Resumo:
Este artigo se divide em três partes, a fim de investigar a produção filosófica acadêmica autoral e criativa, no Brasil. Na primeira parte, apresenta-se o desafio da produção autoral em filosofia, no Brasil, a partir do exemplo de iniciativas recentes em filosofia da religião. Na segunda parte, por meio de uma analogia com a música, pretende-se argumentar que a defesa de uma maior valorização da filosofia autoral, no Brasil, não significa desvalorizar o trabalho com história da filosofia, área que aparenta maior predominância na filosofia acadêmica, no país. A terceira parte aborda os desafios para a formação para a autoria filosófica, baseando-se na tríplice fórmula aluno-professor-conhecimento e reconhecendo os aspectos objetivos e subjetivos da aprendizagem.
Palavras-chave: Filosofia como composição; Filosofia acadêmica no Brasil; Formação para a criatividade; Falta; Desejo e aprendizagem
Abstract:
This article is divided in three parts in order to investigate on the authorial and creative philosophical production in the Brazilian academic environment. In the first part, we show the challenge to authorial production in philosophy in Brazil, starting from the example of recent initiatives in the philosophy of religion. In the second part, by means of an analogy with music, we intend to argue that the plead for a greater promotion of authorial philosophy in Brazil does not mean to devaluate the work with history of philosophy, which seems to be the predominant approach in academic philosophy in our country. The third part addresses the challenges to the formation of philosophical authorship, based on the triplet student-professor-knowledge, and acknowledging objective and subjective aspects of learning.
Keywords: Philosophy as composition; Academic philosophy in Brazil; Training for creativity; Lack; Desire and learning
Introdução
Pretendemos contribuir, neste artigo, para pensar melhor o problema da filosofia autoral, no Brasil, nos tempos atuais, por meio do estudo do caso da filosofia da religião. O que tem acontecido nessa área pode ajudar a compreender melhor a questão e vislumbrar um encaminhamento viável para ela.
Comecemos com três episódios ilustrativos. Em 2005, quando o filósofo da religião britânico D. Z. Phillips3 foi convidado para ser conferencista no Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião, em 2007, ele aceitou com entusiasmo, dizendo, na ocasião: “Eu adoraria ir ao Brasil, sou um grande fã de Villa-Lobos!”4 Em 2013, o também britânico Nick Zangwill5, que estava por um período em São Paulo, aceitou convite do Grupo de Pesquisa em Filosofia da Religião da UnB, para uma série de seminários. Um grande incentivo para o aceite foi sua admiração pela arquitetura de Oscar Niemeyer, o qual ele conhecera ainda criança, por ocasião da inauguração de Brasília. Em 2017, ao ser apresentado a um dos autores deste artigo, David Bentley Hart6 - um dos mais reconhecidos teólogos e filósofos da religião, nos Estados Unidos ,atualmente - disse ao brasileiro que tinha grande admiração por Machado de Assis, do qual havia lido várias obras, em português mesmo.
Para os fins de nossa argumentação, gostaríamos de chamar a atenção para dois elementos que se repetem, nesses três episódios. Em primeiro lugar, as três pessoas se mostraram admiradoras do trabalho autoral de brasileiros, por suas contribuições internacionalmente reconhecidas. Em segundo lugar, apesar do contexto comum às três interações, nenhum filósofo da religião do Brasil foi mencionado. E por que nenhum trabalho de filosofia da religião do Brasil era considerado digno de nota, por aqueles três filósofos da religião relatados acima? Por que, apesar de serem da área, falando com alguém da área, eles se referiram a obras de um músico, um arquiteto e um literato brasileiros? Uma boa resposta é que não havia nenhuma contribuição brasileira em filosofia da religião que eles conhecessem, ainda. E o problema talvez não seja a desinformação, por parte dos três filósofos mencionados, mas, sim, que não haja ainda uma contribuição internacionalmente relevante nessa área, de nossa parte. E não há ainda uma contribuição internacionalmente relevante em filosofia da religião, porque ainda somos pouco criativos - essa é a tese que este texto pretende explorar.
Para tal, o presente artigo se divide em três partes, a fim de investigar a produção autoral e criativa em filosofia da religião dentro da academia, no Brasil. A primeira parte vai descrever o trabalho mais recente de construção da área de filosofia da religião, no país, desde 2005, o qual servirá para ilustrar a compreensão e os desafios para uma filosofia acadêmica autoral e sua relação com a tradição filosófica. Na segunda parte, por meio de uma analogia com a música, pretendemos argumentar que a defesa de uma maior valorização da filosofia original, no Brasil, não significa desvalorizar o trabalho com história da filosofia, área que aparenta maior predominância na filosofia acadêmica, em nosso país. Percebe-se que o compositor e o intérprete musical são funções interdependentes e sem as quais não seria possível desfrutar das diferentes produções musicais, ao longo da história. Ambas as funções necessitam de uma base técnica e teórica sólida, a fim de executarem e criarem composições, as quais são um elemento fundamental da atividade musical. Porém, o que se destaca, em ambos, é o caráter criativo que advém da subjetividade do compositor/intérprete. Nesse sentido, para o aspecto criativo converge a base objetiva de conhecimento adquirida da tradição e a singularidade própria do sujeito e suas experiências pessoais. Essa interação entre objetivo e subjetivo é um dos fatores centrais que possibilitam a ação criativa do compositor e do intérprete contemporâneos.
A terceira parte aborda os desafios na formação para a autoria filosófica. A partir da analogia com a música, é possível pensar a produção filosófica segundo os aspectos objetivos e subjetivos da criatividade, considerando o ambiente acadêmico, em especial a sala de aula. O aspecto objetivo está consolidado na história de ensino de filosofia nacional, cabendo aqui uma análise do aspecto subjetivo e seu surgimento, na relação entre professor, aluno e conhecimento. De sorte a sustentar essa investigação, utilizaremos o conceito de “transferência” da psicanálise, o qual permite analisar o que opera nas relações subjetivas em sala de aula, a favor da abertura ao diálogo criativo. O que sustenta a relação transferencial entre professor e aluno é o próprio conhecimento, seja como desejo de aprender, por parte do aluno, seja como desejo de ensinar, por parte do professor, ambos embasados na confiança do arcabouço teórico do professor e na reputação da instituição de ensino na qual se encontram. A possibilidade criativa encontra campo fértil, quando há o reconhecimento de que o conhecimento não está dado, ou seja, há ainda falta a suprir e campos a pesquisar, mas não na simples repetição da tradição, e, sim, no seu apoio para algo novo.
1 O trabalho recente em filosofia da religião no Brasil e os desafios da filosofia autoral
I tell you what mine authors say. (WILKINS; SHAKESPEARE. Pericles, Prince of Tyre . Scene I, 20, 1607).Filosofia da religião é o estudo das crenças e práticas religiosas, em termos filosóficos. A noção do que seja “estudar algo em termos filosóficos” é notoriamente controversa. Para fins do presente trabalho, propomos entender como abordagem filosófica da religião aquela que busca compreender, de modo crítico - no sentido de uma intelecção a mais aprofundada possível, à luz da razão -, os pressupostos conceituais mais gerais ou fundamentais daquilo que se crê e se faz nas religiões.
Um modo de justificar essa ideia acerca do que é filosofia da religião é mostrando o quanto ela ajuda a diferenciar-se de outras abordagens do fenômeno religioso. Essa atividade crítica que a Filosofia desenvolve se distingue e se aproxima de outras áreas do conhecimento, de diversos modos. Em relação às ciências da religião (Antropologia, Economia, História, Psicologia, Sociologia, entre outras), a Filosofia se aproxima, porque não usa uma determinada revelação ou tradição filosófica como argumento, em suas análises. Mas a abordagem filosófica se distingue da feita pelas ciências, porque se volta para os conceitos gerais ou fundamentais e não para o que de fato acontece, sob diferentes óticas científicas, no fenômeno religioso - embora frequentemente tome como ponto de partida de sua reflexão uma descrição desses fatos religiosos. Assim, por exemplo, enquanto a Sociologia procura entender como uma religião ajuda a aumentar a coesão das relações sociais, em um determinado grupo, a Filosofia vai se perguntar se aquelas crenças se justificam racionalmente ou qual o significado daquelas práticas.
