS; MENESES, 2010b, p. 7).
1 Os prejuízos ontológicos da hegemonia do modelo epistemológico científico moderno
Do ponto de vista da causa, ou seja, da primeira das questões, trata-se de reconhecer a hegemonia do modelo epistemológico que se articula desde o século XVI e que se costuma chamar de “ciência moderna”, cuja marca é a formulação de leis gerais e cujo modelo são as ciências naturais. Hans Jonas, filósofo judeu-alemão, autor de The phenomenon of life, reconheceu tal perspectiva como uma “ontologia da morte”, ou seja, uma epistemologia cuja raiz é a descoberta da matéria pura (inerte, morta), orientada por leis e transformada no único dado conhecível, abrindo caminho para o dualismo e para os monismos materialista e idealista. A epistemologia moderna, assim, ao pretender acessar o dado mais primordial da existência, que é o organismo vivo, acabou por gerar uma ontologia privativa, na medida em que não logrou acessar o dado da vida em sua totalidade, empurrando todas as demais formas de explicação dos fenômenos vitais para o campo subjetivo e, no geral, místico-religioso.
O resultado é que a vida permaneceu como um enigma para a epistemologia moderna, cujas premissas não se compatibilizam com a tentativa de descrição do fenômeno, a partir da lógica científica moderna, o que legitimaria e exigiria o uso de outras “ferramentas” teóricas e, consequentemente, de outros saberes culturalmente situados. O que Jonas faz notar é que todo dualismo que marca a história do Ocidente teria trabalhado para “[...] retirar da esfera física os conteúdos espirituais e, por fim, depois de sua época haver passado, deixou atrás de si um mundo privado de todos estes atributos.” (JONAS, 2004, p. 22). As explicações científicas modernas, reféns da lógica epistêmica das ciências naturais, não foram capazes de superar as polaridades que separaram matéria inanimada e vida, exterioridade e interioridade, preferindo a exclusão mútua entre espírito e matéria, em benefício do primeiro.
Com a ascensão da modernidade, a epistemologia inaugurou as duas perspectivas pós-dualistas, como tentativas de acessar uma unidade interpretativa que desse conta do fenômeno da vida, em sua duplicidade “material” e “espiritual”, tarefa que fracassou, uma vez que os dois polos permaneceram não intercambiáveis: tanto o monismo idealista quanto o materialista acabaram por permanecer em campos diversos, mantendo uma polaridade excludente. Ora, a evidente vitória do segundo, no campo epistemológico da ciência moderna, fez com que a vida e o mundo como um todo fossem conhecidos “à maneira de um cadáver”, ou seja, “privado de seu mistério” (JONAS, 2004, p. 24). Nesse campo, a evidência da vida, em seu resíduo de interioridade, confronta-se tanto com o dualismo quanto com a própria “alternativa dualismo-monismo”, ou seja, à medida que a suposta “suspensão da contradição e a solução do enigma” vieram como resultado de uma abreviação em favor da morte.
A outra opção seria que o enigma permanecesse em aberto, maculando a atividade científica com a incapacidade de decifração. Em resumo, o monismo da alma, agora “arcaico” e sem validade, não teria mais nenhum lugar na modernidade. Por isso, orientados pela epistemologia reinante, os movimentos pós-dualistas passam a se ocupar “[...] com as duas peças deixadas pelo dualismo, frente às quais ela só consegue ser monista ao preço de uma escolha ontológica entre os dois, de uma opção por um ou por outro.” (JONAS, 2004, p. 26). Entre esses dois polos, o material ganhou preponderância no campo científico, anulando precisamente, segundo Jonas, a ideia de pluralidade de perspectivas, em nome da unidade epistêmica, ou seja, da explicação unitária e atomística de cada um dos fenômenos existenciais.
