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Comentário a “Impulso criador e drama vital em Bergson”: A dialética do devir e a dramatização do elã vital

O objetivo deste comentário é estabelecer um diálogo com o artigo de Rita Paiva (2023PAIVA, R. Impulso criador e drama vital em Bergson. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 253 - 274, 2023.), intitulado “Impulso criador e drama vital em Bergson”. Para tanto, retomamos três elementos do artigo original: (1) o problema da apreensão da passagem do tempo, ou seja, do “devir”; (2) a noção de “drama” ou a dramatização como recurso a personagens metafísicos; (3) o conceito de “ação” entendido como luta ou esforço.

Ao contornar obstáculos, a matéria viva se abre caminho e se organiza, prolongando-se em ação: essa seria uma das teses centrais do artigo, a qual interpretamos livremente como uma dialética da criação da matéria como obstáculo ou, sinteticamente, como uma dialética do devir. A presença do obstáculo, como aquilo que opõe uma resistência necessária à criação, opera aqui uma negatividade inerente à positividade da ação. Os obstáculos que a própria materialidade impõe à vida são como uma negação que limita, mas ao mesmo tempo exige criação. O elã vital, portanto, precisa de um meio para agir, um solo que lhe permita exercer sua adaptação inventiva. Nisso consiste sua luta.

Assim, a abertura de um canal se explica pela própria força da água que, ao deparar com certos obstáculos, prolonga sua ação no sentido que lhe ofereça menor resistência. O movimento, segundo Bergson, é um ato indivisível como aquele que fazemos, ao erguer a mão, onde a contração muscular vence a gravidade. O impulso criador também se compreende de modo análogo, visto que a matéria viva é atravessada por uma ação indivisível que prolonga seu esforço invisível: “Imaginemos que, em vez de mover-se no ar, minha mão tenha que atravessar uma quantidade de limalha de ferro que se comprime e resiste à medida que progrido.” (BERGSON, 2005BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 103). Se fixarmos um determinado momento dessa evolução, teremos um arranjo de grãos dessa limalha que expressa negativamente o movimento indiviso da mão que os organizou.

Contudo, é preciso aclarar que o termo “dialética” não remete a um “diálogo” cuja finalidade seria a de estabelecer o acordo sobre o sentido das palavras, nem a uma “distribuição” das coisas, segundo as indicações da linguagem (BERGSON, 2006aBERGSON, H. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006a., p. 91). Usamos essa expressão - dialética do devir - para indicar uma mudança radical do pensamento de Bergson em relação à metafísica tradicional. O movimento dialético não estaria em nossa racionalidade, muito menos em nosso discurso, mas antes na própria realidade em devir. A intuição é o reconhecimento dessa dialética imanente à duração, uma espécie de “instinto” pelo qual abrimos o espaço à nossa frente, à medida que fechamos o tempo que vai passando (BERGSON, 2006bBERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2006b., p. 169). Merleau-Ponty sintetiza bem essa ideia: “Visão dialética, porque é um mesmo movimento que abre o futuro e fecha o passado. Ultrapassamos o simples misto de sujeito e objeto para constituir uma verdadeira dialética do tempo.” (MERLEAU-PONTY, 2002MERLEAU-PONTY, M. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991., p. 88-89). Nesse sentido, o movimento de inversão sublinhado por Rita Paiva pode ser interpretado como uma “dialética da passividade e da atividade” (WORMS, 2004WORMS, F. Bergson ou les deux sens de la vie. Paris: PUF, 2004., p. 61), a qual explica como o real pode passar da tensão para a extensão e da liberdade para a necessidade mecânica por via da inversão.

Ora, se o propósito de Bergson era reencontrar a “unidade verdadeira, interior e viva” da natureza, talvez as críticas de Barbaras e Lebrun sejam instrutivas, porquanto advertem que o privilégio metafísico atribuído à duração acaba por substancializar o devir. Em outras palavras, a dramatização metafísica do elã vital poderia ofuscar a realidade em devir, se buscamos traduzir em imagem o sentido dessa evolução dialética. O castelo de Bergson é maleável, feito areia molhada, onde o processo de fazer e desfazer quase não se distinguem.

É claro que a noção de imagem que propõe Paiva está mais próxima do cinema que da fotografia, isto é, trata-se de uma imagem-movimento e não de recortes fixos; de um conceito fluido, antes que de uma essência. Malgrado Deleuze (198DELEUZE, G. Cinema I - A imagem-movimento. São Paulo: Editora 34, 2018.3), o problema não se resolve no cinema, pois a dialética do devir exige uma diferenciação mais nítida entre positividade e negatividade, entre o ser e o nada.

Ao deslocar a positividade da essência para o devir, Bergson teria substancializado o devir, ao invés de conceder-lhe a negatividade que faltava à essência. Dessa maneira, o filósofo da duração apenas teria mudado o conteúdo do Ser: “Bergson reconhece sem dúvida que a verdadeira mobilidade, a duração, é diferença consigo, mas é para fazê-la aceder à dignidade substancial. O bergsonismo é, portanto, menos uma crítica à metafísica do que um deslocamento da sua tópica: o Ser só mudou de conteúdo.” (LEBRUN, 1972LEBRUN, G. La patience du concept. Paris: NRF, 1972., p. 240 apudBARBARAS, 1998BARBARAS, R. Le tournant de l’expérience. Paris: Vrin, 1998., p. 51). Para eles, Bergson atribui ao devir um privilégio metafísico contraditório.