Por outro lado, a filosofia da religião tenta, assim como a Teologia, uma reconstrução racional da experiência religiosa vivida por uma comunidade. No entanto, diferentemente da abordagem teológica, a filosófica não toma os textos sagrados ou a tradição da religião que está analisando como algo inquestionável, ao qual cabe apenas, no máximo, uma interpretação mais adequada aos novos tempos. A filosofia da religião pode até defender as ideias dos textos ou o sentido das atividades praticadas em uma tradição religiosa, mas isso deve ser justificado racionalmente e não por causa da sacralidade dos escritos ou da venerabilidade daquelas práticas.7
Entendida dessa forma, apesar de a expressão “filosofia da religião” ser relativamente moderna8, aquilo que estamos chamando por ela tem uma longa história, na atividade filosófica. As críticas de Xenófanes de Cólofon ao antropomorfismo da religiosidade popular grega são um exemplo já entre os chamados filósofos pré-socráticos.9 Quando Tomás de Aquino apresenta suas famosas cinco vias (Suma Teológica, 1ª parte, Questão 2, Art. 3º), para provar a existência de Deus, ele estava fazendo algo filosófico e não teológico, no sentido acima, pois argumentava sobre a existência de Deus, não com base na autoridade das escrituras ou da tradição cristã, mas de princípios que ele entendia serem aceitáveis por qualquer pessoa racional. E quando David Hume, nos Diálogos sobre a Religião Natural (1779), ou Immanuel Kant, na dialética transcendental da Crítica da Razão Pura (1781/87), criticam a atividade de expor argumentos contra ou a favor da existência de Deus, também estavam tratando do que chamamos hoje de filosofia da religião. Esses são apenas alguns exemplos de um dos assuntos mais abordados, ao longo da história da Filosofia.
Além de uma longa tradição histórica, a filosofia da religião se liga a todas as principais áreas da pesquisa filosófica. Os desenvolvimentos recentes do argumento ontológico envolvem um considerável aparato de lógica modal e têm sido um incentivo importante para a pesquisa nessa área. A questão da laicidade do Estado, envolvida na relação entre religião e política nos sistemas democráticos, constitui uma oportunidade interessante de estudo dos limites e das exigências da democracia moderna. O significado da experiência mística e a possibilidade que ela abre para a justificação da crença religiosa trazem à baila e provocam instigantes trabalhos em epistemologia. A existência do mal e sua compatibilidade com uma ordenação intencionalmente benevolente do mundo têm grandes relações com estudos de ética e metafísica. O fato de que religião tem a ver com tudo na vida daqueles que dela participam - é nelas que essas pessoas encontram “o sentido fundamental para as suas existências”, poderíamos dizer - talvez sejam a razão dessa enorme diversidade temática, de modo que, ao se fazer filosofia da religião, é possível transitar pelos grandes problemas da Filosofia e, ainda assim, manter uma unidade quanto ao objeto de reflexão.
Os desenvolvimentos recentes da filosofia da religião, no Brasil, mostram essas características apresentadas acima. É claro que, no sentido de estudo das crenças e práticas religiosas, em termos filosóficos, defendido aqui, a filosofia da religião não é algo recente entre nós. Há vários exemplos dignos de nota. Vale a pena conferir as reflexões sobre a inclinação da pessoa humana para a transcendência, seja em termos estruturais, seja relacionais, propostas pelo Pe. Vaz (cf. VAZ, 1991/2). Não têm ainda a atenção merecida as teses sobre a origem religiosa da cultura, entre várias outras acerca da religião e da mitologia, de Vicente Ferreira da Silva (cf. SILVA, 2010 [1964]). E não podemos esquecer as inúmeras partes dos Sermões do Pe. Vieira que trazem reflexões e argumentos filosoficamente relevantes sobre a atividade religiosa e o tema da relação humana com o transcendente. Com esses casos, entre vários outros, os quais mereceriam menção, se tivéssemos espaço para tanto, queremos afirmar que a exposição a ser realizada aqui, a propósito dos desenvolvimentos recentes da filosofia da religião, no Brasil, não significa desconsiderar o trabalho filosófico que foi feito entre nós sobre esse assunto anteriormente.
O marco temporal que vai nos servir de referência é o início dos anos 2000. Em 2004, um grupo de professores da PUC de São Paulo, da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade de Brasília, entre outros, propuseram à ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) a criação do Grupo de Trabalho de Filosofia da Religião. Em 2005, foi realizado, na UnB, o 1º Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião e, em 2006, no X Encontro Nacional da ANPOF, em Salvador-BA, aconteceu a primeira reunião do GT de Filosofia da Religião da ANPOF. Em 2010, foi fundada a Associação Brasileira de Filosofia da Religião - ABFR - e, em 2014, foi criada a Revista Brasileira de Filosofia da Religião.
O que aconteceu na área, no Brasil, desde os anos 2000, reflete a diversidade histórica e temática da filosofia da religião. Os primeiros cinco congressos da ABFR não tiveram tema central, numa estratégia para se abrir ao máximo a possibilidade de participação e se ter uma ideia mais clara do que se estava fazendo no país sobre o assunto. De 2015 em diante, a partir do 6º Congresso Internacional da ABFR (como passaram e vêm sendo chamados até hoje os eventos que começaram como “Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião”), propunha-se um assunto principal, o qual seria o núcleo das discussões no evento, mas sem desconsiderar contribuições sobre outros assuntos. O que sempre se observou foi uma expressiva pluralidade de temas e autores abordados relativos ao estudo filosófico da religião. De pré-socráticos à filosofia contemporânea, da filosofia feminista ao pós-modernismo, do tomismo ao novo ateísmo, pensadores brasileiros, europeus, norte-americanos e de várias outras nacionalidades foram objeto de reflexão sobre os mais diversos tópicos da filosofia da religião.
Essa variedade em interação é pouco usual entre nós, mas tem sido bastante instigante. É muito interessante (e, ao que sabemos, pouco frequente, no Brasil) ver um especialista em Schopenhauer apresentando seu trabalho em uma mesa ao lado de um estudioso de Marx, mediados por um kierkegaardiano.10 Não é só interessante e pouco comum: trata-se de algo muito frutífero para a reflexão filosófica. Em vista de assuntos tão difíceis, como aqueles com os quais a Filosofia lida (e a religião é apenas um deles), o diálogo por meio da comparação das ideias de pontos de vista diferentes pode ser bastante iluminador. Grandes escolas de pensamento se formam a partir de obras fundamentais ou de filósofos tidos como grandes referências de pensamento. Boa parte da filosofia acadêmica moderna se faz como estudo dessas, o que permite significativo aprofundamento na compreensão dessas matrizes de ideias filosóficas.
Simplesmente, a filosofia está nos textos e a história da filosofia, assim como a exegese, quer dizer retorno aos textos, e antes de mais nada textos dos clássicos, que criaram tudo e o melhor que podemos fazer é aprender com eles. (DOMINGUES, 2017, p. 409).
Esse método de leitura e interpretação atenta dos clássicos, trazido pelos professores franceses, era um modelo inovador em relação ao que se tinha antes, no Brasil, restrito ao estudo de manuais destinados especialmente ao preparo seminarístico. Oferecia-se à incipiente vida acadêmica brasileira um modo de fazer filosofia que era amplamente desenvolvido nas melhores universidades europeias. Nessa concepção, filosofar era ler textos de grandes autores e mostrar que se entendera bem essa leitura. Isso supunha o contato com os textos originais, a abertura para tradições filosóficas nem sempre muito bem acolhidas nos seminários católicos e uma dedicação maior do que se tinha antes ao trabalho filosófico, tal como se exige no ambiente acadêmico, não um estudo menos profundo, destinado à preparação para a atividade eclesiástica. Era um modelo inicial de profissionalização da Filosofia entre nós.