O problema é que o materialismo que orientou a ciência moderna teria fracassado na análise (propositadamente unilateral) da vida sensitiva, dado que ele se aliou à possiblidade de explicar unicamente a matéria inerte, orientada por leis. Como o ponto de partida do materialismo é sempre “particular” e “privativo”, ele deixou de lado a ideia de subjetividade, interioridade ou mesmo de consciência. Ora, como consequência disso, a própria insistência na pretensa neutralidade ou objetividade epistemológica teria conduzido ao fechamento em relação aos aspectos sociopolíticos e culturais que direcionam as práticas discursivas da epistemologia moderna. A vida, assim, segundo Jonas, é um exemplo bastante evidente da crise latente da epistemologia moderna e é ela, também, que se torna “[...] o critério de toda ontologia futura que possa aparecer como ciência.” (JONAS, 2004, p. 28).
A epistemologia nascida do materialismo, por conseguinte, seria “[...] uma face da ontologia da morte” (JONAS, 2004, p. 30), visto que deixou de fora outros aspectos da ontologia que não puderam ser acessados pelo conhecimento limitado da ciência moderna. Por isso, segundo Jonas, o materialismo se expressa como uma “renúncia agnóstica” da física moderna, no que tange aos fenômenos que não cabem nas formas de conhecimento vigente como as únicas aceitas.
O resultado é que a epistemologia moderna deixou ininteligível a realidade psíquica que caracteriza o vivo e, com isso, não foi capaz de pensar o “[...] conceito da natureza como um todo atuante” (JONAS, 2004, p. 35), dado que se orientou basicamente pela “[...] negação das causas finais como um a priori da ciência moderna” (JONAS, 2004, p. 44), algo que teria começado com os primeiros embates da modernidade contra o aristotelismo. Tal rejeição da ideia de finalidade natural teria passado a orientar as investigações científicas, e a simples busca por elas passou a ser considerada como um “desvio” daquilo que seria o modo correto e verdadeiro de fazer ciência. O conceito fora, assim, interditado, sem que fosse considerado “estranho ou abstruso, ou mesmo antinatural”, dado que a experiência humana mais corriqueira comprovaria sua existência. Tratar-se-ia, assim, de uma recusa epistemológica sem nenhum apoio em dados ontológicos.
Como tal, o “monopólio epistemológico” (JONAS, 2004, p. 45) da objetividade exclui por definitivo a ideia de finalidade da natureza, reservando-a ao âmbito da subjetividade neutra e esvaziada, tendo tal tarefa também exigido a exclusão radical do antropomorfismo: o homem não teria o direito de transferir o que está nele para o resto da realidade. Na tentativa - justa - de limpar o conceito de natureza de todas as suas variações místicas e metafísicas, apostou-se radicalmente na impessoalidade e na objetividade das explicações, e isso exigiu a desvinculação da natureza em relação a causas finais, algo que a própria experiência do orgânico comprovou insustentável.
2 Outros saberes, outras epistemologias
Em busca de uma alternativa, Jonas propõe uma reinterpretação do fenômeno da vida, a partir de uma perspectiva integral: “[...] a vida só pode ser conhecida pela vida.” (JONAS, 2004, p. 115). Em outras palavras, é como fenômeno unitário, portanto, que Jonas vê a vida e, como alternativa à epistemologia moderna, faz uso da fenomenologia como meio de acesso àquela interioridade que marca toda a história evolutiva da vida, na forma da liberdade. Essa perspectiva não é outra coisa do que uma tentativa de superação de uma zoologia privativa, por meio de uma antropologia progressiva, a qual passa a pensar o ser humano como integrado a todo o âmbito natural.
A nova estratégia passa, inclusive, por novas teorias que colocaram em xeque a velha epistemologia desde dentro e que inclui a teoria da relatividade de Einstein, o princípio de incerteza de Heisenberg, o teorema da incompletude de Gödel e a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine, a complexidade na auto-organização dos seres do norte-americano Heinz von Foerster e seu grupo de pesquisa multidisciplinar, a teoria não linear do laser, do alemão Herman Haken, a teoria sistêmica do austríaco Ludwig von Bertallanfy e as características da vida, anunciadas pelos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, as quais levaram às teorias da inter e da transdisciplinaridade, cujo sentido tem sido reaproximar os polos antagônicos das ciências naturais e humanas ou, em outro sentido, da visão epistêmica de cunho materialista e daquela de perspectiva idealista.
