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Comentário a “Reflexões sobre o ninguém na obra de Hannah Arendt”: quem é ninguém?

O sentido do pensamento de Hannah Arendt é sucintamente exposto na pergunta elaborada em seus diários (ARENDT, 2002aARENDT, H. A dignidade da política. Tradução de Helena Martins e outros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará , 2002a., p. 520) e destacada por Vanessa Sievers de Almeida: por que existe alguém, e não ninguém? Seu antigo mestre, Martin Heidegger (HEIDEGGER, 1978HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978., p. 33), questionava: por que existe o ser, e não o nada? Há um deslocamento da frase de Heidegger, na paráfrase de Hannah Arendt, que aponta para um abandono da metafísica em prol do pensamento político e ajuda a entender sua recusa a ser chamada de filósofa no sentido clássico do termo (ARENDT, 2002bARENDT, H. Denktagebuch. Herausgegeben von Ursula Ludz, Ingeborg Nordmann. München: Piper, 2002b, 2 Bde., p. 123). O que lhe interessava especialmente era a pluralidade de alguéns, e não a questão do ser em geral - pela qual a ontologia fundamental se definira e que, desde Platão, orientou a filosofia. Tratava-se da experiência política, desprezada por Platão e na tradição ocidental que o segue. Essa experiência faculta aos seres humanos aparecerem uns para os outros, em atos e palavras, revelando quem são na própria vida ativa, não na vida contemplativa, de sorte a tornar-se “alguém”, para empregar os termos de Almeida (2021ALMEIDA, V. S. de. Reflexões sobre o ninguém na obra de Hannah Arendt. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 395-400, 2021.).

O seu artigo “Reflexões sobre o ninguém na obra de Hannah Arendt” constatou algo decisivo: a polis onde quem somos aparece foi pensada originalmente por Hannah Arendt, porque faltava em sua experiência concreta, histórica e pessoal. Judia-alemã no século XX, Hannah Arendt entendeu que os regimes totalitários, como o nazismo, eram cinturões de ferro nos quais ninguém emergia, em sua singularidade; o oposto do espaço onde alguém aparece publicamente em sua diferença no mundo, junto aos outros. Tanto que o seu primeiro grande livro, Origens do totalitarismo, de 1951, estuda o nascimento moderno da sociedade de massa, onde ninguém se singulariza. Só no penúltimo capítulo de A condição humana, de 1958, o alguém é protagonista como um “quem” (ARENDT, 1999ARENDT, H. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999., p. 191), onde é belamente descrito, como sublinha Almeida (2021ALMEIDA, V. S. de. Reflexões sobre o ninguém na obra de Hannah Arendt. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 395-400, 2021.).

De certo modo, porém, a preocupação de Hannah Arendt com o mundo no qual ninguém aparece - e, portanto, que pode ser destruído, sem que ninguém seja nomeado ou identificado, pois todos que seriam alguéns já estariam engolfados em uma maquinaria sistemática impessoal - pode ser retraçada, em sua origem, à conhecida tematização que Heidegger, em Ser e tempo, de 1927, fizera sobre o “ser-com” (HEIDEGGER, 2009HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2009., p. 230). Para ele, o modo pelo qual, cotidianamente, somos com os outros é aquele em que cada um foge de si mesmo e o faz, escorando-se genericamente nos outros, mas os outros não são alguéns definidos. São a indefinição do impessoal, que “[...] tira o encargo de cada presença”, pois “[...] todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo.” (HEIDEGGER, 2009HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2009., p. 185). Heidegger escreveu que “o impessoal, que responde à pergunta quem da presença cotidiana, é ninguém” (HEIDEGGER, 2009HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2009., p. 185). Sob esse prisma, a origem do que Hannah Arendt pensa como “ninguém” estaria prefigurada na filosofia de Heidegger.

Não há, nisso, nenhuma tentativa de diminuir a originalidade de Hannah Arendt. Ela mesma escreveu, em uma dedicatória não publicada, que foi fiel e infiel a seu amigo íntimo, e ambas as coisas no amor (ARENDT, 2001ARENDT, H. Hannah Arendt-Martin Heidegger: correspondência 1925/1975. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará , 2001., p. 247). Trata-se aqui de, com essa contextualização, explicitar o deslocamento que ela opera: como sua infidelidade surge da fidelidade. Enquanto, para Heidegger, o impessoal é uma estrutura existencial, já para Hannah Arendt, é um problema político. Enquanto, para Heidegger, a sua interrupção se dá na disposição afetiva da angústia, para Hannah Arendt, trata-se de recobrar o sentido da pluralidade mundana. Contudo, o pano de fundo histórico para os dois se assemelha. Heidegger citava, embora timidamente, as “grandes multidões” (HEIDEGGER, 2001, p. 127). Hannah Arendt discutia, detidamente, “as massas” (ARENDT, 1989ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 355).