Embora, nos últimos cinquenta anos, os modelos tenham se diversificado11, o paradigma centrado na história da Filosofia é ainda o predominante.12 Um bom indício que fundamenta esse diagnóstico é que, das seis matrizes identificadas por Domingues, duas são claramente centradas na história da Filosofia: a histórica e a exegética. Além disso, a descrição das outras (epistemológica, metafísica, ético-política e cultural) se dá com grande ênfase na indicação dos autores ou escolas estudados, ao invés de centrada nos problemas ou debates desenvolvidos. Em outras palavras, mesmo nos modelos não explicitamente voltados para a história das ideias filosóficas, a julgar pelo importante trabalho de Domingues13, o que temos, na Filosofia feita entre nós, é principalmente a descrição e a interpretação das ideias de autores consagrados.
É o desafio de se fazer filosofia autoral em um ambiente filosófico marcado pela questão histórica, o qual justifica o expressivo investimento em projetos voltados para a “pesquisa construtiva” sobre a existência de Deus que a ABFR pôde fazer, com o auxílio da Fundação John Templeton. A ideia é fomentar trabalhos mais criativos que possam contribuir com o debate internacional em filosofia da religião, com novos problemas ou novas respostas a problemas já colocados. Além de seminários nos quais os textos de cada participante são discutidos pelos demais, o projeto inclui a tradução dos artigos finais para o inglês, de sorte a facilitar a publicação em periódicos internacionais e, assim, aumentar a participação brasileira no debate na área, que tem engajado a comunidade filosófica mundo afora.
Não se trata de desmerecer o trabalho com história da Filosofia: o projeto não nega a importância dessa abordagem. O que ele pretende é incentivar algo que parece pouco cultivado entre nós. Propomos que essas ideias de uma maneira criativa de fazer Filosofia e do caráter complementar e não excludente desses modos de produção filosófica podem ser esclarecidos por uma analogia com a Música - esse é o tópico da próxima seção.
2 Entendendo Melhor a Relação entre a Filosofia Autoral e a História da Filosofia por meio de uma Analogia com a Música
É uma arte, como tudo. (Guilherme Arantes. Cuide-se bem, 1976).Na seção anterior, vimos a experiência recente desenvolvida em filosofia da religião, no Brasil, e as iniciativas que vêm sendo tomadas nessa área, no sentido de estimular um pensamento construtivo ou intencionalmente inovador. Nesta parte, por meio de uma analogia com a música, pretendemos entender melhor o que seja pensamento filosófico inovador e argumentar que a defesa de uma maior valorização da filosofia autoral, no Brasil, não significa desvalorizar o trabalho com história da Filosofia - área que aparenta ter maior predominância na filosofia acadêmica, em nosso país, não só na filosofia da religião, mas em geral. Por meio dessa analogia, pretendemos esclarecer melhor a relação entre criatividade inovadora e a produção já estabelecida.
O raciocínio analógico procede pela comparação de pelo menos dois termos. Seu emprego tem em vista a possibilidade de esclarecer propriedades em um dos termos, por meio das semelhanças que ele tem com o outro, o qual é tido como análogo e no qual essas qualidades são mais evidentes. Obviamente, uma vez que semelhança não é identidade, termos análogos vão ter também diferenças, de modo que um raciocínio analógico precisa prestar atenção também nas distinções e justificar por que essas não inviabilizam as afinidades defendidas e com as quais se pretende adquirir uma intelecção superior do termo a ser esclarecido. Assim, vamos começar com a descrição da Música e depois tentar iluminar, com ela, o caso da Filosofia.
2.1 O termo da Música na analogia
A analogia com a música proposta aqui se dá, porque nela podemos identificar claramente as funções de compositor e intérprete, mesmo que ocupadas pela mesma pessoa, e essas funções, apesar de distintas, necessitam uma da outra, para que haja o produto final, a própria experiência sonora da música, no sentido do exercício da arte musical. Essa descrição deverá ajudar a entender melhor o que significa, por analogia, “fazer filosofia” e sua relação com o estudo da história da Filosofia. Na Música, pode-se observar claramente um vínculo estreito entre interpretação e composição, ao se considerar que, por exemplo, a composição das Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos é condição necessária para que os intérpretes a possam tocar e que, sem os intérpretes, essa composição igualmente nunca seria ouvida; além disso, essa interdependência é relevante para o objetivo final da produção artística, o de que haja um público que a testemunhe e aprecie.
Em sua dissertação De onde vêm minhas idéias? Estratégias para a delimitação e a resolução de problemas na composição musical, Bernardo Grassi (2008) inicia a análise do processo criativo da composição musical, associando-o ao processo de resolução de problemas, visto que, ao se compor, cria-se algo novo a partir da tradição existente. Com isso, reconhece-se que o conhecimento da base técnica e teórica dos experts, como ele os denomina, auxilia e facilita o processo composicional (GRASSI, 2008, p. 23). No entanto, ao classificar o processo criativo como uma forma de resolução de problemas, incluem-se à base técnica e teórica as experiências pessoais do compositor. “Os fatores pessoais estão intimamente ligados à experiência do sujeito e envolvem estruturas do conhecimento como a memória, a capacidade para fazer analogias e a utilização de estratégias na resolução do problema.” (p. 25). Nesse sentido - e como em outros processos criativos das diversas linguagens artísticas -, o aspecto objetivo das bases técnicas e teóricas se associa ao aspecto subjetivo das experiências pessoais do sujeito, na resolução criativa da composição.
Ao associar o processo composicional à resolução de problemas, percebe-se que Grassi expande a associação objetivo-subjetivo a qualquer situação na qual há um problema a se resolver, ou seja, quando há a necessidade de uma resolução de problema que exige inovação, as abordagens objetivas e subjetivas se conjugam. A isso Grassi acrescenta ainda outro elemento à resolução de problemas: o insight:
Segundo Sternberg (2000), os insights fazem parte de pensamentos comuns que estão associados à reconceituações de um problema ou de uma estratégia, de um modo totalmente novo. Sua ocorrência está ligada à detecção e combinação de informações relevantes (antigas e novas), de modo que o solucionador possa obter uma visão inédita do problema ou de sua solução. Esta visão do insight, também conhecida como “nada-de-especial”, sugere que os conhecimentos prévios cumprem um papel importante na capacidade criativa, já que estes influenciam a maneira como percebemos, entendemos e manipulamos novas informações. Neste sentido, Weisberg (2006) propõe que o pensamento criativo advém de processos de pensamento comuns em que a expertise do solucionador, a influência do meio e a estrutura de nosso pensamento (revelada em etapas através do uso de analogias e da lógica) são suficientes à produção de produtos “extraordinários”. (GRASSI, 2008, p. 37).
Conforme o autor, o insight ocorre quando há a convergência de diferentes fatores cognitivos e experienciais, isto é, das vivências pessoais do sujeito e do arcabouço teórico e prático da sua expertise, a fim de proporcionar uma nova perspectiva ao problema posto. Dessa forma, não é possível inovação, sem que haja uma convergência de experiências e saberes, mesmo que tradicionais, a partir de uma perspectiva singular. Dado insight não se repete e possibilita uma inovação, porque é apenas do sujeito produtor daquele insight a convergência ativa de experiências e saberes singulares. É possível também o insight fruto de duas pessoas ou mais, quando há uma ação ativa e colaborativa a favor da resolução de um problema, necessitando de uma partilha de bases epistêmicas e experienciais, de maneira a conjugá-las ativamente. Mesmo no caso de mais pessoas, é apenas a convergência dessas singularidades objetivas e subjetivas que permite determinada resolução criativa a dado problema.
No aspecto objetivo, Grassi (2008, p. 42) afirma a essencialidade da expertise para o processo criativo: “[...]um primeiro indício da importância que a expertise tem na produção criativa é a necessidade que o sujeito tem de desenvolver habilidades específicas junto a uma ‘tradição’, para só depois poder superá-la.” Nesse sentido, o processo criativo não surge do nada, mas, sim, de uma base provocada pelo uso da tradição que se conhece como parte das experiências pessoais. O compositor conjuga livremente as estruturas da tradição às suas experiências, a fim de compor. Entretanto, é a expertise que lhe assegura essa liberdade.
A subjetividade confere à obra sua singularidade, porque cada sujeito possui perspectivas e experiências singulares na vida; já a objetividade da expertise lhe garante seu caráter criativo, porque depende de o compositor delimitar os pontos de partida e de chegada da sua composição. Logo, “[...] é necessário que o compositor domine as técnicas apropriadas ao estilo de composição escolhido, para que possa estabelecer objetivos finais e intermediários que o possibilitem empregar as estratégias mais adequadas para chegar com mais facilidade e eficiência a uma solução.” (GRASSI, 2008, p. 45).