Um tal novo complexo teórico nasce em função da crise do paradigma dominante na ciência moderna e, por isso, emerge como uma alternativa cujos princípios fundadores partem do reconhecimento de que todo conhecimento natural é também social, tem ligação direta com a subjetividade que o anuncia (é autoconhecimento), tem tempo e geografia e visa a constituir-se como senso comum. Santos aponta essa perspectiva, afirmando que “[...] o sujeito, que a ciência moderna lançara na diáspora do conhecimento irracional, regressa investido da tarefa de fazer erguer sobre si uma nova ordem científica.” (SANTOS, 2010a, p. 69). Em outras palavras, cabe agora ao sujeito desenvolver um tipo de paradigma que não anule a fonte mesma do conhecimento, ou seja, a experiência da subjetividade engendradora capaz de anular o mecanicismo e o materialismo da ciência moderna, sua hiperespecialização.
Por isso, no campo das alternativas epistemológicas, Santos e Meneses chegam ao conceito de “epistemologias do Sul”, dado que reconhecem que todo o colonialismo que se abateu sobre o continente americano e africano, por exemplo, também se constituiu como uma “[...] dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder.” (SANTOS; MENESES, 2010b, p. 19). Como resultado do diagnóstico que verificou a crise paradigmática da epistemologia tradicional, os autores chegam a uma nova forma de pensar que reconheça tanto saberes outros quanto outros lugares de produção desses saberes. Nesse sentido, o conceito de epistemologias do Sul é expresso da seguinte maneira:
Trata-se do conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão dos saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica dominante, valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos. A esse diálogo entre saberes chamamos ecologias de saberes. (SANTOS; MENESES, 2010b, p. 7).
A nova perspectiva epistemológica, assim, passa pelo reconhecimento dos novos saberes, os quais devem, agora, ser pensados de forma interconectada, a partir de suas relações e não mais sob o ponto de vista do isolamento e fragmentação, propaladas pela ciência moderna. Ora, é precisamente nesses saberes que Hans Jonas parece encontrar elementos capazes de possibilitar o enfrentamento da crise ambiental que se abate sobre a civilização tecnológica.
3 Por um novo ethos
Os novos saberes, por isso, passam do campo epistemológico para o ético e passam a formular as bases da proposta de uma ética defendida por Hans Jonas, a qual pode ser entendida como uma abertura à experiência plural dos diferentes povos em busca de uma alternativa de vida, dado que
[...] nenhuma ética anterior vira-se obrigada a considerar a condição global da vida humana e o futuro distante, inclusive a existência da espécie. O fato de que hoje eles estejam em jogo exige, numa palavra, uma nova concepção de direitos e deveres, para a qual nenhuma ética e metafísica antiga pode sequer oferecer os princípios, quanto mais uma doutrina acabada. (JONAS, 2006, p. 41).
Se a sua proposta de uma nova ética parte do reconhecimento da fragilidade da vida e da própria responsabilidade como um aspecto ontológico do ser humano, então, ela também reconhece que a centralidade epistemológica que gerou a tecnociência e deu origem à civilização tecnológica tem um custo também ambiental, já que da natureza foi retirada qualquer perspectiva quanto a fins e valores, abrindo-a para a exploração irresponsável que orientou a atividade técnica e levou ao esgotamento dos recursos naturais e à extinção de inúmeras formas de vida, no planeta. Ou seja, para Jonas, o problema epistemológico e ontológico (o qual expressa uma má-compreensão da natureza, em geral, e da vida, em particular) teve uma consequência ética absolutamente grave, a destruição do meio-ambiente.
