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Comentário a “Nietzsche’s early concept of culture”

Na sua Primeira Extemporânea, NietzscheNIETZSCHE, F. Consideraciones Intempestivas, I: David Strauss, el confesor y el escritor. In: NIETZSCHE, F. Obras completas V. 1: escritos de juventude. Trad. Joan B. Llinares, Diogo Sánchez Meca e Luis E. de Santiago Guervós. Madrid: Techos , 2016a. p. 651-704. (DS/Co. Ext. I § 2, KSA 1.164) define o conceito de cultura nos seguintes termos: “Cultura (Kultur) é antes de tudo a unidade de estilo artístico de todas as manifestações da vida de um povo.” E, opondo o conceito de cultura ao de barbárie, caos estilístico ou ausência de um estilo, em sua Segunda Extemporânea, NietzscheNIETZSCHE, F. Consideraciones Intempestivas, II: De la Utilidad y los Inconvenientes de la historia para la vida. In: NIETZSCHE, F. Obras completas V. 1: escritos de juventude. Trad. Joan B. Llinares, Diogo Sánchez Meca e Luis E. de Santiago Guervós. Madrid: Techos , 2016b. p. 705-758. (HL/Co Ext. II § 4, KSA 1.265) reafirma a sua definição desta forma: “A cultura de um povo, como antagonismo de toda barbárie, tem sido definida em certa ocasião, tenho entendido que com certa razão, como unidade de estilo artístico em todas as manifestações vitais de um povo [...]”

Mas o que significa essa unidade de estilo artístico, nas manifestações vitais de um povo? Por que ela é tão significativa para a cultura? E como atingi-la, de modo a superar a barbárie e constituir uma autêntica cultura? São estas as questões que Jihun Jeong (2021JEONG, J. Nietzsche’s early concept of culture. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 229-244, 2021.) enfrenta, em seu Nietzsche’s early concept of culture. Partindo da definição de cultura descrita acima, o autor procura analisar, nos textos juvenis de Nietzsche, o estatuto desta “unidade” e, para tanto, propõe duas teses como pontos de partida para a sua investigação: a) cultura é unidade; b) essa unidade é artística. Resta ao intérprete sul-coreano averiguar o meio através do qual Nietzsche compreende a formação dessa unidade, bem como o papel da arte, nesse processo.

No que diz respeito à primeira tese, a teoria da linguagem do jovem Nietzsche é a via através da qual Jeong (2021JEONG, J. Nietzsche’s early concept of culture. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 229-244, 2021.) busca os elementos para pensar a proposta de constituição da cultura como unidade. Nesse contexto, a linguagem, instrumento de comunicação (Mittheilung) por excelência, se revela como o fundamento do liame social, uma vez que traduz as experiências individuais num horizonte comum, realizando assim os âmbitos ético e político da vida humana. Através da linguagem, o indivíduo pode compartilhar as suas vivências, no sentido de construir e habitar um mundo partilhado com a alteridade. Não obstante, essa unidade cultural partilhada só se torna efetiva, se for uma unidade estilística, isto é, artística.

Foi na Grécia de Homero que Nietzsche acreditou encontrar o princípio fundador de toda e qualquer unidade social: a arte. Inspirado na educação estética do homem grego, que, através dos versos homéricos, imprimia um estilo artístico no seu modo de vida, o filósofo alemão viu na arte de estilo do poeta helênico o elemento crucial para a formação da unidade de estilo artístico do povo grego. Assim, conclui o intérprete, se, por um lado, a linguagem é o instrumento com o qual o indivíduo supera a sua individualidade e constrói um mundo compartilhado, por outro, não é qualquer linguagem que tem o poder de realizar essa unificação, mas somente a linguagem artística. Entre os gregos pré-socráticos, é o poeta, e não o filósofo legislador, o fundador da cultura. Desse modo, a Grécia antiga é a chave a partir da qual Nietzsche pensará a Alemanha do seu tempo.

De fato, como bem notou Jeong (2021JEONG, J. Nietzsche’s early concept of culture. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 229-244, 2021.), o que preocupa Nietzsche é o estado de barbárie no qual se encontra a Alemanha do século XIX, o que, segundo o filósofo, não tem a ver com à má produção artística, mas com uma tendência equivocada na formação (Bildung) do homem alemão moderno. NietzscheNIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. 15 v. Hg. G. Colli e M. Montinari. Berlin: Walter de Gruyter, 1980. (DS/Co. Ext. I § 1, KSA: 1.159) escreve: “[...] Uma tendência à erudição (Gebildetheit) sumamente ambígua e em todo caso antinacional que se chama hoje na Alemanha, com perigosa equivocidade, cultura”, tendência que se efetiva na dilapidação da língua alemã. Próximo do pensamento de Burckhardt, Nietzsche entende a língua materna como a expressão mais direta e ideal do espírito de um povo, logo, ao dilapidar a língua alemã, o alemão moderno aniquila aquilo que faz dele o que ele é: o espírito alemão. Enfatiza o filósofo:

Pois quem pecou contra a língua alemã profanou o mysterium de nossa germanidade: é somente ela que por meio de toda a mescla e as modificações das nacionalidades e dos costumes, como por milagre metafísico, se salvou a si mesma e desse modo salvou também o espírito alemão. É somente ela que garante ademais esse espírito para o futuro, sempre que não pereça ela mesma nas mãos perversas do “presente”. (NIETZSCHENIETZSCHE, F. Fragmentos póstumos (1869 - 1874), v. 1.Trad. Luis E. de Santiago Guervós. Madrid: Techos, 2007., DS/Co Ext. I § 12, KSA 1. 227).

Como produto da intuição humana, a linguagem guarda um potencial artístico e inconsciente de um povo, que é ativado e ampliado pela atividade do estilista ou do orador. É, portanto, no aperfeiçoamento dos elementos artísticos inconscientes da língua que as artes retórica e poética despertam no homem imagens inconscientes de sua coletividade, ao mesmo tempo que dissipa a representação ilusória da individuação. Então, ao dilapidar a língua alemã, o alemão aniquila a sua própria germanidade.

Em seu artigo, o intérprete sul-coreano poderia ter explorado um pouco mais o estatuto dessa concepção nietzschiana de linguagem, com base nos próprios textos juvenis do filósofo, bem como das fontes que o influenciaram. Também considero temerária a estratégia de relacionar essa concepção com textos do período maduro (NIETZSCHE, MAI/HHI § 11, FW/GC § 354, JGB/BM § 268), pois, além de podermos incorrer num anacronismo dos procedimentos analíticos, corremos também o risco de perder de vista os elementos que caracterizam o pensamento juvenil de Nietzsche e que poderia explicar este fundo místico sobre o qual se fundamenta a noção de “língua materna”, bem como a sua importância para a constituição da cultura como unidade.

Não obstante, ao levar em conta o papel decisivo do povo na constituição da unidade de estilo que é a cultura, o artigo em vista traz uma contribuição significativa, na medida em que procura desfazer a imagem do filósofo elitista - aquele que considera a cultura como “domínio de poucos” ou como algo produzido por uns poucos indivíduos excepcionais -, imagem que pouco a pouco foi sendo incorporada à figura Nietzsche. Sem dirimir o relevante papel que Nietzsche confere ao “indivíduo excepcional” na tarefa da constituição da cultura, Jeong (2021JEONG, J. Nietzsche’s early concept of culture. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 229-244, 2021.) se esquiva das interpretações individualistas do filósofo alemão, a fim de constatar que esse tipo superior não pode ser tomado como um indivíduo isolado, mas sua importância reside justamente na estreita relação que ele estabelece com o povo e a cultura, já que é do gênio que emana a formação daquilo que o autor chama de “uma base compartilhada”.

Em suma, diante um grande número de comentários que evidenciam uma tendência individualista no pensamento de Nietzsche e de outros, os quais, partindo desse suposto individualismo, inscrevem a filosofia nietzschiana no âmbito de um espectro político liberal, a interessante hipótese proposta por Jeong (2021JEONG, J. Nietzsche’s early concept of culture. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 229-244, 2021.) de se pensar o conceito nietzschiano de cultura, a partir do registro estético-político de um “mundo compartilhado” (shared world) tem o mérito de ampliar os horizontes do debate em torno do caráter político da filosofia de Nietzsche.

Referências

  • JEONG, J. Nietzsche’s early concept of culture. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 229-244, 2021.
  • NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. 15 v. Hg. G. Colli e M. Montinari. Berlin: Walter de Gruyter, 1980.
  • NIETZSCHE, F. Fragmentos póstumos (1869 - 1874), v. 1.Trad. Luis E. de Santiago Guervós. Madrid: Techos, 2007.
  • NIETZSCHE, F. Consideraciones Intempestivas, I: David Strauss, el confesor y el escritor. In: NIETZSCHE, F. Obras completas V. 1: escritos de juventude. Trad. Joan B. Llinares, Diogo Sánchez Meca e Luis E. de Santiago Guervós. Madrid: Techos , 2016a. p. 651-704.
  • NIETZSCHE, F. Consideraciones Intempestivas, II: De la Utilidad y los Inconvenientes de la historia para la vida. In: NIETZSCHE, F. Obras completas V. 1: escritos de juventude. Trad. Joan B. Llinares, Diogo Sánchez Meca e Luis E. de Santiago Guervós. Madrid: Techos , 2016b. p. 705-758.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2021
  • Aceito
    20 Mar 2021
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