Barbaras buscará em Merleau-Ponty uma saída para esse impasse: “A neutralização do nada não conduz ao devir por oposição à essência imutável, mas antes a um sentido do ser que inclui o negativo, por oposição à plena positividade.” (BARBARAS, 1998BARBARAS, R. Le tournant de l’expérience. Paris: Vrin, 1998., p. 51). Enquanto Bergson acentua a positividade do devir contra as perspectivas clássicas que o relegam ao não-ser, Merleau-Ponty amplia essa análise e vê no imutável uma modalidade do positivo sob a qual o Ser pode abrigar a negatividade em seu seio. Assim, a duração assume um sentido original do ser, integrando a negatividade sem sabê-lo: uma “negatividade nativa”, ou seja, aquilo que é próprio do ser percebido como ser à distância: “[...] a distância faz parte do seu ser. Tal é o sentido autêntico da negatividade interior ao Ser sobre a qual se debruça a crítica do nada.” (BARBARAS, 1998BARBARAS, R. Le tournant de l’expérience. Paris: Vrin, 1998., p. 56).

Essa distância fenomenológica supõe a “separação” entre duas regiões do real: a subjetividade e o Ser - justamente um dos falsos problemas que Bergson queria superar com a imagem do elã vital. Porém, o que era apenas um movimento imparcial tende a solidificar-se na palavras “consciência” e “vontade”, instituindo-se quiçá como princípio filosófico. Esse procedimento de dramatização, capaz de despertar entidades metafísicas, deve ter motivado certas interpretações, como as de Barbaras e Lebrun.

Sem embargo, a noção bergsoniana de “coincidência” não admite tal separação, visto que o real se integra em um mesmo movimento: a dialética do devir. Entretanto, Bergson consente que é impossível manter esse esforço antinatural que faria coincidir, ao menos em algum grau, a ação humana com a vontade do elã:

Na ação livre, quando contraímos todo nosso ser para lançá-lo para frente, temos a consciência mais ou menos clara dos motivos e dos móveis e mesmo, a rigor, do devir pelo qual estes se organizam em ato; mas o puro querer, a corrente que atravessa essa matéria comunicando-lhe a vida é algo que mal sentimos, algo que no máximo roçamos de passagem. (BERGSON, 2005BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 258).

Por um esforço de vontade, então, nós nos instalamos no puro querer do elã vital, mas essa coincidência não durará mais que um instante e sempre será um “[...] querer individual e fragmentário.” (BERGSON, 2005BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 258). A coincidência parcial, portanto, não pode ser concebida como fusão ou contato com o Ser, mas como “[...] uma coincidência que está sempre defasada ou sempre por vir, uma experiência que se segue de um passado impossível e que antecipa um futuro impossível.” (BARBARAS, 1998BARBARAS, R. Le tournant de l’expérience. Paris: Vrin, 1998., p. 58). Não se trata apenas de renovar a metafísica pela substituição dos conteúdos, senão de mostrar a possibilidade de outra metafísica:

A duração não é somente mudança, devir, mobilidade, é o ser no sentido vivo e ativo da palavra. O tempo não é colocado no lugar do ser, é compreendido como ser nascente, e agora é o ser inteiro que é preciso abordar junto com o tempo. (MERLEAU-PONTY, 1991MERLEAU-PONTY, M. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991., p. 204).

Bergson não busca um princípio filosófico absoluto, seja da vida, seja da materialidade, nem quer pôr o devir no lugar da essência, realizando o sonho da metafísica tradicional. Os conceitos de ação e movimento caracterizam a fluidez dessa nova maneira de fazer metafísica aliada ao esforço da intuição. Em certa medida, a metafísica clássica e a intuição sugerem dois esforços em sentido contrário, pois “[...] o mesmo esforço pelo qual ligamos ideias a ideias faz desvanecer a intuição que as ideias se propunham a armazenar.” (BERGSON, 2005BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 258).

Na história da filosofia, qualquer intuição original se desenvolve por conceitos. Entretanto, para reestabelecer o contato primitivo com a intuição, haveria que desfazer toda essa construção conceitual. Daí se desprende a “dialética bergsoniana” como uma distensão da intuição (PRADO JÚNIOR, 1989PRADO JÚNIOR, B. Presença e campo Transcendental. São Paulo: Edusp, 1989., p. 29). Para um discípulo atento, exercer a intuição de acordo com o mestre significa habituar-se a esse “[...] vai-e-vem contínuo entre a natureza e o espírito.” (BERGSON, 2005BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 259).

Referências

  • BARBARAS, R. Le tournant de l’expérience. Paris: Vrin, 1998.
  • BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • BERGSON, H. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.
  • BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2006b.
  • DELEUZE, G. Cinema I - A imagem-movimento. São Paulo: Editora 34, 2018.
  • LEBRUN, G. La patience du concept. Paris: NRF, 1972.
  • MERLEAU-PONTY, M. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
  • PAIVA, R. Impulso criador e drama vital em Bergson. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 253 - 274, 2023.
  • PRADO JÚNIOR, B. Presença e campo Transcendental. São Paulo: Edusp, 1989.
  • WORMS, F. Bergson ou les deux sens de la vie. Paris: PUF, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2023
  • Aceito
    30 Jan 2023
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