Para Jonas, o único caminho seria a frugalidade, a modéstia, a contenção, não apenas no uso mas também na obtenção dos poderes, que devem ser utilizados de forma parcimoniosa, a fim de evitar a catástrofe. Trata-se, nas suas palavras, de reconhecer que as epistemologias centrais, das quais se originou o fenômeno da técnica moderna, mostra que “[...] a nova modéstia já não é só coisa de precaução previsora, mas clara urgência” e, mais, que, “[...] para deter o saque, a depauperação de espécies e a contaminação do planeta que estão avançando a olhos vistos, para prevenir o esgotamento de suas reservas, inclusive uma mudança insana no clima mundial causada pelo homem, é necessária uma nova frugalidade em nossos hábitos de consumo.” (JONAS, 2013, p. 77).
Jonas tem consciência de que falar em frugalidade é quase uma heresia, no mundo contemporâneo, mobilizado por uma “dieta socioeconômica” baseada em hábitos de consumo insustentáveis (JONAS, 2013, p. 49), contudo, ele também reconhece que, ao falar em frugalidade, “[...] estaríamos, portanto, ante um valor bem antigo, só recentemente tornado antiquado” (JONAS, 2013, p. 77), dada a sua utilidade para as éticas até o momento presente. Sua análise reconhece que “[...] continência (continentia) e temperança (temperantia) foram, durante longas épocas no Ocidente, virtudes obrigatórias da pessoa, enquanto a gula esteve sempre escrita com letras maiúsculas no catálogo eclesiástico dos vícios.” (JONAS, 2013, p. 77).
Ao contrário, na civilização tecnológica da produção em larga escala, segundo os critérios do consumo e da descartabilidade que fazem girar a roda econômica sem compromisso com os desafios ambientais, valores como continência e temperança passaram a ser considerados quase como “incômodos” éticos, enquanto a gula seria favorecida e transformada em uma “[...] colaboradora meritória na marcha da moderna sociedade industrial.” (JONAS, 2013, p. 78). A gula, agora, é assumida como um “dever socioeconômico” orientador da sociedade ocidental, a qual é reduzida a uma sociedade de consumidores e, como consequência, é precisamente ela que impede, com “coações e estímulos”, um “clima de indulgência geral” em relação às práticas de exploração da natureza que marcam o avanço da civilização tecnológica.
4 Comunidades tradicionais brasileiras e o novo ethos
Para Jonas, assim, só o apelo a uma vida mais simples e mais integrada à natureza poderia nos levar a um novo patamar civilizatório, em vista não apenas de uma relação de hostilidade ou de indiferença em relação a ela (como tem sido desde os tempos primordiais), porém, de moderação, autolimitação, respeito e, principalmente, responsabilidade. Ora, se a civilização ocidental é marcada pelo avanço tecnológico e pelo desgaste ambiental, os povos originários da América e África se apresentam como repositório daqueles valores alternativos que caracterizam as possibilidades de uma nova relação com a natureza. São esses povos que representam aquilo que Jonas chama de “[...] um retorno a um velho ideal, mas a instauração de um ideal novo,” (JONAS, 2013, p. 78). Assim, entre o velho e o novo, estão os povos ribeirinhos, indígenas, afrodescendentes, quilombolas, quebradeiras do coco de babaçu, catadoras de mangaba, seringueiros, camponeses pantaneiros, posseiros, povos faxinalenses, comunidades de fundo de pasto, povos de cultura cigana, povos de terreiro, pescadores, caiçaras, extrativistas, pomeranos, retireiros do Araguaia, etc.3
Todas essas identidades4 são reconhecidas em seus saberes tradicionais, baseados em uma relação de mais respeito e responsabilidade com a natureza. Ao cuidarem das águas e da biodiversidade em geral, sua medicina, sua cultura, sua religião, seus mitos, seus valores e saberes são construções históricas amparadas em outros vínculos sociais, no respeito ambiental e em uma convivência pacífica com os demais seres vivos. De acordo com Dussel, essa é a base do ethos da libertação:
[...] a superação da razão cínico-gerencial (administrativa mundial) do capitalismo (como sistema econômico), do liberalismo (como sistema político), do eurocentrismo (como ideologia), do machismo (na erótica), do predomínio da raça branca (no racismo), da destruição da natureza (na ecologia), etc., supõe a libertação de diversos tipos de vítimas oprimidas e/ou excluídas. (DUSSEL, 2002, p. 65).