Assim, é a própria expertise que delimita as restrições sobre as quais o compositor empreende criativamente. O autor aponta para possibilidades de estilos composicionais constituídos de tradições e estruturas próprias, as quais se devem seguir para manter certa fidelidade ao estilo. As restrições não tornam as obras menos criativas ou novas, pelo contrário, é o domínio sobre as características próprias de um estilo que torna possível superá-lo. A superação não é a destruição da tradição, todavia, uma contribuição criativa que a inova, a partir da singularidade do sujeito que compõe.
Quanto ao papel do intérprete, Ana Claudia Assis traz uma análise histórica do trabalho do intérprete, no seu artigo “Fazer música, fazer história: indagando o papel do intérprete contemporâneo” (ASSIS, 2018, p. 127-131), apontando que há uma noção flutuante do que é interpretar a música. Mesmo na noção tradicional, na qual o musicista se dedica a interpretar a composição conforme sua escrita, há variações ao longo da história sobre o que significa essa fidelidade, seja de reproduzir as intenções do compositor através da partitura, seja de resgatar o estilo de se tocar do período da composição, seja ainda, com o advento dos avanços tecnológicos, da influência da qualidade técnica trazida pela indústria fonográfica. Na contemporaneidade, Assis (2018, p. 132) percebe que a fidelidade interpretativa da partitura e da técnica está associada à liberdade criadora:
Assim também a interpretação musical, e no caso específico da interpretação de uma obra contemporânea, ao se realizar no decurso do tempo em performance, revela e articula em cada instante do tecido do tempo musical que delineia, memórias, afetos, referências sonoras do passado em permanente crítica e atualização/re-significação de sentidos. Convite à escuta ativa, a interpretação da música contemporânea articula a tensão entre tradição e liberdade criadora através de modos individuais de ler uma determinada partitura/documento, pois a inexistência de um coloquialismo idiomático que regule modos de tradução deste repertório favorece o desenvolvimento constante de interpretações originais (CARVALHO, 2016, p. 50). Daí o surgimento de uma prática comum em nossos dias, na qual determinadas obras passam a ser quase que exclusivas do intérprete que a estreou (e muitas vezes a quem foi dedicada) constituindo, assim, parte de um repertório individual. Na base desta prática está o interesse crescente dos intérpretes da música contemporânea pela realização de obras inéditas, muitas vezes sob encomenda, fomentando a criação de repertórios personalizados.
Interessa-nos considerar a historicidade do intérprete, porque, conforme mostra a pesquisa de Assis (2018), a criatividade também está presente na interpretação de uma peça historicamente situada. Assim como o compositor, o intérprete necessita dominar a teoria e a técnica do instrumento que toca e da leitura de partitura. No entanto, a partitura abre brechas para leituras criativas, apesar de sua notação abordar aspectos estruturais da música, como altura, volume, timbre e ritmo. É nessas brechas que se descortinam as discussões quanto a que se deve a fidelidade da interpretação musical, além da própria criatividade interpretativa do musicista. Na contemporaneidade, a liberdade criadora do intérprete alinha-se à do compositor, no sentido de abarcar a objetividade das bases técnicas e teóricas e a subjetividade das experiências pessoais. Nesse sentido, o intérprete não só reproduz a obra, mas insere sua singularidade na sua execução e, com isso, por mais que interprete a obra de outro compositor, o intérprete é capaz de exprimir sua visão e expressão sobre a obra, através de um diálogo ativo com a partitura.
Nota-se que, mesmo havendo certo consenso sobre os papéis ocupados pelo compositor e o intérprete, a singularidade criativa dos sujeitos está presente tanto na composição quanto na interpretação. Essa liberdade criativa do intérprete ocorre ao disponibilizar-se a uma leitura ativa; sem as amarras de uma leitura estritamente técnica que visa aos intentos do compositor, há espaços para o intérprete colocar-se como agente criador junto à partitura:
Parece evidente na criação do compositor a condição dialógica do termo liberdade criadora. Ela só existe em relação a algo que lhe é anterior e, ao mesmo tempo, em constante atualização. Ela só existe em relação à tradição e ao contexto nos quais o compositor (ou o intérprete) se insere. Daí a metáfora da “ponte entre duas margens de um rio”: o passado e o presente. [...] toda obra de arte incide num processo inconcluso em que cada nova obra altera a anterior, cada obra “fecha e abre simultaneamente velhas e novas etapas”, num movimento em espiral sempre aberta. (ASSIS, 2018, p.131-132).
Assis (2018) resume os processos criativos, de forma esclarecedora, e compartilha da ideia de Grassi (2008), quanto ao papel constituinte da tradição para novas criações. Evidencia-se, com esses dois autores, que há uma reverência ao que já foi produzido musicalmente, ao longo da história da humanidade, e, apesar disso, a música não é estanque e há espaço para a criação, seja ela como compositor, seja como intérprete, e que ambas as funções se beneficiam uma da outra, a fim de enriquecer o espectro musical para aqueles que o desfrutam.
2.2 O termo da Filosofia na analogia
A leitura e interpretação dos textos clássicos da Filosofia são também um modo pelo qual eles permanecem vivos. Se ninguém mais os lesse, por melhores que fossem, eles deixariam de ter importância no momento presente da atividade filosófica, o que seria ruim não apenas para os textos, que seriam esquecidos, mas, talvez principalmente, para o pensamento filosófico do presente, o qual deixaria de tê-los como parte ativa de sua existência atual. Dessa forma, assim como a interpretação das Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos traz presente essa obra e esse autor ao fazer musical de hoje, a leitura da Metafísica de Aristóteles é parte do fazer filosófico do presente.
Certamente, a orquestra que toca as Bachianas está fazendo música, no sentido de “executando a música”, de torná-la presente na vida dos músicos e da plateia. Todavia, a orquestra não está fazendo música no mesmo sentido em que Villa-Lobos fez, ao compor aquela série. Se ninguém mais tivesse executado as Bachianas, isso não alteraria em nada o fato de que Villa-Lobos fez música, ao compô-la. Por outro lado, se ninguém jamais houvesse composto nenhuma peça musical, não haveria como tocar nenhuma música. Isso significa que a atividade de composição é logicamente anterior à de execução. No entanto, são ações interdependentes, porque visam ao objetivo final, como obra artística, da fruição por parte de um público, porque, por mais que exista a composição na sua forma escrita, como partitura, é o intérprete que veicula a experiência sonora ao espectador; a produção final é a experiência sonora, não a escrita. Aqui se coloca uma das primeiras diferenças na analogia entre Música e Filosofia.
Essa tese da anterioridade lógica da composição em relação à interpretação se complica um pouco, no caso da “música aleatória” e mesmo do improviso, que deixam para o intérprete ao menos parte da tarefa de compor, pois neles a composição parece estar acontecendo ao mesmo tempo que a interpretação.14 Porém, esses casos não enfraquecem a ideia de que a composição e a criatividade são fundamentais para a Música enquanto arte, mas antes a reforçam. Trata-se de uma “invasão” do âmbito da composição criativa na atividade normalmente mais contida da interpretação musical.
Algo análogo pode ser dito de fazer Filosofia como leitura e interpretação dos clássicos: a escrita dos textos que posteriormente se tornaram clássicos é um pressuposto da atividade interpretativa. Assim como, se ninguém compuser, ninguém vai poder tocar uma música, se ninguém escrever, ninguém vai poder interpretar, o que significa que a atividade de escrita filosófica criativa é, para a Filosofia enquanto área do conhecimento, mais fundamental que a de interpretação. Essa tese se justifica, porque a obra escrita, por si, pode ser compreendida como a produção final, enquanto, na Música, a partitura é um meio para a experiência sonora.