O artigo de Vanessa Sievers de Almeida chama a atenção, com razão, para como, nesta sociedade de massas moderna, que desarticulou a representação político-partidária típica do século XIX, o mundo comum entre os seres humanos vai perdendo relevância e, assim, vamos sendo tragados e deixando de aparecer como alguéns. Enfatiza-se, aí, o movimento totalitário, ou seja, aquela tendência que, antes da consolidação da forma de governo totalitária, aparece na sociedade, o que se consagrou chamar, em referência ao filme homônimo de Ingmar Bergman, de 1977, de “ovo da serpente”. É a sociedade de massas onde ninguém aparece que torna possível um governo totalitário.

Nesse aspecto, o artigo de Almeida (2021ALMEIDA, V. S. de. Reflexões sobre o ninguém na obra de Hannah Arendt. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 395-400, 2021.) explora as páginas sobre a sociedade de massas de Origens do totalitarismo, nas quais a atenção está voltada para um momento histórico preciso, os anos 1920 e 1930, bem como para um local preciso, a Alemanha. O artigo preocupa-se, contudo, com ecos dessas análises no século XXI. Tal preocupação é justificada e, se o centro da discussão é a figura do “ninguém”, pode ser complementada pelas reflexões de Hannah Arendt sobre a violência, pois nelas está em jogo menos a formação social das massas antes do nazismo e mais como essa formação ainda permanece depois dele, confirmando a suspeita de que talvez “[...] verdadeiros transes do nosso tempo”, escreve Hannah Arendt, “[...] somente venham a assumir a sua forma mais autêntica - embora não necessariamente a mais cruel - quando o totalitarismo pertencer ao passado.” (ARENDT, 1989ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 512).

Ora, se um desses transes do nosso tempo é a prevalência de ninguém, ao invés do aparecer plural de alguéns, nas páginas de Hannah Arendt, de Sobre a violência, constatamos sua continuidade entre nós:

Hoje poderíamos acrescentar a última e mais formidável forma de tal dominação: a burocracia, ou o domínio de um sistema intrincado de departamentos nos quais nenhum homem, nem um único nem os melhores, nem a minoria nem a maioria, pode ser tomado como responsável, e que deveria mais propriamente chamar-se domínio de Ninguém. (Se, de acordo com o pensamento político tradicional, identificarmos a tirania com o governo que não presta contas a respeito de si mesmo, então o domínio do Ninguém é claramente o mais tirânico de todos, pois aí não há ninguém a quem se possa questionar para que responda pelo que está sendo feito [...]) (ARENDT, 1994ARENDT, H. Sobre a violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., p. 33).

Isso fortalece a tese de Almeida (2021ALMEIDA, V. S. de. Reflexões sobre o ninguém na obra de Hannah Arendt. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 395-400, 2021.) de que o egoísta difere do ninguém. Para ela, o egoísta diz “eu”, faz seu autointeresse superar o interesse comum e sua vida privada suprimir sua vida pública. Já no domínio do ninguém, surge algo diferente. É a supressão do interesse na pluralidade, mas também em si, no mundo, mas também no eu. Ou seja, o problema é mais político que moral: a autodissolução nas massas, a subordinação à ideologia e o mero funcionamento. O egoísmo, portanto, se situaria entre o alguém e o ninguém, sem se identificar com nenhum deles. Todavia, será que, além do egoísmo, há outras possibilidades entre o alguém e o ninguém? Talvez o individualismo.

No século XIX, Tocqueville notou que o egoísmo é um vício tão antigo quanto o mundo, pelo qual o eu se coloca acima dos outros, entretanto, o individualismo é moderno e nasce da igualdade pela qual cada um passa a ter o direito de cuidar (só) da sua própria vida (TOCQUEVILLE, 2000TOCQUEVILLE, A. A democracia na América: sentimentos e opiniões. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 119). É o nó da democracia, que garante a liberdade para a busca da felicidade individual, mas depende da participação pública. Portanto, há talvez três questões: o egoísmo, que não pertence a uma época determinada; o individualismo, o qual nasce com a era burguesa no século XVIII; e o ninguém, que surge com a sociedade de massas e se expande, no século XX. Em cada etapa, a liquidação do mundo, o espaço comum dos seres humanos, aumenta. E, como pergunta Carlos Drummond de Andrade (1992ANDRADE, C. D. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992., p. 276), pode o homem sentir a si mesmo, quando o mundo some?

Referências

  • ALMEIDA, V. S. de. Reflexões sobre o ninguém na obra de Hannah Arendt. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 395-400, 2021.
  • ANDRADE, C. D. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
  • ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • ARENDT, H. Sobre a violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
  • ARENDT, H. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
  • ARENDT, H. Hannah Arendt-Martin Heidegger: correspondência 1925/1975. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará , 2001.
  • ARENDT, H. A dignidade da política. Tradução de Helena Martins e outros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará , 2002a.
  • ARENDT, H. Denktagebuch. Herausgegeben von Ursula Ludz, Ingeborg Nordmann. München: Piper, 2002b, 2 Bde.
  • HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
  • HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2009.
  • TOCQUEVILLE, A. A democracia na América: sentimentos e opiniões. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2020
  • Aceito
    03 Nov 2020
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