É como libertação que as novas identidades reivindicam reconhecimento, a partir de suas necessidades concretas no âmbito da vida: “O sujeito ético é corpo, espírito e cultura, sua dimensão fundamental é a sua própria vida e a vida quer viver. Sua maneira de agir remete sempre a esta necessidade de reproduzir a vida.” (DUSSEL, 2002, p. 93). Isso significa que, diante dessas comunidades tradicionais5, estamos em terreno onde a moderação no uso dos poderes não é uma negação do direito ao desenvolvimento, mas a conquista de uma liberdade nova, ou seja, de um novo direito, o direito de viver de forma alternativa àquela forma de vida tida como única e verdadeira. Por manterem formas de vida que não estão baseadas na disputa por prestígio individual6, na eficiência tecnológica e na exploração desenfreada dos recursos naturais, esses povos representam não o passado (ou o ultrapassado), todavia, a possiblidade de novas experimentações de valores. Eles dão demonstração de que há outros modos de viver, outros saberes e modos de acesso à vida. Eles são a voz das tradições culturais ocidentais negadas pelo colonialismo vigente, “[...] esquecidas e marginalizadas porque não se adequavam aos objetivos imperialistas e ocidentalistas que vieram a dominar a partir da fusão entre modernidade ocidental e capitalismo”, ou, em outras palavras, estamos diante dos representantes de um “[...] Ocidente não Ocidentalista”, conforme a feliz expressão de Boaventura de Souza Santos (2010, p. 445) - ou não ocidentalizado, como poderíamos afirmar. Recuperar tais tradições e experiências é recuperar a verdade desses saberes abafados pelo colonialismo epistêmico, cujo prejuízo reverbera na atual crise ambiental e, especialmente, climática. Para isso, é preciso, primeiro, reconhecer “[...] uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico.” (SANTOS, 2010a, p. 54).
Em outras palavras, é urgente reconhecer a atitude contra-hegemônica e contraepistemológica que resiste nas formas de vida, as quais, por seus saberes, relacionam-se entre si com humanos, com o meio ambiente e com os demais seres vivos, de maneira sustentável. Reconhecer a ecologia de saberes é reconhecer a pluralidade de formas de vida, ou seja, para além das diversas epistemes, podemos identificar os diferentes ethos que permanecem como sinal de resistência e que guardam as possibilidades, para que toda a humanidade evite a catástrofe que está por vir e que já bate à nossa porta.
Tal atitude, contudo, não pode ser entendida como uma mera contraposição no sentido de negação dos benefícios e êxitos da ciência, mas, antes, o reconhecimento dos limites dos conhecimentos científicos e dos seus prejuízos, em benefício do aumento de credibilidade das demais perspectivas epistemológicas, reconhecidas como não científicas. Mesmo assim, trata-se de reconhecer a resistência dessas perspectivas: “[...] só se aprende com o Sul na medida em que se concebe este como resistência à dominação do Norte e se busca nele o que não foi totalmente desfigurado.” (SANTOS, 2020, p. 18). É precisamente nas formas de vida das populações tradicionais que encontramos essa existência não-desfigurada, que não pode ser compreendida, pela via romântica, como uma existência pura, mas como uma contraprova, uma perspectiva que rejuvenesce as alternativas capazes de impor “freios voluntários” à moderna tecnologia, de sorte a evitar o pior.