Entretanto, assim como o conhecimento das composições consagradas é fundamental para a formação em Música, o conhecimento dos clássicos da história da Filosofia é central, na formação filosófica acadêmica. O exemplo de Villa-Lobos é eloquente, nesse caso, pois ele compôs uma série de obras que pretendiam ser, ao mesmo tempo, originais e evocadoras do gênio consagrado de Bach15, ou seja, sua composição estava intimamente ligada a uma interpretação. No caso da Filosofia, o estudo dos clássicos dá aos estudantes os modelos acerca dos temas, problemas e possíveis soluções para essas questões, um conjunto de ideias acerca do que constitui essa área. Estudantes de graduação, em um curso acadêmico de Filosofia, precisam estudar os clássicos, com a finalidade de entender a abordagem específica dessa área, a respeito de questões tratadas também por outras áreas, como é o caso da religião.
Além disso, estudar Filosofia na academia é aprender as principais posições tomadas em um debate, de modo que, para conhecer filosofia da religião, se supõe aprender, por exemplo, o debate acerca da existência de Deus, que acontece desde a antiguidade, tomando contato com os diversos argumentos contra e a favor, em suas diferentes versões. Conhecer esse debate o mais profundamente possível - ou, pelo menos, as teses mais recentes envolvidas na discussão - é uma condição para poder contribuir com ele. Assim como Villa-Lobos precisou conhecer profundamente as obras de Bach, para compor as Bachianas Brasileiras e, assim, contribuir internacionalmente com a arte musical, estudantes de filosofia da religião precisam conhecer as cinco vias de Tomás de Aquino, as críticas de Kant à teologia natural e a alternativa probabilística de Richard Swinburne, entre outras contribuições importantes, para poderem trazer algo de novo sobre a argumentação sobre a existência de Deus.
Por outro lado, essa estreita relação não deve nos levar a pensar que fazer história da Filosofia é o mesmo que fazer Filosofia autoral. O historiador da Filosofia, para fazer uma correta interpretação de uma obra, vai se perguntar, por exemplo, acerca do contexto no qual Kant escreveu suas objeções aos argumentos sobre a existência de Deus, na Crítica da Razão Pura, investigar a estrutura de sua argumentação, nesse livro, compará-lo com outros trabalhos nos quais Kant tratou desse assunto, ou com a estrutura argumentativa dos textos que ele levou em conta, na escrita de suas críticas. Uma correta interpretação do que Kant disse vai exigir conhecer o momento histórico, o contexto intelectual, a língua na qual ele escreveu originalmente, as diferentes versões do texto, o debate dos especialistas na obra de Kant, entre outros elementos. Trata-se de um trabalho altamente especializado, que exige anos de formação e tem, sem dúvida, uma função importante na Filosofia acadêmica, tanto na preparação de novas gerações de filósofos quanto em si mesmo, como conhecimento factual a respeito do que pensaram grandes autores da história do pensamento filosófico. Temos, assim, os especialistas em autores ou escolas de pensamento, análogos aos instrumentistas especialistas em determinados compositores. Mas isso é bem diferente de fazer filosofia autoral.
A principal diferença entre fazer história da Filosofia e fazer Filosofia autoral está no propósito, na intenção. Além de maestro e de tocar outros instrumentos, Villa-Lobos era violoncelista e, como tal, havia interpretado várias peças de Bach, como os Concertos de Brandeburgo, por exemplo. Mas, quando tocava Bach, Villa-Lobos visava a um propósito diferente do que se propunha, quando compôs as Bachianas. Embora tivesse um toque pessoal nas suas interpretações dos Concertos de Bach, o objetivo de Villa-Lobos, nesse caso, não era criar uma obra nova, mas, sim, executar bem a peça. Ao compor as Bachianas, porém, ele obviamente se inspirou em Bach, contudo, sua intenção era criar algo novo, algo que acabou sendo uma contribuição para a história da Música.
Assim, a pergunta que faz alguém que se propõe escrever filosofia autoral não é “qual é o melhor modo de interpretar o autor X”, mas, sim, “está certa essa ideia (dita pelo autor X)?”, “em que essa ideia contribui para entender o assunto Y?” Responder à pergunta acerca da verdade ou da correção (ou o objetivo epistêmico, com a concepção de verdade ou falta dela, que se tiver) de uma concepção é algo que pode começar com informações de história da Filosofia. Posso escrever um texto autoral, partindo das teses de Kant sobre a possibilidade de se formularem argumentos sobre a existência de Deus. Meu texto será histórico ou autoral, a depender da questão que eu tiver a intenção de responder.
Certamente, o conteúdo e a forma da minha questão e da minha resposta em filosofia autoral vão dever muito ao que eu já li sobre o assunto. E minha leitura, ainda que seja sobre o debate ocorrido nos últimos vinte anos, vai exigir em algum grau os cuidados típicos de quem quer entender com fidelidade o que foi escrito. Nesse sentido, acontece na Filosofia algo análogo ao que indicamos acima com a Música: a criação é enriquecida e tem como condição o conhecimento daquilo que já foi produzido antes. Mesmo assim, porém, pode-se dizer que são diferentes os problemas a que se voltam a história da Filosofia e a filosofia autoral, assim como são distintas as questões que tratam a interpretação e a composição musical.
Todavia, há uma diferença importante entre os casos da Música e da Filosofia. Um texto filosófico frequentemente se opõe ou se alinha a uma ideia e pode ser criticado quanto à pertinência das ideias, à profundidade da especulação ou da análise e à validade dos argumentos. Uma peça musical se relaciona com outras de maneiras diferentes, podendo ser criticada também de modos distintos. É verdade que podemos usar uma peça ou um compositor como referência para avaliar outro. Mas isso é diferente da pergunta filosófica sobre a verdade ou pertinência de uma tese. Quando me inspiro em outra peça, na minha composição, não estou me opondo a ela, tampouco a defendendo. Essa diferença na forma como pode ser usado o estudo das obras anteriores na autoria em Música e Filosofia é um dissemelhança relevante a ser considerada nessa analogia.
Outra diferença importante é o modo como são relativamente valorizadas a autoria e a interpretação na Música e na Filosofia, no Brasil. Embora se formem muito mais instrumentistas que compositores e seja mais comum se ouvir a interpretação de obras consagradas do que de composições mais recentes, não se questiona a importância de se formarem novos compositores no panorama musical acadêmico brasileiro. No caso da Filosofia acadêmica entre nós, porém, o fato mesmo de se dedicar uma edição de um periódico importante da área para a questão da filosofia autoral já mostra que se trata de algo muito menos pacífico. Talvez isso se deva à forma como teve início o estudo da Filosofia no meio universitário brasileiro e o fato de que, na instituição que nossa área tem como referência principal, a história da Filosofia seja o modo padrão de se trabalhar. Outra hipótese possível é o chamado “complexo de vira-lata”, o qual levaria a pensar que o melhor que podemos fazer em Filosofia é ler o que os outros escreveram, pois não temos talento ou aptidão para propor ideias filosóficas.
Com certeza, podem ser dadas boas explicações para nosso estado de coisas, mas isso não significa que não possamos defender uma mudança em relação a ele, de sorte que tenhamos condições também de formar quem se arrisque a pensar problemas novos, com soluções inovadoras. Não há por que pensar que a Filosofia se resuma apenas a ler os clássicos, pois eles precisaram ter sido escritos um dia para que os leiamos hoje, e não há por que pensar que não possamos (ou mesmo devamos) escrever hoje aqueles que poderão ser os clássicos de amanhã. Na verdade, a filosofia autoral não precisa mirar somente em grandes inovações que vão revolucionar a história da Filosofia. Uma filosofia criativa já se expressa em pequenas contribuições para um debate específico. O importante de uma filosofia com intenção original é tentar entender melhor os conceitos filosóficos em questão, ousar criticar as ideias que estão colocadas e propor um entendimento mais aprofundado. Precisamos valorizar mais a composição filosófica, no Brasil, seja ela análoga a uma grande sinfonia, seja a uma pequena variação ou um improviso a partir de um tema.
Além disso, a formação de autores não é igual à de leitores. Os desafios da preparação para a autoria em Filosofia são diferentes dos que estamos acostumados a enfrentar, no ensino, para formar especialistas nas obras filosóficas clássicas, como bem sabem nossos colegas da Música, quando ensinam composição e interpretação. A analogia desenvolvida nesta parte visava a defender a diferença entre filosofia autoral e interpretação de obras consagradas, a inter-relação entre essas duas maneiras de fazer filosofia e a importância de se desenvolverem os dois modos do fazer filosófico.