Nesse sentido, a invisibilidade histórica de muitas dessas comunidades possibilitou que elas usassem estratégias silenciosas de sobrevivência, baseadas em relações de respeito com a natureza, nas quais as ideias de posse e propriedade privada são mais escassas, as mitologias e espiritualidades são mais fortes, as práticas fármaco-médicas mais naturalistas, o exercício dos poderes mais circulares. O reconhecimento dessas identidades, por isso, deve ser pensado também em função de suas próprias demandas: com o fim de expandir as fronteiras do agronegócio e do chamado progresso, tais comunidades tradicionais estão ameaçadas e vêm sofrendo forte pressão de madeireiros, latifundiários e mineradores. O reconhecimento e a valorização da legitimidade de seus modos de vida (seu ethos sulista, portanto) devem ser vistos como uma garantia de seu direito de existir do modo como bem quiserem, evitando os invasores, a violência e os conflitos trazidos pela expansão das fronteiras agropecuárias, da especulação imobiliária e dos grandes projetos de desenvolvimento (tais como estradas, hidrovias, parques eólicos, hidrelétricas e até unidades de conservação ambiental, implantados unilateralmente, sem o reconhecimento de seus direitos, em nome do progresso a todo custo). A corrida pela mercantilização da vida e da cultura transforma “patrimônios” em “produtos” e leva ao desequilíbrio global que ameaça a existência da humanidade sobre a terra.
Assim, a chamada civilização tecnológica nascida da epistemologia moderna, de viés unicamente científico, se sobrepõe aos saberes e segredos dos povos tradicionais, em benefício dos confortos que vêm colocando em xeque a existência do ser humano sobre a Terra. Sua sobrevivência, nesse caso, depende do reconhecimento de seu ethos, o que significa, de suas formas de vida, marcadamente ligada à diversidade dos biomas, já que os locais onde essas comunidades vivem, no geral, são os mais preservados do Brasil, algo que ocorre graças à sua presença resistente, em seus territórios.
Os saberes resistentes incluem tecnologias próprias, uso dos solos, cuidado da vegetação, dos animais e das fontes de água, uso controlado do fogo, manejo de florestas, seleção e resgate de sementes crioulas, cruzas de animais, preservação de línguas autóctones, ritos, narrativas míticas, danças, benzimentos, estratégias de relacionamento, educação das novas gerações e as mais diversas formas de convivência entre si e com seu entorno, resultadas de uma experiência autônoma que coloca em xeque a própria ideia de progresso.
Enquanto as políticas públicas, no geral, enxergam esses espaços territoriais como fontes de recursos (zonas de sintropia) e carentes/passíveis de desenvolvimento, elas são espaços de vida, onde a felicidade está associada a outros valores que não aqueles divulgados pela sociedade urbana agroindustrial. Não se trata aqui de um mero retorno a um mundo pré-industrial, todavia, do reconhecimento de outros saberes e outros valores que podem “arejar” e dar oportunidade, para que outras compreensões de mundo possam se desenvolver em parceria com a natureza em geral. Estamos diante de um outro tipo de discurso, que seja mais próximo da arkhé, ou seja, de um princípio inaugural e constitutivo.
É preciso reconhecer que esses povos tradicionais representam, em seus modos de vida alternativa, uma resistência ao epistemicídio, pois “[...] o colonialismo, para além de todas as dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e nações colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaço de subalternidade.” (SANTOS; MENESES, 2010b, p. 7).
O prejuízo dessa estratégia tem, como defendemos neste texto, além de uma consequência no campo da epistemologia, também uma implicação ética, no que tange aos modos de vida capazes de preservar a humanidade dos perigos trazidos pelo avanço da tecnologia, fundamentada na exploração ilimitada dos recursos naturais, no consumismo e no descarte. Se os objetivos do colonialismo capitalista sempre foram a exploração das matérias-primas dos países pobres, com o fim de garantir a sua expansão econômica, tais modos de vida (pobremente chamados de alternativos, diante da imposição unilateral de outro e único modo de viver representado pela associação entre bem-estar, conforto e consumo) permaneceram como marginais e esquecidos, precisamente porque não se adaptavam aos objetivos da sociedade de consumo e seu modelo imperialista, o qual fundiu a modernidade e o capitalismo em um único processo histórico.
Considerações Finais
A hipótese que tenta superar o modelo de pensamento moderno ocidental, o qual deu origem à civilização tecnológica conduz também à reformulação dos pilares da ética tradicional, guardada como herança insuficiente, diante dos novos padrões de impacto em termos globais de espaço e tempo, por parte da moderna tecnologia. Tais epistemologias financiaram uma ética do presente absoluto (despreocupada com as gerações futuras) e antropocêntricas (baseadas unicamente no ser humano, excluindo toda a comunidade da vida).
Nesse sentido, além dos grupos sociais, também saíram prejudicados os seres vivos em geral e colocada em xeque a existência das gerações futuras, porque “[...] a negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar enquanto universal.” (SANTOS; MENESES, 2010b, p. 39). A natureza, as gerações do futuro e as comunidades tradicionais foram sacrificadas, para que a sociedade tecnológica, baseada na utopia do progresso, prevalecesse: e é precisamente esse o desafio ético mais urgente de nosso tempo, conforme os apontamentos de Hans Jonas, na sua obra magna O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.
Tudo o que construímos, em termos civilizatórios, parece agora voltar-se contra nós e, inversamente, o que recusamos como não civilizado parece nos oferecer uma nova oportunidade. Como a águia de Ésquilo, devemos tomar consciência desse aparente paradoxo, antes que a tragédia se abata sobre nós.
Referências
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- HORKHEIMER, M. O conceito de Iluminismo. São Paulo: Abril Cultural, 1989 (Col. Os Pensadores).
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- JONAS, H. O Princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
- JONAS, H. Técnica, medicina e ética. Sobre a prática do princípio responsabilidade. Tradução do Grupo de trabalho Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus, 2013 (Col. Ethos).
- KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Abril Cultural , 1974. (Col. Os Pensadores).
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SANTOS, B. S. Do pós-moderno ao pós-colonial: e para além de um e de outro. Conferência de abertura. In: CONGRESSO LUSO-AFRO-BRASILEIRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, VIII., 16 set. 2004, Coimbra. Anais [...] 2004. Disponível em: Disponível em: http://www.ces.uc.pt/misc/Do_pos-moderno_ao_pos-colonial.pdf Acesso em: 25 ago. 2020.
» http://www.ces.uc.pt/misc/Do_pos-moderno_ao_pos-colonial.pdf - SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2010a.
- SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez , 2010b.
- TOURAINE, A. Crítica da Modernidade. 3. ed. Petrópolis: Vozes , 1995.
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“Ora, digo eu: - o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirige a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. Todos os objetos das inclinações têm somente um valor condicional, pois, se não existissem as inclinações e as necessidades que nelas se baseiam, o seu objeto seria um valor.” (KANT, 1974, p. 65).
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O Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, ligado ao Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário, reconhece cerca de 30 tipos de comunidades tradicionais, no Brasil.
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Algumas dessas identidades foram descritas pelo Repórter Brasil e podem ser acessadas em: https://reporterbrasil.org.br/comunidadestradicionais/faxinalenses-do-parana/.
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A expressão Comunidades tradicionais foi forjada no âmbito das ciências humanas (em especial da antropologia e da sociologia) e aparece, a partir de 2007, no Decreto nº 6040, que trata da “Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT)” que enfatiza o “[...] reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições” e que são orientadas pela Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), criada em 2006 (BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Disponível em: https://goo.gl/L9N2qq Acesso em: 14 nov. 2018). Segundo o Decreto nº 6.040/2007, Comunidades Tradicionais são “[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.” A Constituição de 1988 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (da qual o Brasil é signatário) reconhecem o direito dessas comunidades à autodeterminação, à autoidentificação e ao território, o que exige que elas sejam consultadas, em caso de impacto por parte de projetos de desenvolvimento, o que, obviamente, nem sempre acontece.
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Dussel escreve sobre a “subjetividade’ intersubjetiva” como uma característica da nova subjetividade, porque ela se constitui a partir de uma certa “comunidade de vida”, ou seja, “[...] desde uma comunidade linguística (como o mundo da vida comunicável), desde uma certa memória coletiva de gestos de libertação, desde necessidades e modos de consumo semelhantes, desde uma cultura com alguma tradição, desde projetos históricos concretos aos que se aspira em esperança solidária.” (DUSSEL, 2002, p. 531).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Fev 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
18 Abr 2020 -
Aceito
19 Ago 2020