A próxima e última seção deste artigo pretende tratar, mesmo brevemente, dos problemas ligados à formação em filosofia autoral.
3 Condições de uma Formação para a Filosofia Autoral: Algumas Sugestões com uma Ajuda da Psicanálise
Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção. (Caetano Veloso. Língua, 1982).A partir do exemplo da filosofia da religião, defendemos que há ainda caminhos a percorrer, a fim de instaurar na filosofia brasileira produções criativas com intuito autoral, aliadas ao amplo trabalho que vem sendo desenvolvido em história da Filosofia. Considerando a analogia com a Música, argumentamos que, para a autoria criativa em Filosofia, também são imprescindíveis bases teóricas sólidas da tradição filosófica, com a qual se pretende contribuir e daí avançar. Para isso, tal qual na Música ou qualquer outra área do conhecimento, é necessário muita dedicação e estudo até que o estudante se torne um expert ou possa dar sua contribuição.
Em se tratando de formação para a Filosofia autoral, no meio acadêmico, o principal foco da presente seção é a dinâmica em sala de aula, a qual possibilita caminhar em direção à produção criativa, iniciando-se na graduação, até que o agente tenha as bases adequadas para a produção autônoma madura, normalmente a partir do grau de doutoramento. A tese que vamos desenvolver tem como foco não a Filosofia como área do conhecimento objetiva (que se deve aprender em sua história ou em seus debates específicos), mas no modo como ela é aprendida subjetivamente na formação universitária. O objetivo é ajudar a esclarecer pelo menos algumas condições que propiciem o desenvolvimento da criatividade filosófica.
A abordagem psicanalítica é bastante corrente nas ciências da educação, especialmente no tocante a questões que envolvem a formação para a criatividade. Assim, com um compromisso que não precisa ser mais que instrumental, para aprofundar o entendimento da subjetividade na produção filosófica, utilizaremos alguns conceitos psicanalíticos que permitam analisar as dinâmicas subjetivas que operam em sala de aula na tríplice fórmula aluno-professor-conhecimento a fim de proporcionar ou não a produção criativa. O conceito de “transferência” fornece um campo fértil para analisar a dinâmica da produção criativa dentro da universidade. Segundo D. A. Santos, em Afeto e Transferência na Constituição do Sujeito (2015), compreende-se a transferência como um dos conceitos fundantes da psicanálise e diz respeito à atualização das experiências constituintes primárias marcadas pela autoridade e afeto. Segundo ele, já em A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud apontou que as primeiras relações que o sujeito experiencia são com as figuras parentais, constituindo a partir daí as representações que ele internaliza. Ao se integrar gradativamente a círculos sociais cada vez maiores e mais complexos, o sujeito se relaciona com outros, os quais também lhe dão afeto e assumem o lugar de autoridade, como, por exemplo, o analista ou o professor:
Há, impreterivelmente, uma ligação entre a transferência e o desejo: o desejo de quem almeja passar algo e o do “Outro” que anseia receber algo, o que, no caso do ser humano, podemos interpretar como os cuidados iniciados desde a infância com a sua ligação parental até o que constitui o processo de ensino-aprendizagem. (SANTOS, 2015, p. 33).
No entanto, o sujeito não simplesmente repete suas experiências parentais, mas a experiência atual permite a ele uma nova vivência de afeto e autoridade que atualiza suas experiências constituintes:
[...] o fenômeno transferencial, que passa a ser compreendido como lugar de acontecimento de experiências. Logo a transferência passa a representar o “lugar” da emergência do novo, lugar da constituição do ser humano, numa compreensão em que o ser humano estaria continuamente no “entre” e sua constituição como ser humano passa então a acontecer a partir do encontro com o “outro”. Dessa maneira, a transferência apropria-se também como experiência intersubjetiva. (SANTOS, 2015, p. 34).
À medida que o sujeito envelhece, as relações transferenciais se tornam cada vez mais complexas, por envolverem certas expectativas sobre os afetos e as autoridades pertinentes a determinadas figuras e instituições. Assim, a transferência opera a partir do desejo de que certas expectativas se concretizem e na sua adequação - frustrada ou não - à realidade.
Conforme Colpo, Escobar e Ravasio, em “Reflexões Psicanalíticas sobre a Ação Educativa no Ensino Superior” (2008), a relação transferencial estabelecida pelo aluno se direciona ao saber do professor e à reputação da instituição de ensino superior que o professor integra e representa. Dessa forma, a expetativa transferencial de afeto e autoridade está atrelada à instituição e ao conhecimento, sendo o desejo pelo conhecimento e a relevância desse conhecimento que sustentam a relação entre professor e aluno:
Ao tomar conhecimento do plano de ensino, a comunidade acadêmica poderá interpretar quem é o professor que ministra a disciplina, a que veio, o que sabe da área, qual seu compromisso com os acadêmicos e qual sua relação com a disciplina. A organização do plano de ensino diz quem é o professor, por isso, se dá grande valor a sua estrutura, este plano também pode ser o documento que segue o aluno, e o dirige a uma posição. Desta forma, o plano de ensino também é um documento que apresenta formalmente a instituição, o curso, a disciplina e, consequentemente, o professor universitário. Instaura-se um primeiro traço identificatório no processo de ensino aprendizagem .(COLPO; ESCOBAR; RAVASIO, 2008, p. 101-102).
Com isso, os autores apontam que é na formalidade da instituição e na organização da disciplina que se deposita o desejo de conhecimento, e esse traço identificador diz respeito às expectativas postas sobre o professor e suas competências. Dessa maneira, o sujeito passa a se identificar com o ambiente acadêmico, através do ensino-aprendizagem em sala de aula, e é, efetivamente, o professor que o conduz a tal. No entanto, essa condução só é possível, quando as expectativas de aprendizagem são justificadas e se estabelece a transferência. Calcada no desejo de saber e na confiança de que o professor é capaz de suprir esse desejo, a transferência que parte do aluno confere ao professor sua autoridade e o torna receptor e doador de afeto. Ambos, autoridade e afeto, estão ligados ao conhecimento, ou seja, a autoridade só se estabelece, porque há a confiança de que o aluno aprenderá com o professor, e o afeto dirige-se ao reconhecimento dessa aprendizagem do e no aluno.
Além da transferência que parte do aluno, há a contratransferência, a qual parte do professor e das expectativas que são atendidas ou não. Além disso, a contratransferência é uma resposta inconsciente à transferência:
Freud (1910) defende que a transferência é vivida pelo paciente ao mesmo tempo em que a contratransferência é vivida pelo analista. Na escola, o mesmo acontece quando o aluno “confunde” o professor com figuras importantes da sua vida. O docente possivelmente contra-reagirá àquela situação, respondendo de forma inconsciente aos sentimentos do aluno. (BODINI; OLIVEIRA; PASQUALINI, 2011, p. 133 -134).
Nesse sentido, alunos e professor estão inseridos em um cenário de ações e reações inconscientes que mobilizam as relações em sala de aula. Conforme o psicanalista David Levisky (1995), percebe-se a transferência e a contratransferência a posteriori, quando as reações escapam, normalmente através da comunicação não verbal, na postura corporal e na entonação da voz. A transferência e a contratransferência estabelecem os laços relacionais em sala de aula, e é partir destes que o desejo pelo conhecimento e pelo momento de aprendizagem se consolidam, ao longo do período de ensino-aprendizagem. O professor, como autoridade epistêmica, outorgado por seu investimento em pesquisa, pela reputação da instituição e pela confiança do aluno, é o responsável por fomentar o pensamento e a produção criativa. Esse fomento à criatividade é possível quando, apesar de seu arcabouço técnico e/ou teórico, o docente se reconhece não todo ou faltante e abre espaço para o diálogo, a fim de que os alunos manifestem suas percepções e insights.
Vejamos um exemplo disso, na área de Filosofia. No artigo “A School for Philosophers” (1957 [1972]), R. M. Hare discorre acerca da formação de graduandos dentro da faculdade de filosofia na Universidade de Oxford, Reino Unido. Um dos pontos fundamentais desse processo é um tipo de atividade chamada tutorial, na qual o estudante deve ler um pequeno texto seu ao professor, em uma reunião semanal geralmente envolvendo apenas os dois. O texto deverá se basear em bibliografia indicada na semana anterior, mas o aluno deverá se posicionar em relação a ela, ou seja, deverá dizer o que pensa daquelas ideias e por quê. Hare elenca algumas características que os professores adotam, na tutoria de seus alunos e durante as reuniões mais amplas dos grupos de pesquisa: não há campo restrito ou hierarquia impeditiva, todo e qualquer sujeito que deseje participar dos debates ou empreender uma pesquisa tem o aval da instituição sobre o seu posicionamento, contanto que possua bases sólidas suficientes para sustentar-se à avaliação dos pares.
Assim, os alunos se encontram em um ambiente criativo de ensino e aprendizagem, apoiando-se na tradição para sustentar suas posições e, no caso de perceberem incompletos, inconclusos ou insustentáveis seus posicionamentos, retornam à tradição para consolidar seu conhecimento, ou aproveitam as ideias do debate para aperfeiçoar suas ideias. Essa relação estabelecida entre aluno, professor e conhecimento, citada e exercida em Oxford, segundo Hare, aponta para o espaço onde o pensamento criativo se abre, quando se adota uma atitude de saber-se não todo pelo professor:
[...] se o professor se coloca na posição de que tudo sabe, não resta ao aluno desejo algum. Resta-lhe apenas submeter-se à figura do mestre. Dessa maneira, a posição que o professor deve ocupar não é exatamente aquela em que o aluno lhe coloca, melhor dizendo, para que o aluno se constitua enquanto sujeito pensante, o professor deve reconhecer-se castrado, isto é, um ser em falta. Ao mesmo tempo, não deve deixar sua posição de representante do conhecimento, caso contrário, o aluno não pode supor-lhe o saber, não se estabelece, portanto, o dispositivo da ação educativa. (MONTEIRO apudCOLPO; ESCOBAR; RAVASIO, 2008, p. 109).
Encontra-se, no exemplo de Oxford, uma produção filosófica autoral que ativamente se sustenta sobre a tradição e na colaboração de uma comunidade de investigação, de sorte a iluminar novos conhecimentos. Em seu artigo, Hare ainda ressalta que todos estão submetidos a essa mesma lógica, professores e alunos; assim, os docentes assumem o lugar de não todo a favor de uma filosofia criativa e dinâmica, mas sem abrir mão da função de professores que orientam a favor da ação educativa.
No entanto, vale reconhecer o contexto do professor de Filosofia, no Brasil, onde a profissão de docente e as instituições de ensino são desvalorizadas de vários modos.16 O que sustenta a busca por essa profissão e por essa área do saber é o desejo de ensino e o desejo de conhecimento compartilhado por alunos e professores, mas frequentemente se busca satisfazer esse desejo de formas menos edificantes. Na sua tese de doutorado O desejo de saber e suas vicissitudes - da escola à universidade: um enfoque psicanalítico (2005), T. Scorsato aborda como o desejo do professor pode se sobrepor ao desejo dos alunos, apoiando-se no respeito à sua autoridade epistêmica encontrada dentro do ambiente acadêmico, nos espaços de pesquisa e na sala de aula. Nesse contexto, é possível ponderar a resistência em assumir-se não todo e abrir espaços para que alunos percebam uma possível precariedade ou falta. Sendo a sala de aula o lugar onde se manifesta algum tipo de reconhecimento e valorização, é possível o professor fechar-se na vaidade de sua autoridade simbólica e expressar apenas o seu desejo sobre o conhecimento, sem abrir espaços para o desejo dos alunos, anulando-os a uma interpretação restritiva do legado filosófico importado e já consolidado. Aprende-se a tradição para repeti-la e se estabelece a autoridade apenas para se manter uma relação de poder:
Transmitir a verdade como preestabelecida impede o outro de produzir uma versão própria sobre o mundo e aí produzir novos saberes. A ciência pedagógica que seja capaz de transmitir o conhecimento sem imperatividade e também sem desorientação deixa aberto o campo dos saberes como um saber a ser produzido e situa o sujeito como agente de seu processo, permitindo a possibilidade de construir aprendizagem via versão própria e produtora de novos conhecimentos. (SCORSATO, 2005, p. 50).
A depender da transferência dos alunos, com suas expectativas frustradas ou não, a contratransferência pode trazer estados de criação, vaidade ou ressentimento. Isso significa que, sendo o depositário da confiança de aprendizagem e tido como representante do saber e da instituição, é o aluno que confere ao professor sua autoridade. Juntamente, o professor reconhece seus esforços para ocupar sua função e espera dos alunos o respeito apropriado ao ambiente acadêmico e a dedicação à pesquisa. Quando há o reconhecimento da falta nessa dinâmica de transferência e contratransferência, alunos e professor se encontram em espaços de diálogo a favor da aprendizagem e da produção criativa. Quando o professor assume o lugar de suposto saber desejado pelos alunos, a vaidade se instaura e não há espaço para o diálogo, mas apenas para a reprodução do conhecimento do professor. Quanto ao ressentimento, esse encontra campo fértil, quando nenhuma das expectativas é atendida.17
Isso nos leva de volta ao processo criativo composicional, no qual é necessário apoiar-se na tradição e no debate, para criar algo novo; assim também é, pelo menos parcialmente, o percurso para uma filosofia autoral. Na filosofia acadêmica, normalmente, na graduação, os alunos adquirem as bases das tradições filosóficas; no mestrado, consolidam-se na área de sua preferência para, no doutorado, contribuir criativamente. Contudo, para contribuir originalmente, é preciso que haja também incentivos para empreender nesse processo desde o começo, ou seja, saber como abordar criativamente a tradição filosófica. Como qualquer outra prática, essa também precisa ser estimulada junto à consolidação das bases epistêmicas da tradição.
Assim, na formação para uma filosofia criativa, não basta retornar aos clássicos: é preciso lê-los de modo ativo, como interlocutores, como participantes mais experientes de uma coletividade que tem como finalidade o pensamento filosófico crítico. A leitura ativa certamente exige a busca da compreensão a mais fiel possível daquilo que foi escrito, e nisso, entre outras coisas, a história da Filosofia será de imensa utilidade. No entanto, além de compreender bem um texto em seu contexto e suas articulações lógicas internas, ler os clássicos como interlocutores exige guiar essa atividade por questões, buscando no texto eventuais respostas ou um aperfeiçoamento das perguntas. Ler com um propósito crítico significa colocar o texto em crise, ao mesmo tempo que quem lê se dispõe a aprender com ele. O propósito adequado da leitura dos clássicos a uma formação para a filosofia autoral é uma compreensão conceitual mais profunda de um assunto, é pensar melhor sobre um tema e não a correta interpretação apenas, tampouco a apreciação estética do texto.
Tomar as grandes filosofias do passado como interlocutoras para o pensamento crítico significa que a formação para uma filosofia criativa precisa de uma comunidade de investigação, por meio da qual as ideias possam ser aprofundadas pelo debate. A formação filosófica acadêmica não se restringe à sala de aula; a participação em grupos de pesquisa é um meio fundamental de aprendizado, não somente dos conteúdos da área, mas também dos modos como seu tipo específico de conhecimento se desenvolve. O exercício de escrever um texto sobre um assunto e submetê-lo à discussão de um grupo de pesquisa especializado é uma forma particularmente importante de incentivo à educação de filósofos que possam contribuir com a área, originalmente.18
Além disso, assim como há técnicas que ajudam na elaboração de um bom trabalho em história da Filosofia, há também recursos que podem ajudar na escrita de um texto filosófico com intenção criativa. Métodos de análise lógica e probabilística podem auxiliar na preparação de argumentos dedutivos, indutivos ou pela melhor explicação. A formulação de experimentos de pensamento ou a proposição de contraexemplos para teses filosóficas consagradas são igualmente exercícios úteis para o propósito da inovação filosófica. Um diálogo com as artes, as tradições religiosas e as ciências empíricas e formais - e não apenas com o debate em Filosofia, como temos na formação filosófica acadêmica, tradicionalmente - pode ser também uma fonte interessante de problemas e soluções inovadoras em Filosofia. Mas esses são apenas alguns instrumentos possíveis e não devem levar a confundir a proposta de filosofia criativa com a defesa da chamada “filosofia analítica” (se é que essa expressão tem um significado unívoco, hoje em dia) ou de um modo de filosofar que se dá predominantemente com o uso de recursos formais de argumentação.
Por fim, a formação para a filosofia criativa precisa de uma dosagem correta de crítica aos erros (de principiante ou não) e estímulo a continuar na busca pelo pensamento inovador. Faz parte do processo de formação para o pensamento criativo a indicação dos defeitos do texto escrito ou da apresentação oral. Isso certamente pode incluir indicar o quanto as suas ideias boas não são originais e o quanto as suas ideias originais não são boas. A atitude de humildade intelectual, no sentido de se dispor a aprender com os interlocutores do passado e do presente, é uma virtude fundamental no processo de formação para a filosofia autoral. Entretanto, a indicação de lacunas no conhecimento do debate filosófico sobre o assunto tratado, da superficialidade da análise ou da reflexão, ou de erros na estrutura da argumentação não deve levar a um desestímulo no desenvolvimento de pensar criativamente. Leva tempo e se exige paciência para se tornar um especialista em um ponto específico da história da Filosofia, e o mesmo acontece com a filosofia autoral. A crítica deve servir para levar adiante, não para exterminar o futuro.
Considerações Finais
Conforme o percurso empreendido no presente artigo, apresentam-se algumas considerações finais acerca da pertinência e possibilidade de se incentivar a produção filosófica criativa nacional, tomando-se o caso do desenvolvimento recente da filosofia da religião, no Brasil. Percebeu-se, com a analogia à composição e interpretação musical, que não há o intento em desvalorizar a atual produção filosófica voltada à abordagem histórica, mas acrescentar outras possibilidades de fazer Filosofia. Como o compositor precisa do intérprete e vice-versa, observa-se que há benefício mútuo entre filósofos que se dedicam à escrita de novas ideias e os que se debruçam sobre a interpretação, visto que assim se diversifica a discussão contemporânea da filosofia nacional.
Por fim, compreende-se que uma abordagem criativa à Filosofia se torna profícua, se iniciada junto à aquisição das bases teóricas da tradição e do emprego de técnicas de argumentação e de escrita com propósito crítico, para que haja o exercício de criação de algo novo, a partir do legado existente. Tendo como foco a filosofia enquanto prática concentrada no ambiente acadêmico, discutimos a relação entre professor, aluno e conhecimento, a favor de momentos de diálogos criativos em sala de aula e na pesquisa. Experiências fora do Brasil mostram que é possível uma abordagem de ensino-aprendizagem criativa em Filosofia, a qual se sustenta nos pilares da tradição consolidada. Cabe reconsiderar a prática pedagógica nacional a favor de uma filosofia autoral e criativa.
Assim, quem sabe um dia possamos contribuir para a área de Filosofia (da religião e em geral) como Villa-Lobos contribuiu para a Música, Niemeyer para a Arquitetura e Machado de Assis para a Literatura, ou mesmo ser também capazes de participar com pequenas contribuições nossas, no debate sobre os temas em que se engaja a comunidade filosófica internacional, inclusive sugerindo novos assuntos e novas abordagens.19
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D. Z. Phillips é autor de vários livros e artigos em filosofia da religião, com uma perspectiva inspirada em Wittgenstein, entre os quais se destacam: The Concept of Prayer (1965) e Wittgenstein and Religion (1993) - traduzido para o português, em coedição da ABFR e Editora Reflexão, como Wittgenstein e Religião (2021).
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Infelizmente, o Prof. Phillips acabou não vindo ao Congresso, realizado na PUC Minas, em outubro de 2007, pois faleceu em 2006.
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Autor de várias obras em diversas áreas da filosofia contemporânea. Em filosofia da religião, são particularmente influentes: “A Way Out of the Euthyphro Dilemma” (cuja tradução para o português saiu na Revista Brasileira de Filosofia da Religião [2014]) e “The Myth of Religious Experience” (2004).
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Um pouco mais sobre o que caracteriza a filosofia da religião, em relação a outras áreas do conhecimento, as quais tratam desse fenômeno, pode ser encontrado em Portugal (2014).
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Ao que consta, ela aparece somente a partir do século XVII. Ver Micheletti, 2007, p. 156 e Di Ceglie, 2007, p. 43.
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Essas ideias se encontram principalmente nos fragmentos 11, 14, 15 e 16. Ver Kirk e Raven, 1979.
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Isso aconteceu já no 1º Congresso da ABFR, em 2005, no dia 17 de novembro, em umas das sessões que começaram às 16h30. Os expositores eram o Dr. Jair Barboza (então na PUC-PR) e o Dr. Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA). O mediador era o Dr. Ricardo Quadros Gouvêa (à época, na UFJF).
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Domingues os chama de “matrizes” (DOMINGUES, 2017, p. 476-481).
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Essa é também a avaliação de outra importante análise da atividade filosófica no Brasil: Diário de um Filósofo no Brasil (2013), de Julio Cabrera.
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Um exame rápido da programação dos encontros da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) mostra também essa predominância da abordagem histórica, em contraste com a temática. Outro indício relevante é o fato de que essa abordagem também predomina na USP, cujo programa de pós-graduação é a principal referência no país, há anos, na área.
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Para uma breve introdução à música aleatória, ver Griffiths, 2004. Um texto introdutório ao improviso no jazz como limiar entre interpretação e composição pode ser Tucker, 2004.
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Para uma análise das Bachianas, ver Barros, 2020.
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De acordo com o levantamento de A. Santos (2015), há cinco tipos de desvalorização do profissional da educação: o tipo econômico, o tipo social, o tipo psicológico, o tipo da obsolescência e o tipo da desqualificação ou da degenerescência. Ele embasou sua pesquisa em dados de abandono na profissão, nos estados de São Paulo e Minas Gerais, e no pouco interesse de alunos pelos cursos de licenciatura, além do crescente afastamento de docentes da sala de aula.
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Em seu livro Ressentimento (2011), Maria Rita Kehl traz uma análise psicanalítica sobre o ressentimento, nas diferentes esferas sociais, entendendo-o como um sintoma social que surge - grosso modo - a partir de certas frustações de desejos transferenciais que o sujeito acredita ser dado. A resposta do ressentimento é infligir sofrimento sobre outro mais fraco, em termos quer físicos, quer econômicos, quer políticos etc. Dentro da sala de aula, esse sofrimento pode surgir através de humilhações, perseguições e outros comportamentos poucos éticos, tanto da parte do professor como do aluno.
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Uma experiência particularmente interessante nesse sentido tem sido o Laboratório de Epistemologia da Religião da UnB, que vem acontecendo desde meados de 2018. O foco é a produção de textos autorais e é um espaço no qual estudantes de pós-graduação podem apresentar partes de suas dissertações e teses, ou docentes e pesquisadores podem expor seus trabalhos em andamento. Não há apresentação oral; os textos são distribuídos com antecedência para leitura dos participantes e a sessão de noventa minutos é inteiramente dedicada à discussão e aperfeiçoamento do texto. No tocante à graduação, uma estratégia interessante é empregar essa técnica em grupos de iniciação científica, nos quais cada graduando apresenta periodicamente um texto com os resumos das ideias do texto que leu e tenta refletir criticamente sobre ele, ao final.
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Um exemplo de inovação temática e de abordagem em filosofia da religião é o projeto coordenado pelo Dr. José Eduardo Porcher, com apoio da Fundação John Templeton e intermediado pela ABFR, sobre filosofia das religiões afro-brasileiras, intitulado Expanding the Philosophy of Religion by Engaging with Afro-Brazilian Traditions [Expandindo a filosofia da religião pelo engajamento com tradições afro-brasileiras], cuja descrição pode ser encontrada em https://www.templeton.org/grant/expanding-the-philosophy-of-religion-by-engaging-with-afro-brazilian-traditions. Acesso em: 05 jan. 2023.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Ago 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
29 Ago 2022 -
Aceito
04 Dez 2022